I - A exoneração do passivo constitui uma medida especial de proteção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três a seis anos posteriores ao encerramento deste, ficando o devedor durante esse período (designado período da cessão) obrigado a ceder ao fiduciário o rendimento disponível que venha a auferir, dele se excluindo o “montante necessário ao sustento digno do insolvente”, a que se reporta o artº 239º do CIRE.
II - Porque o legislador não estabelece um “limite mínimo” do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e família, este conceito deva ser avaliado e ponderado, em cada caso particular, atendendo-se ás reais necessidades do insolvente e do respetivo agregado familiar, tendo-se por referência o valor da remuneração mensal mínima garantida
III - Se for fixado como rendimento indisponível o valor da remuneração mensal mínima garantida e o insolvente demonstrar a necessidade de dispor mensalmente da quantia correspondente, é adequado considerar que o rendimento indisponível deve salvaguardar também a disponibilidade dos valores dos subsídios de férias e de Natal, pois que estes valores se integram no conceito de remuneração mensal mínima garantida.
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis - Juiz 2
Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízes Desembargadores Adjuntos:
Rui Moreira
Maria da Luz Seabra (com voto de vencida)
SUMÁRIO:
………………………………
………………………………
………………………………
Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:
I-RELATÓRIO:
AA, maior, casado, portador do cartão de cidadão n.º ..., com data de validade até 04/06/2031, e titular do NIF n.º..., residente no Largo ..., ..., ... ..., ... Oliveira de Azeméis, apresentou-se à insolvência, tendo requerido a exoneração do passivo restante.
A insolvência foi declarada por sentença de 16.1.2025.
No relatório a que se refere o artº 155º do CIRE, O Sr. Administrador judicial deu o seu parecer positivo à exoneração do passivo restante.
Por sentença de 25.3.2025, por insuficiência da massa insolvente, nos termos dos arts. 230º n.º 1 al. d) e 232º, ambos do C.I.R.E., foi declarado encerrado o processo.
No relatório a que se refere o artº 155º do CIRE, o Sr. Administrador judicial deu o seu parecer positivo à exoneração do passivo restante.
Foi proferido despacho datado de 25.3.2025, que decidiu:
“- admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo/a/s insolvente/s;
- determinar que durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o/a/s devedor/a/es venha/m a auferir se considera cedido ao/à Sr/a. Administrador/a da Insolvência, o/a qual nomeio como Fiduciário/a, em acumulação de funções de Administrador/a de Insolvência nos termos e para os efeitos do disposto no art. 240º, do CIRE (cfr. ainda o art. 239º, do mesmo diploma).
- que integra o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer tipo ao/à/s insolvente/s, com exclusão do mencionado no n.º 3, do art. 239º do citado diploma.
- fixar em 1 salário mínimo nacional mensal a quantia referida na alínea b) i) do citado n.º 3 do art. 239º do CIRE.
Custas pela massa insolvente.”
Ficou ainda consignado nesse despacho o seguinte:
“Para se apurar o rendimento disponível a ceder pelo/a/s insolvente/s durante o período de cessão, deve-se multiplicar, em cada ano de cessão, o valor do rendimento indisponível fixado por 12 meses, devendo ser cedida a quantia que, tendo em consideração o rendimento anual líquido obtido pelo/a/s insolvente/s, incluindo subsídios de férias e de natal, exceder tal montante (p. ex. valor fixado como rendimento indisponível € 600,00 x 12 meses = € 7.200,00; rendimento anual líquido obtido = €8.000,00; quantia a ceder = € 800,00).”
Inconformado, o insolvente AA, veio interpor recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“I. O douto despacho Refª. CITIUS: 137927763, de 25/03/2025 deve ser parcialmente revogado;
II. O Tribunal a quo fez uma análise sábia e sensata relativamente ao requerimento de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente, e decidiu bem ao considerar verificados os seus pressupostos admitindo liminarmente o mesmo;
III. No entanto, não pode o insolvente concordar com o valor que lhes foi atribuído para sustento mínimo do seu agregado familiar, e consequentemente com o rendimento a ceder ao fiduciário;
IV. Fixou o douto despacho em €870 (oitocentos e setenta euros) a quantia referida na alínea b), i) do n.º 3 do art.º 239 do CIRE;
V. Em virtude do alegado supra e sua consequência, é o de nos levar a concluir que atenta a prova carreada aos autos, nomeadamente o rendimento do agregado familiar, as despesas do agregado, a ajuda de terceiros, indica-nos que o rendimento disponível foi fixado incorretamente;
VI. No presente processo foi declarada a insolvência de uma pessoa singular, que tem como fonte de rendimento o seu vencimento no valor de €870 (oitocentos e setenta euros);
VII. Tendo ainda que suportar as despesas mensais inevitáveis ao seu sustento, nomeadamente os serviços essenciais, a renda da casa, transportes, alimentação, água, vestuário, saúde, eletricidade, água, gás;
VIII. Como é que se afigura razoável a fixação do rendimento disponível do agregado em 1 S.M.N. x 12.
IX. Conclusão, a presente insolvência não é para a recorrente um “fresh start”, porquanto a própria insolvência exige da recorrente a falência técnica;
X. Tal cria uma subversão do próprio processo de insolvência, o que não nos parece de todo o modo razoável e justo.
XI. Assim, tal despacho deve ser revisto e alterado para um rendimento disponível dentro de 1 + 1/2 S.N.M X 14, ou em alternativa, que se mantenha o rendimento disponível de 1 S.M.N. multiplicado por 14 meses, ao invés dos atuais 12
XII. PELO EXPOSTO A QUANTIA DE €870 (OITOCENTOS E SETENTA EUROS) MENSAIS, INSTITUÍDA PELO DOUTO TRIBUNAL A QUO, NÃO É SUSCETÍVEL DE GARANTIR AO AGREGADO FAMILIAR DO INSOLVENTE UMA VIDA MINIMAMENTE DIGNA, NOS TERMOS DOS ART.º 1 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, E 239 DO CIRE, DEVENDO O DOUTO DESPACHO RECORRIDO SER REVOGADO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE IMPONHA COMO RENDIMENTO INDISPONÍVEL A RETER PELO
INSOLVENTE A QUANTIA DE 1+1/2 S.M.N X 14 MESES, OU EM ALTERNATIVA, QUE SE MANTENHA O RENDIMENTO DISPONÍVEL DE 1 S.M.N. MULTIPLICADO POR 14 MESES, AO INVÉS DOS ATUAIS 12.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, APELA-SE QUE, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, SENDO AQUELA DECISÃO REVOGADA PARCIALMENTE E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE DETERMINE QUE O RENDIMENTO INDISPONÍVEL Do RECORRENTE DEVE SER FIXADO EM 1 + 1/2 S.M.N X 14 MESES, OU EM ALTERNATIVA, QUE SE MANTENHA O RENDIMENTO DISPONÍVEL DE 1 S.M.N. MAS MULTIPLICADO POR 14 MESES.”
Não foram juntas contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo – cfr. artigos 627º, 629º, 631º, 638º, 644º e 647º do Código de Processo Civil e artigo 14º do CIRE.
Colhidos os vitos, cumpre decidir.
II-OBJETO DO RECURSO:
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
Assim, a questão decidenda é a de saber se deve ser alterado o rendimento disponível do insolvente para um rendimento disponível superior ao fixado (de 1 + 1/2 S.N.M X 14), ou em alternativa, se mantenha o rendimento disponível de 1 S.M.N. mas multiplicado por 14 meses, ao invés dos atuais 12 meses.
III-FUNDAMENTAÇÃO:
No despacho recorrido, foram julgados provados os seguintes factos:
a) O insolvente reside com a esposa.
b) Pagam € 170,00 de renda.
c) Suportam mensalmente despesas com telecomunicações, alimentação, limpeza, higiene pessoal, vestuário, calçado, transportes, saúde, consultas médicas e medicamentos.
Não se deram como provados os concretos valores das despesas referidas em c) porquanto as mesmas não se mostram suficientemente documentadas e/ou são variáveis, sendo, contudo, considerado na fixação do valor do rendimento indisponível que o/a/s insolvente/s terá/ão de suportar tais despesas.
IV-APLICAÇÃO DO DIREITO:
A exoneração do passivo restante é uma medida especial de proteção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três a seis anos posteriores ao encerramento deste.
Tal como decorre do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2003, de 18 de Março, é uma solução que se inspirou no modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente.
O devedor mantém-se por um período de cessão adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não tenham sido integralmente satisfeitos e obriga-se, durante esse período, no essencial, a ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário, que afetará os montantes recebidos. Em termos processuais, não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial a determinar que, no referido período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade designada por fiduciário (cf. art.º 239.º, n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Esta medida especial de proteção do devedor pessoa singular traduz-se assim, esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste.
A exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores.
A excecionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e proteção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excecional.
Durante o período de cessão, o Insolvente encontra-se sujeito a um conjunto de deveres, nos termos elencados no art.º 239.º do CIRE.
Com efeito, durante o período da cessão, segundo as alíneas a) e c) do n.º 4 do art. 239.º do CIRE, o devedor fica obrigado nomeadamente a informar o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que lhe isso lhe seja requisitado e a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão.
Caberá depois ao tribunal, findo o prazo da cessão, proferir decisão final da exoneração, concedendo-lhe ou não a exoneração do passivo restante, sendo que esta concessão importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida (cfr. artigos 244º e 245º do CIRE).
Só no final do período da cessão, será então proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência (cfr. art. 244º) e, sendo a mesma concedida, dar-se-á, de acordo com o art. 245º do CIRE, a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, mas com exceção dos legalmente excluídos (nº 2 do art.245º do CIRE).
O nº 2 do art. 239º do CIRE dispõe que, «O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.»
E o nº 3 da mesma norma estabelece que «Integram o rendimento disponível os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o art. 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: (i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; (ii) o exercício pelo devedor da sua atividade profissional; (iii) outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.»
Está em causa no presente recurso aferir precisamente o montante que deverá integrar o rendimento disponível do insolvente, que seja razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno e do seu agregado familiar, o qual não deverá exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional- al b) citada.
A exclusão do rendimento do que seja razoavelmente necessário para o sustento mínimo do devedor e do seu agregado familiar, segundo Luís Carvalho Fernandes e João Labareda [1] radica na proteção constitucional da dignidade humana.
No Acórdão do Tribunal Constitucional de 09/07/2002, afirma-se o seguinte: "O salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o "mínimo dos mínimos" não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim também uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez, cujo montante não seja superior ao salário nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respetivo beneficiário."
Daí que, porque o legislador não estabelece um “limite mínimo” do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e família, este conceito deva ser avaliado e ponderado, em cada caso particular, atendendo-se ás reais necessidades do insolvente e do respetivo agregado familiar. E, para tanto, a jurisprudência maioritária tem optado por atender, nesta matéria, a critérios objetivos adjuvantes do juízo a formular, designadamente ao salário mínimo nacional.
Explica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/16,[2]:"Jogam-se no art.º 239.º, n.º 3, b)-i), do CIRE - cessão do rendimento disponível - dois interesses conflituantes: um, aponta no sentido da proteção dos credores dos insolventes/requerentes da exoneração; outro, na lógica da "segunda oportunidade" concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período de cinco anos a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos."
Na ponderação do equilíbrio entre o interesse do credor à prestação e o interesse do devedor consistente no direito à manutenção de um nível de subsistência digno, tal como dissemos, deve ter-se por valor de referência mínima o salário mínimo nacional.
Por sua vez, o montante mensal retido para o insolvente no período da cessão não visa assegurar o mesmo padrão de vida que este tinha antes da situação de insolvência, uma vez que ele terá de ajustar a sua situação socioeconómica à condição especial em que se encontra, designadamente à máxima defesa dos interesses patrimoniais dos credores.
Na ponderação casuística a que procedeu o tribunal recorrido, decidiu que o insolvente deverá ser ceder aos credores da insolvência o rendimento que obtenha, que em cada um dos doze meses do ano, ultrapasse o equivalente a um salário mínimo nacional, designadamente o valor dos subsídios de férias e de Natal e na proporção em que os mesmos ultrapassem este valor.
Ou seja, por um lado fixou em 1 salário mínimo nacional mensal a quantia referida na alínea b) i) do citado n.º 3 do art.239º do CIRE, por outro, determinou que para se apurar o rendimento disponível a ceder pelo/a/s insolvente/s durante o período de cessão, deve-se multiplicar, em cada ano de cessão, o valor do rendimento indisponível fixado por 12 meses, devendo ser cedida a quantia que, tendo em consideração o rendimento anual líquido obtido pelo/a/s insolvente/s, incluindo subsídios de férias e de natal, exceder tal montante.
O recorrente discorda daquelas decisões.
Porém, quanto à primeira parte – fixação de um salário mínimo nacional mensal a excluir da cessão de rendimentos, a discordância (pretende que seja fixado um rendimento disponível superior correspondente a 1x ½ o rendimento mínimo nacional), não se baseia, a nosso ver, em qualquer fundamento atendível.
Com efeito, mostra-se salvaguardado o valor correspondente ao salário mínimo nacional (que atualmente é de 870,00€), que constitui a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, não tendo o insolvente logrado provar que tenha se suportar custos de sobrevivência, que justifiquem que seja ultrapassado este valor (não demonstrou ter outras pessoas a cargo e o valor da renda mensal mostra-se compatível com o rendimento fixado).
O valor de um salário mínimo, que ascende atualmente (em 2025) a 870,00€ por mês, é suficiente para garantir a satisfação das despesas reconhecidas ao requerente, pois que o valor sobrante depois de paga a renda se tem, segundo uma presunção de normalidade, apta a suportar despesas de água, eletricidade e alimentação, bem como outras que ocasionalmente se possam revelar necessárias, tais como as de vestuário.
Ou seja, na ponderação e compatibilização possível de todos os interesses em presença, mostra-se adequado fixar o rendimento indisponível para os credores, a reservar para o insolvente, num montante equivalente ao valor de uma vez o salário mínimo nacional, que permitirá a sua vivência, durante o período de cessão, em condições de mínima dignidade humana.
Nesta parte improcederá, pois o presente recurso de apelação, já que o insolvente pretendia que fosse acrescido ao valor fixado pelo tribunal recorrido ½ do rendimento mínimo nacional.
A segunda questão suscitada diz respeito à integração ou não dos subsídios de férias e de Natal no conceito de rendimento disponível.
No fundo, a questão é de saber se o montante a salvaguardar para o insolvente há-de ser aferido relativamente a 12 ou a 14 meses
Estes subsídios são, como se sabe, um complemento de retribuição do trabalho com a função de auxiliar nas despesas potencialmente acrescidas em época de férias ou no período do Natal.
A forma de contabilização dos valores dos subsídios de férias e de Natal para efeitos de cessão do rendimento disponível deve ser decidida à luz da teleologia e dos interesses em jogo no incidente de exoneração do passivo restante.
Ora, o n.º 3 do art.º 239.º do CIRE é claro quando refere que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor.
A jurisprudência encontra-se muito dividida nesta questão.
Uma parte da jurisprudência[3] defende que os subsídios de férias e de Natal são rendimentos disponíveis do devedor, pelo que deverão por inerência, ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassem o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar.[4]
Confrontados porém, com a declaração de voto de vencido subscrita pelo Sr. Cons. João Cura Mariano, no Ac. do Tribunal Constitucional nº 770/2014 (https://www.tribunalconstitucional.pt /tc/acordaos /20140770.html) entendemos que não podemos deixar de aderir a este entendimento, por ser aquele que, a nosso ver, melhor se adequa ao principio da dignidade da pessoa humana que tem cobertura constitucional, logo no 1º artigo da CRP, que constitui um valor axial e nuclear da Constituição portuguesa vigente, o qual nesse título, terá necessariamente de inspirar e fundamentar todo o ordenamento jurídico.
Pode aí ler-se, o seguinte, a propósito da impenhorabilidade de rendimentos, mas com total pertinência para de cisão a proferir: “(…) Para superar as dificuldades da determinação do que é o mínimo necessário a uma subsistência condigna, o Tribunal Constitucional, relativamente aos rendimentos auferidos periodicamente, impôs a impenhorabilidade das prestações periódicas, pagas a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, quando o executado não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda (Acórdão n.º 177/02, acessível em www.tribunalconstitucional.pt) Aproveitou-se, assim, o facto do salário mínimo nacional conter em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos”, para utilizar esse valor, sujeito a atualizações, como aquele, a partir do qual, qualquer afetação porá em risco a subsistência condigna de quem vive de uma qualquer prestação periódica.
No caso das pensões pagas mensalmente com direito a subsídio de férias e de Natal, a impenhorabilidade tem que salvaguardar qualquer uma das suas prestações, incluindo os subsídios, quando estas têm um valor inferior ao do salário mínimo nacional. E o facto de, nos meses em que são pagos aqueles subsídios, a soma do valor da pensão mensal com o valor do subsídio ultrapassar o valor do salário mínimo nacional, não permite que tais prestações passem a estar expostas à penhora para satisfação do direito dos credores, uma vez que elas, por serem pagas no mesmo momento, não deixam de ser necessárias à subsistência condigna do seu titular.
Não é o momento em que são pagas que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência.
Aliás, quando o Tribunal Constitucional escolheu o salário mínimo como o valor de referência para determinar o mínimo de subsistência condigna teve necessariamente presente que o mesmo era pago 14 vezes no ano, circunstância que tem influência na fixação do seu valor mensal, tendo entendido que o recebimento integral de todas essas prestações era imprescindível para o seu titular subsistir com dignidade. Foi o valor dessas prestações, pagas 14 vezes ao ano, que se entendeu ser estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador.”
Nas concretas circunstâncias do caso, foi fixado ao insolvente, como rendimento indisponível o valor de um salário mínimo. Apurou-se ainda que as suas necessidades mensais consomem integralmente o valor que recebe nesse período de tempo. Não se teve por justificado que devesse manter valor superior.
Porém, devemos admitir em face da exposição feita no voto de vencido, acabada de transcrever, feito no Ac. do Tribunal Constitucional nº 770/2014 citado, que um tal valor deve corresponder àquele que compreende também os montantes que o insolvente venha a receber a título de subsídios de férias e de Natal, pois que estes integram o que na citada declaração de voto se designa como o «…“mínimo dos mínimos” a partir do qual, qualquer afetação porá em risco a subsistência condigna de quem vive de uma qualquer prestação periódica».
Em suma, se se lhe atribui o mínimo, deve entender-se que este mínimo corresponde ao que o próprio legislador pressupôs no conceito de mínimo: o valor que atualmente corresponde a 870,00€ por mês, mas percebido 14 vezes por ano.[5]
Procederá, em conclusão, a apelação nesta parte, cumprindo alterar a decisão recorrida em conformidade, fixando-se como rendimento indisponível a quantia correspondente a uma remuneração mínima mensal garantida, calculada nos termos descritos, ou seja: valor mensal do salário mínimo multiplicado por 14 vezes.
V-DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em conceder parcial provimento à presente apelação, em razão do que a alteram fixando como rendimento indisponível ao insolvente a quantia correspondente ao valor de uma remuneração mínima mensal garantida, multiplicada por catorze vezes.
No mais, se confirma a decisão recorrida.
Custas pela massa insolvente.
Porto, 4 de junho de 2025.
Alexandra Pelayo
Rui Moreira
Maria da Luz Seabra [com voto de vencida:
Voto vencida quanto ao 2º segmento decisório do Acórdão, por considerar que sendo os subsídios de férias e de natal prestações que acrescem à remuneração mínima mensal que foi por nós considerada como suficiente para o sustento minimamente condigno do insolvente, e na medida em que ultrapassam o valor de uma remuneração mínima garantida, valor fixado ao insolvente a título de rendimento indisponível mensal, devem tais subsídios ser incluídos no rendimento a entregar à fidúcia.
Nestes termos, julgaria o presente recurso totalmente improcedente.]
_______________
[1] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 788.
[2] Relator Fonseca Ramos, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Na qual a relatora tem vindo a incluir-se, importando este acórdão uma inflexão da sua posição, pelas razões a seguir apontadas.
[4] Veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão desta Relação de 07/05/18, proferido no Processo n.º 3728/13.1TBGDM.P1 e os Acórdãos da Relação de Coimbra de 11/02/14, proferido no Processo n.º 467/11.1TBVND-C.C1 e de 13/05/14, proferido no Processo n.º 1734/10.7TBFIG-G.C1, disponíveis in www.dgsi.pt.
[5] Ver neste sentido o recente Acórdão desta Relação relatado pelo ora Juiz Desembargador adjunto Rui Moreira de 29.4.2025, proferido no Processo 3175/24.0T8STS-B.P1, disponível in www.dgsi.pt, ao qual se adere.