I – Sendo a posse definida no artigo 1251.º do Código Civil como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, obviamente que também o proprietário, titular pleno e exclusivo dos direitos de usar, fruir e dispor da coisa (artigo 1305.º do Código Civil), e a quem a lei atribui, entre o mais, o poder de exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa a restituição do que lhe pertence (1311.º, n.º 1, do Código Civil), perante actos de esbulho violento que o privam de exercer poderes de facto sobre a coisa sua, pode lançar mão do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, a fim de recuperar tais poderes de facto.
II – A providência de restituição provisória de posse constitui uma medida cautelar específica que, de acordo com a nossa lei, tem a sua justificação na violência cometida pelo esbulhador e que visa, sem exigências adicionais para além das afirmadas nos artigos 1279.º do Código Civil e 377.º do Código de Processo Civil, a rápida reposição do direito violado. O seu decretamento não se encontra, por isso, dependente da alegação, nem da prova, da existência de uma situação de receio fundado de que venha a ser causada lesão grave e dificilmente reparável ao direito do requerente, ou seja, do requisito conhecido pelo nome do brocado latino ‘periculum in mora’.
Relator: José Nuno Duarte; 1.º Adjunto: Carlos Gil; 2.º Adjunto: Mendes Coelho.
Acordam os juízes signatários no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
AA moveu procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse contra BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ, requerendo a desocupação imediata e a restituição ao requerente da posse sobre o prédio sito em ... à ..., da União das Freguesias ... e ... descrito na Conservatória do Registo Predial de V.N. Gaia sob o n.º ...9 e inscrito na matriz sob os artigos urbanos ...67 e ...82 e os artigos rústicos ...59 e ...27.
Para o efeito, o requerente alegou que os requeridos ocupam, sem título que os legitime, o prédio que adquiriu e do qual é proprietário, e que se recusam a sair e colocaram lá uma vedação, mais sucedendo que, quando lhes exigiu o abandono do imóvel, foi por eles insultado e ameaçado de morte, mais tendo sido vítima de uma tentativa de agressão.
Após a produção da prova indicada pelo requerente, em 20 de Junho de 2024, foi proferida, sem audiência prévia da parte contrária, decisão judicial cujo dispositivo foi o seguinte:
a) Ordeno aos requeridos desocupação imediata e restituição provisória ao requerente da posse sobre o prédio misto denominado “...”, sito em ... à ..., da União das Freguesias ... e ..., com a área de 13.392,3 m2, sito em ... à ..., da União das Freguesias ... e ... e descritas na C. R. P. de V.N. Gaia sob o n.º ...9 constituído pelo prédios urbanos Art.ºs ...67 e ...82 e rústicos Art.ºs ...59 e ...27, se necessário, com o auxílio da força policial, em particular, da parcela de tal prédio que os requeridos ocupam;
b) Notifique os requeridos através da autoridade policial para se absterem de ocupar a parcela do prédio misto identificado na alínea anterior, assim como em 1 a 4 do elenco dos factos provados, e de praticarem qualquer acto ofensivo da posse do requerente.
Posteriormemente, BB, FF, GG, EE, JJ, KK e mulher LL, MM e mulher HH, II e mulher NN, vieram deduzir oposição ao procedimento cautelar, invocando que o facto de os três últimos requeridos (KK, HH e II) terem sido demandados desacompanhados dos respectivos cônjuges é gerador de ilegitimidade passiva, mais sustentando que não se encontram preenchidos os pressupostos necessários para a manutenção da decisão que decretou o procedimento cautelar, já que os factos que estão na sua base foram adulterados. Os oponentes peticionaram ainda a condenação do requerente como litigante de má-fé.
Para efeitos de sanação da excepção de ilegitimidade passiva arguida pelos oponentes, foi admitida a intervenção principal dos cônjuges dos requeridos KK, HH e II.
Depois de ter sido produzida a prova oferecida pelos oponentes, foi proferida a decisão prevista no artigo 372.º, n.º 3, do Código do Processo Civil, a qual terminou com o seguinte segmento dispositivo:
«Atentos os motivos expostos:
a) Julgo improcedente a oposição deduzida e, em consequência, decido manter a providência decretada;
b) Julgo não verificada a litigância de má fé do requerente.
Custas a cargo dos requeridos (...)»
Pelo exposto e, designadamente pelo que Vossas Excelências suprirão deve ser concedido provimento a este recurso de apelação, revogando-se a douta sentença recorrida, com substituição por outra decisão que se coadune com as conclusões já expostas e decrete a improcedência da providência cautelar, por forma a ser feita JUSTIÇA.
O recurso foi admitido por despacho, que, correctamente, o classificou como sendo de apelação e lhe atribuiu efeito meramente devolutivo, ordenando a sua subida imediata, nos próprios autos, a este Tribunal da Relação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, sem prejuízo da apreciação por parte do tribunal ad quem de eventuais questões que se coloquem de conhecimento oficioso, bem como da não sujeição do tribunal à alegação das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), a questão a tratar é apenas uma:
→ se se encontram demonstrados nos autos os pressupostos legais necessários para que seja mantida a decisão que decretou a providência cautelar de restituição provisória da posse do imóvel ao requerente.
A) Dos factos
Uma vez que os recorrentes não impugnaram a decisão sobre a matéria de facto em conformidade com aquilo que se encontra previsto no artigo 640.º do Código do Processo Civil, encontra-se estabilizada nos autos a matéria de facto que foi fixada pelo tribunal a quo na decisão recorrida.
Assim, compulsada esta decisão, constata-se que, relativamente à factualidade alegada na oposição, foram considerados provados os seguintes factos:
1. Os requeridos II e NN cultivam horta junto à Rua ... há, pelo menos, vinte anos, à vista de todos, sem oposição ou contrapartida.
2. A requerida HH cultiva a horta, junto à Rua ..., que os seus pais já cultivavam há, pelo menos, vinte anos, à vista de todos, sem oposição ou contrapartida.
3. A requerida FF cultiva horta junto à Rua ... há dezanove anos.
4. A requerida JJ cultiva horta junto à Rua ... há, pelo menos, nove anos.
5. Os requeridos BB, EE e KK cultivam horta, junto à Rua ..., que os seus pais já cultivavam há, pelo menos, vinte anos.
6. Os requeridos cultivam em tais hortas batatas, cebolas e hortaliças.
7. Os requeridos plantaram em tais terrenos, há, pelo menos, vinte anos, árvores de fruto, como limoeiros e macieiras, e vinha.
8. Os requeridos construíram nos terrenos que ocupam, há, pelo menos, vinte anos, barracões, alguns com estrutura em tijolo, e cobertura para guardar alfaias agrícolas e animais.
Ao invés, da matéria de facto alegada na oposição, foram julgados não provados os seguintes factos:
A. A requerida JJ cultiva horta junto à Rua ... há, pelo menos, vinte anos.
B. A requerida FF cultiva horta junto à Rua ... há, pelo menos, vinte anos.
C. Os terrenos objecto do presente procedimento cautelar são ocupados com culturas agrícolas e animais que contribuem para o sustento dos núcleos familiares dos Requeridos.
D. Em reunião havida no início de Fevereiro de 2024 entre o requerente e os requeridos, OO negou que os terrenos ocupados fizessem parte dos prédios objecto do negócio de compra e venda com o requerente.
E. Os requeridos ocupam os referidos terrenos com o intuito de que os terrenos lhes pertencem.
F. Os requeridos cultivam as hortas com todo o cuidado e limpeza, sem a presença de detritos.
G. O requerente alegou factos que bem sabia serem falsos.
Mais considerou o tribunal a quo que, por ter sido abalada alguma da factualidade anteriormente fixada, ficaram ainda provados os seguintes factos:
1. Há, pelo menos, vinte anos, o requerente e os seus antecessores vêm utilizando o referido prédio, cortando mato e árvores existentes, e arrendando parte do mesmo,
2. À vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição, convictos de não lesar direitos alheios e de exercerem o direito de propriedade sobre o prédio.
- Da petição inicial:
1) O Requerente é dono e legítimo proprietário do prédio misto denominado “...”, com a área de 13.392,3 m2, sito em ... à ..., da União das Freguesias ... e ... e descritas na C. R. P. de V.N. Gaia sob o n.º ...9 constituído pelos seguintes prédios:
a. - Urbanos Art.º ...67 e ...82;
b. - Rústicos Art.º ...59 e ...27.
2) O aludido prédio foi desanexado do n.º 32.966, folhas 85, B-103 (1ªsecção), conforme descrição predial n.º ...83.
3) E encontra-se descrito e registado, sob o n.º ...9/20091118, da freguesia ..., na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, a favor do aqui requerente.
4) O prédio adveio à propriedade, domínio e posse do Autor por escritura de compra e venda outorgada, em 20 de Fevereiro de 2020, no Cartório Notarial da Dra. PP, com OO, QQ, RR e SS.
5) Após a aquisição de tal prédio misto, o aqui Requerente foi informado pela GAIURB - aquando do pedido de licença de construção de habitação própria e permanente do Requerente de que haveria uma sobreposição de áreas com o IGFSS.
6) No âmbito do processo n.º ...6/22.8T8VNG que correu termos no Juiz... do Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, o IGFSS veio a reconhecer a posse do aqui requerente sobre o prédio em causa, tendo ficado fixadas a área total do terreno e as limitações e confrontações do terreno em causa.
7) Os requeridos edificaram no prédio acima identificado barracões sem a anuência do proprietário do prédio nem autorização camarária, mais concretamente, na parte em que o terreno do Requerente confina com o denominado Bairro ..., pertencente ao IGFSS.
8) Os requeridos são maioritariamente inquilinos do IGFSS, no Bairro ....
9) Aquando da existência do processo de sobreposição de áreas, os Requeridos sempre referiram que a parcela de terreno que ocupavam pertencia ao IGFSS e não ao Requerente.
10) Sobreposição essa que não ocorria naquela parte do terreno mas noutra e que veio, depois por acordo entre Requerente e IGFSS, a ser definida.
11) Os Requeridos foram informados pelo IGFSS de que não era proprietário daquela parte do terreno, mas sim o aqui Requerente.
12) Posteriormente, o requerente deparou-se com a ocupação do seu terreno por parte dos Requeridos JJ, HH, DD e BB.
13) No dia 05-03-2024, com o auxílio dos seus funcionários, o requerente começava a vedar o seu terreno quando foram confrontados com ameaças de morte e à integridade física e insultos por parte dos Requeridos JJ, HH, DD e BB.
14) Aqueles Requeridos erigiram à volta de parte do terreno propriedade do Requerente (e que corresponde aproximadamente a 1/6 da área do mesmo), vedações rudimentares com estacas, chapas em amianto e rede de metal com mais de um metro de altura, que aí persistem na presente data.
15) Além disso, os Requeridos colocaram na propriedade do Requerente vários lixos domésticos e não domésticos, fazendo de parte do espaço ocupado um depósito do lixo a céu aberto, o que continua.
16) Era intenção do Requerente vedar também a parte da parcela de terreno que é usada como depósito do lixo.
17) Porém, foi impedido de vedar tal parcela de terreno pelos aqui Requeridos com recurso a ameaças de morte e injúrias dirigidas ao Requerente.
18) O Requerido BB, de modo exaltado e empunhando uma motosserra ligada, dirigiu-se ao requerente e aos seus funcionários, ao mesmo tempo que dizia que os matava se tentassem entrar na área vedada.
19) Ao mesmo tempo, os Requeridos BB, EE e DD insultavam o requerente com as seguintes expressões: “vigarista, mentiroso, falsificador.”;
20) O Requerente solicitou a intervenção da PSP, a qual compareceu nesse mesmo dia, tomando conta da ocorrência, o que deu origem ao NPP ...49/2024.
21) No dia 06-03-2024, o Requerente tomou conhecimento de que, sem o seu consentimento, ordem ou autorização, a Requerida EE estava a ocupar parte do seu prédio.
22) Nessa altura, abordou a Requerida EE, instando-a a abandonar aquele local.
23) Foi ainda chamada a PSP ao local, que tomou conta da ocorrência, dando origem ao NPP ...01/2024.
24) No dia 21-01-2024, entre as 16h30 e as 17h30, já os Requeridos EE e DD se haviam dirigido ao Requerente, dizendo-lhe que era “um vigarista, falsificador de documentos, um falso, aldrabão.”;
25) Nesse mesmo dia, o Requerido DD, exaltado, com o propósito de impedir o requerente de exercer a posse sobre a parcela de terreno ocupada pelos requeridos, abeirou-se do Requerente, encostou bruscamente o seu dedo à cabeça do requerente e afirmou que ia agredi-lo, tendo sido impedido de o fazer pelos demais presentes.
26) O Requerente e seu Arquiteto TT, por diversas vezes, informaram os Requeridos de que tal porção do terreno pertence ao requerente.
27) O Requerente exibiu aos Requeridos e ao seu mandatário, o Ilustre Dr. UU, documentação a fim de comprovar tal propriedade do terreno.
28) O Requeridos, ao vedarem a parte do terreno do requerente que ocupam, ao ameaçarem o requerente de morte e ao tentarem agredi-lo pretenderam obstar a que este pudesse exercer a posse inerente ao seu direito de propriedade sobre aquela parcela do seu terreno.
29) O Requerente enviou cartas registadas com aviso de recepção a cada um dos Requeridos, exigindo que desocupem o terreno em apreço.
30) Há, pelo menos, vinte anos, o requerente e os seus antecessores vêm utilizando o referido prédio, cortando mato e árvores existentes, e arrendando parte do mesmo,
31) À vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição, convictos de não lesar direitos alheios e de exercerem o direito de propriedade sobre o prédio.
- Da oposição:
32) Os requeridos II e NN cultivam horta junto à Rua ... há, pelo menos, vinte anos, à vista de todos, sem oposição ou contrapartida.
33) A requerida HH cultiva a horta, junto à Rua ..., que os seus pais já cultivavam há, pelo menos, vinte anos, à vista de todos, sem oposição ou contrapartida.
34) A requerida FF cultiva horta junto à Rua ... há dezanove anos.
35) A requerida JJ cultiva horta junto à Rua ... há, pelo menos, nove anos.
36) Os requeridos BB, EE e KK cultivam horta, junto à Rua ..., que os seus pais já cultivavam há, pelo menos, vinte anos.
37) Os requeridos cultivam em tais hortas batatas, cebolas e hortaliças.
38) Os requeridos plantaram em tais terrenos, há, pelo menos, vinte anos, árvores de fruto, como limoeiros e macieiras, e vinha.
39) Os requeridos construíram nos terrenos que ocupam, há, pelo menos, vinte anos, barracões, alguns com estrutura em tijolo, e cobertura para guardar alfaias agrícolas e animais.
- Da oposição:
A. A requerida JJ cultiva horta junto à Rua ... há, pelo menos, vinte anos.
B. A requerida FF cultiva horta junto à Rua ... há, pelo menos, vinte anos.
C. Os terrenos objecto do presente procedimento cautelar são ocupados com culturas agrícolas e animais que contribuem para o sustento dos núcleos familiares dos Requeridos.
D. Em reunião havida no início de Fevereiro de 2024 entre o requerente e os requeridos, OO negou que os terrenos ocupados fizessem parte dos prédios objecto do negócio de compra e venda com o requerente.
E. Os requeridos ocupam os referidos terrenos com o intuito de que os terrenos lhes pertencem.
F. Os requeridos cultivam as hortas com todo o cuidado e limpeza, sem a presença de detritos.
G. O requerente alegou factos que bem sabia serem falsos.
- Da petição inicial:
H. O requerente e os seus antecessores actuam conforme descrito em 30) e 31) há cinquenta ou mais anos.
I. Os antecessores dos Requeridos celebraram contrato de arrendamento não verbal com o falecido Sr. VV, na década de 1950, ao abrigo do qual, mediante pagamento de percentagem das colheitas efetuadas, cultivaram pequenas hortas domésticas em parte do terreno objecto deste procedimento cautelar.
B) Do direito
Cumpre decidir se a apelação, face à factualidade que se encontra assente, deve proceder ou se, diferentemente, deve haver lugar à confirmação da decisão recorrida que manteve a ordem de desocupação imediata e de restituição provisória ao requerente da posse sobre o prédio sito em ... à ..., da União das Freguesias ... e ... descrito na Conservatória do Registo Predial de V.N. Gaia sob o n.º ...9 e inscrito na matriz sob os artigos urbanos ...67 e ...82 e os artigos rústicos ...59 e ...27.
Como se sabe, a restituição provisória da posse constitui um meio expedito e eficaz que, atento o princípio da excepcionalidade da autotutela de direitos consagrado no artigo 1.º do Código de Processo Civil, o legislador coloca ao alcance dos titulares de uma situação possessória que pretendem obter a devolução da posse de coisas que lhes foram violentamente retiradas, dessa forma prevenindo a persistência e o agravamento da situação danosa que poderia eternizar-se caso tivesse de aguardar-se a resolução do litígio pelos meios processuais comuns. Previsto em termos substantivos no artigo 1279.º do Código Civil, este procedimento encontra-se regulado nos artigos 377.º e seguintes do Código de Processo Civil e, conforme resulta destes preceitos legais, requer a demonstração de três requisitos cumulativos para a sua procedência: a posse, o esbulho e a violência.
No que diz respeito à posse, a mesma encontra-se definida no artigo 1251.º do Código Civil como o “[p]oder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou a qualquer outro direito real de gozo”. Emerge daqui que a posse não é apenas a detenção física da coisa, antes se afirmando como um poder de facto juridicamente relevante ou, se se preferir, como uma situação de facto que, tendo autonomia em relação ao direito de propriedade, merece protecção legal específica. Na nossa lei, a tutela possessória encontra-se atribuída à generalidade dos titulares de direitos reais de gozo, sem prejuízo de haver casos específicos em que é estendida também a determinados titulares de direitos de raiz obrigacional. Diferentemente, não são considerados possuidores, mas sim meros detentores ou possuidores precários, aqueles que não têm a intenção de agir como beneficiários de um direito real, aqueles que se aproveitam da tolerância do titular, e ainda, todos os que possuem em nome de outrem.
O esbulho, por sua vez, verifica-se sempre que alguém é privado, total ou parcialmente, contra a sua vontade, do exercício de retenção ou fruição do objecto possuído ou da possibilidade de continuar esse exercício [1].
Finalmente, para efeitos da restituição provisória da posse exige-se a prova de comportamentos do esbulhador pautados pela violência, matéria relativamente à qual se têm perfilado na doutrina e na jurisprudência dois entendimentos diversos: um mais exigente, para o qual a violência relevante deve ser necessariamente exercida contra a pessoa do possuidor; outro, que se basta com a violência exercida sobre a própria coisa. Esta última posição parece ser a mais consentânea com a realidade e a justa tutela dos interesses em questão e a que melhor se articula com a definição de violência que, dentro do mesmo quadro legal, está subjacente ao disposto nos artigos 1261.º e 255.º do Código Civil, preceitos dos quais emerge que a violência juridicamente relevante, neste domínio, pode traduzir-se, também, no exercício de uma acção física sobre as coisas com aptidão para constranger outrem a suportar uma situação contra a sua vontade [2].
Focando agora a nossa atenção no caso dos autos, emerge claramente dos factos provados que o requerente dispõe de poderes de facto sobre o prédio cuja restituição reclama decorrentes da titularidade do respectivo direito de propriedade. Dada a ocupação de parte do terreno pelos requeridos, nalguns casos desde há bastante anos, pode-se questionar se a actuação de facto do requerente, em absoluto rigor, se encontra dotada da totalidade dos elementos objectivos necessários para a caracterização de uma situação possessória sobre as parcelas que se encontram ocupadas. No entanto, sendo a posse definida no artigo 1251.º do Código Civil como “o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”, obviamente que também o proprietário, titular pleno e exclusivo dos direitos de usar, fruir e dispor da coisa (artigo 1305.º do Código Civil), e a quem a lei atribui, entre o mais, o poder de exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa a restituição do que lhe pertence (1311.º, n.º 1, do Código Civil), perante actos de esbulho violento que o privam de exercer poderes de facto sobre a coisa sua, pode lançar mão do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, a fim de recuperar tais poderes de facto [3].
Reconhecida ao requerente a faculdade de defender a fruição do imóvel que lhe pertence, encontra-se também demonstrado que, no caso em apreço, o mesmo está a ser alvo de actos de esbulho praticados pelos requeridos, já que estes persistem ao ocupar parte do prédio em causa, sem disporem de qualquer título e sem que lhes assista qualquer direito legítimo a manter essa ocupação, pois decorre da matéria de facto apurada que a situação de facto provocada apenas decorreu do aproveitamento pelos requeridos da tolerância dos anteriores titulares dos terrenos, não tendo sido a mesma acompanhada da necessária convicção de serem beneficiários de um verdadeiro direito real.
Finalmente, encontra-se também provado que a actuação usurpadora por parte dos requeridos tem sido acompanhada de violência, bem expressa nas injúrias e nos diversos actos intimidatórios que se apurou terem sido dirigidas ao requerente, bem como na forma ostensiva como os requeridos, para impedirem o requerente de vedar o seu prédio, colocaram no local vários lixos domésticos e não domésticos e aí erigiram, vedações rudimentares com estacas, chapas em amianto e rede de metal com mais de um metro de altura.
Encontram-se, pois, preenchidos todos os requisitos de que, conforme acima referido, depende o decretamento da providência que foi requerida nos autos.
Reforçando-se esta conclusão, esclareça-se que não assiste razão aos recorrentes quando, para sustentar a revogação da decisão recorrida, alegam que não se encontra caracterizada nos autos uma situação em que exista receio de que possa haver uma lesão grave do direito invocado pelo requerente. Com efeito, a providência de restituição provisória de posse constitui uma medida cautelar específica que, de acordo com a nossa lei, tem a sua justificação na violência cometida pelo esbulhador e que visa, sem exigências adicionais para além das afirmadas nos artigos 1279.º do Código Civil e 377.º do Código de Processo Civil, a rápida reposição do direito violado [4]. O decretamento da providência não se encontra, por isso, dependente da alegação, nem da prova, da existência de uma situação de receio fundado de que venha a ser causada lesão grave e dificilmente reparável ao direito do requerente, ou seja, do requisito conhecido pelo nome do brocado latino ‘periculum in mora’ [5].
Concluindo-se, por tudo o exposto, que a decisão recorrida deve ser confirmada, resta dizer que, devido ao seu decaimento, os recorrentes devem ser responsabilizados pelo pagamento das custas da apelação (cf. artigo 527.º, n.º 1, do Código do Processo Civil).
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em:
a) negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida;
b) condenar os recorrentes no pagamento das custas da apelação.
SUMÁRIO
(Elaborado pelo relator nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.)
……………………………………
……………………………………
……………………………………
(redigido pelo primeiro signatário segundo as normas ortográficas anteriores ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990)
Porto, 2025/6/4.
José Nuno Duarte
Carlos Gil;
Mendes Coelho.
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[1] Cf., com bastantes citações doutrinais, o Ac. RC 6-02-2024, proc. 1715/23.0T8CTB.C1, rel. Maria Catarina Gonçalves.
[2] Cf., entre muitos outros: Ac. STJ 9-11-2022, proc. 150/22.2T8PTG.E1.S1, António Barateiro Martins; Ac. RP 12-09-2022, proc. 1507/22.4T8MTS.P1, rel. Joaquim Moura; Ac. RL 26-01-2023, proc. 4683/22.2T8OER.L1-2, rel. Inês Moura; Ac. RG 2-05-2024, proc, 591/23.8T8PTL.G1, Anizabel Sousa Pereira .
[3] Neste mesmo sentido, e em conformidade com diversas outras pronúncias jurisprudenciais (v.g. Ac. RL 16-10-2012, p. 163/12.2TVLSB-A.L1, rel. Roque Nogueira), pode ler-se no Ac. RP 12-09-2011, proc. 83/11.8TBVLC.P1, rel. Mendes Coelho: “Porque a posse, enquanto exercício de poderes de facto sobre uma coisa, não deixa de ser uma faculdade inerente ao próprio direito de propriedade, a providência cautelar de restituição provisória de posse pode também ser pedida na dependência duma acção em que o possuidor faça valer o direito de propriedade ou outro direito real de gozo”. Também, na senda de outros doutrinadores, escreve António Santos Abrantes Geraldes: “[A]pesar de intimamente ligada às acções possessórias, nada obsta a que a restituição provisória da posse seja aproveitada como instrumento adequado a tutelar, a final, o direito de propriedade ou outro direito real posto em causa com a conduta do requerido.” – Temas da Reforma do Processo Civil, IV vol., Coimbra: Almedina, 2001, p. 25.
[4] Devido a esta especificidade, já Alberto dos Reis, perante a norma similar constante do artigo 400.º do Código de Processo Civil de 1939, escrevia “[S]e agora reflectirmos sobre os requisitos que acabam de ser apontados e os aproximarmos dos traços característicos das providências cautelares, havemos de concluir que a restituição provisória de posse não é rigorosamente uma providência cautelar. É, sem dúvida, uma providência preventiva e conservatória; mas não é uma providência cautelar, porque lhe falta a característica do periculum in mora” – Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição – Reimpressão, Coimbra Editora, 1982, p. 670.
[5] Cf., entre muitos outros: Ac. RP 17-06-2024, proc. 21854/23.7T8PRT.P1, rel. Manuel Domingos Fernandes; AC RE 26-10-2023, proc. 340/23.0T8GDL.E1, rel. Maria Adelaide Domingos; Ac. RG 8-06-2017, proc. 219/16.2T8PVL-A.G1, rel. João Diogo Rodrigues. Na doutrina, vide António Santos Abrantes Geraldes, cit, IV, p. 51.