INVENTÁRIO
REMESSA DAS PARTES PARA OS MEIOS COMUNS
Sumário

I - A decisão de remessa das partes para os meios comuns, prevista no art.º 1093.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, tem que ser ponderada e justificada.
II - Tal remessa implica a conclusão que a temática a discutir no âmbito do processo de inventário é demasiado complexa e a decisão incidental reduziria as garantias das partes.
III - Esta conclusão só é possível de retirar após estarem no processo os meios de prova convocados e ter havido, quanto a eles, a devida apreciação crítica.
IV - A lei não tutela a remessa dos interessados para os meios comuns com base em intuições/conjecturas relativas à complexidade da questão.
V - Impõe-se ao julgador fundamentar a complexidade da questão (conceito com conteúdo muito amplo), mas, sobretudo, demonstrar de que modo haveria perda de garantia para as partes com a decisão no âmbito do processo de inventário.

Texto Integral

Processo: 2498/22.7T8LOU-A.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Local Cível de Lousada
Processo: 2498/22.7T8LOU

ACÓRDÃO
I. RELATÓRIO
Procede-se a inventário por óbito de AA, falecida em 06/04/2022 e que apresenta como cabeça de casal o seu marido BB.
Foi apresentada relação de bens na qual foi relacionado dinheiro existente numa conta de depósitos à ordem no Banco 1...; bens móveis, o direito e ação às heranças ilíquidas e indivisas de CC e mulher DD e um bem imóvel.
CC, interessado nestes autos, veio deduzir reclamação contra a relação de bens, acusando, para o que ora nos importa, a falta de relacionação dos bens SALDOS BANCÁRIOS.
Requereu fosse oficiado ao Banco de Portugal para identificar as instituições bancárias em que era titular de contas bancárias ou em que era autorizada a movimentar contas bancárias, a inventariada AA.
Requereu a notificação do Banco 1... S.A., sita na Avenida ..., ... Lisboa, para identificar as contas bancárias ou em que era autorizada a movimentar contas bancárias, a inventariada AA, - requereu a notificação do Banco 2..., SA, com sede na Rua ..., ... Porto, para identificar as contas bancárias ou em que era autorizada a movimentar contas bancárias, a inventariada AA - requereu a notificação do Banco 3..., com sede na Praça ... -Piso ...,... Lisboa, para identificar as contas bancárias ou em que era autorizada a movimentar contas bancárias, a inventariada AA - requereu a notificação da cabeça de casal para esclarecer a instituição bancária em que se encontra sedeada a conta a que alude na verba n.º 1; - requereu a notificação da entidade bancária que vier a ser indicada pela cabeça de casal para juntar aos autos extractos do saldo existente à data da morte da inventariada, do saldo existente à presente data, e dos movimentos bancários desde 1 de Janeiro de 2019.

O cabeça de casal nos autos veio responder, dizendo que o dinheiro se encontrava depositado no Banco 1..., S.A. e quanto às demais contas bancárias, não existem os saldos bancários indicados pelo interessado no Banco 1..., Banco 2... ou no Banco 3....

Após ofício remetido pelo Tribunal veio o Banco de Portugal dar conhecimento das contas que existiam, sendo certo que, como refere o Tribunal a quo, apenas duas contas se encontram ainda não encerradas, e as demais foram encerradas antes da morte da inventariada.

O reclamante veio insistir, dizendo que a inventariada e o marido detinham mais de €150.000 em depósitos, requerendo a notificação do Banco 1..., S.A., com sede na Avenida ..., ..., Edifício ..., ... ..., para juntar aos autos os extractos de movimentos das seguintes contas bancárias da titularidade de AA, com o NIF ..., referentes aos seguintes períodos:
- conta à ordem com o IBAN ... desde o mês de Agosto de 2020
– data em que a falecida e o marido foram viver com a interessada EE – até dia 6-4-2022 - data da morte da falecida;
- conta de instrumentos financeiros com o n.º ... de 12-03-2015 a 12-03-2016.
Mais requereu a notificação do Banco 4... S.A. com sede na Av. ..., ..., ... Lisboa, para juntar aos autos os extractos de movimentos das seguintes contas bancárias da titularidade de AA, com o NIF ..., referentes aos seguintes períodos:
- conta com o n.º ... de 21-01-2017 a 21-01-2018;
- conta com o n.º ... de 23-03-2020 a 23-03-2021;
- conta com o n.º ... de 25-01-2018 a 31-07-2018;
- conta com o n.º ... de 30-07-2018 a 31-10-2018;
- conta com o n.º ... de 25-10-2018 a 25-10-2019;
- conta com o n.º ... de 19-10-2019 a 19-10-2020.

O Sr. Juiz determinou a notificação deste interessado para vir explicar o motivo pelo qual pretendia informação de movimentos bancários anteriores ao falecimento da inventariada, e não somente o valor dos saldos à data do falecimento, em 10 dias.

O reclamante veio dizer que a inventariada possuía avultadas poupanças depositadas em contas bancárias, nomeadamente em contas a prazo e aplicações financeiras, como é do conhecimento do reclamante e resulta em parte da informação junta pelo Banco de Portugal. À presente data, como resulta da informação prestada pelo Banco de Portugal, existe apenas uma conta à ordem que é a que foi relacionada sob a verba n.º 1. O reclamante tem conhecimento que essas poupanças avultadas foram retiradas das referidas contas bancárias, sendo-o também antes da morte da inventariada, tendo conhecimento que uma dessas operações de débito bancário no montante de € 60000,00 ocorreu no ano de 2018. Pelo exposto, importa apurar esses débitos e o destino que lhes foi dado.

De seguida, o Sr. Juiz proferiu o seguinte despacho: “Veio nestes autos o interessado CC apresentar reclamação da relação de bens trazida à lide pelo cabeça-de-casal BB, clamando pela existência de diversas contas bancárias cujos saldos não teriam sido relacionados nestes autos, clamando que a falecida e o cabeça-de-casal detinham mais de 150.000,00€ em poupanças. Obtida informação do Banco de Portugal, indicou este a existência de duas contas não encerradas ainda, encontrando-se as restantes, todas no Banco 4..., encerradas em datas anteriores ao falecimento da inventariada AA, em 6 de abril de 2022, sendo o encerramento mais recente datado de 23-03-2021. Pretende o reclamante obter os movimentos das contas encerradas ocorridos num intervalo de tempo localizado entre 21-01-2017 a 23-03-2021, bem como os extratos de movimentos ocorridos na conta à ordem com o IBAN ... desde agosto de 2020, quando alegadamente a falecida e o marido foram viver com a interessada EE, até à data da morte da inventariada, bem como da conta de instrumentos financeiros com o n.º ... de 12-03-2015 a 12-03-2016. Ora, o que se visa neste processo de inventário é clarificar o valor do património hereditário à data do falecimento, esclarecendo-se se houve qualquer sonegação de bens, o que claramente não se compagina com o labor que o reclamante pretende obter destes autos, porventura visando apurar se desde os tempos de 2015 houve valores impropria ou abusivamente gastos pelo cabeça-de-casal ou pela interessada EE. Para tal, terá de se socorrer dos meios comuns, como previsto no 1093.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, indeferindo-se, assim, o esforço probatório requerido.”

RECURSO
CC, interessado nestes autos, não se conformando com o despacho, veio do mesmo interpor RECURSO

Após alegações, apresenta as seguintes

CONCLUSÕES

I) No requerimento de reclamação contra a relação de bens, o recorrente acusou a falta de relacionação de saldos bancários e requereu a notificação do Banco de Portugal para identificar as instituições bancárias em que a inventariada detinha contas, bem como a notificação do Banco 1... S.A., para o mesmo efeito, devendo este ainda indicar os saldos à data do óbito da inventariada em 6/4/2022, e os movimentos bancários desde 1/1/2019 até à presente data.

II) O Tribunal determinou que se oficiasse por ora apenas ao Banco de Portugal nos termos requeridos, tendo este remetido informação donde constam duas contas ainda abertas, sendo uma no Banco 1... e outra no Banco 4..., e diversas contas encerradas antes da morte da inventariada, na sequência da qual, por sua vez, o recorrente, em 6-9-2024, requereu, pela segunda vez, a notificação do Banco 1... para prestar informação relativamente a contas abertas e requereu também a notificação do Banco 4... para prestar informação relativamente a contas encerradas, o que veio a ser indeferido pelo Tribunal, que também remeteu o recorrente para os meios comuns, recorrendo-se destas decisões.

III) A não ser a junção pelo cabeça De casal de um extracto quanto à conta à ordem e informação sobre a conta de instrumentos financeiros cuja existência foi revelada pelo extracto junto pelo Cabeça de casal e não pela informação prestada pelo Banco de Portugal, nada foi ainda indagado relativamente a saldos correspondentes à soma de € 150.000,00 que o reclamante sabe que os seus pais tinham de poupanças.

IV) Tendo o cabeça de casal apenas junto um extracto actual de uma conta bancária, entende-se porém que a informação sobre o saldo actual e o saldo à data do óbito das contas ainda não encerradas deve ser oficiada directamente ao banco.

V) A remessa para os meios comuns decidida pelo Tribunal é prematura, na medida em que não estavam ainda esgotadas as diligências probatórias que se afiguram como relevantes e úteis com vista a dirimir a reclamação à relação de bens, e, por isso, a matéria de facto ainda não se revela complexa, na medida que não estão juntos aos autos os elementos requeridos que permitiriam aferir dessa complexidade.

VI) A tramitação do processo de inventário afigura-se, por ora, ainda adequada a indagar da questão da existência das poupanças e do seu paradeiro, sendo, nesta fase, essencialmente documental, bastando ordenar:
-a notificação do Banco 4... (conta a prazo Banco 4...-...) e do Banco 1...(conta à ordem n.º ... e conta de instrumentos financeiros n.º ...) para juntar aos autos informação sobre as contas bancárias da inventariada que ainda se encontrem abertas, designadamente saldo actual e à data do óbito, e movimentos bancários desde 1/1/2019 até à presente data – sendo que existe uma conta que consta do Banco 1... mas não do Banco de Portugal;
- a notificação do Banco 4... para juntar aos autos os extractos bancários das seguintes contas encerradas:
*conta n.º ... –restringindo-se agora ao extracto relativo ao mês de Janeiro de 2018;
* conta n.º ... – extractos de 23-3-2020 a 23-3-2021;
* conta n.º ... – extractos de 25-01-2018 a 31-07-2018;
* conta n.º ... – extractos de 30-07-2018 a 31-10-2018;
* conta n.º ... – extractos de 25-10-2018 a 25-10-2019;
* conta n.º ... – extractos de 19-10-2019 a 19-10-2020.

VII) A remessa para os meios comuns reveste-se de carácter excecional, já que a regra e o princípio que vigora é o de que é no inventário que devem ser decididas definitivamente todas as questões de facto de que a partilha dependa, pois só assim cumpre o processo de inventário a sua função que lhe vem assinalada no artigo 1082 al. a) e b) do CPC.

VIII) Para tanto, havendo litígio sobre o activo ou o passivo, devem no âmbito do processo de inventário ser efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, Determina pois o artigo 1105 n.º 3 do CPC, o que não sucedeu nos presentes autos, pois não tendo o Tribunal ordenado que se diligenciasse pela obtenção da prova documental em falta, não se pode concluir que se esgotaram as diligências probatórias sumárias, a desenvolver no próprio processo de inventário.

IX) Destarte, deve procurar resolver inclusive as questões cuja matéria de facto se afigura complexa, desde que as limitações de prova do processo de inventário não diminuam as garantias de defesa que as partes teriam numa acção declarativa comum, sendo que, apenas neste caso, em que o processo de inventário ofereça menores garantias para as partes, é que haverá remessa, conforme dispõe o artigo 1093 n.º 1 do CPC.

X) Ora, a prova nesta fase é essencialmente documental e o processo de inventário permite a mesma actividade probatória que o processo declarativo comum, sendo até que o recorrente não tem outra forma de obter tais informações, se não pela via do presente processo de inventário, dado que, litigando com apoio judiciário, não dispõe de recursos para efectuar uma escritura de habilitação de herdeiros e proceder ao pagamento dos elevados custos cobrados pela Banca no que toca à obtenção de extractos bancários, pelo que a remessa para os meios comuns, no caso concreto, não garante antes limita, os direitos de acesso, informação e obtenção de documentação, ao impor um ónus de um novo processo,o qual não prescinde,para sua organização, de tal informação prévia.

XI) Apenas, após terem sido juntos aos autos, os requeridos elementos documentais, e de as partes sobre eles se terem pronunciado, estará o Tribunal habilitado a decidir da complexidade da matéria de facto e das garantias proporcionadas pelo processo de inventário.

XII) O que está em causa nestes autos, não é a existência de uma situação complexa, que não se compadeça com uma discussão sumária e que afete a garantia das partes, mas antes a recusa pelo Tribunal de diligências de prova sumárias e que correspondem à actividade instrutória mais básica de um processo de inventário.

XIII) Ao indeferir os meios de prova requeridos e ao remeter o recorrente para os meios comuns, o Tribunal violou os artigos 1082 n.º a) e b), 1093 n.º 1 e 1105 n.º 3 do CPC.

XIV)Impõe-se que sejam revogadas as duas doutas decisões e sejam substituídas por outra que ordene a notificação do Banco 1... e do Banco 4... nos termos supra referidos em VI, sendo que, após ser junta tal documentação aos autos e as partes se terem pronunciado sobre ela, disporá o Tribunal dos elementos necessários para ponderar a remessa para os meios comuns.

Concedendo V.ªs Ex.ªs provimento ao presente recurso e revogando as duas decisões supra referidas, farão V.ª Ex.ªs Justiça!

Não houve contra-alegações.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. A DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
No caso vertente, em face das conclusões do recurso, a questão a decidir prende-se com a bondade da decisão de remeter os interessados para os meios comuns no que toca às quantias monetárias pertencentes à inventariada e que não foram relacionadas.

III. FUNDAMENTAÇÃO

A. FACTOS

Os constantes do relatório supra.

B. O DIREITO

Preceitua o artigo 1093º do Código de Processo civil que “1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns. 2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.
A jurisprudência é profícua a propósito deste tema.
A este propósito, podemos ver o Acórdão da Relação de Guimarães de 23.03.2023, tirado no processo 62/20.4T8VRL.G1” (…) Todavia, podem suscitar-se no âmbito do processo de inventário questões de outra natureza, designadamente conexas com os bens relacionados e/ou com direitos de terceiros para cuja resolução se revelem inadequados os constrangimentos inerentes ao processo de inventário (cf. art. 1091º, n.º 1, quando remete para o regime dos incidentes da instância), cuja tramitação difere substancialmente da prevista para o processo comum ou para outros processos especiais. Nestas situações, embora a apreciação de tais questões não seja excluída em absoluto do processo de inventário, segundo a regra geral do art. 91º, n.º 1, o litígio pode envolver larga indagação fáctica ou a produção demorada de meios de prova, podendo justificar a remessa dos interessados para os meios comuns. (…) Destacam-se os casos em que para a apreciação das questões se revele inadequada a tramitação do processo de inventário para assegurar as garantias dos interessados, tendo em conta designadamente as restrições probatórias ou a menor solenidade associada a uma tramitação de cariz incidental. Tal poderá ocorrer, por exemplo, quando esteja em discussão a área ou os limites de um imóvel envolvendo divergências com terceiros, a arguição da invalidade da venda de bens relacionados no processo de inventário, a invocação por parte de terceiro ou de um herdeiro, da aquisição por usucapião de um bem relacionado (cf. nº 5 do art. 1105º), a alegação da acessão industrial imobiliária sobre um imóvel relacionado (cf. art. 1339º CC) ou a dedução de um crédito ou de uma dívida da herança relacionada com a realização de benfeitorias”. A “resolução, no âmbito do processo de inventário, de questões de natureza incidental obedece a uma tramitação menos solene do que a consagrada para o processo comum e mesmo para certos processos especiais, designadamente no que concerne aos meios probatórios admissíveis (arts. 1091 e 1105º, n.º 3), o que poderá justificar que não sejam sacrificados os valores da segurança e da justiça em função da maior celeridade na conclusão do processo de inventário. Para o efeito, será importante apreciar as razões apresentadas, quer no sentido da resolução incidental das questões, quer dos benefícios da remessa para os meios comuns”. E mais adiante: “a opção de remessa para os meios comuns não pode ser orientada por meras razões de comodidade ou de facilitismos, apenas se justifica quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do inventário se revele inadequada, por implicar, designadamente, uma efectiva redução das garantias dos interessados, por comparação com o que pode ser alcançado através dos meios comuns”. A decisão incidental das reclamações em sede de inventário não pressupõe necessariamente que as questões suscitadas possam ser objeto, pela sua simplicidade, de uma indagação sumária, mediante apenas certos tipos de prova, “maxime” documental, seguida de decisão imediata: a regra é a de que o tribunal da causa tem competência para dirimir todas as questões que importem à exata definição do acervo hereditário a partilhar, podendo no entanto, excecionalmente, em caso de particular complexidade da matéria de facto a apreciar – e para evitar redução das garantias das partes –, usar da possibilidade prevista no estatuído no n.º 1 do art. 1093º do CPC. E faz sentido que assim seja, que seja destacada na lei a complexidade da matéria de facto a apreciar – e não a matéria jurídica –, dado que é a prova da matéria de facto subjacente às questões suscitadas (que as partes têm o ónus de alegar e provar), que pode tornar-se mais difícil para as partes, com as necessárias limitações das provas a produzir no incidente do processo de inventário, questão também realçada no n.º 1 do art. 1093º do CPC, de que a inconveniência da apreciação da matéria de facto implique a redução das garantias das partes. Ora, no caso concreto, estando em causa a reclamação contra a relação de bens, mais especificamente discutindo-se a titularidade/propriedade dos saldos bancários referentes às verbas números 1, 2, 3, 4 e 5 da relação de bens, e analisando o requerimento de reclamação [refª ...48 (22/06/2020)], a resposta da cabeça de casal [ref.ª ...31 (21/09/2020)], bem como a resposta dos inventariantes [ref.ª ...96 (08/10/2020)], constata-se que o incidente em apreço, no tocante àquela concreta questão em discussão, não envolve larga ou extensa indagação fáctica.(…) Quanto à extensão da prova a produzir, sem embargo de outros meios de prova que se possam revelar adequados à demonstração dos factos controvertidos, na questão em apreço assume especial predominância a prova documental – muita dela já coligida nos autos –, que aqui pode e deve ser apreciada. E, no tocante à prova documental, é irrelevante estarmos perante um incidente de reclamação à relação de bens no âmbito de um processo de inventário, visto que a valoração que se impõe ao julgador sobre esse concreto meio de prova não difere da que é devida num processo comum. Isto para dizer que daí não decorre diminuição das garantias das partes. (…) No contexto em apreço é irrelevante a eventual complexidade da matéria de direito em discussão no incidente (na decisão recorrida apodada como “matéria concretamente em discussão”, atinente à “titularidade das quantias constantes dos depósitos bancários” e à “proveniência das verbas”), visto que, no tocante à remessa para os meios comuns, sendo uma previsão de exceção, a lei mandar atender apenas à especial complexidade da matéria de facto subjacente à questão. Acresce que, como resulta dos autos e fruto das diligências tendentes à recolha dos elementos com vista à decisão da reclamação contra a relação de bens, o presente processo já vai longo (instaurado em 2020) e tem sido sujeito a diversos incidentes. O tempo que demorará a produzir a prova neste incidente não será por certo maior do que o tempo de espera pelo trânsito em julgado duma ação com processo comum. E tendo em conta o manancial dos elementos probatórios já recolhidos não se mostra curial inutilizar o tempo já decorrido e impor às partes a dedução duma acção comum, com todos os custos e desvantagens que daí decorrem, sujeitando-as a um novo calvário na recolha dos elementos probatórios junto das instituições bancárias, o que por regra se revela moroso. “
Acórdão da Relação do Porto de 10.10.2024, tirado no processo 538/22.9T8ESP-C.P1 I - O novo modelo do processo de inventário continua a prever a remessa das partes para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão prejudicial não seja compatível com a sua apreciação incidental, nomeadamente porque as limitações decorrentes do disposto nos artigos 292º a 295º do CPC (aplicáveis ex vi do art.º 1091º) afectariam as garantias das partes. II - A remessa dos interessados para os meios comuns só tem justificação quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do processo de inventário se revele inadequada. III - Para que isso suceda é necessário que a tramitação do processo implique uma efectiva diminuição das normais garantias que estão asseguradas às partes no processo declarativo comum.

Não podemos deixar de citar o Acórdão da Relação de Lisboa de 24.10.2024, tirado no processo 464/20.6T8CSC-A.L1-2 e com o qual estamos de acordo. Assim, pode ler-se: “ (…) O tribunal apenas deve remeter os interessados para os meios comuns, quando as questões prejudiciais a resolver, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, tal como expressamente previsto quer no disposto no art.º 1092.º n.º 1 al. b), quer no art.º 1093.º n.º 1 do CPC, não contemplando como razão para o efeito a eventual complexidade na resolução das questões de direito. 3. O despacho do juiz de remeter as partes para os meios comuns não é uma decisão discricionária, já que objetivamente vai levar não só um protelamento da decisão, mas também à sujeição das partes a novas despesas e incómodos com um novo processo, apenas se justificando se a decisão incidental se revela inconveniente ou desadequada, atenta a complexidade da matéria de facto subjacente, pela compressão das garantias das partes, sendo a regra a de que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantam, como prevê o art.º 91.º n.º 1 do CPC.”

Como nos dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil anotado, vol. II, pág. 544, em anotação ao art.º 1092.º do CPC: “Em princípio, o inventário tem potencialidade para apreciar todas as questões de facto e de direito pertinentes, sem necessidade de recurso aos meios processuais comuns. (…) o facto de a lei aludir à complexidade no apuramento da matéria de facto significa que não se justifica a suspensão a eventual complexidade na resolução de questões de direito.”
No mesmo sentido também se pronuncia Carla Câmara, in O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial, pág. 132 quando refere: “A decisão de qualquer questão, seja ela relativa à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, ou a qualquer outra questão, cabe ao tribunal onde o processo se inventário corre seus termos. É este tribunal, onde corre o processo de inventário, que tem competência para dirimir todas as questões atinentes à definição do acervo hereditário a partilhar e dos interessados pelos quais vai ser partilhado aquele acervo. A remessa das partes para os meios comuns ocorre excecionalmente.”
O despacho do juiz de remeter as partes para os meios comuns não é uma decisão discricionária, já que objetivamente vai levar não só um protelamento da decisão, mas também à sujeição das partes a novas despesas e incómodos com um novo processo, apenas se justificando se a decisão incidental se revela inconveniente ou desadequada, atenta a complexidade da matéria de facto subjacente, pela compressão das garantias das partes, sendo a regra a de que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantam, como prevê o art.º 91.º n.º 1 do CPC.
No âmbito do processo de inventário, as questões controversas que se coloquem seguem a tramitação dos incidentes, o que pode não se mostrar adequado para assegurar as garantias dos interessados, já que desde logo tem associada uma maior simplificação e limitação probatória do que o processo comum, podendo suscitar-se questões, que pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto subjacente não se coadunem com uma tramitação mais simplificada.
São estes os critérios que têm de estar na base da decisão da remessa dos interessados para os meios comuns, o que implica a avaliação em concreto das questões a dirimir e dos factos que têm subjacentes, salientando-se que não constitui fundamento para remeter os interessados para os meios comuns a insuficiência de meios de prova apresentados pelas partes com vista ao esclarecimento dos factos que alegam – neste sentido, pronunciou-se o Acórdão do TRL de 30-06-2011 no proc. 2083/05.8TMLSB-B.L1-1 in www.dgsi.pt quando refere: “Ora, a lei não faz depender a remessa dos interessados para os meios comuns do facto de algum dos interessados não ter carreado para os autos, quando o podia ter feito, meios de prova conducentes à demonstração dos factos, mas apenas se for de admitir que nos meios comuns tais factos poderão ser mais largamente investigados.”
Se se avaliar em concreto as questões a dirimir e os factos a ela subjacentes invocados pelo interessado na oposição à relação de bens e na reposta do cabeça de casal, não pode deixar de verificar-se que não há grande complexidade na matéria de facto que se impõe apurar.

Neste processo, em face da relação de bens apresentada, somos, desde logo, levados a concluir que a parte mais relevante do património da inventariada, na óptica do reclamante, seria a quantia existente em depósitos e que não está relacionada.

Tratando-se de uma questão em que apenas se impõe a prova documental, analisando os elementos que constam dos autos e a controvérsia entre o cabeça de casal e o reclamante relativamente à existência, ou não, de quantias em depósito que tiveram um destino desconhecido antes da morte da inventariada, não nos parece, pelo menos nesta fase, de qualificar, como complexa, a matéria de facto que lhes está subjacente.
Por outro lado, não vemos como podem as partes ver comprimidas as suas garantias com uma decisão incidental.

Neste sentido, Acórdão da Relação do Porto de 25.11.2024, tirado no processo nº 18911/23.3T8PRT.P1 “I – É nulo, por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito, nos termos do disposto nos artigos 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, al. b), do C.P.C., um despacho cujo teor é o seguinte: “uma vez que não existe acordo quanto às verbas n.ºs 2 a 6 do passivo e que as questões subjacentes às verbas n.ºs 2, 5 e 6 do passivo, assim como as questões subjacentes à anulação dos testamentos revestem de grande complexidade, quer no que respeita aos factos quer no que respeita ao direito, e que o seu conhecimento e apreciação por via incidental neste inventário é desaconselhável por implicar uma redução das garantias das partes, remeto as Interessadas para os meios comuns quanto à discussão das indicadas verbas”.
II – Num processo de inventário, a decisão de remessa das partes para os meios comuns, prevista no art.º 1093.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, C.P.C., deve ser devidamente ponderada e justificada. III – Tal decisão não pode integrar um subterfúgio para o tribunal se abster de decidir sem justificação cabal – dado que tal remessa implica que a matéria de facto seja complexa e que a decisão a tomar implique redução de garantia das partes. IV – Para se poder chegar, ou não, a tal conclusão tem de haver uma apreciação crítica dos meios de prova que constem já dos autos, em conformidade ao disposto, entre outros, no art.º 1109.º, n.º 3, e no art.º 1105.º, n.º 3, do C.P.C.
(…) Num processo de inventário, a decisão de remessa das partes para os meios comuns, prevista no artigo 1093.º, n.º 1, do C.P.C., tem de ser devidamente ponderada (e justificada), pois não pode integrar um subterfúgio para o tribunal se abster de decidir sem justificação cabal – dado que tal remessa implica que a matéria de facto seja complexa e que a decisão a tomar implique redução de garantia das partes. Voltando, novamente a título de exemplo, às questões colocadas nas verbas n.º 2 e n.º 6 do passivo: mesmo que se considerasse haver complexidade (e não consideramos) de facto e/ou de direito a decisão a título incidental é passível de suscitar alguma perda de garantias paras as partes? – Não vemos como…, tanto mais que no despacho em crise não se concretiza nenhuma, como, por exemplo, limitação no número de testemunhas que poderão ser inquiridas sobre um facto? Algum meio de prova a indeferir por motivo de tramitação incidental, como, o indeferimento de realização de alguma perícia ou outro meio de prova? – ora, nada foi referido (aliás, muitos dos factos são passíveis de prova documental, apenas…).”
Não podemos estar mais de acordo com a posição plasmada neste aresto.
Na verdade, as questões que se prendem com a existência de dinheiro pertencente à inventariada e que terá sido retirado das contas bancárias desta, não nos parecem de especial complexidade.
A maioria da prova (para não dizermos a totalidade) é efectuada por meio de documentos, sendo que a prova testemunhal terá uma relevância pontual. Não nos parece haver redução de garantias por parte dos interessados.
O Sr. Juiz entendeu que “ Ora, o que se visa neste processo de inventário é clarificar o valor do património hereditário à data do falecimento, esclarecendo-se se houve qualquer sonegação de bens, o que claramente não se compagina com o labor que o reclamante pretende obter destes autos, porventura visando apurar se desde os tempos de 2015 houve valores impropria ou abusivamente gastos pelo cabeça-de-casal ou pela interessada EE”
Não é referido, no despacho em crise, nenhum dos fundamentos previstos na lei para essa tomada de posição.
A remessadas partes para os meios comuns implica a conclusão que a temática a discutir no âmbito do processo de inventário é demasiado complexa e a decisão incidental reduziria as garantias das partes. Só fazendo a devida apreciação crítica dos meios probatórios convocados é possível tomar essa decisão.
A lei não tutela a remessa dos interessados para os meios comuns com base em intuições/conjecturas relativas à complexidade da questão.
Se bem que a “complexidade” seja um conceito que permite várias interpretações e possa tornar difícil a tarefa do julgador, tal não acontecerá relativamente à perda de garantia das partes, que é um dado objectivo e que cumpre justificar.

Em face do que ficou exposto, consideramos que não estão reunidos os pressupostos para a remessa das partes para os meios comuns, nos termos previstos no art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC,, impondo-se a revogação da decisão recorrida que o determinou, devendo os autos prosseguir com as diligências probatórias requeridas relativamente às contas bancárias com vista a uma decisão no âmbito do processo de inventário.

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto e em consequência revoga-se a decisão recorrida na parte em que remete os interessados para os meios comuns, devendo os autos prosseguir com as diligências probatórias requeridas.

Custas pelo cabeça de casal – artigo 527º nº 2 do Código de Processo Civil.

Registe e notifique.
DN

Porto, 04 de Junho de 2025.
(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)
Por expressa opção da relatora, não se segue o Acordo Ortográfico de 1990.
Raquel Correia de Lima
Márcia Portela
Rui Moreira