I - São pressupostos formais da reincidência, para além da prática de um crime, “por si só ou sob qualquer forma de participação”:
- ser o novo crime cometido um crime doloso;
- dever ser este novo crime (sem a incidência da reincidência) punido com pena de prisão efetiva superior a 6 meses;
- que o arguido tenha antes sido condenado, por decisão transitada em julgado, também em pena de prisão efectiva superior a 6 meses, por outro crime doloso;
- que entre a prática do crime anterior e a do novo crime não tenham decorrido mais de 5 anos (este prazo suspende-se durante o tempo em que o arguido tenha estado privado da liberdade, em cumprimento de medida de coacção, de pena ou de medida de segurança).
Para além desses pressupostos formais, a verificação da reincidência exige ainda um pressuposto material: que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.
A punição agravada da reincidência – aplicada ao agente que cometeu o crime depois de condenado anteriormente por outros da mesma espécie (reincidência específica, própria ou homótropa) ou de espécie diferente (reincidência genérica, imprópria ou polítropa) – encontra justificação no maior grau de culpa, decorrente da circunstância de, apesar de já ter sido condenado, insistir em cometer o crime e em desrespeitar a ordem jurídica, bem como na maior perigosidade revelada, face à indiferença perante a solene advertência da condenação anterior revelada pela persistência em delinquir.
A maior censura do delinquente por não ter acolhido a advertência solene contra o crime inerente à condenação ou condenações anteriores, só se justifica se verificada uma íntima conexão entre os crimes reiterados, conexão que poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga, segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução.
II - A acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena. A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
I – RELATÓRIO
1. No Juízo Local Criminal de … – Juiz…, o arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi submetido a julgamento em processo especial abreviado, após acusação do Ministério Público, sendo-lhe imputada a prática, como reincidente (nos termos do disposto no artigo 75.º, do Código Penal, com os efeitos plasmados no artigo 76.º, do Código Penal) dos seguintes crimes:
- Um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, por referência ao artigo 121.º, do Código da Estrada;
- Um crime de desobediência simples, p. e p. nos termos do disposto no artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e no artigo 152.º, n.ºs 2 e 3 do Código da Estrada.
Foi requerida a condenação do arguido em pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal.
2. Por sentença de 23 de outubro de 2024, foi decidido:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos:
A. Condeno o arguido AA, pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, como reincidente, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, uma pena de 1 (um) ano e 7 (sete) meses de prisão;
B. Condeno o arguido AA, pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, como reincidente, de um crime de desobediência simples previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, uma pena de 7 (sete) meses de prisão;
C. Efetuado o cúmulo jurídico das penas referidas em A) e B), nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, condeno o arguido AA na pena única de 1 (um) ano e 11 (onze) meses de prisão efetiva;
D. Condeno o arguido AA, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por 1 (ano) e 4 (quatro) meses;
E. Condeno o arguido AA no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC (uma unidade de conta), já reduzida a metade em face da confissão, nos termos dos artigos 344.º, n.º 2, alínea c), 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, por referência à tabela III anexa ao Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02.
*
Notifique e proceda-se ao depósito da sentença (artigo 372.º, n.º 5, do Código de Processo Penal).
*
Após trânsito:
- Remeta boletim à Direção dos Serviços de Identificação Criminal (cfr. artigos 6.º, alínea a), e 7.º, n.º 2, da Lei n.º 37/2015, de 05.05);
- Comunique à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária e ao IMT, nos termos do disposto no artigo 500.º, n.º 1, do Código de Processo Penal;
- Comunique, no prazo de cinco dias a contar do trânsito em julgado, a sentença ao Tribunal de Execução de Penas de … e à Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais competente (artigo 477.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).”
3. Inconformado com a decisão final condenatória, dela interpôs recurso o arguido, pugnando pela revogação da decisão e por que se decida “modificando a matéria de facto dada como provada contemplando que seja dado como provado o arrependimento sincero do ora Recorrente, por forma a que seja ponderado este facto como pressusposto da atenuação especial das penas de prisão aplicadas, mais se pedindo que sejam revogadas as decisões de condenação por reincidência do ora Recorrente, e de não suspensão da pena da prisão em que ora Recorrente veio condenado sujeita a regras de conduta que assegurem a igualdade de oportunidades e a capacidade de determinação e de decisão do ora Recorrente”.
Formulou o Recorrente a seguinte síntese conclusiva:
“A. Da acta da Audiência de Julgamento datada de 16-10-2024 consta que a confissão ficou documentada no sistema integrado de gravação digital entre as 10 horas e 22 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 30 minutos, neste hiato temporal o ora Recorrente não se limitou a confessar o factos.
B. O ora Recorrente demonstrou o seu arrependimento, explicou em que termos se mostrava arrependido, e respondeu a instancias de modo a ser percetível a sua capacidade critica pelos actos praticados, e a capacidade de identificação dos bens jurídicos em presença, contudo da sentença ora recorrida não se vislumbra a constatação do arrependimento sincero nem a sua valoração.
C. Pelo que se entende que ocorreu erro na analise da prova, na medida em que a prova produzida a partir das declarações do ora Recorrente enquanto Arguido, e documentadas no sistema integrado de gravação digital entre as 10 horas e 22 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 30 minutos por referência à acta da Audiència de Julgamento datada de 16-10-2024 não foram correctamente analisadas e ponderadas.
D. O que prejudicou que tenha sido dado como provado e ponderado o arrependimento sincero do ora Recorrente, o qual , por sua vez constituía um factor essencial para a determinação da pena a aplicar ao ora Recorrente e à determinação da sua atenuação.
E. Assim conclui-se pela impugnação da decisão sobre matéria de facto que não deu como assente o arrependimento sincero do ora Recorrente, por causa do erro na analise da prova produzida prova a partir das declarações do ora Recorrente enquanto Arguido , e documentadas no sistema integrado de gravação digital entre as 10 horas e 22 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 30 minutos por referência à acta da Audiència de Julgamento datada de 16-10-2024.
F. O ora Recorrente não tem uma situação de saúde, social e económica que corresponda a um padrão mínimo de normalidade, a que possa corresponder o respectivo grau de exigência ao homem médio.
G. Porquanto sendo alcoólico, vivendo em solidão, sem o apoio e amparo familiar, não tendo capacidade de ganho por ser inválido, doente crónico, a verdadeira miséria e desgraça humana que constitui o dia a dia do ora Recorrente constitui um claro factor de limitação na capacidade de decisão e escolha, estando tolhido no seu livre arbítrio e denotando clara incapacidade de tomada de decisão, donde resulta claramente um grau de culpa diminuído, que deveria ser assim ponderado para efeitos de aplicação do previsto na alínea d) , e ) e f) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.
H. Tendo sido dado como provado nos factos provados da Fundamentação de Facto da sentença ora recorrida:
“ 14. Desde 2012 (após rutura marital e consequente distanciamento dos 3 descendentes), o arguido vivenciou, na globalidade, uma situação de sem-abrigo, associada ao consumo de substâncias psicoativas (cocaína, heroína), salientando-se nos últimos anos um padrão abusivo de bebidas alcoólicas. Não obstante, o arguido registou igualmente períodos de alguma organização sócio pessoal, no âmbito da retoma da intervenção terapêutica da Equipa Técnica Especializada no Tratamento – ETET, …, concomitante com o apoio do pai, falecido há cerca de 5 anos.
(….)
17. À data da prática dos factos em questão nestes autos, tal como na atualidade, o arguido apresentava receitas mensais fixas num total de cerca de 445 Euros (correspondente à pensão de reforma por invalidez e pensão de viuvez), sendo apoiado economicamente (alimentação e ao nível de despesas extras, como aquisição de telemóvel, etc.) por BB, face à despesa assumida no âmbito do processo de aquisição de habilitação para condução de veículos automóveis, iniciado em agosto/2023.
18. Para além do historial aditivo já mencionado (com início reportado há cerca de 12 anos) e da patologia da coluna lombar (subjacente à atribuição de pensão de reforma por invalidez), o arguido apresenta quadro clínico do foro da cardiologia, pneumologia e da imunodeficiência (nomeadamente doença hepática crónica com cirrose) que requer acompanhamento médico regular.
19. À data da prática dos factos em questão nestes autos, e desde 31 de agosto de 2023, o arguido dera seguimento à intervenção (consulta de alcoologia) da ETET, …, sendo que anteriormente, em meio prisional, desvinculara-se, com sucesso, de programa de desintoxicação à base de metadona. Pese embora a verbalização reiterada de motivação para consolidar a abstinência aditiva, o arguido registava consumos de bebidas alcoólicas, afigurando-se-nos a esse nível registo de processo em crescendo.
21. O desajustado comportamento do arguido (relativamente às obrigações decorrentes do seu confinamento no âmbito do cumprimento da referida pena) esteve subjacente a onze relatórios de incidentes (o primeiro em 19.03.2024 e o último em 03.05.2024) e três posteriores Informações de aditamento, a última em 14 de maio de 2024, sendo que nesta data AA saiu da morada/local de vigilância eletrónica, informando que estava em casa de amigos.
22. As reiteradas dificuldades em cumprir o confinamento no espaço habitacional, ausentando-se da habitação (em período de restrição e por motivos imprevistos, não fundamentados), seguido de paradeiro desconhecido, comprometeu e obstaculizou a efetiva fiscalização do cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação.
23. Segundo o veiculado pela Escola de Condução “…”, o arguido fora já impedido de frequentar aulas teóricas, face ao seu então comparecimento no local alcoolizado e consequente perturbação das aulas em causa.
24. Em outubro de 2023, AA foi excluído do Programa para Agressores de Violência Doméstica –PAVD (promovido pela DGRSP, conforme injunção no processo 134/19.8…), na sequência de comportamento inadequado, comparecimento em duas sessões denotando consumo de bebidas alcoólicas.
25. O arguido revela manifestas dificuldades em manter um comportamento em conformidade com as convenções sociais ou obrigações judiciais (nomeadamente ao nível rodoviário e num contexto de confinamento judicial), bem como em manter-se abstinente do consumo de bebidas alcoólicas, não obstante a sua adesão à intervenção terapêutica da ETET – … e o apoio psicoafectivo e socioeconómico do amigo BB.”
I. Então está demonstrado um quadro factual que identifica uma situação pessoal e económica causadora e reveladora de alcoolismo, pobreza, solidão , ausência de apoio familiar , ausência de capacidade de ganho por invalidez, e perda de qualidade de vida e de bem-estar mínimo com limitação decorrente de doença crónica, conjugado com situação de sem abrigo , que culmina na clara dificuldade de compreensão e identificação dos valores e resultados dos seus actos, e da limitação do livre arbítrio e incapacidade de tomada de decisão, que foram inocrrectamente avaliados na sentença ora recorrida ao não ter julgado e declarado um grau de culpa diminuído do ora Recorrente , o que viola o previsto na alínea d) , e ) e f) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.
J. Não se pode de forma alguma constatar um grau mais elevado de censura , quando a culpa do ora Recorrente não pode ser julgada agravada, num quadro de dependência do álcool e de completa miséria pessoal e moral e de ausência de capacidade de organização e funcionalidade.
K. Logo impugna-se a decisão sobre a matéria de Direito que aplicou in casu o instituto da reincidência perante um quadro factual que não revela a censurabilidade qualificativa que tenha raiz na personalidade do Recorrente, pois a ausência de capacidade de determinação e a compulsividade do álcool, tolhem a capacidade de agir conformidade as regras de convivência em Sociedade, à luz do que foi dado como provado, pelo que se considera que a sentença ora recorrida violou o previsto no n.º 1 do artigo 75.º do Código Penal.
L. Se como acima se demonstrou acima, o ora Recorrente confessou e demonstrou arrependimento sincero , então à luz do previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal , verifica-se o preenchimento de uma causa de atenuação especial das penas a aplicar, e como da leitura da decisão ora recorrida não conclui pela tomada em consideração deste facto, nem tão pouco da ponderação do preenchimento desta disposição legal;
M. Logo impugna-se a decisão sobre a matéria de Direito que não considerou sequer a questão decorrente da confissão donde decorreu o sentimento de arrependimento e de atitude critica, denotando capacidade de reconhecimento dos bens jurídicos atingidos , visto que tendo o ora Recorrente confessado e demonstrado arrependimento sincero, impunha-se quer a respectiva ponderação, quer a efectivação da atenuação especial das penas aplicadas , donde se conclui pela violação do previsto na referida alínea c) do n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal.
N. O dever de se atender “às condições de vida” expressamente aludidas no n.º 1 deste artigo 50.º do Código Penal, implicava que se sopesasse as limitações e dificuldades graves pelo alcoolismo e de falta de capacidade de determinação e de decidir e ponderar as suas acções, devia ser ponderado com a aplicação de injunções de acompanhamento e de tratamento que equilibrassem as chances do ora Recorrente perante os demais.
O. Pois a verdade é que o ora Recorrente se encontra numa situação de inferioridade e desigualdade de chances no tocante à avaliação dos seus actos e consequências, porque o ora Recorrente não tem as mesmas possibilidades e capacidades de discernimento e de ponderação que o padrão de normalidade da Sociedade Portuguesa e da comunidade da Provincia periférica em que se insere o distrito de … .
P. Sendo alcoólico, doente crónico, desprovido de apoio e escrutínio familiar, denotando acentuados sinais de falta de motivação e de capacidade de funcionalidade e de manter quaisquer bases de convivência social, não pode ser assacada à personalidade do ora Recorrente um juízo desfavorável porque o ora Recorrente é uma pessoa profundamente doente.
Q. Julgá-lo ao ora Recorrente à luz de um critério de exigência normal do homem médio, para efeitos de ponderação de suspensão das penas de prisão em que veio condenado , sem que se tivesse feito mão do elenco de instrumentos previstos no artigo 52.º do Código Penal, afigura-se uma injustiça .
R. Uma injustiça que decorre da impossibilidade do ora Recorrente conseguir exigir em conformidade com as expectativas mínimas do convívio em sociedade sem a supervisão e vigilância constantes ou sem o competente tratamento, medicação e acompanhamento permanentes.
S. Pressupor o ora Recorrente como um criminoso comum e reincidente e quase incorrigível, para lhe ser aplicado instituto da reincidência e para se lhe negar a suspensão da pena de prisão, é não perceber que o ora Recorrente sem tratamento, e por ser uma pessoa doente, não consegue agir melhor, num plano de inferioridade e de desigualdade de oportunidades de agir correctamente perante os demais, sempre em permanente frustração de expectativas próprias e completa destruição de qualquer auto estima e respeito por si próprio, e em permanente frustração das expectativas da Comunidade.
T. Uma vez que o mesmo não consegue sequer ter capacidade de prever as consequências dos seus actos e de ponderá-los para obviar a tais consequências é a forma de injustiça que se coloca à consideração de V. Exas.
U. Pelo que impugna a decisão sobre a matéria de Direito que julgou não suspender a pena de prisão em que o ora Recorrente veio condenado , deixando-o de o sujeitar a quaisquer regras de conduta, de forma desproporcional, desadequada e desnecessária perante a situação do ora Recorrente, o que constitui a violação do previsto nos artigos 50.º números 1 e 2, e 52.º do Código Penal.
V. Tanto mais que , como resulta dos presentes autos, no dia seguinte à leitura da decisão de que ora se recorre, o ora Recorrente foi devolvido à liberdade, afigurando-se injusto que o ora Recorrente seja em tão curto espaço de tempo preso novamente logo após ter sido libertado.
W. O ora Recorrente veio condenado numa pena de um ano e quatro meses de inibição de conduzir, com base na pratica de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de desobediência.
X. Sucede que a sanção acessória aplicada constitui impedimento legal para a obtenção do titulo de condução, cuja a falta, preenche o tipo legal de condução sem habilitação legal, tal como resulta do previsto no artigo 18.º n.º1 alínea e) do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado pelo DL n.º 138/2012, de 05 de Julho.
Y. Pelo que se considera injusta a medida da pena acessória aplicada, porquanto num espaço tão alargado nem sequer é dada a oportunidade ao ora Recorrente de puder vir a por fim à pratica do crime de tem vindo condenado , quando se constata que o ora Recorrente padece e sofre das limitações dadas como provadas nos presentes autos.
Z. Por isso se entende que a aplicação de uma sanção acessória na medida à constante do dispositivo da decisão recorrida constitui a violação do previsto no n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal , por ter sido incorrectamente avaliada a sua aplicação em conjugação com o previsto no no artigo 18.º n.º1 alínea e) do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado pelo DL n.º 138/2012, de 05 de Julho e com o tipo de condução sem habilitação legal em que o ora Recorrente veio condenado..”
4. O referido recurso do arguido foi admitido, por legal e tempestivo.
5. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência e formulando conclusões nos seguintes termos:
“1- Da motivação da decisão de facto da sentença fica-se a saber porque é que o arguido foi condenado. A prova documental foi devidamente valorada, bem como as declarações do arguido.
2- Do exame crítico das provas ficou-se claramente a saber porque é que se deram como provados os factos que levaram à condenação do arguido (sendo desnecessárias quaisquer outras considerações face à fundamentação constante da sentença).
3- A prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (dentro desses pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova).
4- A regra de que a convicção do julgador se deve fundar na livre apreciação da prova implica a possibilidade de dar como demonstrado certo facto certificado por uma única testemunha.
5- A prova produzida em audiência de julgamento é manifestamente suficiente para dar como provados os factos constantes da sentença, não se verificando qualquer erro notório na apreciação da prova.
6- É de referir que apenas existe erro notório na apreciação da prova quando para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulado no artigo 127 do C.P.P.
7- De salientar também que quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.
8- A imediação e a oralidade é que transmitem com precisão o modo e convicção como as pessoas depuseram, nomeadamente a coerência e sequência lógica com que o fizeram, o tom de voz utilizado, o tempo e a forma de resposta, os gestos e as hesitações, a postura e as reações , o que não pode ser completamente transmitido para a gravação.
9- Ao decidir como decidiu, não se alcança que o tribunal tenha valorado contra o arguido qualquer estado de dúvida em que tenha ficado sobre a existência dos factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, devesse efetivamente ter ficado num estado de dúvida insuperável, a valorar nos termos do princípio in dúbio pro reo.
10- Razão pela qual não há que fazer qualquer alteração à matéria de facto apurada, designadamente quanto ao arrependimento sincero do arguido.
11- No caso vertente, entende o Tribunal que se está perante um caso paradigmático em que se mostra indispensável a efetiva execução da pena de prisão, de modo a que não sejam irremediavelmente postas em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias.
12- O arguido revela uma personalidade refratária a uma normal convivência social de acordo com as regras do direito e que a aplicação de penas não privativas da liberdade, como a suspensão da execução da pena não têm obstado à prática de crimes.
13- A prognose sobre o comportamento do arguido à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização é claramente negativa.
14- O sentimento jurídico da comunidade na validade e na força de vigência da norma jurídico-penal violada pelo arguido, numa situação como esta, de sucessivas condenações penais, por variados tipos de crime, e em que já beneficiou anteriormente da suspensão de execução da pena de prisão, ficaria afetado pela substituição, novamente, da pena de prisão por suspensão de execução da pena de prisão, mesmo que sujeita a condições.
15- Não existindo um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, bem andou o Tribunal recorrido em não decretar a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido.
16- O arguido demonstra um total desinteresse pelas solenes sanções contidas nas anteriores condenações e até indiferença às penas que veio sofrendo, teimando em delinquir.
17- «I -O art. 75.º do CP enuncia os requisitos da condenação a título de reincidência. Assim, constituem pressupostos formais da reincidência, para além da prática de um crime, «por si só ou sob qualquer forma de participação»:
- que o crime agora cometido seja doloso;
- que este crime, sem a incidência da reincidência, deva ser punido com pena de prisão superior a 6 meses;
- que o arguido tenha sido condenado, por decisão transitada em julgado, também em pena de prisão efetiva superior a 6 meses, por outro crime doloso;
- que entre a prática do crime anterior e a do novo crime não tenham decorrido mais de 5 anos, prazo este que se suspende durante o tempo em que o arguido tenha estado privado da liberdade, em cumprimento de medida de coação, de pena ou de medida de segurança.
18- Além daqueles pressupostos formais a verificação da reincidência exige, ainda, um pressuposto material: o de que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.»
19- Dos autos, com facilidade se conclui que, apesar das muitas condenações sofridas pelo arguido, o mesmo volta a perpetrar crimes, sendo completamente indiferente às condenações anteriormente sofridas.
20- O que significa duas coisas:
- Por um lado, que a sua personalidade é propensa à prática deste tipo de ilícitos;
- Por outro, que as condenações não têm sido suficientes para o tornar fiel ao direito.
21- Assim, tendo em atenção os factos dados como provados, constata-se que todos os pressupostos da reincidência se mostram verificados.
22- A determinação da medida concreta da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados deve fazer-se mediante os critérios utilizados na fixação da pena principal e definidos no art. 71 do Código Penal.
23- Assim, há que ter em conta, quanto a tal questão, as exigências de prevenção de futuros crimes, o grau de culpa do arguido, a sua inserção social e familiar e a sua idade.
24- A duração da pena acessória pode ser proporcionalmente diferente da concretamente encontrada para a pena principal por via, desde logo, da diversidade dos objetivos de política criminal ligados à aplicação de cada uma delas.
25- Esta pena acessória deve contribuir decisivamente para a emenda cívica do condutor infrator, prevenindo a perigosidade deste, mas essencialmente, e cada vez mais, deve ter um efeito de prevenção geral de intimidação.
26- Face ao exposto e atendendo essencialmente ao passado criminal do arguido, entendo que a pena acessória de proibição de conduzir nunca poderia ser inferior a 1 ano e 4 meses, pelo que não se nos afigura que a opção adotada na sentença esteja desajustada das circunstâncias do caso, antes parecendo cabalmente justificada face às elevadas necessidades de prevenção geral.
27- Assim nenhum reparo nos merece a sentença recorrida, pois nenhuma disposição legal foi violada.
28- Deve assim, manter-se a mesma fazendo-se assim Justiça”.
6. Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1.ª instância e pugnando pela improcedência do recurso.
7. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
II – QUESTÕES A DECIDIR
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»).
Com a conformação que é dada ao objecto do recurso pelas conclusões apresentadas, poderemos afirmar que as questões a apreciar são as seguintes:
1 – Da impugnação ampla da decisão em matéria de facto - do erro de julgamento quanto à circunstância “arrependimento sincero do arguido”;
2 – Da verificação dos pressupostos de punição a título de reincidência;
3 – Da atenuação especial das penas;
4 - Da suspensão da execução da pena de prisão;
5 – Da determinação da medida da pena acessória de proibição de conduzir.
*
III – TRANSCRIÇÃO DOS SEGMENTOS RELEVANTES DA DECISÃO RECORRIDA.
A sentença final proferida tem, para além do mais, o seguinte teor:
“2.1. Factos Provados:
Produzida a prova e discutida a causa, resultou provada, com interesse para a decisão da mesma, a seguinte factualidade:
1. No dia 06 de abril de 2024, cerca das 17 horas e 00 minutos, na EM … , …, …, área desta Comarca, em frente ao estabelecimento comercial «…», o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro da marca …, matrícula …, sem ser titular de qualquer título válido ou licença que o habilitasse a conduzir veículos com motor na via pública.
2. Naquela circunstância de tempo e de lugar, o arguido foi interveniente em acidente de viação com danos materiais, tendo embatido com a parte frontal do veículo por si conduzido, na parte traseira do veículo matrícula … conduzido por CC.
3. Ainda naquela circunstância de tempo e de lugar, após o acidente, o arguido foi abordado por uma patrulha da GNR composta pelos militares DD e EE, e quando solicitado, pelos militares da GNR, devidamente identificados e uniformizados, para que se submetesse à realização de teste qualitativo do álcool por meio de expiração de ar pela boca, recusou.
4. Perante a advertência dos militares da GNR que incorreria na prática do crime de desobediência em caso de recusa da realização do teste de despistagem de álcool, o arguido voltou novamente a recusar-se a realizar o teste.
5. Ao agir do modo descrito, o arguido sabia, quis e conseguiu conduzir veículo automóvel com motor na via pública, bem sabendo que não o podia fazer, uma vez que não se encontrava habilitado para o efeito, sendo conhecedor das características do veículo e do local onde se encontrava a conduzir.
6. Ao atuar do modo descrito, o arguido sabia e quis recusar submeter-se ao teste para deteção do estado de influência pelo álcool.
7. Mais sabia e quis faltar à obediência devida a ordem dos militares da GNR, pese embora conhecesse a qualidade destes e soubesse que a ordem veiculada pelos mesmos era legítima, enquadrada no exercício das suas funções de fiscalização do trânsito rodoviário e que lhe estava a ser regularmente comunicada.
8. Sabia o arguido, ainda que a recusa de se submeter ao teste do álcool era punida por desobediência, o que lhe foi transmitido pelo agente detentor e, mesmo assim, o arguido decidiu não se submeter ao teste do álcool.
9. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, pese embora soubesse que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, mas ainda assim, não se coibiu de as praticar.
10. Em data anterior aos factos supra descritos, o arguido foi condenado, por decisão transitada em julgado em 19 de novembro de 2021, no processo n.º 97/20.7…, numa pena única de 11 (onze) meses de prisão efetiva, pela prática, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 1 e n.º 2, do DL 2/98, de 3 Janeiro e 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1do Código Penal, por factos ocorridos em 30 de Agosto de 2020.
11. Para além do processo identificado em 10, o arguido já foi condenado pela prática do crime de condução sem habilitação legal nos processos 153/98.6…, 373/98.3…, 639/02.0…, 371/05.2…, 1375/03.5…, 877/04.0…, 73/04.7…, 373/18.9…, 314/19.6…, 1038/18.7… e 934/20.6….
Mais se provou que,
12. À data da prática dos factos em questão nestes autos o arguido encontrava-se a residir em casa de BB, elemento que acolhera o arguido em fevereiro/2021, o apoiou durante o período de reclusão registado entre 31.05.2021 e 02.08.2023 e se disponibilizou para o voltar a acolher quando em meio livre.
13. BB conhece/mantém relação de amizade com o arguido desde há cerca de 10 anos, tendo nos últimos anos (e face ao desenquadramento sociofamiliar de AA) se disponibilizado para o apoiar ao nível do respetivo processo de reinserção social, considerando, inclusive, esse objetivo como “uma missão”.
14. Desde 2012 (após rutura marital e consequente distanciamento dos 3 descendentes), o arguido vivenciou, na globalidade, uma situação de sem-abrigo, associada ao consumo de substâncias psicoativas (cocaína, heroína), salientando-se nos últimos anos um padrão abusivo de bebidas alcoólicas. Não obstante, o arguido registou igualmente períodos de alguma organização sócio pessoal, no âmbito da retoma da intervenção terapêutica da Equipa Técnica Especializada no Tratamento – ETET, …, concomitante com o apoio do pai, falecido há cerca de 5 anos.
15. Em dezembro de 2018, o arguido contraiu matrimónio com elemento que o havia apoiado/acolhido, tendo a relação terminado em janeiro de 2019 na sequência de conflitos que estiveram na génese do processo 134/19.8…, no qual foi condenado pela prática de crime de violência doméstica, tendo a ofendida, entretanto, falecido.
16. O arguido detém habilitações literárias ao nível do 6º ano de escolaridade, tendo iniciado atividade remunerada com cerca de 16 anos de idade, como indiferenciado, e tendo experiência laboral maioritariamente como pescador e/ou mariscador, mas pautada pela instabilidade (num processo em crescendo). O arguido encontra-se reformado, por invalidez desde 2013.
17. À data da prática dos factos em questão nestes autos, tal como na atualidade, o arguido apresentava receitas mensais fixas num total de cerca de 445 Euros (correspondente à pensão de reforma por invalidez e pensão de viuvez), sendo apoiado economicamente (alimentação e ao nível de despesas extras, como aquisição de telemóvel, etc.) por BB, face à despesa assumida no âmbito do processo de aquisição de habilitação para condução de veículos automóveis, iniciado em agosto/2023.
18. Para além do historial aditivo já mencionado (com início reportado há cerca de 12 anos) e da patologia da coluna lombar (subjacente à atribuição de pensão de reforma por invalidez), o arguido apresenta quadro clínico do foro da cardiologia, pneumologia e da imunodeficiência (nomeadamente doença hepática crónica com cirrose) que requer acompanhamento médico regular.
19. À data da prática dos factos em questão nestes autos, e desde 31 de agosto de 2023, o arguido dera seguimento à intervenção (consulta de alcoologia) da ETET, …, sendo que anteriormente, em meio prisional, desvinculara-se, com sucesso, de programa de desintoxicação à base de metadona. Pese embora a verbalização reiterada de motivação para consolidar a abstinência aditiva, o arguido registava consumos de bebidas alcoólicas, afigurando-se-nos a esse nível registo de processo em crescendo.
20. À data da prática dos factos em questão nestes autos, e desde 25.02.2024, o arguido encontrava-se a cumprir PPH, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, tendo-lhe sido “concedida autorização para se ausentar da habitação para presença em consultas ou para realização de análises/exames clínicos (no Hospital de …, na ETET -… ou laboratórios clínicos a indicar) e para a frequência (na Escola de Condução …) das aulas teóricas ou práticas para aquisição de habilitação legal para condução de veículo”.
21. O desajustado comportamento do arguido (relativamente às obrigações decorrentes do seu confinamento no âmbito do cumprimento da referida pena) esteve subjacente a onze relatórios de incidentes (o primeiro em 19.03.2024 e o último em 03.05.2024) e três posteriores Informações de aditamento, a última em 14 de maio de 2024, sendo que nesta data AA saiu da morada/local de vigilância eletrónica, informando que estava em casa de amigos.
22. As reiteradas dificuldades em cumprir o confinamento no espaço habitacional, ausentando-se da habitação (em período de restrição e por motivos imprevistos, não fundamentados), seguido de paradeiro desconhecido, comprometeu e obstaculizou a efetiva fiscalização do cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação.
23. Segundo o veiculado pela Escola de Condução “…”, o arguido fora já impedido de frequentar aulas teóricas, face ao seu então comparecimento no local alcoolizado e consequente perturbação das aulas em causa.
24. Em outubro de 2023, AA foi excluído do Programa para Agressores de Violência Doméstica –PAVD (promovido pela DGRSP, conforme injunção no processo 134/19.8…), na sequência de comportamento inadequado, comparecimento em duas sessões denotando consumo de bebidas alcoólicas.
25. O arguido revela manifestas dificuldades em manter um comportamento em conformidade com as convenções sociais ou obrigações judiciais (nomeadamente ao nível rodoviário e num contexto de confinamento judicial), bem como em manter-se abstinente do consumo de bebidas alcoólicas, não obstante a sua adesão à intervenção terapêutica da ETET – … e o apoio psicoafectivo e socioeconómico do amigo BB.
26. No âmbito do acompanhamento, em 2019/2020, de medidas de suspensão da execução de penas de prisão, o arguido aderira então, em moldes adequados, à intervenção da DGRSP (tendo, inclusive, frequentado sessão sobre “Condução Habilitada e Comportamento Rodoviário Responsável”), o que não obstaculizou o registo de novos envolvimentos judiciais.
27. Durante o período de reclusão registado entre maio de 2021 e agosto de 2023 (no âmbito de revogação de suspensão de prisão subsidiária no processo 373/18.9…; do cumprimento do remanescente da PPH com vigilância eletrónica, no processo 934/20.6… e por revogação da mesma, em junho de 2021; cumprimento de pena de prisão aplicada no processo 97/20.7…), o arguido registou um comportamento coadunante com as normas vigentes em meio prisional e aderiu, quer à intervenção terapêutica da ETET, quer à ação formativa (12 sessões) “Treino de Competências Sociais e Pessoais”.
28. O arguido encontra-se no EP de … desde 18 de junho face à revogação do regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, no cumprimento da pena de 8 meses de prisão aplicada no processo 1038/18.7… e pela prática de crime de condução sem habilitação legal.
29. Em meio prisional, o arguido tem registado um comportamento coadunante com as normas vigentes no mesmo, não tendo, contudo, solicitado acompanhamento por parte da Equipa Técnica Especializada no Tratamento – ETET, porque, conforme referido pelo próprio, não bebe no Estabelecimento Prisional.
30. O arguido não tem usufruído de visitas. Quando em meio livre (sendo que a pena em curso termina no próximo dia 24 de outubro), o arguido considerou as dificuldades em arrendar um quarto (face aos meios próprios de subsistência no valor de cerca de 445 Euros), o que determinará o recurso a serviços de apoio social local ao nível da alimentação.
31. Do certificado de registo criminal do arguido, além da condenação já referida em 10, consta que:
a. Por sentença datada de 14.02.1991, proferida no âmbito do processo sumário n.º 196/91.0…, do …º Juízo …ª Secção do Tribunal de Pequena Instância Criminal de …, transitada em julgado em 27.02.1991, por factos cometidos em 13.02.1991, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de detenção ou tráfico de armas proibidas, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 300 escudos;
b. Por sentença datada de 16.10.1991, proferida no âmbito do processo sumário n.º 191/…, do Tribunal de Polícia de …, transitada em julgado em 28.10.1991, por factos cometidos em 13.02.1991, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de arma ilícita, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 300 escudos;
c. Por sentença datada de 01.04.1993, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 483/…, da …ª Secção do Tribunal Judicial de …, transitada em julgado em 15.04.1993, por factos cometidos em 15.07.1990, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 15 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 2 anos;
d. Por acórdão datado de 31.1.1996, proferido no âmbito do processo comum coletivo n.º 461/… do Tribunal de Círculo de …, transitada em julgado em 23.2.1996, por factos cometidos em 29.10.1993, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de furto simples, na pena de 15 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 3 anos;
e. Por acórdão datado de 23.06.1997, proferido no âmbito do processo comum coletivo n.º 649/…, do ….º Juízo do Tribunal Judicial de …, transitada em julgado em 10.03.1998, por factos cometidos em 09.02.1991, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de furto, na pena de 8 meses de prisão, perdoada ao abrigo do disposto no artigo 14.º n.º 1 al. b) da Lei 23/91 de 4 de julho;
f. Por sentença datada de 17.04.1998, proferida no âmbito do processo sumário n.º 153/98.6…, do Tribunal Judicial de …, transitada em julgado em 28.05.1998, por factos cometidos em 16.04.1998, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução ilegal, na pena de multa de 24000 escudos;
g. Por sentença datada de 29.07.1998, proferida no âmbito do processo sumário n.º 373/983…, do Tribunal Judicial de …, por factos cometidos em 29.7.1998, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução sob o efeito de álcool e um crime de condução sem carta, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 500 escudos e pela inibição de conduzir pelo período de 6 meses;
h. Por sentença datada de 21.06.2002, proferida no âmbito do processo sumário n.º 639/02.0…, do …º Juízo do Tribunal Judicial de …, transitada em julgado em 08.07.2002, por factos cometidos em 20.06.2002, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez e de um crime de condução sem habilitação, na pena única de 130 dias de multa à taxa diária de €3;
i. Por sentença datada de 09.02.2005, proferida no âmbito do sumário n.º 25/05.0…, do …º Juízo de Competência Criminal, transitada em julgado em 01.03.2005, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 3 meses de prisão, suspensa por 2 anos e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo período de 10 meses;
j. Por sentença datada de 23.05.2005, proferida no âmbito do processo sumário n.º 371/05.2… do …º Juízo do Tribunal Judicial de …, transitada em julgado em 09.06.2005, por factos cometidos em 29.04.2005, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 10 meses de prisão, suspensa por 4 anos, na condição de o arguido frequentar as aulas de condução e apresentar-se a exame para obtenção da mesma, de seis em seis meses, devendo fazer prova desse facto nos autos, de seis em seis meses, até ao final do período da suspensão ou até obtenção da carta de condução;
k. Por sentença datada de 11.04.2005, proferida no âmbito do processo abreviado n.º 1375/035…, do …º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de …, transitada em julgado em 19.05.2005, por factos cometidos em 06.12.2003, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 4 meses e 15 dias de prisão, suspensa por 2 anos;
l. Por sentença datada de 19.07.2006, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 877/04.0…, do …º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de …, transitada em julgado em 04.09.2006, por factos cometidos em 09.09.2004, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 8 meses de prisão, suspensa por 2 anos, sob condição de, no prazo de 1 ano, pagar a quantia de €500 à instituição ….
m. Por sentença datada de 04.10.2006, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 73/04.7…, do …º Juízo Competência Criminal do Tribunal Judicial de …, transitada em julgado em 26.10.2006, por factos cometidos em 10.11.2003, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 5 meses de prisão, suspensa por 2 anos, na condição de frequentar aulas de condução e se apresentar a exame de condução para obtenção de habilitação válida para condução, devendo para tal fazer prova desse facto durante o período da suspensão da execução da pena.
n. Por sentença datada de 11.02.2014, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 97/12.0…, do …º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de …, transitada em julgado em 13.03.2014, por factos cometidos em 03.02.2012, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de incêndio/fogo posto em edifício, construção ou meio de transporte, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa por 3 anos e 6 meses, sob regime de prova assente em plano de reinserção social;
o. Por sentença datada de 22.08.2018, proferida no âmbito do processo sumário n.º 373/18.9…, do Juízo de Competência Genérica de … – J…, transitada em julgado em 01.10.2018, por factos cometidos em 08.08.2018, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, que perfaz o total de € 1.000,00 que foi substituída por 133 dias de prisão subsidiária;
p. Por sentença datada de 22.03.2019, proferida no âmbito do processo sumário n.º 314/19.6…, do Juízo Local Criminal de … – J…, transitada em julgado em 30.04.2019, por factos cometidos em 07.03.2019, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 3 meses de prisão, suspensa por 1 ano.
q. Por sentença datada de 05.12.2019, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 1038/18.7…, do Juízo de Competência Genérica de … – J…, transitada em julgado em 17.01.2020, por factos cometidos em 09.11.2018, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 8 meses de prisão, suspensa por 1 ano, com a condição de frequentar o programa Licença.com, tendo a suspensão sido revogada e determinado o cumprimento de 8 meses de prisão em regime de permanência na habitação, o qual veio a ser revogado, tendo sido determinada a execução da pena de prisão ainda não cumprida em estabelecimento prisional;
r. Por sentença datada de 26.10.2020, proferida no âmbito do processo sumário n.º 934/20.6…, do Juízo Local Criminal de … – J…, transitada em julgado em 25.11.2020, por factos cometidos em 31.08.2020, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de veículo em estado de embriaguez, condução sem habilitação legal e de um crime de desobediência, na pena de 18 meses de prisão, em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica, o qual veio a ser revogado e determinada a execução da pena de prisão ainda não cumprida em estabelecimento prisional, e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo prazo de 12 meses;
s. Por acórdão datado de 10.11.2020, proferido no âmbito do processo comum coletivo n.º 134/19.8…, do Juízo Central Criminal de … – J…, transitado em julgado em 10.12.2020, por factos cometidos em 16.12.2018, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa por 2 anos e 9 meses, com regime de prova;
t. Por sentença cumulatória datada de 01.02.2023, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 97/20.7…, do Juízo Local Criminal de … – J…, transitada em julgado em 03.03.2023, que englobou as penas aplicadas no referido processo e no processo n.º 934/20.6…, foi o arguido condenado na pena única de 27 meses de prisão, e na pena única acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo prazo de 18 meses.
2.2. Factos não provados:
Provaram-se todos os factos com relevo para a decisão da causa, não havendo, por isso, factos não provados a enunciar.
2.3. Motivação
Para formar a sua convicção sobre os factos supra elencados como provados nos pontos 1 a 9 dos factos provados, atendeu o Tribunal às declarações do arguido, que confessou, de forma integral e sem reservas, os factos acima descritos, confissão que se mostrou livre e espontânea.
Relativamente à factualidade constante dos pontos 10, 11 e 31 dos factos provados, a prova dos mesmos resulta da análise da certidão judicial extraída do processo n.º 97/20.7…, junta a fls. 76 a 104 destes autos, bem como da análise do certificado de registo criminal junto a fls. 176 a 194-verso.
Finalmente, os factos descritos nos pontos 12 a 30 dos factos provados resultam provados face ao teor dos relatórios sociais elaborados pela DGRSP e junto aos autos, a fls. 131 a 134-verso, e 164 a 166.
***
III – Fundamentação de Direito
3.1. Enquadramento jurídico – penal dos factos
Ao arguido é imputada a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de:
- Um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, por referência ao artigo 121.º, do Código da Estrada;
- Um crime de desobediência simples, previsto e punido previsto e punido nos termos do disposto no artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e no artigo 152.º, n.ºs 2 e 3 do Código da Estrada, ao qual é aplicável a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, devendo o arguido ser punido como reincidente, nos termos do disposto no artigo 75.º, do Código Penal, com os efeitos plasmados no artigo 76.º, do Código Penal.
Do crime condução de veículo sem habilitação legal
Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, pratica o
crime de condução de veículo sem habilitação legal “quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada”.
O n.º 2 do referido artigo 3.º prevê uma agravação da moldura penal abstrata quando o veículo a motor seja classificado como motociclo ou automóvel.
Por sua vez, dispõe o artigo 121.º, n.º 1, do Código da Estrada, que “só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito”, estabelecendo-se no n.º 4 do mesmo artigo que “o documento que titula a habilitação legal para conduzir ciclomotores, motociclos, triciclos, quadriciclos pesados e automóveis designa-se 'carta de condução'”.
Relativamente ao elemento subjetivo exige-se que o agente atue com dolo, em qualquer das suas modalidades (cfr. artigos 13.º e 14.º, ambos do Código Penal).
No caso concreto, atentos os factos provados e supra elencados, constata-se que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, um crime de condução de veículo sem habilitação legal, pois tais factos preenchem os elementos objetivos e subjetivo deste tipo legal, não ocorrendo qualquer circunstância que exclua a ilicitude ou a culpa.
Do crime de desobediência simples
Preceitua o artigo 348.º do Código Penal, o seguinte:
“1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.”
Por seu turno dispõe o artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada, o seguinte:
“1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:
a) Os condutores;
b) (…)”
Já o n.º 3 do referido normativo legal prescreve que “as pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência”.
O bem jurídico protegido pela incriminação do tipo legal de crime de desobediência é a autonomia intencional do estado. Visa-se, especialmente, “a não colocação de entraves à atividade administrativa por parte dos destinatários dos seus atos” – cfr. Cristina Líbano Monteiro, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, pág. 350.
Nos termos do citado preceito legal, são elementos objetivos constitutivos do crime de desobediência, os seguintes: A ordem ou mandado; A legalidade substancial e formal da ordem ou mandado; A competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão; A regularidade da sua transmissão ao destinatário; e A violação dessa ordem ou mandado.
Assim, o tipo objetivo do crime em análise consiste no não cumprimento de uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados ao destinatário e provenientes de autoridade ou funcionário competentes.
Desobedecer é faltar à obediência devida.
Na ordem criminal não basta, porém, esta falta. Com efeito, “a dignidade penal da conduta exige (…) que o dever de obediência que se incumpriu tenha uma de duas fontes: ou uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição; ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado” – Cristina Líbano Monteiro, in ob. cit., pág. 351.
O crime de desobediência pode ser cometido por ação ou por omissão. Na verdade, a ordem e o mandado podem dirigir-se a um facere ou a um não facere, a que o desobediente corresponde com atitudes de sinal contrário.
A consumação ocorre, assim, quando o agente não faz devendo fazer, ou faz devendo não fazer. E, se houver um prazo estabelecido para o cumprimento da ordem ou mandado, a existência do crime está condicionada ao decurso desse prazo.
Ao nível do tipo subjetivo, o ilícito criminal é doloso (artigo 13.º do Código Penal), sob qualquer das suas modalidades, previstas no artigo 14.º do Código Penal, não havendo lugar, assim, à punição de desobediência realizada com negligência.
O dolo, como conhecimento e vontade de realização do tipo, é composto por três elementos: o elemento intelectual – conhecimento da ilicitude do facto –, o elemento volitivo – vontade de realização do tipo –, e o elemento emocional – atitude pessoal contrária ou indiferente à violação do bem jurídico protegido. O tipo doloso preenche-se sempre que o agente incumpre, consciente e voluntariamente, uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente.
Importa, neste ponto, salientar que “o destinatário tem que ter conhecimento da ordem a que fica sujeito, pelo que se exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que aquele tenha conhecimento do que lhe é imposto ou exigido. Para que o destinatário saiba se está ou não perante uma ordem ou um mandado desse tipo, torna-se indispensável que esta chegue ao seu conhecimento e pelas vias normalmente utilizadas, ou seja, que lhe seja regularmente comunicado” (cfr. Cristina Líbano Monteiro, in ob.cit., pág. 358).
Posto isto, definidos os elementos objetivos e subjetivos do crime em análise e tendo presente o disposto no artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do Código da Estrada, atenta a factualidade supra apurada, dúvidas não restam de que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, o crime de desobediência de que vem acusado, pois tais factos preenchem os elementos objetivos e subjetivo deste tipo legal, não ocorrendo qualquer circunstância que exclua a ilicitude ou a culpa.
*
3.2. Da escolha e determinação da medida concreta da pena
Qualificados juridicamente os factos e operada a respetiva subsunção aos preceitos incriminadores, importa, agora, proceder à determinação das penas a aplicar e das respetivas medidas.
Pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, incorre o arguido numa pena de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias.
Por sua vez, a pena a aplicar ao arguido pela prática do crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
Atendendo a que os mencionados tipos legais de crime admitem, em alternativa, pena principal de prisão e de multa, importa, em primeiro lugar, proceder à escolha do tipo de pena a aplicar ao arguido, para, seguidamente, determinar a medida concreta das penas escolhidas.
Preceitua o artigo 70.º do Código Penal, que a escolha da pena deve ser feita dando preferência à pena não privativa da liberdade, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Estas finalidades são, como se determina no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Terá, por isso, na escolha da pena a aplicar, de se atender quer a razões de prevenção geral positiva, quer a razões de prevenção especial positiva, estando excluída qualquer consideração atinente à culpa do agente.
A aplicação de uma pena visa, por um lado, reafirmar na comunidade a manutenção da validade das normas violadas, repondo a confiança dos cidadãos na respetiva validade e vigência, sempre que a mesma tenha sido abalada pela prática de um crime (prevenção geral positiva ou de integração), e, por outro, a reintegração do agente na sociedade através da “prevenção da reincidência” (prevenção especial positiva).
O Tribunal dará preferência à pena não privativa da liberdade, a não ser que razões ligadas à necessidade de ressocialização do arguido ou à defesa da ordem jurídica o desaconselhem.
Aliás, “a pena alternativa (...) só não será aplicada se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias” – Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2009, pág. 333.
Dito de outro modo, constituindo a pena de prisão a ultima ratio da política criminal subjacente ao nosso ordenamento jurídico e considerando-se adequada e suficiente a pena de multa, para que sejam alcançados os efeitos que se pretendem obter com a reação penal, deve a mesma ser aplicada.
Revertendo ao caso dos autos, dir-se-á que são elevadas as exigências de prevenção geral, na vertente de defesa do ordenamento jurídico e de tutela das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada, considerando, quer a natureza e a relevância dos bens jurídicos protegidos pelos tipos legais de crime em análise, quer a frequência, crescente, com que tais crimes são cometidos.
Neste contexto, a prevalência deve ser dada a exigências de prevenção especial ou de socialização do arguido. Sucede que, no presente caso, as exigências de prevenção especial se revelam muito elevadas.
Efetivamente, haverá que considerar a circunstância de o arguido possuir já diversas condenações pela prática de diversos crimes, entre os quais os crimes também aqui em apreço, sendo as últimas condenações já em penas de prisão efetiva ou em regime de permanência na habitação, que vem mais tarde a ser revogado por incumprimento por parte do arguido.
Tais circunstâncias levam-nos a concluir que as condenações anteriores, e as penas respetivas, não foram suficientes para dissuadir o arguido da prática de ilícitos criminais, designadamente, da prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, sendo esta já a décima terceira condenação pela prática de tal crime e a segunda pela prática do crime de desobediência. Pelo contrário, pese embora as condenações anteriores, o arguido persiste e reitera a prática de tais ilícitos, manifestando, desse modo, uma clara necessidade de punição, ao nível da prevenção especial, que não se coaduna, já, com a aplicação de uma pena de multa.
Na verdade, a reiteração, por parte do arguido, da prática dos ilícitos em questão, é reveladora da insuficiência da referida pena não privativa da liberdade para o fim específico da prevenção especial positiva, que se consubstancia na prevenção da reincidência.
E, por isso, não obstante a circunstância da pena de prisão constituir a ultima ratio da política criminal subjacente ao nosso ordenamento jurídico, certo é que, no presente caso, as particulares necessidades de punição, ao nível da prevenção especial, se afiguram de tal forma proeminentes que impõe a aplicação, ao arguido, de uma pena de prisão.
Face ao exposto, entende-se não ser adequada a aplicação de uma pena de multa por não satisfazer, de forma adequada e suficiente, as exigências, quer de prevenção geral, quer de prevenção especial, pelo que optamos pela aplicação, ao arguido, de uma pena de prisão por cada um dos crimes.
Escolhida a pena a aplicar por cada um dos crimes, impõe-se agora determinar, dentro da moldura legal respetiva, a medida concreta de cada uma das penas.
Ora, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 1 e n.º 2, do DecretoLei n.º 2/98, de 03 de janeiro, e 41.º, n.º 1, do Código Penal, o arguido incorre, pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal em pena de prisão de 1 mês a 2 anos.
Por sua vez, decorre do disposto nos artigos 348.º, n.º 1, al. a), e 41.º, n.º 1, ambos do Código Penal, que a prática do crime de desobediência simples, é punida com pena de prisão entre 1 mês e 1 ano.
Conforme prescreve o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, a determinação da medida concreta da pena a aplicar terá como critérios a culpa do agente e as exigências de prevenção.
O limite mínimo será fornecido pelas exigências de prevenção geral, sendo a culpa do agente que fornece o limite inultrapassável da pena (artigo 40.º, n.º 3 do Código Penal). Será dentro destes limites que, atendendo às necessidades de prevenção especial ou de socialização do agente, se determinará a medida concreta da pena.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 12.02.2009, proferido no processo 08P2191, disponível em www.dgsi.pt: “será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão atuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico-normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar”.
Nesses moldes, a prevenção geral positiva ou de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo, que tem, como fasquia superior, o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos, e inferior, o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar.
Por seu turno, a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal).
Ora, dentro desses limites, cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, sendo de atender à socialização do agente, considerando ainda as demais circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao arguido na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para as exigências preventivas, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, como preceitua o artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, encontrando-se, assim, a pena adequada e justa.
Dispõe o n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal que “na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”, elencando de seguida um conjunto exemplificativo de circunstâncias a atender, entre as quais, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo ou da negligência, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e posterior a este.
Posto isto, passa-se, de seguida, à determinação concreta das penas a aplicar ao arguido, por cada um dos crimes praticados.
Contra o arguido releva, desde logo, a crescente incidência deste tipo de crimes e a importância dos bens jurídicos que lhes estão subjacentes, mostrando-se elevadas as exigências de prevenção geral, que demandam uma maior necessidade de sancionamento com vista ao restabelecimento da confiança na norma violada.
Por outro lado, terá de se considerar, como desfavorável para o arguido, o grau de culpa com que atuou, mostrando-se, no presente caso, elevada a intensidade do dolo, que se situa ao nível do dolo direto.
No que concerne ao grau de ilicitude do facto, além dos factos que preenchem os elementos dos tipos em apreço, nada mais se apurou que permita considerar a ilicitude elevada, sendo por isso, a mesma, mediana.
Por outro lado, pesa contra o arguido o facto de ter já sido condenado diversas vezes pela prática de crimes, designadamente pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, sendo esta já a décima terceira condenação pela prática de tal crime e a segunda pela prática do crime de desobediência, salientando-se que o arguido teve a constante possibilidade de (re)ponderar o seu comportamento, de forma a adequá-lo ao sentido e valores jurídicos dominantes mas, ao invés, optou por continuar a seguir o caminho do crime, não se abstendo de praticar novos crimes.
Acresce que o arguido praticou os factos em questão nestes autos quando se encontrava a cumprir pena de prisão em regime de permanência na habitação, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, tendo-lhe sido concedida autorização para se ausentar da habitação apenas “para presença em consultas ou para realização de análises/exames clínicos (no Hospital de …, na ETET -… ou laboratórios clínicos a indicar) e para a frequência (na Escola de Condução …) das aulas teóricas ou práticas para aquisição de habilitação legal para condução de veículo”.
Mais haverá que considerar as manifestas dificuldades que o arguido revela em manter um comportamento em conformidade com as convenções sociais ou obrigações judiciais (nomeadamente ao nível rodoviário e num contexto de confinamento judicial), bem como em manter-se abstinente do consumo de bebidas alcoólicas, não obstante a sua adesão à intervenção terapêutica da ETET – … e o apoio psicoafectivo e socioeconómico do amigo BB, o que se configura acentuadas exigências de prevenção especial.
Em favor do arguido há a considerar, apenas, o facto de ter confessado de forma integral e sem reservas os factos pelos quais vinha acusado.
Tudo ponderado, julgo adequado aplicar ao arguido AA, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, e pela prática de um crime de desobediência simples previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, uma pena de 6 (seis) meses de prisão.
3.3. Da pena unitária
Tendo em conta que o arguido praticou dois crimes antes de ter sido condenado por qualquer um deles, é necessário recorrer às regras da punição do concurso de crimes, previstas no artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que dispõe que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena”, na medida da qual são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Nos termos do n.º 2 deste normativo, a pena única deverá ter como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos crimes efetivamente cometidos, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas.
Ora, o Tribunal aplicou ao arguido, pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, e pela prática do crime de desobediência simples, uma pena de 6 (seis) meses de prisão.
Assim, no presente caso, a moldura do concurso fixar-se-á entre 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e 2 (dois) anos de prisão.
Dentro desta moldura, há que considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente – parte final do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal –, avaliando, assim, “a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique” – Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2009, pág. 291.
Isto não significa que se valorarão novamente os fatores anteriormente ponderados aquando da determinação das penas concretas, procurando-se, pelo contrário, realizar uma análise genérica e consequencial de toda a factualidade, de modo a fazer corresponder a punição aos factos e às exigências pessoais e sociais que a sua prática suscitou, com o máximo rigor e acerto.
Sobretudo, há que aferir se a personalidade do agente, manifestada nos factos praticados, revela já uma tendência para o crime ou apenas uma pluriocasionalidade, bem como o efeito previsível que a pena terá no comportamento futuro do agente.
Assim sendo, há que fazer uma avaliação de conjunto da factualidade em causa, designadamente considerando que o arguido, com a sua conduta, violou efetivamente, diversos bens jurídicos. Pese embora esta circunstância, deve salientar-se, nesta sede, o facto dos dois crimes praticados pelo arguido se encontrarem unidos num mesmo episódio.
No caso concreto, em conjugação com os factos apurados – que nos revelam a natureza dos bens jurídicos violados, o modo de atuação, as consequências e o grau de culpa - é notória a personalidade do agente propensa à prática de crimes, evidenciada pelas várias condenações anteriores, inclusive pelos mesmos crimes que nos presentes autos vai condenado, não tendo as mesmas servido de advertência suficiente para que o arguido deixe de praticar crimes, não obstante as diversas oportunidades que lhe foram dadas nesse sentido (inicialmente através de penas de multa, posteriormente através de penas de prisão suspensas na execução e, por fim, sujeitas a regime de permanência na habitação, que constantemente incumpriu).
Ponderadas estas específicas circunstâncias, mostra-se adequada a fixação da pena única, do concurso do crime de condução de veículo sem habilitação legal e do crime de desobediência simples, em 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão.
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3.4. Da substituição ou da suspensão da pena de prisão.
Aplicada ao arguido uma pena de prisão de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão impõe-se, neste momento, a apreciação da verificação dos pressupostos de aplicação de uma pena de substituição.
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Face à ausência de qualquer critério estabelecido na lei, o critério de preferência da escolha da pena de substituição passa por saber qual a que melhor realiza as finalidades da punição, considerando, ainda, que uma pena privativa da liberdade surge como última ratio da política criminal – neste sentido, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, Parte geral II, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 365 e Odete Maria de Oliveira, in “Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal”, Edição do CEJ, pág. 73.
Por sua vez, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 817395, datado de 20 de Abril de 2009, (in www.dgsi.pt), considerando a natureza e pressupostos de cada uma delas, bem como as finalidades da punição, considerou que as penas de substituição podem ser apreciadas pela ordem seguinte: multa, suspensão da execução da pena, prestação de trabalho a favor da comunidade, regime de permanência na habitação, prisão por dias livres e regime de semidetenção, dando-se, deste modo, preferência às penas de substituição não privativas da liberdade.
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Tendo sido aplicada, ao arguido, uma pena única em medida superior a 1 (um) ano, fica, desde já, afastada a substituição da pena de prisão por pena de multa, porquanto esta substituição só pode operar quando a pena de prisão for aplicada em medida não superior a 1 (um) ano (artigo 45.º, n.º 1, do Código Penal).
Afastada fica também a substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, por se nos afigurar que a mesma não se afigura suficiente, nem adequada, às elevadas exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir.
Com efeito, decorre da factualidade provada que o arguido foi já condenado por diversas vezes pela prática de crimes, tendo todas as penas até então aplicadas se mostrado ineficazes, a tenta a reiterada prática de crimes, inclusivamente durante o período de execução de outras penas.
E tal sucede também com a suspensão da execução da pena de prisão, sendo manifesta a insuficiência da mesma. Não obstante se encontrar preenchido o pressuposto formal, atendendo ao facto de o arguido já ter sido condenado pela prática dos vários crimes, inclusive pelos mesmos de que aqui vai condenado e, igualmente, ao facto de ter voltado a cometer o mesmo tipo de crime, entende este Tribunal não ser já possível fazer um juízo de prognose favorável no sentido de “que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
De igual modo, no que concerne à execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, impõe-se concluir que a mesma não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, porquanto tendo já sido concedida, ao arguido, por duas vezes, a possibilidade de cumprimento de pena de prisão em regime de permanência na habitação, em ambas, as reiteradas dificuldades em cumprir o confinamento no espaço habitacional, ausentando-se da habitação (em período de restrição e por motivos imprevistos, não fundamentados), seguido de paradeiro desconhecido, levaram, invariavelmente, à revogação de tal regime e à determinação da a execução da pena de prisão ainda não cumprida em estabelecimento prisional.
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Conclui-se, pois, que só o cumprimento efetivo da pena de prisão será suficientemente dissuasor de reiterações criminosas futuras, fará com que o arguido interiorize a gravidade e ilicitude da sua conduta e reafirmará, na comunidade, a validade do comando legal violado.
Assim sendo, por não se mostrar adequada qualquer pena de substituição para satisfazer as necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, decide-se aplicar ao arguido AA uma pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão efetiva.
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3.5. Da reincidência
Em sede acusatória, o Ministério Público imputa ao arguido a prática dos crimes supra apreciado, na qualidade de reincidente.
Nesta sede, dispõem os artigos 75.º e 76.º, ambos do Código Penal, o seguinte:
No artigo 75.º, sob a epígrafe «pressupostos»:
1. É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com pena de prisão efectiva superior a seis meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a seis meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência para o crime.
2. O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de cinco anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
3. As condenações proferidas por tribunais estrangeiros contam para a reincidência nos termos dos números anteriores, desde que o facto constitua crime segundo a lei portuguesa.
4. A prescrição da pena, a amnistia, o perdão genérico e o indulto, não obstam à verificação da reincidência.
Já no artigo 76.º, sob a epígrafe «efeitos»:
1. Em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado. A agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.
2. As disposições respeitantes à pena relativamente indeterminada, quando aplicáveis, prevalecem sobre as regras da punição da reincidência.
Do transcrito artigo 75.º do Código Penal decorre a necessária verificação dos seguintes pressupostos formais da reincidência:
∙ a prática de um crime doloso, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação;
∙ que pelo aludido crime tenha sido condenado, por decisão transitada em julgado, em pena de prisão efetiva superior a 6 meses;
∙ ser o crime agora cometido igualmente doloso;
∙ ser este último crime, abstraindo da reincidência, punido em concreto com pena de prisão efetiva superior a 6 meses;
∙ que entre a prática de ambos os crimes em causa não tenham decorrido mais de 5 anos, suspendendo-se tal prazo durante o tempo em que o arguido tenha estado privado da liberdade, em cumprimento de medida de coação, de pena ou de medida de segurança (assim, para aferir deste específico pressuposto, interessam a data da prática do crime anterior, não a da sentença condenatória ou do seu trânsito em julgado, e a data da prática do crime posterior, in casu, em apreciação nestes autos).
Além dos referidos pressupostos formais, a verificação da reincidência exige ainda a verificação de um pressuposto material, qual seja o de que, atendendo às circunstâncias do caso concreto, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra a prática do crime. Quanto a este ponto concreto, “é no desrespeito ou desatenção do agente por esta advertência que o legislador vê fundamento para uma maior censura e, portanto, para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente». Assim, «o critério essencial da censura ao agente por não ter atendido à admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, se não implica um regresso à ideia de que a verdadeira reincidência é só a homótropa (homogénea ou específica), exige de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa. Uma tal conexão poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma da execução, se bem que ainda aqui possam intervir circunstâncias (…) que sirvam para excluir a conexão, por terem impedido de atuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores. Mas já relativamente a factos de diferente natureza (reincidência polítropa, genérica ou heterogénea) será muito mais difícil (se bem que de nenhum modo impossível) afirmar a conexão exigível. Desta maneira, (…) é a distinção criminológica entre o verdadeiro reincidente e o simples multiocasional que continua aqui a jogar o seu papel» - vide Jorge Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 1993, pág. 268.
A doutrina agora exposta tem sido sufragada pelo Supremo Tribunal de Justiça, podendo retirar-se que a reiteração criminosa pode resultar de causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas (caso em que inexiste fundamento para a especial agravação da pena, por não se poder afirmar uma maior culpa referida ao facto) e, não operando a qualificativa por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da íntima conexão entre os crimes não se basta com a simples história criminosa do agente, antes exige uma específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime, veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta, no que respeita ao seu desiderato dissuasor – neste sentido vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2007, 16.01.2008, 26.03.2008, 04.06.2008 e de 04.12.2008, respetivamente, processos n.º 9/07, 4638/07, 4833/07, 1668/08 e 3774/08.
Vertendo tais considerações ao caso concreto, constata-se que todos os pressupostos se mostram verificados.
Vejamos.
Nos presentes autos, o arguido vai punido pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, e de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, ambos praticados em 06.04.2024, na pena única de 1 ano e 9 meses de prisão.
Por sentença proferida no Processo n.º 97/20.7…, transitada em julgado em 19.11.2021, o arguido foi condenado na pena de 11 meses de prisão efetiva, pela prática, em 30.08.2020, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 1 e n.º 2, do DL 2/98, de 3 Janeiro, e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1do Código Penal.
O arguido foi ainda condenado pela prática do crime de condução sem habilitação legal nos processos 153/98.6…, 373/98.3…, 639/02.0…, 371/05.2…, 1375/03.5…, 877/04.0…, 73/04.7…, 373/18.9…, 314/19.6…, 1038/18.7… e 934/20.6….
Significa isto que, o arguido foi condenado, por decisão transitada em julgado, em pena de prisão efetiva superior a 6 meses, sendo que o invocado processo teve por objeto a prática de crimes dolosos – crime de condução de veículo sem habilitação legal e crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
Mais se afere que entre a prática dos crimes anteriores e a prática dos delitos em apreciação nos presentes autos não decorreram mais de cinco anos (artigo 75.º, n.º 2, do Código Penal), reportando-se estes a 06.04.2024 e aqueles 30.08.2020.
Quanto ao requisito material, resulta evidente que o mesmo se mostra igualmente verificado.
Com efeito, há que considerar que o arguido praticou os factos em discussão nestes autos durante o cumprimento de uma pena de prisão em regime de permanência na habitação, a qual incumpriu ao ausentar-se sem ter motivo justificativo, revelando, assim, uma completa indiferença pela anterior punição, sendo inequívoco que o arguido não sentiu nem interiorizou a admonição contra o crime, veiculada pelas anteriores condenações transitadas em julgado e que conduz à falência destas, no que respeita ao seu desiderato dissuasor.
Acresce que a personalidade manifestada – patente nos diversos fatores de risco que apresenta, e no seu percurso criminal – não permite inferir que a prática do crime nos presentes autos se deva a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas.
Pelo contrário, permite sim, afirmar que os crimes que o arguido agora praticou não tiveram por base circunstâncias meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas, mas outrossim origem na própria personalidade do arguido, desviante e avessa ao direito, incapaz de se deixar motivar pelas condenações anteriormente sofridas, as quais não serviram de suficiente advertência contra a prática de novo crime.
Pelo exposto, decide-se condenar o arguido AA como reincidente.
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Da indicação da medida abstrata da pena aplicável ao arguido, enquanto reincidente.
Em termos abstratos, e levando em consideração a necessidade da sua punição enquanto reincidente, nos termos do disposto nos artigos 75.º e 76.º, ambos do Código Penal, o crime de crime de condução de veículo sem habilitação legal praticado pelo arguido, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, é punido com pena de prisão de 1 (um) mês e 10 (dez) dias a 2 (dois) anos, e o crime de desobediência simples praticado pelo arguido, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, é punido com pena de prisão de 1 (um) mês e 10 (dez) dias a 1 (um) ano.
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Da determinação das penas concretas – agravadas pela reincidência – a aplicar ao arguido.
Atendendo à alteração da moldura penal aplicável em razão da aplicação do instituto da reincidência ao arguido, cabe fazer a devida determinação das concretas penas de prisão a aplicar.
Nessa sequência e repercutindo o aludido aumento do limite mínimo das penas abstratamente aplicáveis, decide-se aplicar (reiterando-se as considerações já acima tecidas) ao arguido AA, pela prática de:
- um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, uma pena de 1 (um) ano e 7 (sete) meses de prisão; e de
- um crime de desobediência simples previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, uma pena de 7 (sete) meses de prisão.
Da determinação da pena única.
Fixadas novas penas concretas a aplicar ao arguido pela prática de cada um dos crimes em apreço, em virtude da punição do arguido como reincidente, cabe proceder, novamente e em face da nova moldura aplicável, à determinação da pena única do concurso, nos termos previstos no artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal.
Ora, tendo o Tribunal aplicado, ao arguido, pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal uma pena de um ano e sete meses de prisão, e pela prática do crime de desobediência simples, uma pena de sete meses de prisão, a moldura do concurso fixar-se-á, no presente caso entre 1 (um) ano e 7 (sete) meses e 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão.
Assim, ponderadas as específicas circunstâncias já acima referidas, reveladoras da personalidade do arguido, em conjugação com os factos apurados – que nos revelam a natureza dos bens jurídicos violados, o modo de atuação, as consequências e o grau de culpa – mostra-se adequada a fixação da pena única, do concurso do crime de condução de veículo sem habilitação legal e do crime de desobediência simples, em 1 (um) ano e 11 (onze) meses de prisão, não se suspendendo a sua execução pelos motivos já supra exarados.
3.6. Da pena acessória
Nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal “é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para deteção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo”.
Face à factualidade considerada provada nos autos, encontram-se, no caso vertente, integralmente reunidos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido da pena acessória da proibição de conduzir veículos a motor.
Esta pena acessória tem como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução, ou com utilização de veículo, e como pressuposto material a especial censurabilidade, no caso, do exercício da condução (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág. 165).
Importa sublinhar, por outro lado, que, de molde a “obviar a um tratamento desigual que adviria da sua não punição” (cfr. Figueiredo Dias, in “Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, Ministério da Justiça, 1993, páginas 75 e 76) a circunstância de o arguido não ser titular de carta de condução não pode constituir óbice a esta condenação, porquanto seria “um contrasenso que o condutor não habilitado legalmente a conduzir, podendo vir a obter licença ou carta de condução logo pouco depois da sentença condenatória, não se visse inibido de conduzir, quando o já habilitado fica sujeito a tal sanção” (cfr. Germano Marques da Silva, in “Crimes Rodoviários”, pág. 32. Neste sentido vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.09.1995, in C.J. Ano XX, 1995, Tomo IV, pág. 147; e, de entre outros, também os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, datados de 22.09.2009, no processo n.º 291/08.9GATBU.C1, de 19.10.2011, no processo n.º 241/09.5GEACB.C2, disponíveis in www.dgsi.pt). Até porque, não obstante não explicar como se executa uma tal pena (cfr. artigo 500.º do Código de Processo Penal), não só a letra da lei não permite distinguir para o efeito em questão entre ser-se ou não possuidor de licença, como até admite a proibição sem haver ainda título de condução (cfr. artigo 18.º, n.º 1, alínea e), do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir aprovado pelo Decreto-Lei n.º 138/2012 de 5 de julho).
Importa, agora, determinar a medida da pena acessória, que será fixada dentro da moldura penal abstrata – com um mínimo de três meses e um máximo de três anos –, de acordo com a culpa e as exigências de prevenção (geral e especial), bem como atendendo a todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido (cfr. artigo 71.º do Código Penal), fazendo-se, por isso, o mesmo raciocínio que fizemos para graduar a pena principal. Assim, ponderadas as circunstâncias atinentes à culpa e às necessidades de prevenção, nos mesmo termos referidos para a fixação da pena principal de prisão, considera-se justa e proporcional a imposição, ao arguido, da proibição de conduzir veículos a motor por um período de 1 (ano) e 4 (quatro) meses. (…)”.
IV – FUNDAMENTAÇÃO.
IV.1. DO RECURSO EM MATÉRIA DE FACTO – DA IMPUGNAÇÃO AMPLA DA DECISÃO EM MATÉRIA DE FACTO - DO ERRO DE JULGAMENTO.
No caso da impugnação ampla da matéria de facto, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.
Na impugnação ampla temos a alegação de erros de julgamento por invocação de provas produzidas e erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Neste caso, o recorrente pretende que o tribunal de recurso se debruce sobre as suas próprias declarações, prestadas na audiência de julgamento realizada em 16-10-2024, documentadas no sistema integrado de gravação digital entre as 10 horas e 22 minutos e as 10 horas e 30 minutos, entendendo que daí resulta que o Tribunal incorreu em erro de julgamento ao não dar como provado o seu arrependimento sincero, na medida em que “O ora Recorrente demonstrou o seu arrependimento, explicou em que termos se mostrava arrependido, e respondeu a instancias de modo a ser percetível a sua capacidade critica pelos actos praticados, e a capacidade de identificação dos bens jurídicos em presença”.
Cumpre apreciar, na medida em que se mostram cumpridos os ónus de especificação impostos pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados merecem decisão diversa da que foi proferida, avaliando os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem essa decisão diversa.
Como realçou o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 12-6-2008 (Proc. nº 07P4375, em www.dgsi.pt): “a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º)” – cfr. também, neste sentido, o Ac. RL, de 10.10.2007, proc. nº 8428/2007-3, in www.dgsi.pt.
Na verdade, sendo o recurso um remédio jurídico, um instrumento de reparação de algo que foi errada ou deficientemente apreciado e decidido, daqui decorre que só poderá haver lugar a uma alteração da decisão quanto à matéria factual já apurada pelo julgador a quo, nos casos em que, dentro dos poderes que a lei concede ao tribunal de revista, se tenha de concluir que um “mal” inelutavelmente se verifica.
Assim, a reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão.
Cumpre então enunciar quais são os poderes de reapreciação de matéria de facto, atribuídos por lei a este tribunal de apelo, bem como os seus limites e os seus condicionalismos
Há que começar por constatar que compete ao Tribunal decidir a matéria de facto, segundo os ditames previstos no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Daqui decorre que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador, uma vez que a lei lhe impõe que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, sendo que a avaliação probatória deve ser realizada com sentido da responsabilidade e bom senso.
O artigo 127° do Código de Processo Penal determina, pois, um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador de 1ª instância, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de fevereiro de 2008, processo nº 07P4729, acessível em www.dgsi.pt.).
Temos, pois, que a lei não considera relevante a pessoal convicção de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal – até porque se assim fosse, não haveria, como é óbvio, qualquer decisão final. O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova, o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional.
Terá ocorrido erro de apreciação da prova quanto ao alegado arrependimento sincero do arguido?
O arrependimento encontra-se previsto no Código Penal como uma das circunstâncias modificativas atenuantes gerais – artigo 72º, nº 2 do CP – sendo que a previsão legal não o define, limitando-se a dizer que pode extrair-se de determinados atos ou condutas que, porém, não concretiza, indicando a título meramente exemplificativo, a reparação levada a cabo pelo agente, até onde era possível, dos danos causados.
A confissão dos factos delituosos imputados pode, também ela, constituir um dos elementos através dos quais se objetiva o arrependimento – mas para isso deverá poder ver-se nela uma prova de autocrítica e intenção de mudança de atitude, o que nem sempre subjaz à confissão.1
Assim, devemos assentar que a confissão não pressupõe por si só o arrependimento.
Para que se afirme o arrependimento deverá constatar-se um comportamento processual positivo pós-delito do arguido, realizado em benefício da vítima, ou da administração da justiça – ou por esta considerado útil – e por isso valorado positivamente pelo Direito. Quando o agente desenvolve uma atividade posterior ao crime, destinada a eliminar ou diminuir os seus efeitos danosos ou perigosos, atividade essa que seja reveladora de sincera preocupação decorrente da autocensura do comportamento delitivo, constata-se o arrependimento. Essa atividade posterior ao crime não poderá deixar de funcionar a seu favor, sendo fundamento para um tratamento penal mais favorável.
O arrependimento, enquanto sentimento do foro interior, deverá ser exteriorizado através de atos concretos, que sejam provados em sede de julgamento, em conformidade com o disposto no artigo 355º, nº 1, do Código de Processo Penal. Não bastará, pois, ao arguido, para beneficiar do arrependimento, limitar-se a fazer a sua proclamação.
No caso dos autos, o único ato concreto com que nos deparamos é a confissão dos delitos imputados, posto que nenhuma relevância se poderá atribuir à proclamação do arrependimento que o arguido fez em audiência, aliás na sequência de pergunta específica e direto do seu defensor.
A confissão dos crimes surge, no caso em apreço, com muito reduzida relevância para o apuramento da verdade material – o arguido limitou-se a confessar factos relativamente aos quais não podia deixar de saber que existia no processo prova robusta, capaz de suportar a sua demonstração positiva, mesmo que se remetesse ao silêncio. Não podemos, pois, considerar que o ato de confessar os factos tenha sido decisivo para o rumo do processo, constituindo, assim, algo de muito benéfico ou útil para a justiça. Abreviou o caminho que, por via da produção de prova testemunhal, prometia produzir igualmente a base para um juízo positivo sobre os factos delituosos imputados.
Mas mais do que isso, a confissão efetuada pelo arguido – como se alcança através da audição da gravação das suas declarações em audiência – surge marcada por intensa desculpabilização, quer com o problema de alcoolismo do arguido, quer com as dificuldades da sua situação familiar. Debalde se procurará nas declarações do arguido uma atitude de consciente necessidade de mudança de procedimento. Antes se constata uma atitude apelativa, de autocomiseração, centrada nas dificuldades do arguido e pouco direcionada para estratégias pessoais de mudança.
O proclamado arrependimento do arguido, não nos transmite no caso concreto qualquer esperança de reintegração social do agente (artigo 40º, nº 1, do Código Penal). O arguido continua a revelar ausência de uma verdadeira capacidade de autocensura, sem desculpabilização, não permitindo as suas declarações, muito embora confessórias dos crimes que bem sabia que por outras vias seriam demonstrados, constatar a presença de fatores de mudança, verdadeiramente inibidores da recidiva no mesmo tipo de delitos.
Em face das declarações prestadas pelo arguido o Tribunal a quo não deu como provado que o arguido se encontra sinceramente arrependido dos seus atos. E bem andou a Julgadora ao dissociar a confissão dos crimes desse arrependimento – aquilo que resulta da prova produzida é, isso sim, que o “arguido revela manifestas dificuldades em manter um comportamento em conformidade com as convenções sociais ou obrigações judiciais (nomeadamente ao nível rodoviário e num contexto de confinamento judicial), bem como em manter-se abstinente do consumo de bebidas alcoólicas, não obstante a sua adesão à intervenção terapêutica da ETET – … e o apoio psicoafectivo e socioeconómico do amigo BB”.
Apreciadas as declarações do arguido, a cuja audição integral este Tribunal de recurso procedeu, não se constata a ocorrência de qualquer erro de julgamento, não se vislumbra qualquer desvio das regras de apreciação da prova, sendo certo que uma correta análise crítica das declarações prestadas pelo arguido não permite concluir pela demonstração de arrependimento sincero e, consequentemente, não consubstancia erro de julgamento que imponha decisão diversa.
Não é esta a visão da defesa.
Insistindo na sua valoração do meio de prova declarações do arguido e criticando a valoração feita pelo Tribunal recorrido, o recorrente considera que a valoração feita pelo Tribunal a quo não pesou adequadamente as palavras do recorrente e que, em face delas deveria ter concluído pela prova do arrependimento sincero que o arguido expressamente afirmou.
Após audição das declarações do arguido, porém, surge com evidência a improcedência da impugnação da matéria de facto apresentada: esse meio de prova (único indicado pelo recorrente) não impõe decisão diversa da proferida (al. b) do n°3 do art.° 412º do CPP) que permita ao Tribunal de recurso alterar o decidido.
Conforme se escreve no Acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril de 2008 proferido no P.° 360/08-1.a, acessível em www.dgsi.pt: “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.»
Conforme entendimento perfilhado no Acórdão do TRL, de 09.10.2013, Proc. n° 132/12.SYLSB.L1-3, disponível em www.dgsi.pt:
"A discordância do recorrente quanto ao modo como o tribunal recorrido valorou a prova produzida só pode relevar se não tiverem sido respeitados os limites decorrentes da regra da livre apreciação da prova, se as declarações tiverem inequivocamente um sentido diferente daquele que foi apreendido pelo tribunal recorrido ou se existirem provas que imponham (e não apenas que permitam) decisão diversa da recorrida.".
In casu, o que se verifica é que o recorrente não se conforma com a matéria de facto fixada pelo Tribunal, mas essa discordância não resulta de declarações, ou de qualquer outra prova evidenciadora do contrário, mas, tão só, da forma como a prova foi apreciada pelo Tribunal a quo.
Para formar a sua convicção, em relação aos factos provados e não provados, o Tribunal recorrido apoiou-se em elementos de prova válidos, que analisou criticamente, conjugando-os entre si, não constando dos autos quaisquer outros elementos de prova que imponham decisão diversa, designadamente no ponto que o arguido gostaria de ver integrado entre os factos provados, mas que carece de suporte.
A este Tribunal de apelo cabe constatar que o Tribunal recorrido teve contacto vivo e imediato com o arguido, tendo transposto para a motivação da sua convicção não só o elenco das provas reputadas relevantes, como também o seu exame crítico, explicitando o processo de formação da convicção.
Nenhuma censura nos merece a fundamentação, cumprindo, mais uma vez, salientar que a crítica à convicção a que chegou o Tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência comum [que não se mostram violadas], não pode ter sucesso ao alicerçar-se apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
Da análise do conjunto das provas produzidas em julgamento, resulta evidente que inexiste qualquer prova que obrigasse a decisão diferente da proferida pelo Tribunal a quo, mostrando-se a decisão de facto devida e claramente fundamentada.
Impõe-se, por isso, julgar improcedente a impugnação ampla da matéria de facto.
*
IV.2. DA VERIFICAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS DE PUNIÇÃO A TÍTULO DE REINCIDÊNCIA.
O recorrente insurge-se contra a decisão condenatória, argumentando que não estão verificados os pressupostos para a sua condenação como reincidente e concluindo do seguinte modo:
“I. Então está demonstrado um quadro factual que identifica uma situação pessoal e económica causadora e reveladora de alcoolismo, pobreza, solidão , ausência de apoio familiar , ausência de capacidade de ganho por invalidez, e perda de qualidade de vida e de bem-estar mínimo com limitação decorrente de doença crónica, conjugado com situação de sem abrigo , que culmina na clara dificuldade de compreensão e identificação dos valores e resultados dos seus actos, e da limitação do livre arbítrio e incapacidade de tomada de decisão, que foram inocrrectamente avaliados na sentença ora recorrida ao não ter julgado e declarado um grau de culpa diminuído do ora Recorrente , o que viola o previsto na alínea d) , e ) e f) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.
J. Não se pode de forma alguma constatar um grau mais elevado de censura , quando a culpa do ora Recorrente não pode ser julgada agravada, num quadro de dependência do álcool e de completa miséria pessoal e moral e de ausência de capacidade de organização e funcionalidade.
K. Logo impugna-se a decisão sobre a matéria de Direito que aplicou in casu o instituto da reincidência perante um quadro factual que não revela a censurabilidade qualificativa que tenha raiz na personalidade do Recorrente, pois a ausência de capacidade de determinação e a compulsividade do álcool, tolhem a capacidade de agir conformidade as regras de convivência em Sociedade, à luz do que foi dado como provado, pelo que se considera que a sentença ora recorrida violou o previsto no n.º 1 do artigo 75.º do Código Penal.”
Na perspetiva do recorrente os factos provados não bastam para se afirmar a reincidência e, pelo contrário, até a afastam.
Mas não tem razão.
Na decisão recorrida, o arguido AA foi condenado, como reincidente, pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, e de um crime de desobediência simples previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
Na decisão recorrida, no que reporta à reincidência, foram ponderadas as seguintes circunstâncias:
“Nos presentes autos, o arguido vai punido pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, e de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, ambos praticados em 06.04.2024, na pena única de 1 ano e 9 meses de prisão.
Por sentença proferida no Processo n.º 97/20.7…, transitada em julgado em 19.11.2021, o arguido foi condenado na pena de 11 meses de prisão efetiva, pela prática, em 30.08.2020, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 1 e n.º 2, do DL 2/98, de 3 Janeiro, e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1do Código Penal.
O arguido foi ainda condenado pela prática do crime de condução sem habilitação legal nos processos 153/98.6…, 373/98.3…, 639/02.0…, 371/05.2…, 1375/03.5…, 877/04.0…, 73/04.7…, 373/18.9…, 314/19.6…, 1038/18.7… e 934/20.6….
Significa isto que, o arguido foi condenado, por decisão transitada em julgado, em pena de prisão efetiva superior a 6 meses, sendo que o invocado processo teve por objeto a prática de crimes dolosos – crime de condução de veículo sem habilitação legal e crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
Mais se afere que entre a prática dos crimes anteriores e a prática dos delitos em apreciação nos presentes autos não decorreram mais de cinco anos (artigo 75.º, n.º 2, do Código Penal), reportando-se estes a 06.04.2024 e aqueles 30.08.2020.
Quanto ao requisito material, resulta evidente que o mesmo se mostra igualmente verificado.
Com efeito, há que considerar que o arguido praticou os factos em discussão nestes autos durante o cumprimento de uma pena de prisão em regime de permanência na habitação, a qual incumpriu ao ausentar-se sem ter motivo justificativo, revelando, assim, uma completa indiferença pela anterior punição, sendo inequívoco que o arguido não sentiu nem interiorizou a admonição contra o crime, veiculada pelas anteriores condenações transitadas em julgado e que conduz à falência destas, no que respeita ao seu desiderato dissuasor.
Acresce que a personalidade manifestada – patente nos diversos fatores de risco que apresenta, e no seu percurso criminal – não permite inferir que a prática do crime nos presentes autos se deva a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas.
Pelo contrário, permite sim, afirmar que os crimes que o arguido agora praticou não tiveram por base circunstâncias meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas, mas outrossim origem na própria personalidade do arguido, desviante e avessa ao direito, incapaz de se deixar motivar pelas condenações anteriormente sofridas, as quais não serviram de suficiente advertência contra a prática de novo crime.
Como já disse este Tribunal da Relação em Acórdão proferido no processo de recurso nº 1337/22.3PALGS.E1 em 20 de fevereiro de 2024:
“O artigo 75º do Código Penal, na parte que no caso releva, dispõe que:
“1. É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime;
2. O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
(…)”.
A reincidência, enquanto circunstância modificativa agravante, tem como consequência a agravação especial da pena, nos termos do artigo 76º do Código Penal - o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço, permanecendo o limite máximo inalterado. A agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.
São pressupostos formais da reincidência, para além da prática de um crime, “por si só ou sob qualquer forma de participação”:
- ser o novo crime cometido um crime doloso;
- dever ser este novo crime (sem a incidência da reincidência) punido com pena de prisão efetiva superior a 6 meses;
- que o arguido tenha antes sido condenado, por decisão transitada em julgado, também em pena de prisão efectiva superior a 6 meses, por outro crime doloso;
- que entre a prática do crime anterior e a do novo crime não tenham decorrido mais de 5 anos (este prazo suspende-se durante o tempo em que o arguido tenha estado privado da liberdade, em cumprimento de medida de coacção, de pena ou de medida de segurança).
Para além desses pressupostos formais, a verificação da reincidência exige ainda um pressuposto material: que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.
A punição agravada da reincidência – aplicada ao agente que cometeu o crime depois de condenado anteriormente por outros da mesma espécie (reincidência específica, própria ou homótropa) ou de espécie diferente (reincidência genérica, imprópria ou polítropa) – encontra justificação no maior grau de culpa, decorrente da circunstância de, apesar de já ter sido condenado, insistir em cometer o crime e em desrespeitar a ordem jurídica, bem como na maior perigosidade revelada, face à indiferença perante a solene advertência da condenação anterior revelada pela persistência em delinquir.
A maior censura do delinquente por não ter acolhido a advertência solene contra o crime inerente à condenação ou condenações anteriores, só se justifica se verificada uma íntima conexão entre os crimes reiterados, conexão que poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga, segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução.
Como vem explicitando a Jurisprudência dominante, a circunstância qualificativa da reincidência não opera como efeito automático das anteriores condenações, não sendo suficiente e constatação do percurso delituoso do arguido para que a agravação funcione.
Por isso mesmo, é necessária a específica comprovação factual das “circunstâncias do caso” (as circunstâncias que rodearam o cometimento do novo crime) e, também com base nelas, um juízo de avaliação concreta, uma ponderação em concreto, sobre o referido pressuposto material – só através desse iter se alcançará, eventualmente, a demonstração de que as condenações anteriores não tiveram a suficiente força de dissuasão para afastar o arguido do crime.
Decisivo será saber se, perante as circunstâncias, deve censurar-se o agente por não se ter deixado motivar pela advertência contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, sendo certo que o pressuposto material do critério essencial dessa censura, está, atentas as circunstâncias do caso, na referida íntima conexão entre os crimes reiterados, que deva considerar-se endogenamente relevante na ponderação daquela censura e da consequente culpa. Não basta, pois, que o agente tenha cometido um crime doloso a seguir a outro crime doloso, nas circunstâncias acima referidas, embora tal constitua um pressuposto necessário: é ainda necessário que o agente deva ser censurado por as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.
Isto porque, como bem se explicitou no Acórdão da Relação do Porto de 15 de dezembro de 2010 , que aqui de perto vimos seguindo, «a reiteração criminosa pode resultar de causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas – caso em que inexiste fundamento para a especial agravação da pena por não se poder afirmar uma maior culpa referida ao facto – e não operando a qualificativa por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da íntima conexão entre os crimes não se basta com a simples história criminosa do agente, antes exige uma “específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor”. Para proceder a reincidência será, então, necessário, além da verificação dos respectivos pressupostos legais formais, decorrentes das condenações anteriores, que haja factualidade subsequente demonstrativa de que o arguido não se sentiu suficientemente advertido ou intimidado com as condenações anteriores (mormente com a última condenação), para não delinquir, (trata-se fundamentalmente de prevenção especial) ou, que apesar das condenações anteriores, o arguido continua a carecer de socialização acrescida, exigindo-se de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados que seja adequadamente relevante em termos de censura e de culpa. Faz-se assim a exigência da concreta verificação do funcionamento desta qualificativa, o que implica indagação da correspondente matéria de facto.»
Porque é assim, a suficiência da matéria de facto para a decisão condenatória a título de reincidência depende da específica comprovação factual das circunstâncias de que fala o artigo 75º do Código Penal, o que passa necessariamente pela enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação de que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a advertência contra o crime transmitida aquando da anterior condenação. Trata-se do conjunto de circunstâncias de facto de que se poderá extrair, como se escreveu no referido Acórdão da Relação do Porto, a verificação da “falência” da anterior condenação “no que respeita ao desiderato dissuasor”. “Só através da análise do caso concreto, do seu específico enquadramento, de uma avaliação judicial concreta do pleno das circunstâncias que enformam a vivência do arguido no período em causa, se poderá concluir estarmos perante um caso de culpa agravada, devendo o arguido ser censurado por a condenação anterior não lhe ter servido de suficiente advertência contra o crime, ou antes, face a uma falta de fundamento para a agravação da pena, por se estar perante simples pluriocasionalidade”, como também naquele aresto se escreveu.
Para que na decisão de direito possa fazer-se atuar a reincidência é necessário que a decisão de facto comporte, por um lado, a enumeração das circunstâncias de facto referentes à verificação dos pressupostos formais previstos no artigo 75º do Código Penal e, por outro lado, a enumeração dos factos de que se possa extrair que a condenação ou condenações anteriores não constituíram suficiente advertência contra o crime, por desrespeito ou desatenção culposa do arguido, fundamento para uma maior censura.
E neste domínio, como bem se assinalou no douto Acórdão da Relação do Porto que vimos a citar, não é indiferente a situação de se estar perante uma possível reincidência homótropa ou perante um caso de eventual reincidência politropa:
“Tem o STJ sufragado a doutrina segundo a qual o critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, se não implica um regresso à ideia de que verdadeira reincidência é só a homótropa (homogénea ou específica), exige de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa. “Uma tal conexão poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução; se bem que ainda aqui possam intervir circunstâncias (…) que sirvam para excluir a conexão, por terem impedido de actuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores.” (destacados nossos).
Regressemos ao caso concreto.
O recorrente tem razão quando afirma que a reincidência é uma qualificativa que depende da verificação de pressupostos de facto e da formulação de um juízo sobre o inêxito da admonição anterior.
Mas ao contrário do que argumenta, da decisão recorrida colhem-se os factos suficientes para suportar o juízo que ali se fez de que a condenação anterior não teve a suficiente força de dissuasão para o afastar do crime.
O Tribunal a quo procedeu a uma análise do caso concreto, enumerando as circunstâncias que enformaram a vivência do arguido no período em causa (na justa medida em que as mesmas puderam ser conhecidas) e com base nelas formulou o necessário juízo a permitir o específico enquadramento numa situação de reincidência.
Assim se concluiu por se conseguir reconhecer um caso de culpa agravada, em que o arguido deve ser censurado por a condenação anterior não lhe ter servido de suficiente advertência contra o crime.
Como bem assinalou o Ministério Público na resposta ao recurso, no caso dos autos, ao contrário do alegado pelo Recorrente, resulta da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo, a menção à necessária censura devido às anteriores condenações não terem servido a suficiente advertência para a prática dos novos crimes.
«Regressando aos autos, com facilidade se conclui que, apesar das muitas condenações sofridas pelo arguido, o mesmo volta a perpetrar crimes, sendo completamente indiferente às condenações anteriormente sofridas.
O que significa duas coisas:
- Por um lado, que a sua personalidade é propensa à prática deste tipo de ilícitos;
- Por outro, que as condenações não têm sido suficientes para o tornar fiel ao direito.
Assim e tendo em atenção os factos dados como provados, constata-se que todos os pressupostos da reincidência se mostram verificados.”.
O juízo emitido pelo Tribunal a quo mostra-se bem fundado nos factos demonstrados e, pelo seu acerto, fazemos nossas as considerações tecidas na decisão recorrida. A decisão não violou o art. 75º do Código Penal, nem merece qualquer reparo ou censura, devendo manter-se a agravante da reincidência.
O recurso do arguido será, também nesta parte, julgado improcedente.
*
IV.3. DA ATENUAÇÃO ESPECIAL DAS PENAS.
O recorrente insurge-se contra a decisão condenatória por não ter aplicado a atenuação especial das penas, argumentando do seguinte modo:
“L. Se como acima se demonstrou acima, o ora Recorrente confessou e demonstrou arrependimento sincero , então à luz do previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal , verifica-se o preenchimento de uma causa de atenuação especial das penas a aplicar, e como da leitura da decisão ora recorrida não conclui pela tomada em consideração deste facto, nem tão pouco da ponderação do preenchimento desta disposição legal;
M. Logo impugna-se a decisão sobre a matéria de Direito que não considerou sequer a questão decorrente da confissão donde decorreu o sentimento de arrependimento e de atitude critica, denotando capacidade de reconhecimento dos bens jurídicos atingidos , visto que tendo o ora Recorrente confessado e demonstrado arrependimento sincero, impunha-se quer a respectiva ponderação, quer a efectivação da atenuação especial das penas aplicadas , donde se conclui pela violação do previsto na referida alínea c) do n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal.
Cumpre apreciar.
O artigo 72º do Código Penal estabelece:
“1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
(…)”
Prevê este normativo que circunstâncias contemporâneas do facto (que estão relacionadas com a culpa) e prévias ou posteriores ao facto (que relevam por via da prevenção) justifiquem a atenuação especial da pena.
O elenco previsto na norma é exemplificativo.
O Tribunal a quo não se decidiu pela atenuação especial da pena.
Ensina Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, p. 302) que “quando o legislador dispõe a moldura penal para um certo tipo de crime, tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os da menor até aos da maior gravidade pensáveis: em função daqueles fixará o limite mínimo, em função destes o limite máximo da moldura penal respectiva; de modo a que, em todos os casos, a aplicação da pena concretamente determinada possa corresponder ao limite da culpa e às exigências de prevenção. Desde há muito que se põe em relevo, porém, que a capacidade de previsão do legislador é necessariamente limitada e inevitavelmente ultrapassada pela riqueza e multiplicidade das situações reais da vida. E que, em consequência, mandamentos irrenunciáveis de justiça e de adequação (ou “necessidade”) da punição impõem que – quando esteja em causa uma atenuação da responsabilidade do agente (…) – o sistema seja dotado de uma válvula de segurança. Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena”.
Nos termos do nº 1 do art. 72º do Cód. Penal, “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”.
Como resulta da norma referida, a “acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena. A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso tem plena razão a nossa jurisprudência – e a doutrina que a segue – quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os casos «normais», lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios” (aut. e ob. citadas, p. 306 e 307).
No caso concreto, e analisada a imagem global do facto, não se vê qualquer razão suscetível de determinar uma atenuação especial.
A argumentação do recorrente, nesta particular questão de Direito, pressupunha a procedência da impugnação ampla da matéria de facto que, como vimos supra, naufragou.
Não se tendo provado o arrependimento sincero do arguido, resta-nos constatar que não ocorrem nos autos quaisquer razões para atenuação especial das penas, devendo improceder o recurso, também nesta parte.
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IV.4. DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Perante os factos provados, e sem que se suscitem questões referentes ao enquadramento jurídico-penal dos mesmos, manter-se-á a condenação do arguido como autor dos dois crimes por que foi sancionado, sem que do objeto do recurso faça parte a apreciação da determinação concreta das penas de prisão aplicadas (quer parcelares, quer única).
A questão a apreciar prende-se com a pretensão do arguido recorrente de ver decretada a suspensão da execução da pena de prisão, insurgindo-se contra a aplicação de pena de prisão efetiva, nos termos vertidos nas seguintes conclusões:
“N. O dever de se atender “às condições de vida” expressamente aludidas no n.º 1 deste artigo 50.º do Código Penal, implicava que se sopesasse as limitações e dificuldades graves pelo alcoolismo e de falta de capacidade de determinação e de decidir e ponderar as suas acções, devia ser ponderado com a aplicação de injunções de acompanhamento e de tratamento que equilibrassem as chances do ora Recorrente perante os demais.
O. Pois a verdade é que o ora Recorrente se encontra numa situação de inferioridade e desigualdade de chances no tocante à avaliação dos seus actos e consequências, porque o ora Recorrente não tem as mesmas possibilidades e capacidades de discernimento e de ponderação que o padrão de normalidade da Sociedade Portuguesa e da comunidade da Provincia periférica em que se insere o distrito de … .
P. Sendo alcoólico, doente crónico, desprovido de apoio e escrutínio familiar, denotando acentuados sinais de falta de motivação e de capacidade de funcionalidade e de manter quaisquer bases de convivência social, não pode ser assacada à personalidade do ora Recorrente um juízo desfavorável porque o ora Recorrente é uma pessoa profundamente doente.
Q. Julgá-lo ao ora Recorrente à luz de um critério de exigência normal do homem médio, para efeitos de ponderação de suspensão das penas de prisão em que veio condenado , sem que se tivesse feito mão do elenco de instrumentos previstos no artigo 52.º do Código Penal, afigura-se uma injustiça .
R. Uma injustiça que decorre da impossibilidade do ora Recorrente conseguir exigir em conformidade com as expectativas mínimas do convívio em sociedade sem a supervisão e vigilância constantes ou sem o competente tratamento, medicação e acompanhamento permanentes.
S. Pressupor o ora Recorrente como um criminoso comum e reincidente e quase incorrigível, para lhe ser aplicado instituto da reincidência e para se lhe negar a suspensão da pena de prisão, é não perceber que o ora Recorrente sem tratamento, e por ser uma pessoa doente, não consegue agir melhor, num plano de inferioridade e de desigualdade de oportunidades de agir correctamente perante os demais, sempre em permanente frustração de expectativas próprias e completa destruição de qualquer auto estima e respeito por si próprio, e em permanente frustração das expectativas da Comunidade.
T. Uma vez que o mesmo não consegue sequer ter capacidade de prever as consequências dos seus actos e de ponderá-los para obviar a tais consequências é a forma de injustiça que se coloca à consideração de V. Exas.
U. Pelo que impugna a decisão sobre a matéria de Direito que julgou não suspender a pena de prisão em que o ora Recorrente veio condenado , deixando-o de o sujeitar a quaisquer regras de conduta, de forma desproporcional, desadequada e desnecessária perante a situação do ora Recorrente, o que constitui a violação do previsto nos artigos 50.º números 1 e 2, e 52.º do Código Penal.
V. Tanto mais que , como resulta dos presentes autos, no dia seguinte à leitura da decisão de que ora se recorre, o ora Recorrente foi devolvido à liberdade, afigurando-se injusto que o ora Recorrente seja em tão curto espaço de tempo preso novamente logo após ter sido libertado.”
Cumpre apreciar.
Estabelece o n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. E, de acordo com o disposto no n.º 2 do mesmo artigo 50.º, o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
A suspensão da execução da pena não depende, assim, de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respetivos pressupostos legais.
Por outro lado, importa relembrar que a suspensão da execução da pena de prisão não pode deixar de ser entendida como uma medida pedagógica e reeducativa, com vista à realização, de forma adequada, das finalidades da punição, isto é, da proteção dos bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade (art.º 40.º, n.º 1, do C. Penal), devendo ser decretada se se mostrar adequada para afastar o delinquente da prática da criminalidade.
Não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas. Subjacente à suspensão está assim a possibilidade de formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido no sentido de se entender que a condenação em causa constitui para si uma séria advertência e um forte alerta para que não volte a delinquir, acreditando-se que, nas concretas condições em que se encontra, é razoavelmente de acreditar que a sua ressocialização se poderá fazer ainda em liberdade.
Importa, por fim, notar que, tratando-se de um juízo de prognose, não se impõe que tal juízo assente necessariamente numa “certeza”, bastando uma “expectativa” fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e, consequentemente, a ressocialização em liberdade do arguido (trata-se de entendimento constante na nossa Jurisprudência, podendo ver-se, entre muitas outras decisões neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.2003, in Coletânea de Jurisprudência/STJ, ano XXI, tomo II, 2003, p. 221).
Como referem LEAL-HENRIQUES E SIMAS SANTOS, in Código Penal Anotado, I, pág. 444, «o Tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza». Na verdade, não podendo nunca assegurar-se que um arguido, a quem foi suspensa a execução de uma pena de prisão, não venha a cometer novo crime, haverá sempre que correr algum risco, embora um risco calculado, impondo-se no entanto que existam bases de facto capazes de suportarem tal juízo com alguma firmeza. Para tanto, deverá o Tribunal considerar os elementos referidos no citado artigo 50.º, n.º 1, do C. Penal, ou seja, a personalidade do agente, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, sendo que, se da ponderação de todas essas circunstâncias, concluir favoravelmente sobre o comportamento futuro do arguido no sentido de admitir como muito provável que a simples censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para o afastar da prática da criminalidade e para satisfazer as demais finalidades da punição (proteção dos bens jurídicos), deverá, em tal caso, suspender a execução da pena aplicada. O juízo de prognose a realizar pelo Tribunal partirá assim da análise conjugada das circunstâncias do caso concreto, das condições de vida do arguido, da conduta anterior e posterior ao crime adotada pelo mesmo e da sua revelada personalidade, análise que permitirá concluir, ou não, pela viabilidade da sua socialização se fazer em liberdade.
O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a questão em apreço e concluiu pela inviabilidade da opção pela suspensão da pena única de prisão aplicada.
Desde logo, o Tribunal a quo, ao pronunciar-se sobre a inaplicabilidade das penas de substituição, considerou o seguinte:
“(…) E tal sucede também com a suspensão da execução da pena de prisão, sendo manifesta a insuficiência da mesma. Não obstante se encontrar preenchido o pressuposto formal, atendendo ao facto de o arguido já ter sido condenado pela prática dos vários crimes, inclusive pelos mesmos de que aqui vai condenado e, igualmente, ao facto de ter voltado a cometer o mesmo tipo de crime, entende este Tribunal não ser já possível fazer um juízo de prognose favorável no sentido de “que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
De igual modo, no que concerne à execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, impõe-se concluir que a mesma não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, porquanto tendo já sido concedida, ao arguido, por duas vezes, a possibilidade de cumprimento de pena de prisão em regime de permanência na habitação, em ambas, as reiteradas dificuldades em cumprir o confinamento no espaço habitacional, ausentando-se da habitação (em período de restrição e por motivos imprevistos, não fundamentados), seguido de paradeiro desconhecido, levaram, invariavelmente, à revogação de tal regime e à determinação da a execução da pena de prisão ainda não cumprida em estabelecimento prisional.
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Conclui-se, pois, que só o cumprimento efetivo da pena de prisão será suficientemente dissuasor de reiterações criminosas futuras, fará com que o arguido interiorize a gravidade e ilicitude da sua conduta e reafirmará, na comunidade, a validade do comando legal violado”.
Com esta fundamentação, o Tribunal a quo ponderou as circunstâncias do caso concreto, partindo da consideração do comportamento provado e analisando, a par das necessidades de defesa do ordenamento jurídico, com particular enfoque, a natureza e contornos da conduta do arguido (factos que correspondem à repetição de condutas que por diversas vezes mereceram censura penal no passado, designadamente com aplicação de penas de prisão, cometidos em momento em que o arguido se encontrava em cumprimento de pena de prisão em regime de permanência na habitação), bem como a ausência de verdadeira autocrítica (veja-se que o arguido, que confessando os crimes, se desculpabiliza, restando o facto de já ter sido múltiplas vezes condenado pela prática dos mesmos crimes, voltando sempre a cometê-los).
Desde já, afirmamos que as conclusões extraídas pelo Tribunal recorrido se mostram acertadas e inabaláveis. Vejamos porquê.
A conduta do arguido que conduz à sua condenação nos presentes autos é, na sua globalidade, grave, suscitando forte repúdio no seio da comunidade, sendo que as exigências de prevenção geral positiva são especialmente intensas - os crimes em causa desencadeiam fortes “sentimentos” de intranquilidade na comunidade que, cada vez mais ciente das gravíssimas consequências que, com frequência que não abranda apesar da firmeza das sanções aplicadas pelos nossos Tribunais, decorrem das situações de prática de crimes rodoviários, repudia com veemência o comportamento do arguido.
Por isso, os propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada, reclamam uma intervenção forte do direito penal sancionatório, por forma a que a aplicação da pena responda às necessidades de tutela dos bens jurídicos, assegurando a manutenção, apesar da violação da norma, da confiança comunitária na prevalência do direito.
Sucede que na situação em apreço são igualmente muito intensas as necessidades de prevenção especial.
No caso concreto, deparamo-nos com uma grave repetição homótropa de da semelhantes condutas delituosas, num quadro de desculpabilização, permissividade e tolerância do crime, que propicia o cometimento de novos crimes.
O arguido revela um baixo grau de autocrítica e de autocensura.
Tentando o arguido minimizar a gravidade dos seus comportamentos (chegando a afirmar que desobedeceu à ordem de realização do teste de alcoolemia por estar “apavorado”), avolumam-se os receios de repetição de semelhantes condutas. Por outro prisma, se considerarmos o percurso do arguido e a natureza dos crimes em causa, as possibilidades de se estabelecer um prognóstico positivo acerca do comportamento do arguido diminuem ainda mais.
Este quadro de elevado risco de “reincidência” não foi ignorado pelo Tribunal a quo que, por via dele, excluiu a possibilidade de estabelecer um prognóstico favorável sobre o comportamento futuro do arguido. E bem. A personalidade do arguido, revelada na prática dos factos e na sua postura perante os mesmos, não permite que se considere provável que a simples censura do facto e a ameaça da prisão sejam suficientes para o afastar da prática de novos factos.
Os contornos do caso inviabilizam a possibilidade de acreditar que o arguido será sensível à advertência de condenação que não envolva o cumprimento efectivo de pena de prisão. Não há base para uma “expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e, consequentemente, a ressocialização em liberdade do arguido”. Por isso, o risco de enveredar por uma pena de prisão suspensa na sua execução não é, no caso, um risco “prudente”. Só um prognóstico negativo se pode fazer, pesadas todas as circunstâncias do caso concreto.
Apenas a prisão efetiva dará resposta adequada às necessidades de prevenção, como bem decidiu o Tribunal a quo.
O recurso improcede, também nesta parte
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IV.5. DA DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR.
O recorrente AA foi condenado, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por 1 (ano) e 4 (quatro) meses.
Conclui o recorrente que tal pena acessória é excessiva, argumentando do seguinte modo:
“X. Sucede que a sanção acessória aplicada constitui impedimento legal para a obtenção do titulo de condução, cuja a falta, preenche o tipo legal de condução sem habilitação legal, tal como resulta do previsto no artigo 18.º n.º1 alínea e) do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado pelo DL n.º 138/2012, de 05 de Julho.
Y. Pelo que se considera injusta a medida da pena acessória aplicada, porquanto num espaço tão alargado nem sequer é dada a oportunidade ao ora Recorrente de puder vir a por fim à pratica do crime de tem vindo condenado , quando se constata que o ora Recorrente padece e sofre das limitações dadas como provadas nos presentes autos.
Z. Por isso se entende que a aplicação de uma sanção acessória na medida à constante do dispositivo da decisão recorrida constitui a violação do previsto no n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal , por ter sido incorrectamente avaliada a sua aplicação em conjugação com o previsto no no artigo 18.º n.º1 alínea e) do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado pelo DL n.º 138/2012, de 05 de Julho e com o tipo de condução sem habilitação legal em que o ora Recorrente veio condenado.”.
Vejamos.
No que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1ª Instância, a intervenção dos Tribunais de 2ª Instância deve ser moderada e seguir a jurisprudência enunciada, quanto à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão daquele Tribunal Superior de 27/05/20092, no qual se considerou: "... A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada". (No mesmo sentido, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 197, § 255).
Assim, só em caso de desproporcionalidade na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª Instância alterando o quantum da pena concreta.
Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.
De tal resulta que, se a pena fixada na decisão recorrida, em todas as suas componentes, ainda se revelar proporcionada e se mostrar determinada no quadro dos princípios e normas legais e constitucionais aplicáveis, não deverá ser objecto de qualquer correcção por parte do Tribunal de Recurso.
Estas considerações são válidas no que se refere à determinação da medida das penas principais, mas igualmente no que toca à determinação da medida concreta das penas acessórias.
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Tal como refere Figueiredo Dias (Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, pág.165), a graduação da medida concreta da pena acessória obedece aos mesmos critérios da pena principal e dela se espera que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor leviano ou imprudente.
Com efeito, as penas acessórias desempenham uma função preventiva adjuvante da pena principal, com sentido e conteúdo não apenas de intimidação da generalidade, mas, também, de defesa contra a perigosidade individual – neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26 de maio de 2015 (Processo n.º 915/14.9SGLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt).
Porque se trata de uma pena, ainda que acessória, deve o julgador, na sua graduação atender, também ao estabelecido no artigo 71.º do Código Penal, tendo presente que a sua finalidade (ao contrário da pena principal que visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração social do agente) assenta na censura da perigosidade.
Olhando a decisão recorrida, é forçoso concluir que o Tribunal a quo centrou a sua apreciação quanto à medida da pena acessória nas necessidades de prevenção geral e especial sentidas no caso concreto.
E nessa tarefa, podemos, desde já, afirmar que, contrariamente ao entendimento do recorrente, a sentença recorrida ponderou, de forma rigorosa, todas as circunstâncias factuais (quer as referentes à conduta delituosa, quer as pessoais do arguido), incluindo as relevantes de entre as enumeradas recorrente, procedendo à determinação da medida concreta da pena principal e da pena acessória, em estrito cumprimento do estabelecido nos artigos 69º, 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal, não deixando de ter em vista as exigências subjacentes à aplicação da pena e as finalidades visadas pelo legislador ao estabelecer a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, quando em causa se encontra a prática de determinado tipo de ilícitos, ao considerar as elevadíssimas exigências de prevenção geral, atenta a frequência com que tais ilícitos ocorrem, e, por outro lado, as muito intensas necessidades de prevenção especial.
São intensas as necessidades de prevenção geral, importando passar à comunidade a mensagem adequada acerca das consequências (designadamente penais) que devem andar associadas à prática de crimes rodoviários.
No caso dos autos, não pode este Tribunal deixar de considerar a imagem global dos factos cometidos no episódio de vida em julgamento – a eles não pode deixar de estar associada uma séria preocupação com a perigosidade do comportamento e a adequação da mensagem que se passa para a comunidade ao fixarem-se as reações penais correspondentes.
Mas a ponderação não se pode quedar pela valorização das necessidades de prevenção geral. Para além da ilicitude dos factos praticados, não pode o Tribunal deixar de sopesar as circunstâncias que se prendem com a pessoa do arguido. E foi isso que fez o Tribunal a quo.
Deverá reter-se que o artigo 69º do Código Penal, com a alteração introduzida pela Lei n.º 77/2001 de 13/7, agravou de modo significativo a moldura abstrata da mencionada pena acessória, alterando-a, no seu limite mínimo de 1 mês para 3 meses e, no seu limite máximo de 1 ano para 3 anos. A moldura abstrata da pena acessória apresenta-se com uma considerável amplitude, apta a permitir que o Tribunal adeque a reação penal às circunstâncias do caso concreto.
Se a finalidade da imposição da pena acessória é a de incutir no espírito do arguido a necessidade de observar rigorosamente as regras de cautela na condução e as obrigações que impendem sobre os condutores, não é indiferente o facto de estarmos perante um arguido que sofreu já múltiplas condenações por crimes rodoviários.
Do mesmo modo, não pode ser desatendida a personalidade do arguido, sobretudo quando ela é demonstrativa de indiferença perante o valor dos bens jurídicos colocados em perigo e desprezo pelas advertências solenes subjacentes às condenações anteriores.
Atentos todos os fatores a ponderar, uma conclusão se impõe: a aplicação da pena acessória na medida imposta pelo Tribunal a quo (1 ano e 4 meses) não evidencia qualquer violação das regras previstas nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal, nem revela qualquer desproporcionalidade que se imponha corrigir.
Tudo ponderado, afigura-se-nos ajustado que o arguido deva ficar proibido de conduzir veículos motorizados pelo período fixado [bem acima do mínimo legal de três meses, por imposição das necessidades de prevenção geral e especial, mas, ainda assim, bem afastado do seu limite máximo (3 anos)]. Essa medida da pena acessória não pode ser qualificada de excessiva, revelando, antes, adequada ponderação da conduta provada e, nomeadamente quanto ao grau de perigosidade revelado, das circunstâncias pessoais do arguido.
O recurso será, assim, face aos termos sobreditos, julgado improcedente também nesta parte.
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V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, em confirmar a douta decisão recorrida nos seus precisos termos.
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Tributação.
Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).
Évora, 19 de maio de 2025
Jorge Antunes (Relator)
Mafalda Sequinho dos Santos (1ª Adjunta)
Anabela Cardoso (2ª Adjunta)
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1 Cfr. o Ac. STJ de 21.06.2007 (proc. 07P2042), em cujo sumário se anota que da confissão e colaboração do arguido não resulta natural e irrecusavelmente o arrependimento. À confissão, mesmo se completa, não se segue necessariamente o arrependimento que vai mais além, o arrependimento pode inexistir ainda quando se confesse de pleno os factos cometidos. No mesmo sentido, Ac. STJ de 29.11.1995 (proc. 047283): [Da confissão não resulta automaticamente o arrependimento]; e Ac. STJ de 03.06.1987 (proc. 038779): [A confissão não implica arrependimento].
2 Cfr. Ac. Do STJ de 27 de maio de 2009 – Relator: Conselheiro Raúl Borges; acessível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e11c50996991c5df802575f20052ae77?OpenDocument