EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
CAUSAS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE E DA CULPA
PROCEDIMENTO CONTRAORDENACIONAL
PRESCRIÇÃO
Sumário

I - O exame crítico das provas corresponde à indicação dos motivos que determinaram a que o Tribunal formasse a sua convicção quanto à prova num determinado sentido, aceitando um meio de prova e afastando outro, e porque é que certas provas são mais credíveis do que outras.
II - Não ocorre qualquer causa de exclusão da ilicitude e da culpa da arguida quando não se provou que a mesma foi coagida a conduzir um veículo automóvel por outra pessoa.
III - Mostra-se prescrito o procedimento contraordenacional se na data da prolação da sentença condenatória já decorreu o prazo da prescrição, acrescido de metade, sem que tenha ocorrido qualquer causa de suspensão da prescrição.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1– Relatório

No processo nº 185/20.0GABNV do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Local Criminal de … - Juiz …, por sentença datada de 14/11/2023, decidiu-se:

“(…) 1) condenar a arguida, AA, pela prática do crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido nos termos do artigo 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98 de 03/01, numa pena de 40 (quarenta) dias de multa;

2) condenar a arguida, AA, pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido nos termos dos artigos 14º, nº1, 26º e 291º, nº1, alínea b) do Código Penal, numa pena de 100 (cem) dias de multa;

3) operar o cúmulo jurídico e condenar a arguida, AA, numa pena única de 115 (cento e quinze) dias de multa à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), numa quantia total de € 632,50 (seiscentos e trinta e dois euros e cinquenta cêntimos);

4) condenar a arguida, AA, pela prática da contra-ordenação rodoviária prevista e punida pelos artigos 4º, nº3, 131º e 146º, alínea l) do Código da Estrada, na coima no montante de € 625,00 (seiscentos e vinte e cinco euros);

5) condenar a arguida, AA, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 1 (um) mês e 15 (quinze) dias;

6) condenar a arguida na pena acessória de proibição de conduzir, pelo período de 4 (quatro) meses, com a advertência de que, se não entregar a carta de condução na secretaria deste tribunal ou qualquer posto de polícia, em 10 dias a contar do trânsito da presente decisão, incorrerá na prática de um crime de desobediência, sem prejuízo da apreensão da mesma, (artigos 69º nº 3 do Código Penal e 500º nº 2 do Código de Processo Penal). Fica ainda o arguido advertido de que incorre num crime de violação de proibições ou interdições, caso venha a efectuar a condução de veículos, durante o período de inibição de conduzir (…)”.

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Inconformada com a decisão condenatória, veio a arguida interpor recurso, pugnando pela sua absolvição e formulando as seguintes conclusões:

“1. A recorrente foi condenada pela prática de um crime de Condução sem habilitação legal previsto e punido nos termos do artigo 3ºn nº 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98 de 03/01, numa pena de 40 dias de multa e por um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. nos termos do arts. 14º nº 1, 26º e 291º, nº 1 al. b) do CP, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 4 meses.

2. Em cúmulo jurídico foi condenada em 115 dias de multa à taxa diária de €5,50, o que perfaz um total de €632,50.

3. Mais foi condenada pela prática de uma contra-ordenação p. e p. nos termos dos arts. 4º nº 1 a 3, 131º e 146º al. i) do Código da Estrada, numa coima no valor de €625,00.

4. E, uma sanção acessória de 1 mês e 15 dias.

5. O Tribunal fez uma errada interpretação da prova, para dar como não provados os factos B, C e D.

6. Uma vez que a prova testemunhal foi insuficiente para colocar em causa o alegado pela arguida.

7. Cujas declarações, tendo em conta o contexto deveriam ter sido consideradas credíveis.

8. À luz do que dito fica afigura-se nos que os factos dados como provados e não provados pela convicção que o Tribunal Coletivo a quo formou da análise e valoração de toda a prova produzida em julgamento tendo em conta os parâmetros plasmados na motivação acima transcrita, não foi feito um devido exame crítico, pelo que o acórdão é nulo, por violação dos arts. 374º, 379º e 87º do CPP.

9. Impugnação dos factos dados como não provados, B, C, D nos termos do art. 412º do CPP.

10. A prova que leva a uma decisão diversa, são as declarações da arguida, que se encontram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:12:57 horas e o seu termo pelas 14:23:13horas

11. E cuja restante prova, é insuficiente para colocar em causa.

12. Falta o elemento subjectivo dos ilícitos penais.

13. Ao não ter decidido dessa forma o Tribunal violou os arts Ao não ter considerado dessa forma, o Tribunal violou o os arts. 3ºn nº 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98 de 03/01, e os arts. 14º nº 1, 26º e 291º, nº 1 al. b) do CP.

14. Pelo que, deveria o Tribunal absolver a arguida por não estarem preenchidos todos os elementos necessários à prática dos ilícitos em causa.

15. No entanto, e tendo em atenção os elementos a ponderar na aplicação de uma pena, a recorrente considera que as penas/sanções acessórias aplicadas foram excessivas e desproporcionais às exigências legais.

16. A Recorrente aceitou e confessou os factos.

17. Tendo justificado o porquê dos mesmos terem acontecido.

18. O próprio Tribunal acabou por aceitar como assente que a mesma agiu influenciada pelo seu companheiro.

19. Era o companheiro quem conduzia normalmente o veículo em causa.

20. Que tinha por tendência não cumprir as regras de trânsito.

21. Não esquecendo que há data dos factos a arguida tinha 24 anos de idade e já era mãe de três crianças, tendo se juntado muito nova ao seu companheiro.

22. Passado 5 meses dos factos a arguida conseguiu tirar a carta.

23. Pediu desculpa a um dos agentes pelo sucedido.

24. Mostrou-se arrependida.

25. Não tinha antecedentes criminais à data.

26. E continua a não ter antecedentes criminais.

27. Não tem registo contra-ordenacional.

28. Sendo que os factos ocorreram há mais de 3 anos e seis meses.

29. Pelo que, dúvidas não pode haver que estes factos foram sem dúvida uma ocasião única e excepcional.

30. A arguida neste momento é mãe solteira, porque o seu companheiro faleceu.

31. O carro neste momento é essencial para a rotina familiar, levar as filhas à escola, fazer as compras para casa, uma vez que só pode contar consigo.

32. É beneficiária de RSI, rendimento de reinserção social no valor de €500,00.

33. A Recorrente está arrependida e interiorizou os factos.

34. Tendo em conta o tempo já passado, a confissão, o já ter carta de condução, a ausência de antecedentes criminais, o seu comportamento posterior aos factos, a Recorrente considera adequada e proporcional tendo em conta as exigências legais ao caso em concreto uma pena de multa inferior à aplicada e uma sanção acessória também no mínimo legal.

35. Ao não ter decidido dessa forma o Tribunal violou o preceituado nos arts. 40º, 70º, arts 71º nº 1, nº 2, al. a), b), d), e), e 3, art. 72º, do C. Penal

36. Quanto à contraordenação, a Recorrente considera que tal infracção já se encontra prescrita, uma vez que já passou o prazo de prescrição acrescido de metade, sem prejuízo do tempo de suspensão.

37. Devendo a mesma ser declarada extinta por prescrição, nos termos do art. 188º nº 1 do CE e arts 28º e 27 do RGCO.

38. O Tribunal ao não ter declarado a extinção por prescrição, o qual é de conhecimento oficioso, violou o preceituado no art. 188º nº 1 do CE, 28º e 27º do RGCO.”

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O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido, formulando as seguintes conclusões:

“I- A prática dos factos criminosos por parte da Arguida e o dolo com que os levou a cabo não foram atenuados pelo facto de o companheiro da Arguida ter incentivado a tal prática.

II- A Sentença a quo efetuou corretamente o exame crítico da prova, tendo elucidado as partes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

III- Os factos não provados resultam da falta de prova aliás bem explicitada na Sentença a quo.

IV- Inexiste falta de demonstração do elemento subjetivo concomitante à prática dos factos, tendo o mesmo sido concluído aravés do acervo probatório existente nos autos.

V- Tendo por base, quer as molduras abstratas dos crimes praticados pela arguida, quer ainda o grau de ilicitude e culpa apurados nos autos, quer ainda as exigências de prevenção especial e geral que ao caso importam, aliás bem explicadas na Sentença, parecem-nos adequadas as penas condenatórias, não merecendo, da nossa parte, reparo.

VI- Tendo por base a prescrição do procedimento criminal, que se interrompe com a constituição de arguido e com a notificação da acusação ao Arguido, afigura-se-nos não ter decorrido ainda o lapso de tempo a que alude o n.º 3 do artigo 121.º do Código Penal.”

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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância.

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, não cabendo no objecto do recurso as novas questões levantadas pela recorrente, uma vez que não constam das suas conclusões de recurso inicialmente apresentadas.

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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

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2 – Objecto do Recurso

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt).

À luz destes considerandos, são as seguintes as questões que cumpre decidir:

- Nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova;

- Erro de julgamento;

- Causa de exclusão da ilicitude; - Medida das penas principais e acessória; - Prescrição do procedimento contraordenacional.

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3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto

A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:

“Factos Provados

Dão-se como provados os seguintes factos que têm interesse para a decisão da causa:

1. No dia 1 de Maio de 2020, cerca da 12h30, a arguida AA circulou na via pública, mormente, na Rua …, …, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca “…”, modelo “…”, de cor …, com a matrícula …, sem possuir carta de condução válida para o efeito.

2. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra identificadas, os Militares da Guarda Nacional Republicana BB e CC avistaram a arguida AA e ordenaram-lhe, no exercício das respectivas funções, a respectiva paragem, utilizando para o efeito os sinais avisadores luminosos e sonoros.

3. Todavia, assim que se apercebeu que os referidos Militares lhe haviam dado ordem de paragem, a arguida realizou uma manobra de inversão de marcha e posicionou o veículo que conduzia na via de trânsito de sentido oposto, passando a circular em contramão.

4. Acto contínuo, a arguida conduziu o dito veículo em direcção ao veículo automóvel no qual os Militares da GNR acima identificados se faziam transportar.

5. Nessa ocasião, e em consequência directa e necessária da manobra realizada pela a arguida, a Militar da GNR CC – a qual detinha a direcção do veículo automóvel no qual seguia a patrulha da GNR – foi forçada a mudar bruscamente de direcção, saindo, pois, da sua via de trânsito, por forma a evitar a colisão frontal com o veículo conduzido pela arguida.

6. Após, a arguida AA encetou a fuga à patrulha da GNR.

7. No decurso do trajecto adoptado – designadamente, na Estrada … e, posteriormente, na Estrada Nacional …, ambas sitas em …, a arguida realizou diversas manobras de ultrapassagem, transpondo a linha longitudinal contínua, separadora de sentidos de trânsito opostos, regulada pelo sinal de trânsito M1.

8. Ao realizar as aludidas manobras de ultrapassagem, a arguida AA, forçou os condutores que ali circulavam a desviarem bruscamente a direcção do seu veículo automóvel, sob pena de, não o fazendo, embaterem no veículo automóvel dirigido pela arguida.

9. A arguida bem sabia não ser possuidora de carta de condução válida, facto que a impedia de conduzir o referido veículo na via pública.

10. Ainda assim, a arguida conduziu o dito veículo automóvel nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra identificadas, bem sabendo que o exercício dessa condução na via pública lhe estava vedado, designadamente, por não ser titular e portadora de licença de condução válida ou de outro documento que a legitimasse para tanto.

11. A arguida ficou ciente de que a ordem que lhe havia sido emanada pelos Militares da Guarda Nacional Republicana era legal, provinha de Autoridade competente e de que a deveria acatar e, não obstante, não se coibiu de agir conforme supra descrito.

12. Ao actuar nos moldes descritos em 3 a 4, a arguida actuou com o propósito concretizado de desrespeitar a ordem que lhe fora válida e regularmente dirigida pelos Militares da Guarda Nacional Republicana.

13. A arguida, almejando, sempre, eximir-se à abordagem policial, quis e logrou conduzir o supra identificado veículo automóvel com desrespeito pelas regras de circulação rodoviária, bem sabendo que com a conduta adoptada poderia embater nos veículos automóveis que circulavam na via de trânsito abusivamente ocupada – facto com o qual se conformou – e o que só não ocorreu por razões alheias à sua vontade, mormente, em virtude de os condutores em causa terem desviado atempadamente a direcção dos veículos automóveis nos quais circulavam, evitando, pois, a colisão.

14. Não obstante o supra aduzido, a arguida conduziu nas circunstâncias referidas de forma temerária, com desrespeito pelas mais elementares regras de circulação rodoviária, não curando de saber da segurança dos demais utentes da via.

15. Sabia, ainda, a arguida que, com a conduta acima descrita, criava perigo – como efectivamente criou – para a vida e/ou para a integridade física dos condutores e transeuntes que ali circulavam, resultado com o qual se conformou.

16. A arguida AA agiu de forma livre, deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

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17. O companheiro da arguida que circulava ao seu lado incentivou-a a ter os comportamentos descritos, pedindo-lhe para conduzir a viatura e, após, dizendo-lhe para não obedecer à ordem de paragem da G.N.R., mais a incentivando a encetar a fuga.

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18. A arguida não tem antecedentes criminais registados.

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19. A arguida encontra-se desempregada e a receber o rendimento social de inserção, numa quantia de cerca de € 500,00.

20. Reside em casa própria com as 3 filhas, de 3, 6 e 9 anos de idade, pagando as despesas relativas à mesma.

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21. A arguida apresentou um pedido de desculpas a um elemento da G.N.R..

22. A arguida obteve a carta de condução, em data posterior aos factos.

Factos não provados

Resultaram como não provados os seguintes factos com relevância para a decisão do mérito da causa:

A. A arguida agiu com o intuito de embater com o seu veículo no veículo automóvel conduzido pelos apontados Militares, por forma a obstaculizar a que, deste modo, estes cumprissem com as suas funções, designadamente, que a obrigassem a imobilizar o dito veículo automóvel e que a submetessem, nessa sequência, a uma fiscalização.

B. A arguida foi obrigada a conduzir naquele dia.

C. O companheiro da arguida desferiu-lhe socos e chapadas no interior do carro para que a mesma adoptasse as condutas descritas nos factos dados como provados.

D. Foi o companheiro da arguida que dirigiu a viatura, metendo as mãos no volante.

Motivação da matéria de facto

Para formar a convicção do Tribunal, no que respeita aos factos dados como não provados, procedeu-se a uma análise crítica da prova constante nos autos, tendo o Tribunal apreciado toda a prova, atendendo às regras da experiência comum, tendo sempre em consideração o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal.

Nomeadamente foi tida em conta a prova documental presente nos autos, designadamente o auto de notícia (fls. 3 a 6), aditamento (fls. 16 a 19), print do IMT (fl.20) e certificado de registo criminal da arguida, devidamente junto aos autos, actualizado, electronicamente.

Foi também tida em consideração a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, tendo sido valorado o depoimento que foi prestado pelas testemunhas CC e BB, ambos militares da GNR.

Por fim, foram ainda tidas em consideração as declarações da arguida, que, estando presente em audiência de julgamento, decidiu prestá-las.

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Concretizando.

O ponto 1 dos factos provados foi, desde logo afirmado pela própria arguida - que confirmou toda a factualidade constante da acusação, referindo, no entanto, ter sido obrigada pelo seu marido, conforme melhor se apreciará em baixo. Aliadas as suas declarações ao depoimento de ambas as testemunhas, CC e BB, agentes da GNR que referiram ter visualizado a arguida a conduzir aquele automóvel e confirmando-se com o print do IMT, o facto da mesma não possuir carta de condução, considera-se como provado este facto vertido no ponto 1.

De seguida, também o ponto 2 dos factos provados foi confirmado por ambas as testemunhas agentes da GNR, bem ainda como das declarações da arguida que, conforme já se referiu confirmou toda a factualidade presente na acusação.

Prosseguindo para o facto 3, também o mesmo foi descrito pelos Militares da GNR que, diga-se, apresentaram ambos um discurso sereno, escorreito, logica e temporalmente organizado, bem como consentâneos entre sim, o que mereceu a credibilidade do presente Tribunal. Ora, descreveram ambos que se deslocaram em direcção à viatura em apreço e que esta se encontrava a realizar uma manobra de inversão de marcha, tendo-se colocado em contramão, pelo que conduziu, necessariamente o veículo em direcção ao veículo automóvel no qual os Militares se faziam transportar que se encontrava na outra via, daí considerar-se também como provado o facto plasmado no ponto 4.

A arguida, neste ponto, referiu não ter sido a mesma a efectuar essa manobra, mas antes o seu marido, que se encontrava no lugar do pendura e meteu as mãos ao volante. Embora se considere que o seu companheiro terá incentivado esta conduta – uma vez que foi descrito pelo Militar da GNR BB que condutas desta natureza eram caraterísticas do marido da arguida – não se considera plausível que tenha sido o mesmo a efectuar a manobra em apreço pondo o mesmo as mãos ao volante, uma vez que os Militares da GNR nesse ponto se encontravam perto da viatura e afirmaram que era a mesma que tinha as mãos no volante, designadamente a testemunha e Militar BB referiu ter a certeza que era a mesma que tinha as mãos no volante.

Na sequência do que vem sendo descrito, também ambos os Militares da GNR descreveram a factualidade aposta no ponto 5, considerando-se o mesmo como provado.

Ainda os mesmos, de seguida, referiram que após se encontrarem lado a lado com o veículo conduzido pela arguida, a mesma encetou fuga aos mesmos, considerando-se uma vez mais e assim como provado o facto vertido no ponto 6, bem como de seguida, na descrição daqueles, os factos vertidos nos pontos 7 e 8 dos factos dados como provados.

Também em relação aos mesmos, a arguida referiu serem verdadeiros mas ter sido o marido a efectuar aquela condução, pondo as mãos ao volante, mais tendo referido que o mesmo a agredia com socos e chapadas para a obrigar àquele comportamento. Não é crível esta versão apresentada pela arguida, não só pelos Militares terem referido nunca ter visto qualquer agressão nos momentos em que tinham visibilidade para o veículo, como não é coerente com as regras da lógica e da experiência comum que uma pessoa, no lugar do pendura, consiga ir agredindo a condutora, ao mesmo tempo que coloca as mãos no volante para o conduzir, ainda para mais a uma velocidade excessiva – conforme mencionado pelos Militares aqui testemunhas – e numa condução de ultrapassagem de veículos, sem nunca terem embatido.

Prosseguindo, resultam os factos provados 9 e 10 também daquelas regras da lógica e da experiência comum, uma vez que a arguida bem sabia que não tinha carta de condução e, ainda assim, decidiu conduzir o referido veículo na via pública.

Das mesmas regras e das declarações da arguida resultam como provados os pontos 11 e 12 dos factos dados como provados, uma vez que a própria referiu ter percebido aquela ordem, apesar de uma vez mais ter dito que apenas não parou porque o marido assim a obrigou, metendo as mãos ao volante e agredindo-a, o que não se considerou como credível.

No seguimento do exposto, das mesmas regras e no sentido dos factos dados como provados nos pontos 7 e 8 dos factos dados como provados, resulta ainda como provado o ponto 13 dos factos dados como provados.

Em relação ao facto 14 dos factos dados como provados, além de ter sido confirmado pela arguida – com a reserva já amplamente exposta – foi também descrita pelas duas testemunhas e agentes da GNR, mais não podendo a arguida ignorar que com aquela condução criava, como criou, perigo para os condutores e transeuntes que ali circulavam, dando-se como provado o facto vertido no ponto 15.

Assim, face ao que vem sendo exposto relativamente à credibilidade oferecida à versão relatada pela arguida, considera-se como provado o vertido no ponto 16 dos factos provados, ou seja, que aquela agiu de forma livre, deliberada, voluntária e consciente, sabendo da proibição da sua conduta, considerando-se ainda assim, conforme indicado no ponto 17, que aquele a terá incentivado àqueles comportamentos, uma vez que foi descrito pelos Militares que costumava ser o mesmo a conduzir aquela viatura, mais descrevendo o Militar BB que era usual o mesmo não acatar as ordens de paragem, considerando-se assim credível que o mesmo a possa ter incentivado àqueles comportamentos.

O facto vertido no ponto 18 resulta do Certificado de Registo Criminal da arguida, oportunamente junto aos autos.

De seguida, resultaram os factos provados nos pontos 19 e 20 das declarações da arguida, que se mostraram, quanto às suas condições sócio-económicas, espontâneas e credíveis. Também das declarações da mesma, resultou como provado o ponto 22 dos factos dados como provados.

Por fim, resultou o ponto 21 dos factos provados das declarações da arguida em sede de audiência de julgamento, tendo a mesma apresentado o pedido de desculpas nessa sede ao Militar da GNR BB.

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Passando aos factos dados como não provados e começando pelo vertido no ponto A, e apesar da arguida ter referido confirmar todos os factos constantes da acusação, atendendo à descrição efectuada pelas testemunhas e militares da GNR CC e BB, considerou-se que a arguida, ao efectuar a manobra de inversão de marcha, ficou em contramão e, necessariamente, na direcção de onde se encontrava o veículo automóvel conduzido pelos Militares, não se podendo afirmar com a certeza, conforme constava da acusação, que a mesma agiu com o intuito de embater no mesmo, por forma a obstaculizar que aqueles cumprissem as suas funções.

Prosseguindo para o facto vertido no ponto B, alegado pela arguida, não se considera ter existido prova de que a mesma tenha sido obrigada a conduzir naquele dia, uma vez que as suas declarações conforme já foi exposto, não se afiguraram credíveis por contrárias às regas da lógica (embora se considere, conforme resultou provado o incentivo do seu marido àquelas condutas).

Neste seguimento, também não se considera credível, por fisicamente impossível, conforme já exposto que o mesmo, simultaneamente, disferisse socos e chapadas na arguida, enquanto manietava o volante do carro, tudo em manobras para as quais é necessário atenção, considerando-se assim também como não provados os factos vertidos nos pontos C e D dos factos dados como não provados e que haviam sido alegados pela arguida.”.

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3.2.- Mérito do recurso

A) Nulidade da sentença recorrida por falta de exame crítico da prova

Nos presentes autos vem a recorrente alegar que não consta da sentença recorrida o exame crítico da prova relativamente aos factos não provados, exigido pelo nº 2 do art.º 374º do Cód. Proc. Penal, pelo que suscita a nulidade da decisão, nos termos previstos no art.º 379º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma.

Alega, para tanto, que o Tribunal a quo se limitou a dizer que as declarações da arguida não eram credíveis, não concretizando porque é que não as considerou credíveis, sendo que era essencial para compreensão da análise crítica da prova essa apreciação.

Vejamos se lhe assiste razão.

Quanto aos requisitos da sentença, dispõe o art.º 374º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Penal o seguinte:

“1 - A sentença começa por um relatório, que contém:

a) As indicações tendentes à identificação do arguido;

b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;

c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;

d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.

2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

(…)”

A fundamentação da sentença penal é, assim, composta por dois grandes segmentos: - Um, que consiste na enumeração dos factos provados e não provados; - Outro, que consiste na exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal. O dever de fundamentação das decisões judiciais é hoje um imperativo constitucional, previsto no art.º 205º, nº 1 da CRP, onde se estabelece que as decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. A fundamentação deve revelar as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência, já que através dela se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor na apreciação da prova levados a cabo pelo julgador. É também através da fundamentação da sentença que é viabilizado o controlo da actividade decisória pelo Tribunal de recurso designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração e à impugnação da matéria de facto.

O dever de fundamentação encontra-se igualmente consagrado no art.º 97º, nº 5 do Cód. Proc. Penal, onde se prevê que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

Segundo o art.º 379º, nº 1, alíneas a) do mesmo diploma, é nula a sentença penal quando não contenha as menções previstas no nº 2 do art.º 374º. Quanto ao conteúdo do dever de fundamentação da sentença ou do acórdão, escreveu-se no Ac. RL de 18/01/2011, proferido no processo nº 1670/07.4TAFUN-A.L1-5, em que foi relator Vasques Osório, in www.dgsi.pt, em moldes que subscrevemos: “(…) A enumeração dos factos provados e dos factos não provados, mais não é do que a narração de forma metódica, dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, com referência aos que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda dos factos provados que, com relevo para a decisão, e não constando de nenhuma daquelas peças processuais, resultaram da discussão da causa. É esta enumeração de factos que permite concluir se o tribunal conheceu ou não, de todas as questões de facto que constituíam o objecto do processo. A exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão deve ser completa mas tem que ser concisa, contendo e enunciação das provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo tribunal – o que não exige, relativamente à prova por declarações, a realização de assentadas tendo por objecto os depoimentos produzidos em audiência – bem como a análise crítica de tais provas. Esta análise crítica deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na

exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada.(…)” Os motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados, nem os meios de prova, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência ( neste sentido cf. , por exemplo, o Ac. RP de 15/07/2009, proferido no processo nº 1090/04.2JAPRT.P1, in www.dgsi.pt ). Ora, não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que lhe serviu de suporte (cfr. Acs. STJ de 12.04.2000, Proc. 141/2000, in SASTJ nº 40, 48, de 11.10.2000, Proc. 2253/2000 – 3ª, in SASTJ nº 44, 70, de 26.10.2000, Proc. 2528/2000 – 5ª, SASTJ nº 44, 91 e de 07.02.2001, Proc. 3998/00 – 3ª, SASTJ nº 48, 50). O exame crítico da prova tem como objecto apenas os factos essenciais para a qualificação jurídico-criminal do ilícito, para a definição do seu circunstancialismo relevante e para a determinação da responsabilidade do agente, não tendo a fundamentação da sentença, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, de ser uma espécie de “assentada” em que o Tribunal reproduz todos os meios de prova e, nomeadamente, os depoimentos das testemunhas ouvidas, sob pena de se violar o princípio da oralidade que rege o julgamento. Como se refere, de forma clara, no Ac. do STJ de 30/01/02, proferido no processo nº 3063/01 – 3ª, SASTJ nº 57, 69: “(…) A disposição do artigo 374º-2 do CPP sobre o exame crítico das provas não obriga os julgadores a uma escalpelização de todas as provas que foram produzidas e, muito menos, a uma reprodução do tipo gravação magnetofónica dos depoimentos prestados na audiência, o que levaria a uma tarefa incomportável com sadias regras de trabalho e eficiência, e ao risco de falta de controlo pelos intervenientes processuais da transposição feita para o acórdão. A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (…)”. Esse exame crítico das provas corresponde, no fundo, à indicação dos motivos que determinaram a que o Tribunal formasse a sua convicção quanto à prova num determinado sentido, aceitando um meio de prova e afastando outro, e porque é que certas provas são mais credíveis do que outras. Ora, analisando a fundamentação de facto da decisão recorrida, verifica-se que da mesma consta não só a indicação de todos os elementos de prova, testemunhais e documentais, que alicerçaram a convicção do julgador, como o exame crítico de todas as provas e a explicação, através dos elementos probatórios, do entendimento a que o Tribunal a quo chegou quanto aos factos provados e não provados, em conformidade com as regras da lógica e da experiência comum. Na verdade, o art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal não exige que se autonomize e se escalpelize a razão de decidir sobre cada facto, nem exige que em relação a cada meio de prova se descreva a dinâmica da sua produção em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível.

No entanto, a decisão recorrida faz referência a todos os documentos e depoimentos que considerou pertinentes para o apuramento de cada um dos factos provados, da forma supra descrita. Quanto aos factos não provados foi igualmente referido porque é que não se considerou credível o depoimento da arguida, em articulação com o depoimento das testemunhas inquiridas e face às regras da lógica e da experiência comum. Constata-se, assim, que a decisão recorrida individualizou os elementos de prova relevantes para a formação da convicção, analisou-os e relacionou-os entre si, explicando de uma forma lógica, racional e completa o processo de apuramento dos factos, explicação essa que, relacionada com as regras da experiência comum, permite compreender como os factos ocorreram, bem como permite sindicar a formação dessa convicção.

O julgador goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, de entre a globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção e da apreciação da prova. Por isso mesmo, pode suportar o seu juízo num determinado conjunto de provas e preterir outras por não lhes reconhecer credibilidade.

Conforme se decidiu no acórdão do STJ de 15/11/2005, proferido no processo nº 05A3168, em que foi relator Fernandes Magalhães, in www.dgsi.pt: “ (…) A “convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos". Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe (…)”.

Verifica-se, assim, que não assiste razão à recorrente quando alega que o Tribunal a quo não procedeu ao exame crítico da prova relativamente aos factos não provados. Posto isto, o que resulta da análise da decisão recorrida é que de todos os elementos de prova produzidos, elencados e apreciados criticamente, resultaram provados factos dos quais decorre o preenchimento pela arguida dos elementos objectivos dos crimes em apreço. Do preenchimento do elemento objectivo dessas infrações, conjugado com as regras da lógica e da experiência comum, decorre o preenchimento do elemento subjectivo dos mesmos ilícitos, como consequência lógica e necessária. Impõe-se, assim, concluir que a decisão recorrida se acha suficientemente fundamentada, não assistindo, neste tocante, razão à recorrente.

B) Erro de julgamento

Alega também a recorrente que houve na decisão em apreço um erro de julgamento, devendo a matéria vertida nos pontos B, C e D dos factos não provados ter sido dada por provada, com fundamento nas suas declarações, o que levaria à sua absolvição dos crimes pelos quais foi condenada.

Ora, a reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde a verificação dos mesmos tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente. O recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar: “ a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.” A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal. A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª Instância não é absoluto, nem é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma.

Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» ( cf. Ac. do TRP de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt).

A reapreciação da prova só determinará uma alteração à matéria de facto provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa da recorrida.

Porém, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida, se a decisão da primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções, face às regras da experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, porquanto foi proferida em obediência ao previsto nos art.ºs 127º e 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal ( cf., entre outros, o Ac. do TRL de 2/11/21, proferido no processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt.).

Segundo o previsto no art.º 127º do Cód. Proc. Penal, o Tribunal deve fixar a matéria de facto de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, desde que não se esteja perante prova vinculada.

Pese embora o ato de julgar tenha sempre, necessariamente, um lado subjetivo, as regras da experiência, complementadas pelo disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, determinam que aquele acto não possa ser um acto arbitrário ou discricionário.

Verifica-se, pois, que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador, dado que a lei lhe impõe que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, devendo a avaliação da prova ser efectuada com sentido de responsabilidade e bom senso.

Em consequência, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve-se acolher a opção do julgador da 1ª instância, sobretudo porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.

Na verdade, como se refere no Ac. do TRL, datado de 26/10/21, proferido no processo nº 510/19.6S5LSB.L1-5, em que foi relator Manuel Advínculo Sequeira, in www.dgsi.pt: «apenas séria discrepância entre o que motivou o tribunal de 1ª instância e aquilo que resulta da prova por declarações prestada, no seu todo e à luz de regras de experiência comum, pode ser de molde a inverter aquela factualidade, impondo, nas palavras da lei, outra decisão (…). As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos.(…)”

A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, quanto à reapreciação de matéria de facto, decorre também do princípio da oralidade, o qual implica uma imediação, um contacto direto, pessoal e presencial entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros, timbre e entoação), que facilita a formação da livre convicção do julgador e que só existe na primeira instância.

A imediação permite que o julgador tenha uma perceção dos elementos de prova muito mais próxima da realidade do que qualquer apreciação posterior, a realizar pelo Tribunal de recurso, mesmo que este se socorra da documentação dos atos da audiência.

A imediação revela-se também de importância fulcral para aferir da credibilidade de um depoimento, pois o seu desenrolar, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou o desembaraço e todas as componentes pessoais ligadas ao ato de depor são insuscetíveis de serem registadas, mas ficam na memória de quem realizou o julgamento, são importantes na formação da convicção do julgador e são objetiváveis na fundamentação da decisão, mas não são suscetíveis de documentação para reapreciação em sede de recurso.

Em suma, o recorrente que invoca a existência de um erro de julgamento tem que apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas e que sustentam uma decisão diversa, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude.

No caso dos autos entende a recorrente que o Tribunal a quo deveria ter dado como provados os seguintes factos:

“B. A arguida foi obrigada a conduzir naquele dia.

C. O companheiro da arguida desferiu-lhe socos e chapadas no interior do carro para que a mesma adoptasse as condutas descritas nos factos dados como provados.

D. Foi o companheiro da arguida que dirigiu a viatura, metendo as mãos no volante.”

Porém, o que decorre das suas alegações é que se limita a interpretar de forma diferente o que resulta do seu depoimento, dizendo que o Tribunal a quo devia ter dado como provados aqueles factos, porquanto os mesmos decorrem claramente do seu depoimento, tendo a mesma deposto de forma credível e segura, sem que resulte outra coisa dos depoimentos das testemunhas inquiridas.

Ora, como supra se referiu, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àquela outra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução dos factos e entende que devia ter sido provada, como vem esta recorrente aqui fazer.

No caso sub judice, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à factualidade julgada provada e não provada nos termos supra transcritos, procedendo a uma análise dos depoimentos prestados pelas testemunhas e pela arguida e esclarecendo em que medida é que cada um deles foi considerado credível ou não, expondo de forma clara as razões que levaram a que se convencesse, ou não, da veracidade dos relatos, e fazendo, para o efeito, apelo às regras da razoabilidade e da experiência comum.

Ouvidas as declarações da arguida, verifica-se que a mesma confessou os factos descritos na acusação pública, mas quis fazer crer que apenas agiu como agiu porque a tal foi obrigada pelo seu companheiro, entretanto falecido, por medo de ser agredida pelo mesmo, que na ocasião se encontrava bêbado.

Mais declarou que as suas três filhas menores seguiam dentro do carro e que o seu companheiro a ia a agredir fisicamente dentro do carro e era ele que manejava o volante ao mesmo tempo que lhe batia.

As testemunhas inquiridas declararam não ter visto o companheiro da arguida a bater-lhe nos momentos em que o veículo conduzido pela arguida passou pelas mesmas e em que estas o seguiram e que era a arguida quem tinha as mãos no volante.

O Tribunal a quo justificou porque é que não acreditou nestas concretas declarações da arguida, por não as ter considerado credíveis, face aos depoimentos das outras testemunhas e das regras da lógica e da experiência comum.

O Tribunal a quo teve perante si a arguida e as testemunhas, viu-os, ouvi-os e apercebeu-se de muitos pormenores de atitude e postura que só a imediação permite, tendo, segundo o princípio da livre apreciação da prova, relevado e considerado os depoimentos e declarações que, justificadamente, se lhe afiguraram mais coerentes e credíveis e não tendo ficado com a convicção de que as testemunhas pudessem ter “inventado” os factos com a finalidade de incriminar a recorrente.

Em face disto, impõe-se concluir que a decisão recorrida fez uma correcta apreciação dos meios de prova ao seu dispor, apreciação essa que se acha bem fundamentada e em conformidade com as regras da lógica e da experiência comum, pelo que se julga improcedente o recurso também neste tocante.

C) Causa de exclusão da ilicitude e preenchimento dos elementos subjectivos dos tipos legais de crime

Alega a recorrente que agiu como provado nos autos, por a tal ter sido obrigada pelo seu companheiro que seguia consigo dentro do veículo, por medo de que ele lhe batesse, acrescentando que o mesmo lhe batia durante a condução e que era ele quem manejava o volante. Resulta desta alegação que a arguida defende ter sido coagida a conduzir o veículo como o fez, pelo que não se encontra por si preenchido o elemento subjectivo dos crimes de condução sem habilitação legal e de condução perigosa de veículo.

Dispõe o art.º 31º, nº 1 do Cód. Penal que: “O facto não é punido quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.”

Sucede, porém, que não se operou qualquer alteração da matéria de facto apurada.

Assim sendo, a matéria de facto a que temos que nos ater é a que resultou provada na sentença recorrida, da qual não constam quaisquer factos dos quais se possa concluir que a arguida agiu por a tal ter sido obrigada pelo seu companheiro, nem que era este que ia a conduzir o veículo.

Não se apurou que a arguida tivesse agido sem vontade própria, nem sob coação.

Impõe-se, assim, concluir que não se provou a ocorrência da causa de exclusão da ilicitude do comportamento e da culpa invocada pela arguida.

Por outro lado, o preenchimento dos elementos subjectivos dos tipos legais de crime em apreço resultam do preenchimento pela arguida dos elementos objectivos dos mesmos, concatenados com as regras lógica e da experiência comum, tal como vem explicado na motivação de facto da decisão recorrida, em moldes que não nos merecem qualquer reparo.

Em face do exposto, impõe-se julgar improcedente, também neste tocante, o recurso, sem necessidade de mais considerandos.

D) Medida da pena

A arguida não pôs em causa a qualificação jurídica dos factos feita pelo Tribunal a quo, a espécie das penas escolhidas, nem o valor do quantitativo diário das multas que lhe foram aplicadas, mas defende que lhe deviam ter sido aplicadas penas de multa mais próximas dos limites mínimos legais e uma sanção acessória no mínimo legal, porquanto:

- aceitou e confessou os factos, tendo justificado o porquê dos mesmos terem acontecido;

- o Tribunal deu como assente que a mesma agiu influenciada pelo seu companheiro;

- era o companheiro quem conduzia normalmente o veículo em causa e que tinha por tendência não cumprir as regras de trânsito;

- à data dos factos a arguida tinha 24 anos de idade e já era mãe de três crianças, tendo-se juntado muito nova ao seu companheiro;

- passados 5 meses dos factos a arguida conseguiu tirar a carta;

- pediu desculpa a um dos agentes pelo sucedido;

- mostrou-se arrependida;

- não tinha antecedentes criminais à data e continua a não ter antecedentes criminais;

- não tem registo contra-ordenacional;

- os factos ocorreram há mais de 3 anos e seis meses e foram sem dúvida uma ocasião única e excepcional;

- neste momento é mãe solteira, porque o seu companheiro faleceu;

- o carro neste momento é essencial para a rotina familiar, levar as filhas à escola, fazer as compras para casa, uma vez que só pode contar consigo;

- é beneficiária de rendimento de reinserção social no valor de €500,00;

- está arrependida e interiorizou os factos.

Não obstante toda esta argumentação da arguida, mais uma vez se impõe reforçar que não foi feita qualquer alteração à matéria de facto fixada na decisão recorrida.

Quanto à determinação concreta da pena de multa, estabelece o art.º 47º, nºs 1 e 2 do Cód. Penal que:

“1 - A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360.

2 - Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.”

Por seu turno, a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor, vem prevista no art.º 69º, nº 1, alínea a) do Cód. Penal, pela seguinte forma:

“ 1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor ou na proibição de pilotar aeronaves com ou sem motor, consoante os casos, por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido:

a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos, no exercício da condução de veículo com motor ou no exercício da pilotagem de aeronave com ou sem motor, com violação das regras de trânsito rodoviário ou das regras do ar, respetivamente, e por crimes previstos nos artigos 289.º, 291.º, 292.º e 292.º-A (…).” (sublinhados nossos)

Esta pena acessória, embora pressupondo a condenação do agente numa pena principal de prisão ou multa, relativamente à qual assume carácter assessório, constitui uma verdadeira pena, que limita ou restringe o direito do arguido a conduzir, devendo ser apreciada, quanto aos seus pressupostos e dosimetria, segundo as regras aplicáveis às penas principais (cf., neste sentido, por exemplo, Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ”, 5ª edição atualizada, UCP, pág. 389, e Acórdão do TRC datado de 16/02/22, proferido no processo nº 263/18.5GCACB-B.C1, em que foi relator Luís Teixeira, in www.dgsi.pt).

A determinação da medida da pena deve ser apurada em função dos critérios enunciados no art.º 71º do Cód. Penal, que são os seguintes:

“ Artigo 71.º - Determinação da medida da pena

1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”

Estes critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. As finalidades da punição e a determinação em concreto da pena, nas circunstâncias e segundo os critérios previstos no art.º 71º do Cód. Penal, têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena. Tais elementos e critérios contribuem não só para determinar a medida da pena adequada à finalidade de prevenção geral, consoante a natureza e o grau de ilicitude do facto tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, em função das circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão e arrependimento e permitem também apreciar e avaliar a culpa do agente. Em síntese, pode-se dizer que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96). Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

No entanto, do que se trata agora é de sindicar as operações feitas pelo Tribunal a quo com essa finalidade. Ainda segundo Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida concreta da pena, bem como o desconhecimento ou a errónea aplicação pelo tribunal a quo dos princípios gerais de determinação da pena, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda que está plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção e a determinação do quantum exacto de pena, o qual será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.

Importa, assim, ter em conta que só em caso de desproporcionalidade manifesta na fixação da pena ou de necessidade de correcção dos critérios da sua determinação, atenta a culpa e as circunstâncias do caso concreto, é que o Tribunal de 2ª Instância deve alterar a espécie e o quantum da pena, pois, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não há nada que corrigir.

Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 11/12/19, proferido no processo nº 4695/15.2T9PRT.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ (…) A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares.(…)”

Também no mesmo sentido se pronunciou José Souto de Moura, in “ A Jurisprudência do S.T.J. sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena”, 26 de Abril de 2010, consultável em www.dgsi.pt, onde defende que: “ Sempre que o procedimento adoptado se tenha mostrado correcto, se tenham eleito os factores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objecto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado.”

Voltando ao caso dos autos, a sentença recorrida fundamentou a aplicação das penas em apreço pela seguinte forma:

“(…) ii. Determinação da medida concreta da pena

Ora, tendo-se determinado a escolha pela pena de multa, refira-se, novamente, que:

- para o crime de condução de veículo sem habilitação legal, o artigo 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98 de 03/01, prevê uma moldura abstracta de 10 dias – nos termos do artigo 47º, nº1 do Código Penal – até 240 dias.

- para o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, o artigo 291º, nº2 do Código Penal prevê uma moldura pena abstracta de 10 dias – nos termos do artigo 47º, nº1 do Código Penal – até 360 dias.

Cumpre assim, atendendo às finalidades das penas, determinar a medida em concreto da pena de multa para cada um dos crimes verificados.

Tendo em conta o artigo 71º do Código Penal, esta determinação deverá ser efectuada em função da culpa do agente, tal como previsto no nº2 do artigo 40º do CP e das exigências da prevenção, previstas no nº1 do mesmo artigo.

O primeiro critério a ter em consideração são as exigências de prevenção geral, através das quais se determina o quantum da pena que satisfará aquelas exigências de forma mais cabal e se determina o limite mínimo, o quantum de pena abaixo do qual não se pode ficar por forma a não se frustarem aquelas exigências.

Dentro desta moldura, a medida concreta da pena irá ser encontrada em função das exigências de prevenção especial, funcionando a culpa, tal como referido no artigo em causa, uma função de limite máximo da pena, delimitando o seu máximo inultrapassável.

Posto isto, a determinação da medida concreta da pena será efectuada de acordo com estes critérios, atendendo às circunstâncias que fazem parte do tipo, na sua intensidade e às circunstâncias constantes do nº 2 daquele artigo 71º.

Concretizando.

*

As exigências de prevenção geral, que se traduzem na necessidade de consciencializar a generalidade dos membros da comunidade e de reforçar a validade da norma jurídica violada são, no caso em concreto e para os dois tipos legais de crime verificados, conforme já referido, elevadas.

*

Atendendo ao grau de ilicitude da conduta, ao modo de execução desta e à gravidade das suas consequências, bem como ao grau de violação dos deveres impostos ao agente, considera-se que estas apresentam um nível diferente, entre elevado e baixo.

O grau de ilicitude da conduta, modo de execução e grau de violação de deveres impostos, para o crime de condução sem habilitação legal é elevado, uma vez que a arguida bem sabia que não podia conduzir sem carta de condução e, ainda assim, decidiu fazê-lo. No entanto diga-se, não se apresenta qualquer especial grau de perversidade.

Também em relação ao crime de condução perigosa de veículo rodoviária se consideram estes elementos elevados, tendo em conta o perigos criado ao ultrapassar por várias vezes traços contínuos a velocidade exagerada.

Em relação às consequências da sua conduta, considera-se não ter existido qualquer consequência de maior, relativamente aos dois crimes em apreço.

*

A intensidade do dolo assumiu a sua forma mais grave em ambas as condutas, conforme oportunamente exposto.

*

Quanto aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, tem-se em consideração o declarado pela arguida, e que, aqui, não pode deixar de se ter em consideração, o incentivo do seu marido, considerando-se que a mesma perante tal incentivo e sabendo que não possuía habilitação legal, terá entrado numa situação de medo, o que a levou a ter aqueles comportamentos.

*

Atendendo à conduta posterior e anterior ao facto, é de relevar, de forma favorável à arguida o facto da mesma ter, em sede de audiência de julgamento, apresentado um pedido de desculpas, mais tendo mesmo ter apresentado um pedido de desculpas a um agente da G.N.R., de forma espontânea em sede de audiência de julgamento.

Tem-se ainda de forma favorável o facto da mesma, após os factos, já ter obtido carta de condução.

*

Atendendo às condições pessoais do agente e à sua situação económica, bem como à sua falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando deva ser censurada através da aplicação da pena, e referindo-nos também, face ao que vem sendo exposto, às exigências de prevenção especial em específico, afirme-se que são as mesmas de grau baixo, conforme foi também já referido.

Explicitando, neste ponto, tem-se em consideração, o facto da arguida não ter quaisquer antecedentes criminais registados, mais se encontrando familiarmente integrada.

Tem-se ainda em consideração o facto da mesma já ter carta de condução, sendo de prever que a mesma não vai voltar a praticar o crime de condução sem habilitação legal sendo que foi este, diga-se, e o medo sentido, que despoletou o crime e a contra-ordenação seguidamente praticada.

Mais se tem em consideração neste ponto e perante o facto de não ter quaisquer antecedentes criminais, que se terá tratado de uma situação isolada, incentivada pelo seu companheiro, mais se tendo em conta o facto da mesma ter reconhecido, em sede de audiência de julgamento – apesar da tentativa de desculpabilização -, que não foi uma conduta adequada, demonstrando ter interiorizado o desvalor da sua conduta.

*

Ponderando todos estes factores, as exigências de prevenção geral e especial, a culpa e as condições pessoais da arguida, o tribunal entende por ajustadas e adequadas as seguintes penas:

- pena de multa de 40 dias pela prática do crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido nos termos do artigo 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98 de 03/01; e

- pena de multa de 100 dias pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido nos termos dos artigos 14º, nº1, 26º e 291º, nº1, alínea b) do Código Penal. (…)

iii. do cúmulo jurídico

Segundo o artigo 77º, nº1 do Código Penal, quem "tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única", sendo nessa medida da pena "considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente".

Relativamente à coima aplicada, a mesma não entrará na realização do cúmulo.

Veja-se a explicação aposta no Tribunal da Relação de Évora, de 12/02/2008, relator: Fernando Cardoso, processo nº 2287/07-12, nos termos do qual “embora formalmente a coima se aproxime da multa penal, uma vez que ambas se exprimem através de um quantitativo monetário, a sua inserção num ramo do direito autonomizado do direito penal projecta-lhe características próprias que a separam daquele tipo de sanção. A específica natureza da coima vai impor também a impossibilidade da sua substituição por prisão ou a configuração desta como alternativa àquela sanção, o que constitui também um dos elementos de caracterização do direito das contra-ordenações, face ao direito penal. Por isso que, ainda que ambas tenham expressão pecuniária não são passíveis de unificação através de cúmulo jurídico”.

Assim, atendendo apenas aos crimes pelos quais a arguida vai condenada e aplicando o princípio do cúmulo jurídico e atentando ao nº2 do artigo 77º, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Assim, no caso em concreto, o limite máximo da pena aplicável é de 140 dias e o limite mínimo de 100 dias de pena de multa.

Ora, tendo em consideração a conduta global da arguida, tem-se em conta, em seu favor o facto do mesmo ter praticado a segunda conduta, em virtude da primeira. Ou seja, sabendo que não possuía habilitação legal e com receio da prática desse crime, tentou não ser interceptado pelos órgãos de polícia criminal.

No entanto, não deixa de se ter em consideração o desrespeito demonstrado por esses mesmos agentes aí presentes.

Posto isto e ponderando todos os factores acima expostos e atentendo à globalidade dos factos e a personalidade do agente, bem como as finalidades da punição, o tribunal considera adequado fixar-se a pena única em 115 dias de multa. (…)

iv. pena acessória

Por sua vez, o artigo artigo 69º, nº1, alínea a) do Código Penal, refere que é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido, por crimes previstos nos artigos 291º e 292º, designadamente, crime de condução perigosa de veículo rodoviário.

Assim, atento que a arguida vai condenada pela prática daquele crime, de acordo com aquela norma, será de aplicar a referida pena acessória, restando determinar a medida concreta da mesma.

Considerar-se-á, assim, que os critérios de aferição da mesma são os mesmos da determinação da pena principal, já amplamente expostos, mas que, no entanto, a medida não é obrigatoriamente proporcional. Tendo isto em conta, ponderando os factores que já foram descritos, o presente Tribunal considera adequado que a pena acessória de proibição de conduzir por quatro meses.(…)” Analisada a decisão recorrida, verifica-se que o Tribunal a quo aplicou correctamente os princípios gerais de determinação da medida da pena, não ultrapassou os limites da moldura da culpa do agente e teve em conta os fins das penas nos quadros da prevenção geral e especial.

Na verdade, as razões e necessidades de prevenção geral positiva são muito elevadas, fazendo-se especialmente sentir neste tipo de crimes geradores de grande e forte sentimento de alarme social, por serem muito frequentes, porem em causa a ordem e tranquilidade públicas e poderem ter consequências nefastas para a vida, saúde e bens patrimoniais do próprio e de terceiros, o que justifica uma resposta punitiva firme, para assegurar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas e prevenir a sinistralidade rodoviária que ainda é uma das maiores causas de morte no nosso país.

No caso concreto, foram ponderadas as circunstâncias pessoais, sociais e económicas da recorrente, a sua confissão, arrependimento, ausência de antecedentes criminais, o facto de já ter tirado a carta de condução e o facto de da sua actuação não terem resultado danos físicos e patrimoniais para terceiros, não obstante a perigosidade que representou a sua forma de condução errática e desenfreada.

Face às molduras penais, as penas aplicadas a esta arguida situam-se abaixo do nível médio, considerando-se adequadas e proporcionais à culpa da agente e à gravidade dos factos pela mesma praticados, sendo tais penas de manter, não só as penas parcelares como a pena do concurso.

Na verdade se alguma critica haverá a fazer às penas de multa aplicadas à recorrente é por serem baixas e não elevadas, como a mesma pretende.

Também a pena acessória se mostra ajustada e proporcional, aplicada muito próxima do limite mínimo dos três meses, sendo a mesma de manter.

Importa considerar que esta pena deve importar também para a arguida um sacrifício, porquanto é de uma verdadeira pena que se trata, perdendo a mesma a sua finalidade e função punitiva e preventiva se for fixada num número de meses diminuto, face à culpa do agente.

Pelo exposto, improcede também nesta parte o recurso.

E) Prescrição do procedimento contraordenacional

Alega ainda a recorrente que o procedimento contraordenacional se encontra prescrito, bem como a sanção acessória de inibição de conduzir que lhe foi aplicada, porquanto os factos em apreço ocorreram a 1/05/2020, sendo o prazo prescricional de dois anos, nos termos do art.º 188º, nº 1 do C.E.

Apreciemos a sua pretensão.

A recorrente foi condenada pela prática de uma contraordenação muito grave, prevista e punida pelos art.sº 4º, nº 3, 131º e 146º, alínea l) do Código da Estrada.

Relativamente à prescrição do procedimento contraordenacional, prevê-se no art.º 188º do Cód. Estrada que:

“1 - O procedimento por contraordenação rodoviária extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contraordenação, tenham decorrido dois anos.

2 - Sem prejuízo da aplicação do regime de suspensão e de interrupção previsto no regime geral do ilícito de mera ordenação social, a prescrição do procedimento por contraordenação rodoviária interrompe-se também com a notificação ao arguido da decisão condenatória.”(sublinhados nossos)

Por remissão desta norma, importa atentar no previsto no art.º 28º do RGCO, no que concerne à interrupção da prescrição:

“1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:

a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;

b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;

c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;

d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.

2 - Nos casos de concurso de infracções, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação.

3 - A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.” (sublinhados nossos)

E ainda no disposto no art.º 27º-A do mesmo diploma, quanto à suspensão da prescrição:

“1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:

a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;

b) Estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do artigo 40.º;

c) Estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso.

2 - Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.”

No caso dos autos verificamos que:

- a 1/05/2020 iniciou-se o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional;

- a sentença condenatória data de 14/11/23;

- não ocorreu nenhuma causa de suspensão da prescrição.

Da conjugação das referidas normas e atenta esta factualidade, constata-se que o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional nos presentes autos já havia decorrido aquando da prolação da sentença condenatória.

A este respeito, seguimos a posição assumida pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão nº 319/2021, proferido a 18/05/2021, no processo nº 575/20, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ Com efeito, o n.º 3 do artigo 28.º do RGCO fixa esse prazo máximo através de dois elementos indissociáveis: (i) o prazo normal de prescrição acrescido de metade; (ii) e o tempo de suspensão. Daí que o prazo máximo de prescrição seja determinado pela soma do tempo de suspensão e do prazo normal de prescrição acrescido de metade, independentemente de todas as interrupções que possam ter tido lugar.” ( também neste sentido, entre outros, o acórdão do STA datado de 26/10/16, proferido no processo nº 0698/16, em que foi relator Pedro Delgado, in www.dgsi.pt).

Na verdade, esta é a interpretação que resulta da letra do art.º 28º, nº 1, alínea c) do RGCO, onde se refere que o prazo prescricional tem a sua duração máxima quando desde o seu início tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade, ressalvando o tempo de suspensão.

Nestes termos, impõe-se julgar procedente o recurso neste tocante e declarar a prescrição do procedimento contraordenacional em apreço, no mais se confirmando a decisão recorrida e não se julgando violadas as normas invocadas pela recorrente.

*

4. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso interposto por AA e, em consequência:

a) declaram extinto, por prescrição, o procedimento contraordenacional relativo à contra-ordenação rodoviária prevista e punida pelos artigos 4º, nº3, 131º e 146º, alínea l) do Cód. da Estrada, pela qual a arguida foi condenada, ficando sem efeito a coima no montante de € 625,00 e a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 1 mês e 15 dias que lhe foram aplicadas;

b) No mais confirmam a decisão recorrida.

Sem custas.

Évora, 20 de Maio de 2025

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco

(Relatora)

Manuel Soares

Edgar Gouveia Valente

(Adjuntos)