I - Uma plataforma flutuante (embora esteja fixa no sentido de estável) não está ligada ao terreno com carater de permanência de modo a considerar-se ligada materialmente ao mesmo de modo a estender o regime legal relativo aos imóveis a tal plataforma.
II - Não estando indiciada que a assistente seja proprietária da plataforma / correntes, não se verifica, desde logo, um dos elementos fundamentais dos crimes de furto e dano, ou seja, o carácter alheio da coisa subtraída / danificada, pelo que a decisão recorrida de não pronúncia se encontra fáctica e normativamente escorada, sendo acessório e desnecessário conhecer de quaisquer outros aspetos.
Nestes autos de instrução que corre termos no Juízo de Instrução Criminal (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de …, o Mm.º Juiz de Instrução Criminal (doravante JIC) lavrou despacho em que decidiu não pronunciar os arguidos AA e BB.
A assistente CC, não se conformando com o despacho de não pronúncia dos arguidos, interpôs o presente recurso, com as seguintes conclusões:
“1. Resulta evidente da análise dos diversos indícios recolhidos – que incluem prova pessoal e documental, incluindo fotográfica – que se encontra amplamente satisfeito o índice de suficiência bastante para a pronúncia dos arguidos AA e BB, pela prática em coautoria de um crime de dano previsto e punido pelo artigo 212.º do Coìdigo Penal e dois crimes de furto, previstos e punidos pelo artigo 203.º n.º1 do Coìdigo Penal, ocorridos no dia 7 de Setembro de 2021, que lhes vinham imputados nas acusações pública e particular (esta última acompanhada pelo Ministério Público, nos termos do n.º 4 do art. 285.º do CPP).
2. O que leva a concluir que não pode aceitar-se a conclusão vertida na decisão instrutória e que se encontram violados os artigos 308.º, n.º 1 e 2, e 283.º, n.º 2, do CPP.
3. O presente recurso incide sobre crimes praticados pelos arguidos no dia 7 de setembro de 2021.
4. Por volta das 09:15h do dia 07 de Setembro de 2021, os arguidos AA e BB deslocaram-se, de forma furtiva, a uma plataforma que é parte integrante de um terreno que é propriedade da assistente. A plataforma em causa estava fixa ao solo e à mesma estavam atracadas duas embarcações que detinham em seu redor correntes fortes, de valor avultado, colocadas pela recorrente, com o propósito de prevenir eventuais furtos ou acidentes.
5. Os arguidos cortaram as referidas correntes metálicas, de valor avultado, concretamente €3420,00, com uma cisalha apropriada e atracaram ambas as embarcações na plataforma dos vizinhos, tendo, nessas manobras, uma das embarcações embatido contra a margem, o que lhe veio a causar danos graves no motor e flutuadores.
6. De seguida, desamarraram e recolheram os cabos que prendiam a plataforma ao solo (também estes com um valor avultado), amarraram a mesma ao próprio barco e abandonaram o local, levando a plataforma e os cabos consigo, fazendo-os seus, sem autorizaçaÞo e contra a vontade da proprietária, ora recorrente.
7. Após envidar significativos esforços, envolvendo a GNR e vizinhos, que presenciaram a conduta dos arguidos, a recorrente conseguiu recuperar, semanas depois, a referida plataforma, que havia sido danificada e transportada para a marina de …, em ….
8. Com o referido comportamento, os arguidos AA e BB destruíram parcialmente e apropriaram-se totalmente de propriedade alheia, o que fizeram sem autorização e contra a vontade da sua legítima proprietaìria, ora recorrente. Os arguidos sabiam que ao agir do modo acima descrito, cortando as correntes que amarravam a plataforma, provocavam estragos nas mesmas, estragando-a e tornando-as inutilizaìveis, causando prejuiìzo de valor naÞo inferior a €3420,00, bem sabendo que aquelas naÞo lhe pertenciam e que atuavam contra a vontade da sua legiìtima proprietaìria e dos seus legítimos possuidores, resultado que lograram alcançar.
9. Estatui o artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal, referente ao crime de furto, que "quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa". Decorre também do n.º 1 do artigo 212.° do Código Penal, referente ao crime de dano que "quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa", estatuindo o n.º 2 do mesmo preceito que a tentativa é punível.
10. Não resta, considerada a prova pessoal e documental carreada para os autos durante as fases de inquérito e de instrução, qualquer dúvida sobre a suficiência dos indícios recolhidos de que se encontram in casu preenchidos os pressupostos dos referidos crimes e de que foram os arguidos os seus autores. Concretamente,
- Em 7 de Setembro de 2021, da praìtica de um crime de dano previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal;
- Também em 7 de Setembro de 2021, da praìtica de dois crimes de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º n.º 1 do Código Penal.
11. Tendo os mesmos agido em violação da lei, de forma livre, deliberada e consciente.
12. Recorrendo a um único argumento de natureza pseudo-formal, isto é, colocando em dúvida a propriedade da plataforma por parte da recorrente, decidiu o Tribunal a quo por não pronunciar aos arguidos, expressando um entendimento que é contrário ao manifestado pelo MP, que deduziu acusação pública e acompanhou a acusação particular da assistente (com a diferença de ter entendido ter sido praticado um e não dois crimes de furto).
13. É de salientar, contudo, que o Tribunal a quo não manifestou qualquer sombra de dúvida quanto à prática dos factos por parte dos arguidos, tanto que os levou aos factos indiciados.
14. Sucede que, apesar de dar por não indiciado que a “plataforma fosse propriedade da assistente”, a decisão recorrida dá por indiciado que, no dia 7 de setembro de 2021, os arguidos, na execução de um plano que delinearam, se dirigiram de barco “ateì junto de uma plataforma fluviaìria/jangada para encosto de embarcações de recreio pertencente a CC, ancorada num terreno pertença desta”. Esta contradição (a de defender simultaneamente a indiciação e a não indiciação da propriedade da plataforma por parte da recorrente) constitui contradição insanável da decisão recorrida para efeitos da al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
15. Considerando a prova realizada nos autos, não restam, ou não deviam restar, dúvidas acerca da legítima propriedade da plataforma por parte da recorrente.
16. A plataforma encontrava-se, tal como a decisão recorrida concede nos factos indiciados, “fixa na margem do terreno”, ou “ancorada no terreno”. Isto é, ligada materialmente ao prédio.
17. A estrutura em causa, fixa ao terreno, tal como o próprio Tribunal a quo concedeu, tratando-se de coisa móvel, tratava-se também de uma coisa móvel fixa “com caráter de permanência”, no sentido em que, sem ação humana (desamarragem, corte de cordas, destruição etc.) tal fixação não se remove, é permanente. Por outro lado, não se tratava de coisa móvel fixa de forma que nunca em caso algum se conseguisse remover tal fixação, o que a tornaria imóvel. Mais, a estrutura em causa era utilizada para ancorar barcos, esses sim, coisas móveis fixas sem caráter de permanência.
18. Razão pela qual deveria ter o Tribunal a quo entendido ser a plataforma parte integrante da coisa imóvel (prédio), por aplicação correta do n.º 3 do art. 204.º do Código Civil, não restando assim dúvidas sobre a propriedade da mesma, por identidade com a propriedade do terreno que o Tribunal a quo, e bem, não discutiu ser da assistente, ora recorrente.
19. Impõe-se, portanto, a correção da decisão recorrida, no sentido e reconhecer a propriedade da plataforma como sendo da recorrente, daí decorrendo o preenchimento de todos os pressupostos dos tipos criminais em causa e a necessária pronúncia dos arguidos.
20. A plataforma em causa foi objeto de licenciamento, constando dos autos a respetiva Licença (n.º …) para estruturas flutuantes (cfr. auto de notícia e respetivos documentos anexos - a fls. 786 e ss.), impondo-se reconhecer que a plataforma é parte integrante do imóvel de …da assistente, que lhe fora doada pelo seu Pai, sendo por isso sua propriedade.
21. Tanto a GNR como o próprio MP reconheceram que a plataforma, por ser parte integrante do imóvel, pertence à recorrente, tanto que a GNR ajudou mesmo na sua relocalização para junto do terreno (cfr. auto de notícia de 17/09/2021, fls. 882 e ss.), tendo o MP referido expressamente que “CC recuperou a plataforma tal como consta do expediente entrado (2 autos de noticia)” (cfr. fls. 875 e ss.), deduzindo acusação pública pelos factos imputados, o que, evidentemente, atendendo aos pressupostos dos tipos criminais ora em causa, pressupõe o reconhecimento da propriedade)
22. A recorrente juntou aos autos durante a fase de instrução, uma notificaçaÞo no âmbito de processo contraordenacional ambiental que envolve a plataforma em causa, bem como a respetiva defesa por si apresentada, num processo no qual é arguida a recorrente e não o seu irmão AA (cfr. fls. 69 e ss). Resulta, pois, evidente que, para além da GNR e do MP, também a própria Agência Portuguesa de Ambiente, I.P. (APA) reconheceu que é a recorrente a proprietária da plataforma, uma vez que decidiu instaurar processo de contra-ordenação à recorrente (e não ao seu irmão AA), pela eventual prática de contra-ordenação ambiental (cfr. fls. 32 e ss).
23. Não se compreende, portanto, como pode ter o Tribunal a quo ter desconsiderado a prova que permite conhecer, de forma aprofundada, circunstanciada e para lá de qualquer dúvida razoável, a verdade material, com identidade interpretativa por parte de órgão de polícia criminal, do titular da fase de inquérito e da própria agência do Estado que tem como missão a gestão integrada das políticas ambientais e de sustentabilidade, no sentido de ser a assistente, ora recorrente, a legítima proprietária da estrutura.
24. Impõe-se, portanto, a correção da decisão recorrida, no sentido e reconhecer a propriedade da plataforma como sendo da recorrente, daí decorrendo o preenchimento de todos os pressupostos dos tipos criminais em causa e a necessária pronúncia dos arguidos.
25. Em paralelo, foi pela assistente demonstrado e pelo MP dado como provado durante a fase de inquérito, que os arguidos cortaram as correntes que fixavam a plataforma ao terreno que a integra.
26. A decisão recorrida concede que a plataforma estava fixa ao terreno e existe nos autos prova testemunhal, cuja razão de ciência é evidente que demonstra que, de acordo com as regras da experiência seria impossível soltar a plataforma, sem retirar as correntes que a fixavam ao solo. Não tendo as referidas correntes sido recuperadas, como compatibilizar a retirada da plataforma do local onde se encontrava fixa, sem considerar a inutilização ou desaparecimento das correntes que garantiam essa fixação? Não se compreende.
27. Existindo danos na plataforma, como se demonstrou existirem, tais danos não teriam sido provocados se a plataforma permanecesse fixa no local onde se encontrava antes dos arguidos a moverem, pelo que são responsáveis pelos mesmos.
28. Em suma, é inegável que durante as fases de inquérito e de instrução, se fez prova suficiente da ocorrência dos factos alegados pela recorrente e do seu enquadramento. Isto é, existe nos autos amplos elementos, sólidos e suficientes, que possam fazer antever uma condenação dos arguidos em eventual futuro julgamento.
29. No contexto deste caso, o sustento probatório existente nos autos deveria ter sido considerado como suficiente para a pronúncia.
30. Foi o próprio Ministério Público que, após ter conduzido a fase de inquérito (fase processual em que se realizaram significativas diligências probatórias nestes autos), se decidiu, e bem, pela acusação. O inquérito é a fase processual que visa, essencialmente, a recolha de provas de terem os arguidos cometido ou não cometido o(s) crime(s), tendo terminado esta fase processual com despacho de acusação e acompanhamento parcial da acusação particular, posição que o MP sustentou durante a instrução (cfr. arts. 53.º, n.º 2 als. b) e c), 283.º e 285.º, n.º 4 do CPP).
31. Já a instrução visa, neste caso, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cfr. arts. 286.º, n.ºs 1 e 2, 288.º e 290.º do CPP), não sendo esta fase processual particularmente vocacionada para a investigação, nem certamente dirigida à emissão de um juízo final.
32. Argumenta o Tribunal a quo, alegando impor-se a aplicação do Princípio in dubio pro reo para sustentar uma decisão de não pronúncia. Contudo, a decisão recorrida equivoca-se ao valorizar “de forma equivalente” as versões contraditórias apresentadas nestes autos. É que de um lado (da assistente), como o próprio MP reconheceu, fez-se prova pessoal e documental da propriedade da plataforma e das ações dos arguidos que preenchem os elementos do tipo, do lado do arguido negou-se a propriedade (sem oferecer prova convincente) e nada mais se provou.
33. Assim sendo, a decisão recorrida resultou em manifesta violação do princípio in dubio pro reo, ínsito no art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, dado que, sendo possível dissipar a dúvida razoável, sempre tal dúvida devia ter-se afastado e não elevado artificialmente, como erradamente fez a decisão recorrida.
34. Existindo indícios da ocorrência dos alegados factos, dos autores dos mesmos e do total preenchimento dos elementos do tipo, não permanece uma dúvida razoável, o que afasta in casu a aplicação do princípio in dubio pro reo.
35. Poder-se-ia defender que o Tribunal a quo decidiu como decidiu ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova ínsito no art. 127.º do CPP. Sucede que, perante a robustez dos indícios, isto é, perante a verificação das provas constantes das acusações, não pode tal princípio penal operar sem limites. Isto é, trata-se de um princípio de livre apreciação da prova que de facto se fez e que existe. Razão pela qual se encontra in casu extrapolado e violado o art. 127.º do CPP.
36. Existindo ampla indiciação, por recurso a prova pessoal e documental, da prática dos crimes em causa por parte dos arguidos, resta concluir que a decisão recorrida colide com o espírito jurídico constitucional e penal, violando princípios concretos, designadamente o princípio da legalidade (arts. art. 29.º, n. º1 da CRP e art. 1.º do CPP), da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP), da fundamentação (205.º, n.º 1 da CRP) e in dubio pro reo (32, n.º2 CRP). Razão pela qual se impõe a reversão da decisão recorrida e a sua substituição por outra que considere suficiente a prova produzida.
37. Pelo exposto, resulta também evidente a existência de elementos dos quais se possa concluir pela probabilidade qualificada de condenação dos arguidos em julgamento, uma vez que nos autos se encontram fundamentos que evidenciem o preenchimento dos pressupostos dos artigos 212.º e 203.º n. º1, ambos do Coìdigo Penal, pelo que se encontram violados os arts. 308.º, n.º 1 e 2, e 283.º, n.º 2 (ex vi art. 308.º, n.º 2), todos do Código de Processo Penal.
38. Deve, portanto, o presente recurso proceder e repor-se a legalidade, concretamente através da prolação de despacho de pronúncia dos arguidos e de submissão dos mesmos a julgamento.”
Pugnando, em síntese, pelo seguinte:
“Termos em que devidamente apreciados os argumentos do presente recurso, deve o mesmo ser declarado procedente e, em consequência, ser revogado o despacho de não pronúncia recorrido e doutamente operada a sua substituição por despacho de pronúncia, com o que se respeitará a Lei, cumprirão os ditames do Direito e se fará a costumada Justiça.”
Os arguidos apresentaram resposta, defendendo o decidido e concluindo que deverá ser respeitada nos seus exatos termos a douta decisão instrutória, por a mesma ser prudente na interpretação dos factos, equitativa na composição dos direitos em confronto [e] estar de acordo a melhor jurisprudência.
O MP em 1.ª instância respondeu ao recurso, formulando, para o efeito, as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso está limitado à parte da decisão que não pronunciou os arguidos pela prática, em coautoria material e concurso real de um crime de dano e dois crimes de furto, praticados no dia 7 de novembro de 2021;
2. o cerne da questão assenta na questão de saber se a plataforma flutuante que estava ancorada num terreno propriedade da recorrente se deve considerar como parte integrante de tal imóvel e, consequentemente, o direito de propriedade do terreno e de que é titular a recorrente, se deve estender a tal plataforma.
3. Segundo a recorrente, a resposta afirmativa a tal questão e pela qual pugna, permite preencher o elemento objetivo dos tipos de ilícitos pelos quais pretende ver pronunciados os arguidos, uma vez que está demonstrado que estes desancoraram a plataforma e a transportaram para um outro local, transporte esse de onde resultaram danos na plataforma e nos cabos que a prendiam ao terreno.
4. Da certidão de registo predial (fls. 208), único documento legalemnt5e habilitado a fazer prova da propriedade dos imóveis, resulta que o prédio misto cuja propriedade se encontra inscrita a favor de CC pela apresentação … de 30.12.2016, é composto por casa de cave, r/c e 1º andar com a área de 120m², por logradouro com a área de 34m² e por mato com a área de 1.686m², confrontando a norte por …, a sul com …, nascente com … e poente com ….
5. De tal documento não consta que tal prédio tenha incorporado qualquer estrutura flutuante, a qual constituiria uma extensão da área do prédio considerando que a mesma ocupa uma parte pertencente ao domínio público hídrico, entendido este como constituído pelas margens e os leitos das águas públicas (rios mares, oceanos, etc);
6. A existência de tal estrutura flutuante resulta, por um lado, da análise das imagens de fls. 7 a 19, 70 a 81, conjugadas com o teor da licença para estruturas flutuantes nº …, junta a fls. 219.
7. Ora, da visualização de tais imagens resulta, a nosso ver, que a plataforma estava ligada ao terreno através de dois cabos amarrados a dois pontos fixos localizados no terreno, sendo, pois, de uma coisa móvel fixada a um terreno (imóvel) através de cabos;
8. Tal facto não torna a plataforma coisa integrante (ou incorporada) do imóvel pois para que tal fosse possível seria necessário que, à semelhança deste, a plataforma estivesse ligada ao mesmo com caráter de permanência, ou seja, sem a possibilidade de poder ser transportada para outro lugar;
9. Tal como referido por H. Mesquita, in Direitos Reais, 1967, 23 “Edifício incorporado é aquele que se encontra unido ou ligado ao solo, fixado nele com carater de permanência por alicerces, colunas, estacas ou qualquer outro meio”.
10. A nível de jurisprudência, pode ver-se, entre outros, o Ac. Do STJ de 5.12.1969 citado por Abílio Neto em anotação ao artº 204º do CCivil anotado, 15ª Ed., 2006, p. 97 “A incorporação no solo supõe uma ligação material por meio de alicerces ou colunas”;
11. Ora, a plataforma flutuante dos autos (embora esteja fixa no sentido de estável) não está ligada ao terreno com carater de permanência de modo a considerar-se ligada materialmente ao mesmo de modo a estender o regime legal relativo aos imóveis a tal plataforma;
12. Desde logo porque tal fixação é efetuada através de dois, os quais são amovíveis, com ou sem intervenção humana, pelo que, sempre que os cabos se soltarem (por ação humana ou não) a estrutura flutuante seguirá o curso da corrente ou o que lhe for dado pelo rebocador;
13. Acresce referir que, a qualificação como coisa imóvel de partes integrantes de um prédio tem, essencialmente, como finalidade, a aplicação do mesmo regime jurídico;
14. No caso da estrutura flutuante dos autos, tal não poderia acontecer (nomeadamente por aplicação das regras da aquisição da propriedade) por estar em claro confronto com o regime do licenciamento do domínio hídrico regulado pelo D.L. nº 46/94 de 22.02;
15. Com efeito, a licença junta a fls. fls. 219 (com a qual a recorrente pretendeu fazer prova da propriedade da aludida plataforma) não constitui documento idóneo a provar a propriedade da plataforma;
16. Desde logo porque se trata de uma licença de utilização do domínio hídrico cuja concessão/licenciamento não está dependente da natureza e personalidade jurídica do utilizador (cf. Art- 3º do D.L. 46/94, de 22.02);
17. E porque tais licenças caducam com a morte do titular da licença exceto se esta tiver sido transmitida a outro utilizador (cf. Artºs 13º e 14º do DL 46/94, de 22.02);
18. De igual modo se entende que um auto de notícia por contraordenação (por falta de licença) não constituiu prova bastante da titularidade do direito de propriedade uma vez que tal como resulta do auto junto a fls. 600, o OPC elaborou-o em nome da recorrente por esta ter sido contactada pessoalmente e se ter identificado perante os mesmos como proprietária da plataforma;
19. Ora, seguindo o raciocínio da recorrente, se a plataforma fosse um imóvel incorporado no terreno que lhe foi doado, então, a licença emitida em nome do progenitor ter-lhe-ia sido transmitida aquando de tal doação, não carecendo de proceder a novo pedido de licenciamento;
20. No entanto, tal como resulta do teor da defesa da recorrente junto da autoridade administrativa instrutora do processo de contraordenação junta a fls. 586 a 590, a autoridade competente remeteu um ofício “para desmantelamento da estrutura flutuante em questão por esta deter uma licença caducada (…)” (cf. Fls. 588, ponto 9 do documento).
21. Assim, e no que tange ao crime de furto, considerando que a recorrente não fez prova da sua qualidade de proprietária da estrutura flutuante relativamente à qual existe um conflito entre esta e o arguido AA, seu irmão, por ambos se arrogarem legítimos proprietários, é manifesto que a decisão a proferir apenas poderia ser a de não pronúncia dos arguidos.
22. De igual modo e ao contrário do sufragado pela recorrente, bem andou o tribunal ao não pronunciar os arguidos pela prática do crime de dano quer no que tange aos cabos alegadamente cortados quer no que tange à plataforma;
23. Importa, porém, referir que a narrativa constante da acusação pública (deduzida contra o arguido BB) e a acusação particular (deduzida contra o arguido AA) não é coincidente, sendo que ao primeiro arguido apenas lhe é imputado o corte das correntes;
24. Assim, e no que tange ao corte dos cabos, a prova produzida em sede de inquérito e em sede de instrução não permite dar como indiciado o corte nem a natureza dos cabos usados para prender a estrutura à margem.
25. Com efeito, em sede de inquérito a testemunha DD nada refere quanto ao tipo de cabo que fixava a plataforma, apenas se referindo aos cabos que prendiam o seu barco à plataforma mas relativamente aos quais se desconhece a quem pertenciam.
26. Já os arguidos, quando ouvidos em instrução descreveram os cabos que fixavam a plataforma (afirmando que eram de corda) e negaram terem cortado qualquer cabo (quer dos que prendiam os barcos quer dos que prendiam a plataforma) uma vez os soltaram desfazendo os nós;
27. Já no que tange aos danos na plataforma, importa, desde logo referir, que a queixa apresentada pela recorrente a fls. 330 a 333, apenas se refere ao corte das correntes “fortes colocadas pela assistente” e a eventuais danos provocados numa das embarcações provocados pelo embate da mesma contra a margem motivado pelas manobras efetuadas; nada se dizendo quanto aos danos na plataforma;
28. Assim, e no que tange aos danos provocados na plataforma entendemos que não foi apresentada qualquer queixa.
29. Mais, mesmo admitindo-se que a queixa de fls, 330 é extensiva aos danos na plataforma, da descrição feita na acusação particular, não resulta que tais danos tenham sido provocados com dolo uma vez que os mesmos terão resultado do arrasto da plataforma.
30. Tal conclusão resulta, desde logo do depoimento das testemunhas EE (fls. 364) e FF (fls. 367), as quais se referem a duas deslocações da plataforma, uma realizada pelos arguidos em direção à marina de … e a outra realizada em sentido contrário (para a propriedade da queixosa), concluindo que “pelo facto da plataforma ter sido deslocada originou danos avultados no esferovite e parte borrachada da plataforma onde encostam os barcos”;
31. Tais testemunhas nada referem quanto às concretas condutas levadas a cabo pelos arguidos de onde tivessem dolosamente provocado tais danos, desconhecendo-se de que modo e em que momento da travessia (se na ida ou na volta) os danos foram provocados (as testemunhas apenas referem que foi a deslocação da plataforma).
32. Acresce referir que, da prova produzida, mormente em sede de instrução, resulta que o arguido AA se arroga e é tido como proprietário da plataforma, pelo que, sempre se suscitaria a dúvida de saber se este tinha consciência que danificava coisa alheia.
33. Em síntese, diremos que atento os indícios recolhidos nos autos, temos de concluir que não existem meios de prova objetivos que relacionados de uma forma coerente permitam a reconstituição de um esquema narrativo de factos integradores dos crimes do artigo 203º e 212º, ambos do Código Penal e, desse modo, perspetivar a condenação dos arguidos em julgamento.
34. Assim, bem andou o Mmo Juiz do Tribunal “a quo” ao proferir despacho de não pronúncia por inexistência de indícios suficientes.”
Pugnando, a final, pelo seguinte:
“Termos em que, deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se o despacho recorrido.”
O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer, exarando, sinteticamente, que se deve “negar provimento ao recurso apresentado pela assistente CC e manter o despacho de não pronúncia.”
Observou-se o disposto no n.º 2 do art.º 417.° do Código de Processo Penal1 e ao mesmo respondeu a recorrente, entendendo que, “ao contrário do entendido pelo Ministério Público, deve o recurso apresentado […] ser considerado procedente e, em consequência, ser revogado o despacho de não pronúncia recorrido e […] operada a sua substituição por despacho de pronúncia nos termos já requeridos no recurso oportunamente apresentado.”
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:
“I – Síntese da tramitação processual:
Findo o inquérito o MºPº decidiu:
a) Arquivar os autos quanto aos crimes de gravações e fotografias ilícitas e introdução em lugar vedado ao público, imputados a AA, por falta de indícios suficientes para o efeito;
b) Acusar, para julgamento em processo comum, perante Tribunal Singular, o arguido BB, imputando-lhe os factos descritos na acusação de fls. 461-462 (ref.ª …, de 07-04-2024) e, por via destes, a prática em coautoria material e na forma consumada de:
i) Um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, n.º 1, do Código Penal; e
ii) Um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Código Penal.
c) Notificar a assistente CC, para deduzir acusação no prazo legal contra o arguido AA (irmão da assistente), pelos crimes de furto e dano, praticados pelo arguido no dia 20 de agosto de 2021 e pelo crime de furto praticado pelo mesmo arguido no dia 7 de setembro de 2021 .
Notificada para o efeito, veio a assistente deduzir acusação particular contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada de:
a) Em 20 de Agosto de 2021 a prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo artigo 191.º do Código Penal;
b) Em 20 de Agosto de 2021, a prática de um crime de gravações e fotografias ilícitas, previsto e punido pelo artigo 199.º n.º1 e 2 do Código Penal
c) Em 20 de Agosto de 2021, a prática de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º n.º 1 do Código Penal
d) Em 7 de Setembro de 2021, a prática de um crime de dano previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal;
e) Em 7 de Setembro de 2021, a prática de dois crimes de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º n.º1 do Código Penal.
A assistente não deduziu acusação particular pela prática de factos em 20 de agosto de 2021, suscetíveis de integrar a prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal, pelo que quanto a este ilícito, foram os autos arquivados por falta de legitimidade do MºPº para promover o processo penal.
Quanto aos crimes constantes da acusação particular referidos em a) e b), o MºPº não acompanhou a acusação particular, por falta de legitimidade do assistente para acusar desacompanhado do MºPº.
Mais decidiu o MºPº acompanhar a acusação particular quanto aos factos imputados ao arguido referentes ao dia 20 de agosto de 2021, que integram o crime de furto e quanto aos factos praticados em 7 de setembro de 2021, que integram no seu entender um crime de furto (e não dois como entende a assistente) e um crime de dano.
*
Inconformados, os arguidos requereram a abertura da instrução, em requerimentos autónomos, mas subscritos pelo mesmo Defensor.
(…)
*
Produzida a prova, teve lugar debate instrutório, com observância das legais formalidades.
*
II – Da nulidade parcial da acusação particular quanto aos crimes de introdução em lugar vedado ao público e gravações e fotografias ilícitas:
A assistente acusa o arguido AA da prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo artigo 191.º do Código Penal e um crime de gravações e fotografias ilícitas, previsto e punido pelo artigo 199.º n.º 1 e 2 do Código Penal.
Ora estes crimes são de natureza semipública, ou seja o procedimento criminal depende de queixa, nos termos dos artigos 198º e 199º, n.º 3 do Código Penal, tendo o MºPº deduzido despacho de arquivamento quanto aos mesmos.
O CPP prevê dois casos de acusação pelo assistente, nos seus artigos 284º e 285º.
O artigo 285º, do CPP prevê a acusação particular, que ocorre “…quando o procedimento depender de acusação particular…”, que quanto a estes crimes não é o caso.
Já o artigo 284º, n.º 1 do CPP estatui que “Até 10 dias após a notificação da acusação do Ministério Público, o assistente pode também deduzir acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles.”.
Nota-se, pois, que quanto a crimes públicos ou semipúblicos, o assistente não pode deduzir acusação desacompanhado do MºPº, apenas podendo deduzir acusação nos estritos limites do citado artigo.
De outro modo, e pretendendo a submissão do arguido a julgamento por crimes públicos ou semipúblicos quando o MºPº tenha proferido despacho de arquivamento, deve o assistente requerer ele mesmo a abertura da instrução, nos termos do artigo 287º, n.º 1, al. b) do CPP, o que no caso não sucedeu.
Temos pois que o processo penal não pode prosseguir quanto a estes crimes, por não ter a assistente legitimidade para deduzir acusação desacompanhada do MºPº.
(…)
V – Dos factos:
V.1 – Factos indiciados:
Compulsados os autos, julgo suficientemente indiciados os seguintes factos com relevo para a decisão:
1. No dia 20 de agosto de 2021 o arguido entrou no terreno pertença da assistente sito junto da Rua … freguesia de …, em … e numa plataforma flutuante fixa na margem desse terreno.
2. No dia 7 de Setembro de 2021, cerca das 9h15, BB em conjugação de esforços e intentos com AA e na execução de um plano previamente gizado por ambos, tripulando uma embarcação dirigiram a mesma na albufeira da barragem de …, até junto de uma plataforma fluviária/jangada para encosto de embarcações de recreio pertencente a CC, ancorada num terreno pertença desta, junto da Rua …, freguesia de …, em ….
3. Ali chegados, de forma não concretamente apurada, desancoraram duas embarcações que se encontravam atracadas à plataforma e deslocaram-nas para outra plataforma ali próxima.
4. De seguida, aproximando-se da plataforma, AA e o arguido, desamarraram a plataforma, recolheram os cabos que a prendiam ao solo, pousando-os na plataforma e, em ato contínuo, amarram a plataforma à embarcação em que se deslocaram e abandonaram o local levando a plataforma e os cabos consigo.
5. Os arguidos agiram de modo livre, deliberado e consciente.
V.2 – Factos não indiciados:
Não se indiciaram outros factos relevantes para a decisão, nomeadamente que:
a) Que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. o arguido tivesse subtraído a quantia de € 140,00 em dinheiro e um relógio de marca “…” no valor de € 1.000,00.
b) A plataforma flutuante referida em 1. e 2. fosse propriedade da assistente;
c) Que qualquer dos arguidos tenha agido com intenção de se apropriar ilicitamente, para si ou para terceiros, que qualquer bem alheio;
d) Que os arguidos tenham cortado quaisquer correntes pertença da assistente;
e) Que os arguidos tenham causado intencionalmente, qualquer dano na plataforma, nomeadamente por perda de placas de esferovite.
f) Que os arguidos tenham agido sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
Não se espondeu a matéria conclusiva, de direito, meramente instrumental ou irrelevante para a instrução, em especial quanto aos factos atinentes aos crimes de introdução em lugar vedado ao público e gravações e fotografias ilícitas, face ao supra exposto no ponto II desta decisão.
*
V.3 – Análise crítica da prova:
O tribunal respondeu à matéria de facto nos moldes supra consignados tendo em conta a globalidade da prova produzida, analisada à luz das regras da experiência comum.
Os factos indiciados não se afiguram controversos, tendo sido admitidos pelos arguidos e resultando evidenciados pelas imagens de videovigilância de fls. 70 a 83 e fls. 342 a 348.
Apenas quanto à propriedade do terreno referido em 1. e 2. o arguido AA põe em causa a validade da doação feita pelo seu pai à sua irmã, ora afirmando que essa doação é fictícia, destinando-se a evitar eventual penhora fiscal ora pondo em causa a competência mental do seu pai para o ato de doação.
No entanto, a certidão de registo predial de fls. 208 e ss. declara ser a assistente proprietária desse imóvel, adquirido por doação, não tendo sequer sido alegado que tal doação tenha sido impugnada judicialmente com sucesso até ao momento. Assim sendo, indicia-se que tal prédio é propriedade da assistente.
Já o mesmo não pode ser dito quanto à plataforma flutuante atracada nesse prédio.
Não existe nos autos prova alguma de que esse bem tenha sido adquirido validamente pela assistente, sendo certo que, como de resto resulta da queixa, a plataforma estava fixa ao terreno com cabos que os arguidos “desamarraram”.
Resulta também das várias fotografias juntas aos autos que retratam a plataforma atracada ao terreno e das declarações dos arguidos e testemunhas ouvidas em instrução que a plataforma em causa não estava fixa ao terreno com caráter de permanência, sendo mesmo por vezes necessário libertar as suas amarras e afastá-la da margem, nomeadamente em caso de incêndio florestal.
O artigo 204º do Código Civil define o conceito de coisa imóvel e estatui que:
“1. São coisas imóveis:
a) Os prédios rústicos e urbanos;
b) As águas;
c) As árvores, os arbustos e os frutos naturais, enquanto estiverem ligados ao solo;
d) Os direitos inerentes aos imóveis mencionados nas alíneas anteriores;
e) As partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos.
2. Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.
3. É parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência.” (itálico nosso).
Ora indicia-se, pois, que a plataforma em causa não estava ligada ao prédio “com caráter de permanência”, mas apenas fixada com cabos/cordas náuticas, que estavam amarradas a pontos fixos no terreno e que facilmente poderiam ser desamarrados em caso de necessidade.
Tal plataforma não era assim parte integrante do imóvel, pelo que a doação do terreno em causa à assistente não se pode considerar como abrangendo a referida plataforma.
Não é sequer alegada qualquer outra causa de aquisição, originária ou derivada, dessa plataforma pela assistente.
A “licença para estruturas flutuantes” junta aos autos pela assistente a fls. 134, tem como titular da mesma GG, e data de 1997, e foi emitida pelo Ministério do Ambiente ao abrigo do DL 46/94 de 22/02, que estabelece o regime de licenciamento da utilização do domínio hídrico, sob jurisdição do Instituto da Água (diploma já revogado).
Tal licença respeita à utilização do domínio hídrico, nos termos do artigo 79º desse diploma que previa que:
“1 - A utilização do domínio hídrico fluvial para transporte de madeiras ou peças soltas flutuantes que, pela sua dimensão e características, não sejam considerados complementos de usos recreativos, está sujeita à obtenção de licença, que pode ser outorgada pelo prazo máximo de 10 anos, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º, com as especificidades previstas na presente secção.
2 - Estão igualmente sujeitas à obtenção de licença, nos termos do número anterior, a instalação de estruturas flutuantes fixas, tais como jangadas, piscinas, cais, balizagem e sinalização, qualquer que seja a sua finalidade.”.
Nota-se pois que esta licença deverá ser pedida pelo proprietário do terreno onde a estrutura flutuante irá ser atracada, pois é este que tem direito próprio a utilizar o domínio hídrico que respeita à sua propriedade.
Assim sendo, faz todo o sentido que, como afirmou o arguido, a licença de utilização dessa estrutura estivesse em nome do pai do arguido AA e da assistente, pois era este, à data, o proprietário do terreno, mas tal não implica necessariamente que a estrutura fosse de sua propriedade e muito menos propriedade da assistente.
Já o arguido AA afirma ter sido ele que teve a iniciativa de mandar desenhar e construir essa estrutura que terá sido paga com dinheiro de uma sociedade da qual este e o seu pai eram sócios.
Refere que mandou fazer a dita plataforma para si e para a sua família, quando habitou o terreno em causa.
A prova testemunhal ouvida em instrução corrobora estas declarações nomeadamente:
a) As testemunhas HH, II e JJ, todas elas afirmaram ter realizado trabalhos de vária ordem na referida jangada a pedido do arguido AA e tendo sido pagas por este;
b) A testemunha KK, que afirmou ter desenhado a dita plataforma a pedido do arguido e ter estado na mesma após a sua construção a convite do mesmo.
A testemunha LL referiu ter executado trabalhos nessa jangada, a pedido do pai do arguido e da assistente.
Afigura-se que tal plataforma poderá ser pertença do arguido AA ou do arguido e do seu pai em compropriedade, até porque terá sido custeada com dinheiro de uma sociedade pertença de ambos, mas não há qualquer prova de que tenha pertencido à assistente.
O arguido AA refere ter agido na convicção de que a referida plataforma era de sua propriedade,
De igual modo não se indicia que os arguidos tivessem quebrado quaisquer correntes para libertar essa plataforma, como se afirma na acusação pública, ou para remover os barcos que se encontravam a esta atracados, sendo que os arguidos negam que tenham cortado quaisquer correntes e não foi feita qualquer prova que indicie estes danos.
De resto, a testemunha DD (fls. 292 ss.), proprietário de um dos barcos atracados nessa plataforma, refere que o mesmo estava preso com correntes e cadeados (desconhecendo-se desde logo se estas pertenciam à assistente ou à testemunha) mas afirma que não sabe como é que a corrente que liga o barco à plataforma foi removida, e que “julga que a corrente ou o cadeado poderão ter sido cortados com uma serra”. Esta mera convicção da testemunha, sem razão de ciência, é insuficiente para indiciar este facto.
O orçamento apresentado pela assistente que quantifica danos sofridos encontra-se a fls. 341 e respeita apenas aos danos verificados na jangada, e não a quaisquer outros.
Quanto a estes danos, o arguido afirma serem preexistentes, e causados por falta de manutenção adequada.
Não existe prova que permita infirmar esta versão dos factos, sendo certo que nem o arguido AA nem o arguido BB teriam qualquer motivo para danificar a referida plataforma, mesmo na versão das acusações que que se queriam apoderar ilicitamente desta.
Se a referida plataforma for do arguido AA (como se indicia ser pelo menos parcialmente) então o mesmo não teria motivo para danificar voluntariamente a sua propriedade. De igual modo, caso quisesse ilicitamente apoderar-se desta, então também não teria motivo para a danificar.
Ainda que se possa colocar a mera possibilidade de alguns dos danos poderem ter sido causados aquando do transporte da plataforma pelos arguidos, as regras da experiência comum sempre levariam a concluir como mais provável terem sido tais danos causados de forma inadvertida/negligente.
Já quanto ao facto não indiciado referido em a) é de notar que de facto o arguido é visto, nas imagens de videovigilância de fls. 13 a 19, a levantar a relva artificial existente nessa plataforma (que voltou a colocar no local) e passando algum tempo debaixo do chapéu de sol aí existente, onde alegadamente estaria o saco com o dinheiro e relógio furtados à assistente.
No entanto, o arguido alega que foi a essa plataforma (como já se referiu na convicção de que a mesma é de sua propriedade) para verificar o seu estado de conservação e nomeadamente as condutas para cabos que correm por baixo desta, motivo pelo qual teve de levantar a relva artificial e verificar a área debaixo do chapéu de sol, o que não é desconforme às regras da experiência comum.
Notamos também que apenas as declarações da assistente suportam o facto de que esse dinheiro e relógio se encontravam no referido local.
Devemos também notar que é claro de toda a prova existente nos autos, desde logo do teor do despacho cuja cópia se encontra a fls. 20 e ss. e do teor das declarações da assistente e do arguido, que estes factos emergem na sequência de um conflito familiar prolongado e aceso entre a assistente e o arguido, por motivos patrimoniais, o que torna as declarações da assistente e do arguido mais comprometidas e parciais, minando a sua credibilidade.
Gera-se assim dúvida insanável sobre o facto referido na alínea a), pelo que à luz do princípio in dubio pro reo, deve o mesmo ser considerado como não indiciado.
*
VI – O direito:
Vem imputada aos arguidos a prática em coautoria material e na forma consumada de:
i) Um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, n.º 1, do Código Penal; e
ii) Um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Código Penal.
Vem também imputada ao arguido AA a prática em autoria material e na forma consumada de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Código Penal.
(…)
Ora desde logo não se indiciou que a plataforma alegadamente furtada pelos arguidos não fosse pertença do arguido AA, e que fosse pertença da assistente/queixosa, pelo que tal basta para que o crime de furto imputado aos arguidos por referência à plataforma flutuante supra referida caia por terra, impondo-se a não pronúncia dos arguidos.
Quanto ao crime de furto imputado ao arguido AA, não se indiciou a subtração, por este, de quaisquer objetos, nomeadamente do dinheiro e relógio da assistente, pelo que também por esta via se impõe a sua não pronúncia.
Já quanto ao crime de dano, este é descrito por referência à plataforma flutuante e a correntes que alegadamente terão sido cortadas.
(…)
Ora quanto à plataforma flutuante, as mesmas considerações que impõem a não pronúncia quanto ao crime de furto valem para o crime de dano, pois não se indiciou que tal objeto fosse alheio ao arguido (ou seja que não fosse de sua propriedade) e não se indiciou que fosse pertença da assistente/queixosa.
Já quanto ao dano nas alegadas correntes, o mesmo não se indiciou.
Conclui-se assim pela não pronúncia dos arguidos.”
2 - Fundamentação.
A. Delimitação do objecto do recurso.
A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.
A questão única a decidir no presente recurso reside na verificação ou não de fundamento legal para proferir o despacho de não pronúncia objeto do recurso.
B. Decidindo.
A acusação em processo crime é deduzida (pelo MP ou pelo assistente, nos casos previstos nos artigos 284.º e 285.º, este último epigrafado “acusação particular”) se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente. (art.º 283.º, n.º 1)
Segundo o n.º 2 de tal disposição legal, “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.2
Por seu turno, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo “a acusação contém, sob pena de nulidade: (...) b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (...), cabendo aqui a enumeração dos factos constitutivos do tipo legal de crime.”
O objeto do processo que a acusação incorpora materializa-se numa unidade complexa3 que compreende uma questão de facto (a descrição dos factos imputados) e uma questão de direito (a indicação normativa, ou seja, mais especificamente, a indicação do crime imputado). É consequência necessária da estrutura acusatória do processo penal4 que cabe em exclusivo à entidade acusadora a definição rigorosa do respetivo objeto, ou seja, a conformação concreta da acusação, não sendo legalmente admissível qualquer interferência nesse labor, nomeadamente por parte do juiz, estando-lhe vedado, por exemplo, definir a extensão subjetiva ou mais exatamente, a determinação do número de arguidos a que a decisão instrutória venha a respeitar.
A questão a decidir no presente recurso reconduz-se a apurar, unicamente, se deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por despacho que pronuncie os arguidos pelos crimes acusados (mas apenas os alegadamente praticados no dia 07.11.2021, conformando-se com a decisão de não pronúncia relativa aos crimes alegadamente praticados no dia 20.08.2021), ou seja, averiguar se, de facto e de direito, está indiciada a prática, pelos arguidos dos imputados crimes de dano e de furto (2x).
Começando pela controvertida questão da natureza e da propriedade da plataforma e das estruturas que a ligavam ao solo.
Assim, analisando, desde logo, o arguido vício previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea b), ou seja, a contradição insanável da fundamentação.
É posição praticamente unânime na jurisprudência que os vícios previstos no art.º 410.º. n.º 2 são privativos da sentença final, não sendo aplicáveis a outras fases processuais: neste sentido, vide as decisões referidas no Código de Processo Penal anotado por Vinício Ribeiro (3.ª edição, Quid Juris, 2020, página 9745), para além da decisão deste TRE referida na resposta do MP ao recurso6. Salvo o devido respeito por qualquer posição diversa, o entendimento de não são aplicáveis à decisão instrutória (seja de pronúncia seja de não pronúncia) as regras contidas no n.º 2 do art.º 410.º parece-nos concludentemente claro, especialmente se atendermos a que os vícios ali previstos determinam, caso não seja possível decidir da causa, o reenvio do processo para “novo julgamento”, nos termos do art.º 426.º, n.º 1. Ora se ao “julgamento” se segue imediatamente a “sentença” (em sentido amplo), só os vícios desta última podem ser atingidos por aqueles vícios e não decisões anteriores, como a instrutória.
Apesar de não serem aplicáveis os aludidos vícios à decisão instrutória, é óbvio que, efetivamente, pode ocorrer uma objetiva contradição entre os factos considerados indiciados e não indiciados.
Cremos que tal contradição existe na decisão instrutória ao dar como suficientemente indiciado (facto 2) que a “plataforma fluviária / jangada para encosto de embarcações de recreio pertence a CC” (a assistente) e, simultaneamente, dar como facto não indiciado (alínea b) que a “plataforma flutuante referida em 1. e 2. fosse propriedade da assistente”.
Cremos, contudo, que a “necessidade de reparação” mencionada na resposta do MP ao recurso não demanda a necessidade da “válvula de segurança” prevista no n.º 2 do art.º 123.º.
Com efeito, dada a minuciosa explicação dada na motivação da decisão quanto à não prova da propriedade de tal plataforma, a indicação de pertença da mesma à assistente só poderá dever-se a mero lapso, corrigível por este TRE nos termos do art.º 380.º, n.º 2, considerando que:
(i) Tal indicação, muito embora não seja formalmente irrelevante (ou seja, formalmente até poderia importar uma modificação essencial do decidido), substancialmente não o é, pois, como dito, o tribunal explica com minúcia os motivos pelos quais pretendeu, efetivamente, verter aquele facto considerado não indiciado em detrimento daquela específica alusão no facto indiciado;
(ii) O aludido regime aplica-se não só às sentenças (o que seria contraditório com o acima mencionado), mas aos atos decisórios mencionados no art.º 97.º, abrangendo, obviamente, as decisões instrutórias. (n.º 3 do aludido art.º 380.º).
Atentos os motivos expostos, considera-se a expressão “pertencente a CC” constante do facto indiciado n.º 2 como não escrita, já que se entende ter-se devido a mero lapso. Por outro lado, não é controvertido nos autos que a propriedade do prédio misto referido no facto indiciado n.º 1 seja propriedade da assistente, até pela presunção que advém da sua inscrição registal a favor da mesma. Porém, quanto à natureza e propriedade da plataforma em causa já a situação é diferente. Entende a recorrente que deveria ter o tribunal a quo entendido ser a plataforma parte integrante da coisa imóvel (prédio), por aplicação “correta” do n.º 3 do art.º 204.º do Código Civil, assim beneficiando, acrescentaríamos nós, da extensão (quanto a tal plataforma) da presunção do registo do prédio a seu favor acima mencionada.
A decisão recorrida, por seu turno, expende, a propósito de tal específica questão, como vimos, o seguinte raciocínio;
“Ora indicia-se, pois, que a plataforma em causa não estava ligada ao prédio “com caráter de permanência”, mas apenas fixada com cabos/cordas náuticas, que estavam amarradas a pontos fixos no terreno e que facilmente poderiam ser desamarrados em caso de necessidade.
Tal plataforma não era assim parte integrante do imóvel, pelo que a doação do terreno em causa à assistente não se pode considerar como abrangendo a referida plataforma.
Não é sequer alegada qualquer outra causa de aquisição, originária ou derivada, dessa plataforma pela assistente.”
Vejamos. Segundo o art.º 204.º, n.º 3 do Código Civil, é parte integrante [do imóvel – cfr. n.º 1, alínea a)] toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência.
Temos, pois, como exigência legal da figura da integração de móvel em imóvel a necessidade de uma ligação material com carácter de permanência deste àquele.
A este propósito, pode ler-se em Cardoso Guedes7 o seguinte, que consideramos especialmente esclarecedor: “A classificação de um bem como parte integrante de um prédio pressupõe a verificação cumulativa de dois pressupostos. Por um lado, a ligação material, significando esta uma ligação física entre um prédio e parte integrante considerada a qual deverá estar fixada, presa ou unida ao prédio); por outro, essa ligação material deverá ter carácter de permanência, ou seja, deverá traduzir-se numa ligação funcional entre a coisa móvel e o edifício onde se encontra, no sentido de que a integração desse bem no edifício há-de ser necessária para a própria finalidade do edifício em si.”
No caso dos autos, muito embora se tenha indiciado que a plataforma em causa tinha “cabos que a prendiam ao solo” (facto indiciado n.º 4), afigura-se-nos como incontestável que essa ligação ao solo do prédio da assistente não traduzia qualquer necessidade para a própria finalidade de tal prédio em si. Tal plataforma estava ali atracada como poderia estar em qualquer outro local e não afeta minimamente as funcionalidades e características do prédio da assistente. A nosso ver, a diferença entre barcos e plataforma (para o efeito em causa) a que a recorrente alude no ponto 28 não faz, salvo o devido respeito, qualquer sentido, pois assenta na facilidade em desancorar barcos contraposta na dificuldade em “retirar a fixação” de plataformas. Trata-se, como se nos afigura evidente, de uma distinção meramente casuística (sendo que se podem congeminar situações de barcos mais firmemente ancorados ao solo do que quaisquer plataformas), imprestável para uma classificação jurídica geral e abstrata. Aliás, a fragilidade do argumentário da recorrente ainda se mostra mais evidente quando a mesma, na resposta ao parecer do MP nesta instância, afirma “que os cabos em questão [da plataforma em causa] são precisamente o elemento que demonstra o carácter de permanência, uma vez que sem ação humana ou alguma causa natural, não é suposto que os mesmos sejam removidos, o que implica que seja permanente.”8 Por esta ordem de ideias, caso um automóvel estivesse numa garagem preso ao chão por correntes, também seria parte integrante do respetivo prédio porque “não é suposto” que tais correntes, sem ação humana ou alguma causa natural, possam ser removidas.
Não sendo, assim, a propriedade da plataforma aferível a partir da presunção do registo do imóvel, resta analisar a pretensão da recorrente de que está indiciado que a mesma lhe pertence.
De notar, como justamente se sublinha na decisão recorrida, que não é sequer alegada qualquer outra causa de aquisição, originária ou derivada, dessa plataforma pela assistente.
A recorrente, por seu turno, contrapõe uma “identidade interpretativa” (conclusão 23.ª) da GNR, do MP e da Agência Portuguesa de Ambiente no sentido de “para lá de qualquer dúvida razoável”, traduzir prova de que aquela é “a legítima proprietária da estrutura”.
Desde logo, cumpre assinalar uma evidência: é aos tribunais que incumbe “dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”. (art.º 202.º, n.º 2 in fine da CRP)
Assim, em face de um conflito de interesses privados como é a reivindicação plural da propriedade de determinado bem, é aos tribunais e apenas aos mesmos que cumpre administrar justiça, reconhecendo o direito em causa de acordo com a Lei. Não têm essa competência quaisquer entidades administrativas ou mesmo o MP, que, neste particular, tem apenas a competência de “exercer a acção penal”. (art.º 219.º, n.º 1 da CRP)
Assim, quaisquer ações da GNR, quaisquer procedimentos administrativos contraordenacionais e mesmo a dedução de uma acusação pelo MP, são procedimentos legal e constitucionalmente irrelevantes9 quanto ao reconhecimento do direito de propriedade da plataforma em causa, ainda que esse reconhecimento seja, nesta sede, instrumental (ao invés da jurisdição cível, em que assume natureza constitutiva) para decidir sobre a integração (ou não) dos crimes acusados, in casu, dano e furto.
Contesta a recorrente que na decisão recorrida se tenha valorizado “de forma equivalente” as versões contraditórias do arguido AA e da assistente.
Com efeito, como vimos, na decisão recorrida fez-se verter o seguinte:
Os “factos emergem na sequência de um conflito familiar prolongado e aceso entre a assistente e o arguido, por motivos patrimoniais, o que torna as declarações da assistente e do arguido mais comprometidas e parciais, minando a sua credibilidade.”
Na verdade, entendemos como evidência processual, que, em face do conflito prolongado entre irmãos, as respetivas declarações devam ser valoradas com especial cautela, pois a sua credibilidade mostra-se, notoriamente, por tal conflito afetada. No entanto, não estamos perante um “empate”, pois tal figura, quando está em causa uma imputação penal, não existe.
A decisão recorrida elenca, de forma esclarecedora e fundamentada, o material probatório que leva a equacionar-se a possibilidade de a plataforma em causa “ser pertença do arguido AA ou do arguido e do seu pai em compropriedade”, ou seja, os depoimentos das testemunhas HH, II, JJ e KK, que a recorrente opta por praticamente ignorar (apenas referindo, conclusivamente, que aquele arguido não ofereceu “prova convincente”).
Deste modo, afigura-se-nos que o tribunal a quo fundamentou devidamente os factos que considerou não indiciados, essencialmente ao abrigo do princípio in dubio pro reo.10
Nos termos do art.º 32.º, n.º 2 da CRP, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. O princípio da presunção de inocência cristalizado neste comando constitucional “surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.”11
A fundamentação constante da decisão recorrida relativamente ao núcleo essencial dos factos não indiciados foi exposta supra.
Entendemos, como detalhadamente foi exposto, que o tribunal a quo descreveu com rigor o iter que seguiu para chegar à convicção de prova sobre a não indiciação dos factos, explicitando de forma fundada e consistente as valorações probatórias efetuadas. Assim, concluímos que o mencionado iter traduz um correto entendimento do princípio da livre apreciação da prova, nos termos recortados pelo art.º 127.º.
Do exposto flui que na decisão sob censura o tribunal a quo evidencia fundadamente as dúvidas relativamente à indiciação dos factos e a conclusão pela não indiciação.
A este propósito, importa recordar que “a dúvida relevante nesta sede é a do tribunal e não a do recorrente”12. Podemos, aliás, afirmar que a operatividade (ou não operatividade) do princípio é opção exclusiva do tribunal, que a verte, assim, na fundamentação, não estando dependente positivamente da opinião da defesa ou negativamente (como aqui acontece) da acusação (da assistente).
Pelo exposto, não estando indiciada que a assistente seja proprietária da plataforma / correntes, não se verifica, desde logo, um dos elementos fundamentais dos acusados crimes, ou seja, o carácter alheio da coisa subtraída / danificada, pelo que a decisão recorrida de não pronúncia se encontra fáctica e normativamente escorada, sendo acessório e desnecessário conhecer de quaisquer outros aspetos.
Por tudo isso, o recurso improcede.
3 - Dispositivo.
Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC. (art.º 515.º, n.º 1, alínea a) do e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)
(Processado em computador e revisto pelo relator)
Évora, 20/05/2025,
Edgar Valente (relator)
Artur Vargues (1.º adjunto)
Laura Goulart Maurício (2.ª adjunta)
.............................................................................................................
1 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.
2 “A bitola para medir essa suficiência ou insuficiência há de ser [na acusação particular] a mesma do MP.” João Conde Correia in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, 2.ª edição, 2022, Almedina, página 1229.
3 A. Castanheira Neves (in Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, página 236) identifica o objeto do processo como “o caso jurídico concreto apresentado e a resolver”.
4 Cfr. art.º 32.º, n.º 5 da CRP.
5 Onde se menciona a única decisão em sentido divergente.
6 Datada de 19.03.2024 (Relatora Ana Bacelar), disponível in www.dgsi.pt.
7 Nótula sobre a noção de partes integrantes in Estudos Dedicados ao Prof. Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, vol. I, 2011, páginas 183 a 188 apud Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20.ª edição, 2018, Ediforum, página 109.
8 São nossos o itálico e negrito.
9 Tal como, complementarmente, o são quaisquer regras sobre a utilização do domínio hídrico, nomeadamente o mencionado DL n.º 46/94, de 22.02.
10 É de sublinhar que, muito embora na decisão recorrida apenas se faça alusão a tal princípio quanto à não indiciação do facto a), é efetivamente ao abrigo de tal princípio que a não indiciação efetivamente se fundamenta (afirmando-se que os arguidos negam os mesmos e que inexiste qualquer prova que os sustente) quanto a todos os demais factos (não indiciados), especialmente no que respeita ao nuclear facto não indiciado b), que condiciona fáctica e juridicamente a questão da imputação dos crimes acusados.
11 J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Volume I, 2007, página 519.
12 Acórdão do STJ de 27.11.2019 proferido no processo 232/16.0JAGRD.C1.S1.2 (Relator Vinício Ribeiro).