DIREITO CONTRAORDENACIONAL
DIREITO DE CULPA
Sumário

Considerando o direito contraordenacional como um direito de culpa, mostra-se essencial que se provem os factos relativos à culpa.

Texto Integral

Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
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I – RELATÓRIO

I – Relatório

1. Por decisão proferida no âmbito do proc. de contraordenação n.º …/…/2023 pela Câmara Municipal de …, foi aplicada a AA, com os demais sinais dos autos, uma coima no montante de € 6.000,00 (seis mil euros), pela prática de contraordenação prevista e punida pelos artigos 16.º, n.º 1 e 28.º, n.º 1 , alínea d), ambos do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 287/2007, de 1 de janeiro.

Não se conformando com a decisão administrativa, a arguida impugnou-a judicialmente perante o Juízo Local Criminal de …, ao abrigo do disposto no artigo 59º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27/10, actualizado pelos D. L. nº 356/89, de 17/10 e nº 244/95, de 14/09.

2. Por decisão de 7 de janeiro de 2025, foi decidido:

“Em face do exposto, o Tribunal julga improcedente o recurso e decide:

a) Manter integralmente a decisão administrativa recorrida, que condenou a recorrente AA, na coima de 6.000,00€ (seis mil euros) pela prática de uma contraordenação ambiental leve, a título doloso, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1 e 28.º, n.º 1, alínea d), ambos do RGR;

b) Condenar a recorrente nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) UC, em conformidade com os artigos 92.º, n.º 1, 93.º, n.º 3, ambos do RGCO, artigo 8.º, n.º 9 do RCP e tabela III a este anexa, tendo-se em consideração a taxa de justiça já paga.

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Notifique-se e deposite, em cumprimento do artigo 372.º, números 4 e 5, do Código de Processo Penal aplicável por remissão do artigo 41.º, do RGCO.

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Comunique-se à Câmara Municipal de …, cfr. artigo 70.º, n.º 4 do RGCO.”.

3. Inconformada com a decisão do Tribunal, dela interpôs recurso a arguida, pedindo a revogação da mesma e sua substituição por outra que a absolva.

Extraiu a recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:

“I. Em sede de Sentença, veio o douto tribunal a quo, a condenar a arguida que não praticou qualquer contraordenação.

II. De forma a exercer corretamente e de maneira coerente o princípio do contraditório, foi junto aos autos a identificação da empresa que praticou a contraordenação.

III. A acrescer ainda ao que foi supramencionado, os Autos de Contraordenação beneficiam da Lei n.º 38-A/2023, o que não se pode deixar de alegar para os devidos efeitos legais

IV. A suprarreferida lei, vem conceder a amnistia pelas infrações cometidas até ao dia 18 de junho de 2023.

V. Desta forma, e como supra exposto, a contraordenação em causa, encontra-se amnistiada por esta Lei, pelo que deveriam os autos ter sido arquivados.

VI. O grau de culpa da arguida no caso em concreto é nulo.

VII. Não foi feito um juízo relativo à gravidade da conduta em causa, atendendo a todas as circunstâncias do caso concreto, e de adequação entre essa gravidade e a gravidade das consequências concretas de referida sanção, a consciência para a prática do facto,

VIII. Sendo certo, que a infração tem de ser aferida caso a caso, e não em abstrato.

IX. Não podendo no caso em concreto estar preenchido qualquer grau de culpa.

X. A arguida não praticou qualquer contraordenação.

XI. Ao dar como provados os factos existe uma clara nulidade da sentença.

XII. O tribunal não interpretou nem aplicou corretamente a lei.”

4. O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.

5. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pela arguida, pugnando pela respetiva improcedência. Não formulou conclusões.

6. Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer em que pugnou pela improcedência do recurso, nos seguintes termos:

“Compulsados os autos verifica-se que no auto de notícia (fls. 01 e segs) ressalta que foi identificada a arguida “AA “, com o NIPC …, como a responsável pela realização da obra. Mais resulta dos autos que naquele dia e hora referenciado nos autos (dia feriado – 05.10.2023) ocorriam trabalhos de limpeza, em residência, com recurso a martelo pneumático que provocaram o ruído que motivou a chamada dos agentes da PSP ao local.

Nesta conformidade e atento tudo o que se deixou exposto deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, negar provimento ao recurso apresentado por “AA “, com o NIPC … e manter a douta sentença recorrida.”.

Cumprido o contraditório, não foi apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.

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II – QUESTÕES A DECIDIR

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»). Com a conformação que é dada ao objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, poderemos afirmar que as questões a apreciar são as seguintes:

- Da aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto;

- Do preenchimento dos elementos integradores da contraordenação imputada à arguida, designadamente quanto à culpa.

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III –FUNDAMENTAÇÃO.

A decisão recorrida tem, para além do dispositivo já transcrito, o seguinte teor:

“I- RELATÓRIO

No processo contraordenacional n.º …/…/2023, a Câmara Municipal de … aplicou a AA, pessoa coletiva n° …, com sede na Rua …, …, uma coima no valor de 6.000,00€ (seis mil euros) pela prática de uma contraordenação, prevista e punida pelos artigos 16.º, n.º 1 e 28.º, n.º 1 , alínea d), ambos do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 287/2007, de 1 de janeiro.

Inconformada, a recorrente/arguida interpôs recurso de impugnação judicial, nos termos do artigo 59.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de novembro (o qual institui o ilícito de mera ordenação social e respetivo processo) apresentando, no essencial, as seguintes conclusões recursivas:

1. À arguida, é imputado o facto de no dia 05-10-2023, ter sido objeto de fiscalização, no âmbito da qual, foi verificado que incomodava moradores por excesso de barulho produzido.

2. Tal factualidade, é falsa, uma vez que a arguida não estava a trabalhar nesse local, uma vez que era feriado.

3. Por outro lado, e não menos importante, a arguida apenas a 30 de Abril de 2024 recebeu a referida decisão, nunca antes foi notificada, ou recebeu alguma carta para exercer o seu direito de audição prévia.

4. Era responsável pela obra, mas é falso que a mesma se encontrasse no dia 5 de outubro de 2023 no local a fazer barulho.

5. Nenhum trabalhador da arguida estava no local a trabalhar.

6. Após o receber a presente decisão a arguida diligenciou de saber o que ocorrera na data indicada no auto.

7. A arguida apurou que no local da obra se encontrava a empresa BB, a qual nada tem a ver com a arguida.

8. Pelo que, não pode ser imputada a arguida qualquer responsabilidade ou sanção pelo barulho efetuado no local.

Concluiu peticionando pela procedência da impugnação, por provada, absolvendo-se a arguida.

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A arguida arrolou 1 (uma) testemunha.

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A entidade administrativa manteve a decisão nos seus precisos termos, remetendo o processo ao Ministério Público.

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O Ministério Público, ordenou a apresentação dos autos ao juiz (cfr. referência Citius …) valendo este ato como acusação, de acordo com o artigo 62.º, n. º1, do Decreto Lei n.º 433/82, de 27 de novembro.

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Vem a arguida acusada pela prática de uma contraordenação, prevista e punida pelos artigos 16.º, n.º 1 e 28.º, n.º 1, alínea d), ambos do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 287/2007, de 1 de janeiro.

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O recurso foi admitido liminarmente por despacho conforme referência Citius ….

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Procedeu-se a julgamento, com observância das formalidades legais, como das atas melhor consta.

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II - SANEAMENTO

A instância mantém-se válida e regular, nada obstando ao conhecimento do mérito da causa.

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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Resultaram assentes os seguintes factos, com relevância para a decisão da causa:

A) Factos provados

1. A arguida é uma sociedade cujo objeto social é Arquitectura; design e decoração de Interiores e exteriores; Comércio de mármores e granitos e afins; Construção civil e remodelações; Compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim; Alojamento local; Actividades hoteleiras e de restauração; Importação e exportação.

2. No dia 05-10-2023, no período da manhã, pelas 11h15, na Praça …, …, foi efetuada uma fiscalização por barulho e objeto de autuação por ruído de obras num feriado.

3. No local e nada data apurada em 2. estavam trabalhadores da empresa BB a realizar obras com utilização de martelos.

4. A arguida era a responsável pela obra no local melhor descrito em 2.

Deu-se ainda como provado que:

5. O agente da PSP CC, deslocou-se ao local (descrito em 2.) às 09h20 por queixa de barulho de obras, tendo comunicado a DD que teria que cessar as obras e o ruído por ser feriado.

6. O agente da PSP CC, deslocou-se ao local (descrito em 2.) às 11h15 por queixa de barulho de obras, tendo comunicado a EE, que se encontrava na obra nessa altura, que iria elaborar um auto por ruído de obra num dia de feriado.

7. EE, é trabalhador da arguida desde 2022, com a função de encarregado de obra.

8. EE, forneceu os dados da arguida para a elaboração do respetivo auto de notícia.

9. A empresa BB foi contratada pela arguida.

10. A arguida atuou violando as suas obrigações legais relativamente ao ruído num dia feriado, por esta conduta ser proibida e sancionada legal e regulamentarmente, bem sabendo que não o podia fazer, tendo decidido livre, deliberada e conscientemente, inclusive reiterando o comportamento proibido.

11. Por decisão de 02-04-2024, notificada à arguida a 30-04-2024, a Câmara Municipal de … condenou-a pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelos artigos 16.º, n. º1, e 28.º, n.º 1 , alínea d), ambos do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto – Lei n.º 287/2007, de 1 de janeiro.

B) Factos não provados

a) Que a arguida apenas a 30 de Abril de 2024 tenha recebido a decisão e nunca antes foi notificada ou recebeu alguma carta para exercer o seu direito de audição prévia.

b) Que não se encontravam trabalhadores da arguida no local e na data melhor descritos em 2.

c) Que a sociedade BB, nada tem a ver com a arguida.

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Fundamentação da Matéria de Facto e Exame Crítico da Prova Produzida

i)Da Indicação dos Meios de Prova

Os meios de prova utilizados por este Tribunal para formar a sua convicção (positiva ou negativa) dos factos, foram os seguintes:

A) – DOCUMENTAL

▪ Auto de notícia -cfr. referência Citius …-págs. 5-7;

Carta registada com aviso de receção contendo a Notificação para audição e defesa da arguida- cfr. referência Citius …-págs. 21-27;

▪ Decisão Administrativa- Câmara Municipal de …- cfr. referência Citius …-págs. 29-44

▪ Aviso de receção da decisão administrativa cfr. referência Citius … - pág 50;

▪ Publicações de Atos Societários e de outras entidades- cfr. referência Citius …-págs. 67-68;

▪ Nota de Liquidação de IRS do ano de 2023- cfr. referência Citius …;

B) PROVA TESTEMUNHAL

- CC Agente da PSP (melhor identificado em …);

- EE (melhor identificado em ref.ª Citius …, página 62).

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MOTIVAÇÃO

Na valoração da prova, salvo os casos em que o Código de Processo Penal define critérios legais de apreciação vinculada, sendo exemplo, a prova documental e a prova pericial vigora o princípio de livre apreciação da prova, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador (cfr. artigo 127.º, do Código de Processo Penal) com base na apreciação crítica da prova produzida (cfr. artigo 374.º, n.º 2, do CPP).

Como defende o Acórdão do STJ, no processo 05P662, de 16-03-2005, relator Conselheiro Henriques Gaspar “A lei impõe, pois, como critério e base essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto, o «exame crítico das provas», mas não define, nem expressa elementos sobre algum modelo de integração da noção.

O "exame crítico" das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto - , mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de "exame crítico" apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.

E ainda “O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01).” O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00).

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Dos factos provados

No que diz respeito, ao facto n.º 1., o mesmo resulta provado do teor da pesquisa efetuada e aposta no documento Publicações de Atos Societários.

Para a prova do facto n.º 2. foi valorado o auto de notícia, que faz prova plena sobre as perceções do agente autuante, de acordo com o artigo 371.º, do Código Civil.

Quanto à factualidade vertida nos pontos 3., 4., 7. e 9. a sua prova resultou da apreciação crítica do depoimento da testemunha EE, trabalhador da arguida desde 2022, com a função de encarregado de obra, explicou que na altura estavam no local os trabalhadores da empresa BB, na qualidade de empresa subcontratada da arguida, conjugado com o depoimento da testemunha CC, agente da PSP que se deslocou ao local e disse que era bastante audível do exterior, o som de martelos. Ambos prestaram depoimentos pormenorizados sem serem incoerentes, simples, claros e objetivos, porque considerados sinceros não teve o Tribunal dúvidas em julgá-los provados.

Para a prova dos factos assentes nos pontos 5., 6. e 8. o Tribunal assentou a sua convicção no depoimento do agente da PSP e autor do auto de notícia, CC que de forma objetiva e sem qualquer interesse explicou que se deslocou 2 vezes ao local, na 1.ª falou com 1 trabalhador que não soube identificar e que apenas na 2.ª vez falou com um responsável. Depoimento confluente com o prestado pela testemunha EE, que falou com a testemunha CC na 2ªvez e confirmou que forneceu os dados da arguida ao agente que elaborou o auto.

Ambos os depoimentos foram considerados credíveis pelo julgador, porque pormenorizados, coerentes e espontâneos neste segmento.

O facto dado como provado em 10. relativo ao elemento subjetivo resulta inferido da factualidade dada como provada, desde logo porque se estamos perante um prédio habitacional, e as obras decorriam num dia de feriado nacional, de conhecimento geral por tratar-se do dia comemorativo da implementação da República, e ainda mais quando já tinha sido avisada pelo agente autuante aquando da 1.ª deslocação ao local que teria que cessar o ruído.

Ora, se é verdade que se apurou que os trabalhadores que lá estavam pertenciam à empresa BB, também se apurou conforme facto apurado em 9. que estavam a realizar obras por terem sido subcontratados pela arguida, sendo o responsável por aquela obra o seu funcionário EE, de acordo com a factualidade assente nos pontos 6. e 7., que estava no local, pelo menos no momento da 2.ª deslocação do agente da PSP, CC.

Decorrendo assim que a arguida, estava ciente das obrigações de fonte normativa que sobre si impendiam no que concerne à gestão do ruído, ainda que por intermédio dos trabalhadores da empresa BB, contratados pela arguida ou pelo seu responsável da obra, agindo deste modo de forma livre, deliberada e consciente, porquanto já avisada e alertada que não poderia produzir tal tipo de ruído, continuou com a mesma conduta.

No que diz respeito ao ponto n.º 11., o mesmo resulta provado do teor da decisão da Câmara Municipal de … e também do alegado pela recorrente no recurso apresentado.

Dos factos não provados

Resultou da apreciação crítica e minuciosa dos elementos constantes na decisão e da prova documental junta aos autos, que de forma clara demonstra que antes de proferir a decisão final datada de 02-04-2024 e notificada à arguida no dia 30-04-2024, a autoridade administrativa, enviou uma carta datada de 09-11-2023 com registo dos CTT n.º RF …, carta esta devolvida ao remetente, procedeu-se a novo envio com o registo dos CTT com o n.º RF …, não tendo sido o objeto reclamado pelo destinatário, ora arguida, no posto dos CTT de …. E por fim, foi efetuado novo envio com carta datada de 02-02-2024, com o mesmo assunto e com registo simples dos CTT n.º do registo dos CTT RF … e com entrega em 14-02-2024 às 14h19, todas com o mesmo assunto “Notificação para exercício de direito de audição e defesa do arguido”

Pelo que, demonstrado que está que a arguida foi notificada para exercer a sua defesa antes de ser notificada da decisão final, considerou o facto constante na alínea a), como não provado.

No que diz respeito aos factos não provados e identificados nas alíneas b) e c), reproduzimos as considerações tecidas anteriormente referentes aos pontos 3., 4., 7. e 9. dos factos provados.

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IV- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICO-PENAL

A contraordenação

À arguida foi aplicada uma contraordenação, prevista e punida pelos artigos 16.º, n.º 1 e artigo 28.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento Geral do Ruído- RGR.

O ilícito de mera ordenação social é regulado pelo Regime Geral das Contraordenações - RGCO.

O artigo 1.º do citado Regulamento refere que constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima. Por outro lado, no artigo 8.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, estabelece-se que só é punível o facto praticado com dolo ou nos casos especialmente previstos na lei com negligência, ficando, porém, ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais, conforme n.º 3 do mesmo preceito legal.

Conclui-se, portanto, que a negligência em geral não é punida, só havendo punição quando aquela estiver expressamente prevista, à semelhança do que sucede, aliás, no direito penal (cfr. artigo 13.º do Código Penal).

Assim sendo, para que estejamos perante um ilícito contraordenacional torna-se necessário:

(i) a ocorrência de um facto que radique na vontade do agente quer por ação, como por omissão;

(ii) a existência (prévia ao facto) de um tipo de ilícito contraordenacional que comine com coima um determinado comportamento;

(iii) a verificação dos elementos objetivos e subjetivos da ilicitude e da culpa do agente.

Analisaremos de seguida se a factualidade apurada se enquadra na contraordenação cuja decisão impugnou.

O Regulamento Geral do Ruído- RGR estabelece o regime de prevenção e controlo de poluição sonora, visando a salvaguarda da saúde humana e bem-estar das populações, conforme artigo 1.º.

O mencionado diploma regulamentar aplica-se, para além do mais, às obras de construção civil (artigo 1.º, n.º 1, alínea b), do RGR), que é o caso em apreço nos presentes autos e compreendido no objeto social da sociedade arguida.

Prevê o artigo 3.º, alínea b), do RGR, a definição do que se considera uma a atividade ruidosa temporária como aquela que é “a atividade que, não constituindo um ato isolado, tenha caráter não permanente e que produza ruído nocivo ou incomodativo para quem habite ou permaneça em locais onde se fazem sentir os efeitos dessa fonte de ruído tais como as obras de construção civil, competições desportivas, espetáculos, destas ou outros divertimentos, feiras e mercados.”.

Com relevância, dispõe ainda o artigo 16.º, n.º 1 do RGR “As obras de recuperação, remodelação ou conservação realizadas no interior e edifícios destinados a habitação, comércio ou serviços que constituem fonte de ruído apenas podem ser em dias úteis, entre as 8h e as 20 horas, não se encontrando sujeitas à emissão de licença especial de ruído.”.

Não se provou qualquer tipo de urgência na realização das referidas obras pelo que não se enquadram na exceção prevista do artigo 17.º, do RGR.

Já o artigo 28.º, n.º 1, alínea d), do RGR dispõe “Constitui contra-ordenação ambiental leve: (…) A realização de obras no interior de edifícios em violação das condições estabelecidas pelo n.º 1 do artigo 16.º;”

Ora, da factualidade acima apurada nos pontos 2. e 3. conjugada com as normas legais citadas, conclui-se que a arguida praticou a contraordenação leve que lhe foi aplicada pela Câmara Municipal de …, por ter realizado obras, em dia não útil (feriado).

Nos termos do artigo 9.º da LQCA: “1- As contraordenações são puníveis a título de dolo ou de negligência. 2- A negligência nas contraordenações é sempre punível.”

Considerando o direito contraordenacional como um direito de culpa e não um direito que permita a responsabilização objetiva, mostra-se essencial que se provem os factos relativos à culpa dos arguidos- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, no processo n.º 150/14 de 05-05-2015, conclui-se pela conduta dolosa da arguida, uma vez que resulta da factualidade provada que a arguida foi avisada e alertada que não poderia produzir tal tipo de ruído de obras num feriado, e ainda assim continuou com a mesma conduta.

Deste modo, com a sua conduta a arguida preencheu os elementos típicos objetivos e subjetivo da infração contraordenacional que lhe foi aplicada, não se verificando, no presente caso, qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelos fundamentos de facto e de direito acima expostos julgam-se verificados todos os pressupostos.

A coima aplicada

Dispõe o artigo 20.º, números 1 e 2, da Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, prevista na Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto “1 - A determinação da coima e das sanções acessórias faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa do agente, da sua situação económica e dos benefícios obtidos com a prática do facto. 2 - Na determinação da sanção aplicável são ainda tomadas em conta a conduta anterior e posterior do agente e as exigências de prevenção.”.

No que concerne à gravidade da contraordenação, não há dúvidas que a mesma é leve, de acordo com o artigo 28.º, n.º 1, alínea d), do RGR.

A moldura abstrata da coima em causa, a titulo doloso, pune a conduta com uma coima entre 6.000,00€ e 36.000,00€, pelo que constata-se que foi aplicada á arguida uma coima de 6.000,00€ (seis mil euros), valor mínimo legal previsto para uma contraordenação leve praticada por pessoa coletiva, em conformidade com o previsto no artigo 22.º, n.º 2, alínea b), da LQCO.

▪A gravidade da contraordenação é leve, atendendo à garantia do respeito intransigente do interesse público ambiental legalmente prosseguida, com vista à satisfação das exigências dos cidadãos na melhoria da sua qualidade de vida, mormente o direito ao descanso.

▪ No que respeita à culpa, denota uma culpa intencional, em virtude de ter sido avisada que não poderia efetuar obras num feriado devido ao ruído e ainda assim manteve a conduta violadora do direito.

▪ Relativamente à situação económica da arguida, no ano fiscal de 2023 a arguida obteve um lucro tributável de 38.953,91€ (trinta e oito mil, novecentos e cinquenta e três euros e noventa e um cêntimos).

▪ Em face dos factos apurados e da infração praticada, não foi possível apurar se a arguida obteve algum benefício económico, razão pela qual também não será apreciado.

Relativamente às exigências de prevenção especial, não contendo elementos nos autos a esse respeito, razão pela qual não será apreciado.

Por seu turno, as exigências de prevenção geral são bastante elevadas, atendendo a conflitualidade social gerada por situações ligadas ao ruído.

Pelo exposto, consideramos que a coima a aplicar à recorrente deve se situar no limite mínimo tal como foi decidido pela decisão administrativa impugnada.

(…)”

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Da enumeração factual constante da sentença recorrida e que não foi impugnada pela arguida recorrente decorre que os factos suscetíveis de preencher a contraordenação em causa foram praticados no dia 5 de outubro de 2023.

É em face dessa circunstância que se deve apreciar a primeira questão suscitada no recurso – a questão da aplicabilidade das medidas decretadas pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

Tal Lei veio decretar medidas de clemência – amnistia e perdão - e estabelece:

Artigo 1.º

Objeto

A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

Artigo 2.º

Âmbito

1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º

2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:

a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;

b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º

A mais simples leitura do texto da lei, imediatamente transmite a inaplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, ao caso dos autos. Os factos em causa nos autos foram praticados no dia 5 de outubro de 2023, quando já ia longe o dia 19 de junho de 2023. Por outro lado, não se mostram aplicadas (ou aplicáveis) à arguida quaisquer “sanções acessórias” relativas à contraordenação em causa.

Tanto basta para se concluir pela manifesta inaplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, e pela improcedência do recurso, nessa parte.

*

Avancemos.

Insistindo numa linha de argumentação que já tinha ensaiado em sede de impugnação da decisão administrativa, a arguida diz-se condenada sem ter praticado qualquer contraordenação e sem qualquer culpa.

Não tem razão.

Como resulta da decisão recorrida, ficou provado que no dia 05-10-2023, no período da manhã, pelas 11h15, na Praça …, em …, foi efetuada uma fiscalização por barulho e objeto de autuação por ruído de obras num feriado. Nessas circunstâncias de tempo e lugar estavam trabalhadores da empresa BB a realizar obras com utilização de martelos, sendo que a arguida era a responsável pela obra no local onde aliás as autoridades contactaram o funcionário da mesma que assumia as funções de encarregado da obra (EE), que forneceu os dados da arguida para a elaboração do respetivo auto de notícia. A empresa “BB” foi contratada pela arguida, sendo que esta era a responsável pela obra e nessa medida, como se deu como provado, “atuou violando as suas obrigações legais relativamente ao ruído num dia feriado” (…) “bem sabendo que não o podia fazer, tendo decidido livre, deliberada e conscientemente, inclusive reiterando o comportamento proibido”.

O Tribunal recorrido explicitou que a “factualidade vertida nos pontos 3., 4., 7. e 9. a sua prova resultou da apreciação crítica do depoimento da testemunha EE, trabalhador da arguida desde 2022, com a função de encarregado de obra, (…) que na altura estavam no local os trabalhadores da empresa BB, na qualidade de empresa subcontratada da arguida, conjugado com o depoimento da testemunha CC, agente da PSP que se deslocou ao local e disse que era bastante audível do exterior, o som de martelos”.

Maior clareza não podia pedir-se ao Tribunal recorrido, que escreveu: “Ora, se é verdade que se apurou que os trabalhadores que lá estavam pertenciam à empresa BB, também se apurou conforme facto apurado em 9. que estavam a realizar obras por terem sido subcontratados pela arguida, sendo o responsável por aquela obra o seu funcionário EE, de acordo com a factualidade assente nos pontos 6. e 7., que estava no local, pelo menos no momento da 2.ª deslocação do agente da PSP, CC”.

Perante as circunstâncias provadas, bem andou o Tribunal recorrido ao concluir que a arguida praticou a contraordenação em causa. E nenhuma dúvida temos em subscrever a decisão no que se reporta à culpa:

“Considerando o direito contraordenacional como um direito de culpa e não um direito que permita a dos arguidos responsabilização objetiva, mostra-se essencial que se provem os factos relativos à culpa - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, no processo n.º 150/14 de 05-05-2015, conclui-se pela conduta dolosa da arguida, uma vez que resulta da factualidade provada que a arguida foi avisada e alertada que não poderia produzir tal tipo de ruído de obras num feriado, e ainda assim continuou com a mesma conduta.

Deste modo, com a sua conduta a arguida preencheu os elementos típicos objetivos e subjetivo da infração contraordenacional que lhe foi aplicada, não se verificando, no presente caso, qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelos fundamentos de facto e de direito acima expostos julgam-se verificados todos os pressupostos”.

Em face das razões supra expostas, há que concluir pela total improcedência do recurso.

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V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pela arguida AA e, em consequência, em confirmar a douta decisão recorrida nos seus precisos termos.

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Tributação.

Condena-se a arguida no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.

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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Évora, 19 de maio de 2025

Jorge Antunes (Relator)

Mafalda Sequinho dos Santos (1ª Adjunta)

Anabela Cardoso (2ª Adjunta)