PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS DE ORTODONTIA
PRESTAÇÃO DE ESCLARECIMENTOS
CONSENTIMENTO
VIOLAÇÃO DA LEGIS ARTIS DEVIDOS
Sumário

I - Se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo, devendo a Relação abster-se de apreciar tal impugnação
II - Num contrato de prestação de serviços médicos de Ortodontia, caracterizado por uma dupla vertente, vertente estética e vertente funcional ou sanitária, na vertente sanitária existe uma obrigação de meios do médico, de utilizar os meios adequados para atingir um certo diagnóstico ou a definir uma terapia, não lhe sendo exigível alcançar qualquer resultado efectivo, ou seja, a cura do paciente.
III - A falta de cumprimento das “leges artis” corresponde ao cumprimento defeituoso, deixando o médico de realizar a prestação a que está vinculado, e incumbindo-lhe provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procedem de culpa.
IV - Se a paciente, em face do que lhe foi proposto, para tratamento de uma cárie, entre um tratamento conservador por desvitalização, ou, em alternativa, a extracção do referido dente, opta pela extracção, não vindo provado que tivesse pedido esclarecimentos mais aprofundados sobre as vantagens e os inconvenientes de cada opção, não existe acto médico imposto ou abusivo, contrário à vontade do paciente, nem negação dos esclarecimentos devidos.
V - Se a paciente não vinha sinalizada como pertencendo a um dos grupos indicados para terapia preventiva (ou profiláctica) com antibióticos, não constando que estivesse afectada das vulnerabilidades inerentes e que disso tivesse informado o médico, não há violação do dever de exercer a profissão de acordo com as leges artis se o médico não prescrever tal terapia previamente à extracção do dente.

Texto Integral

Processo: 1852/18.3T8AMT.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Sumário:
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AA, residente na Rua ..., ..., ... ..., propôs contra:
1) A... SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA, contribuinte fiscal n.º ..., com sede na ..., ... Amarante;
2) BB, médico dentista, com domicílio profissional na sede da 1ª Ré;
3) CC, médico dentista, com domicílio profissional na sede da 1ª Ré;
4) B..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A, com sede na Rua ..., ... Porto.
acção com processo comum, pedindo a condenação réus nos seguintes termos:
a) "Deve a presente acção ser julgada procedente e provada e, em consequência, serem os 1º a 3º RR. condenados a pagar à Autora, solidariamente, a quantia de 35.629,13 (trinta e cinco mil, seiscentos e vinte e nove euros e treze cêntimos) a título de indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela Autora, valor este sempre acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a data da respectiva interpelação de cada um dos referidos Réus, até efectivo e integral pagamento e, ainda, nas custas judiciais e de parte.
b) Caso se venha a declarar o contrato de seguro em causa nos autos como válido e eficaz e como responsável pelo pagamento à Autora o 3. º Réu, segurado da Ré B..., mantendo-se a indemnização peticionada dentro do capital seguro, então deverá a Ré B... ser condenada, em substituição daquele Réu a pagar à Autora o montante global de 35.629,13 por si peticionado, ou outro que venha a ser fixado por sentença, sempre acrescido igualmente dos juros de mora à taxa legal em vigor desde a data da sua interpelação até efectivo e integral pagamento e ainda nas custas judiciais e de parte."
Para tanto, alegou, em resumo, que, em 05.03.2015, dirigiu-se à clínica dentária explorada pela 1.ª R. e na qual os 2.º e 3.º RR. exercem a sua actividade de médicos dentistas, tendo sido atendida pelo 3.º R., que procedeu a uma destartarização e aos procedimentos necessários para um tratamento de branqueamento dentário. Realizados tais procedimentos, no mesmo dia, começou a sentir dor num dente do siso, tendo voltado, no dia seguinte, à clínica, onde o mesmo médico constatou a existência de uma cárie que propôs tratar com a extracção da peça dentária, a que a A. acedeu. Depois desta intervenção, e mesmo tomando a medicação prescrita, ocorreu um quadro de agravamento das dores, tumefacção do rosto e pescoço, razão pela qual, no dia seguintes (07.03.2015), acorreu aos serviços de urgência do Hospital ..., onde foi receitado um antibiótico que a A. tomou. Sentindo-se pior, acabou por recorrer ao Hospital 1... no dia 08.03.2015, onde lhe foi administrada nova medicação, mais sendo indicado que persistisse na toma do antibiótico, o que a A. fez. Dado que o quadro se agravava, em 09.03.2015, dirigiu-se novamente à clínica, onde foi atendida, desta feita, pelo 2.º R. que, constatando que a A. não conseguia abrir a boca, receitou nova medicação e deu a indicação de que regressasse dali a 3 dias. Continuando o quadro doloroso a agravar-se, a A. acabou por se dirigir aos serviços do Hospital 2..., Porto, e após exame objectivo e realização de exames complementares de diagnóstico, acabou por ser submetida a drenagem cirúrgica de abcesso, acabando por ter alta a 13.03.2015. Em razão da factualidade descrita, sofreu danos não patrimoniais decorrentes das dores sentidas, do prejuízo estético (decorrente da cicatriz da cirurgia), do trauma experienciado determinante de um quadro de ansiedade e receio de realizar tratamentos dentários, tudo consequências que provocaram prejuízo que quantifica nas quantias peticionadas e que, tendo sido causadas por actuação dos 2.º e 3.º RR, devem os RR. ser condenados no pagamento das mesmas, tendo este último transferido a sua responsabilidade civil decorrente do exercício de tal actividade para a 4.ª R. por via de contrato de seguro.
Citados os RR., contestaram os 1.ª a 3.º RR., no essencial impugnando por negação motivada a versão da A. e dizendo que a A. optou pela extracção do dente devidamente informada e esclarecida, e que os RR procederam com total adequação e regular procedimento em completa observação das leges artis recomendadas em casos semelhantes, juntando parecer médico nesse sentido. Concluem pela absolvição do pedido.
Contestou igualmente a 4.ª R., no essencial aceitando a existência do contrato de seguro e impugnando por desconhecimento a restante matéria constante da petição inicial. Conclui pela improcedência da acção.
Por requerimento de 21.03.2019, veio a A., em razão do superveniente conhecimento dos contratos de seguro de responsabilidade civil celebrados com os 1.ª e 2.º RR., formular a sua pretensão nos seguintes termos:
" A) Com o sempre Mui Douto Suprimento de V. Ex.a, a presente acção ser julgada procedente e provada e, em consequência, serem os 1° a 3.° RR. condenados a pagar à Autora, solidariamente, a quantia de € 35.629,13 (trinta e cinco mil, seiscentos e vinte e nove euros e treze cêntimos) a título de indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela Autora, valor este sempre acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a data da respectiva interpelação de cada um dos referidos Réus, até efectivo e integral pagamento e, ainda, nas custas judiciais e de parte.
B) Caso se venham a declarar os contratos de seguro titulados pelas três apólices já juntas aos autos pela Ré B..., aqui 4ª Ré, e melhor atrás identificados, como válidos e eficazes, bem como, responsáveis pelo pagamento à Autora os 1.º a 3.º Réu todos segurados da 4.ª Ré B..., mantendo-se a indemnização peticionada dentro do capital seguro, então, deverá, esta seguradora ser condenada, em substituição de todos ou de qualquer um daqueles Réus, a pagar à Autora o montante de €35.629,13 ou outro que venha a ser fixado por sentença, sempre acrescido, igualmente, dos juros de mora à taxa legal em vigor, desde a data da interpelação quanto ao 3.º Réu e desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, quanto à 1.ª e 2º Réus, e ainda nas custas de parte e demais procuradoria"
Designada audiência prévia, foi proferido despacho saneador, prosseguindo com a enunciação do objecto do litígio e selecção dos temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente por não provada e, em consequência, absolveu todos os RR. dos pedidos contra eles formulados.
Inconformada com o decido na sentença, dela veio a autora, interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações pelas seguintes conclusões:
I. Salvo o devido respeito, a Decisão Recorrida incorreu num gravíssimo erro de interpretação dos factos, e, por consequência, num erro de julgamento, mais fazendo uma errada aplicação do direito aos factos provados, tendo violado o disposto nos artigos 70.º, 340.º, 798.º, 799.º, 1154.º, 1156.º, 1161.º do Código Civil e, ainda, 157.º do Código Penal, arts. 44.º, 45.º e 47.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, para além de não ter respeitado os princípios basilares do direito civil português da equidade, adequação e igualdade, consagrados, entre outros, nos arts. 13.º e 20.º da C.R.P.
II. Estando em discussão nos autos a responsabilidade dos Réus na sua actuação perante a Autora, as sequelas que a mesma sofreu foram, na sua maioria, tidas como provadas pelo Tribunal de 1.ª Instância - vide factos provados 45) a 53), à excepção das do foro psíquico, como consta da fundamentação da sentença: designadamente, no que se refere às sequelas de natureza psíquica e relativamente às quais não se constatou qualquer evidência em sede de perícia face ao quadro pré-existente de sintomatologia depressiva (...)."
III. Sucede que, o simples facto de a Autora apresentar um quadro pré-existente de sintomatologia depressiva, não pode, por si só, afastar a existência de danos de natureza psíquica, quando, objectivamente, a mesma sofreu um evento traumático na sua vida, (vide factos provados 18 a 41), do qual resultaram sequelas que o próprio relatório médico concretizou e quantificou, especialmente se as sequelas psíquicas foram expressamente relatadas, quer pela própria, quer pelas testemunhas inquiridas e as mesmas resultam das regras da experiência comum: se uma mulher fica com uma cicatriz no pescoço (vide facto provado n.º 47), e da qual resultou um dano estético de grau 2 numa escala de 7, é natural que sinta complexo, tristeza e desgosto pela mesma, tanto mais que a Autora era uma mulher vaidosa - repare-se que a primeira ida à clínica tinha por objectivo a realização de um procedimento, puramente estético, de branqueamento dentário - (vide facto provado n.º 5).
IV. No caso dos autos, infelizmente, a existência de antecedentes depressivos prévios determinou que a Autora fosse tratada de forma diferente, porque, objectivamente, ninguém acreditou em si.
V. Os Réus dentistas não acreditaram nas queixas da Autora, não as relevando minimamente, como resulta, quer do teor do art. 12.º da Contestação dos Réus, o que se mostra evidente pela forma como a mesma foi inquirida em sede de depoimento de parte, nomeadamente ao minuto 39:52 da gravação das declarações da Autora: -a senhora tem propensão para se sentir angustiada, triste, para sobrevalorizar os acontecimentos que ocorrem na sua vida ou não?", tal como não acreditou o Tribunal, que fez questão de, na sua fundamentação, remeter para tais antecedentes, em vez de apreciar a globalidade da prova.
VI. O Tribunal chega a pôr em causa a credibilidade da testemunha DD, aos minutos 04:34, 06:17 e 10:25 do seu depoimento simplesmente por não acreditar que o mesmo acompanhou a mãe à Clínica, como se tal acompanhamento fosse verdadeiramente impossível e, não obstante, não ter sido inquirida qualquer outra testemunha a propósito desta matéria.
VII. O Tribunal, no facto provado n.º 26, dá como provado que a Autora "não aceitou a realização de exame sob anestesia local", ignorando por completo o facto de, imediatamente antes, (facto provado n.º 23), ter dado como provado que a Autora "não conseguia abrir a boca", o que era essencial para a administração da própria anestesia local.
VIII. Aliás, nos factos provados 26) e 29) consta que a Autora apresentava um "trismus marcado", sendo certo que, as orientações médicas em caso de diagnóstico de trismus são, precisamente, para não ser forçada a abertura do maxilar, sob risco de o mesmo poder, até, fracturar - vide declarações da testemunha Dra. EE, que, além de filha da Autora, é médica, ao minuto 09:40 da gravação do seu depoimento, prestado nos autos em 22 de Setembro de 2022, o qual se revelou muito assertivo do ponto de vista técnico.
IX. Não existiu qualquer "recusa de tratamento", por parte da Autora, mas uma causa objectiva, uma impossibilidade física de abertura da boca, até para administração da própria anestesia.
X. O Tribunal desvalorizou a tese da Autora por via dos seus antecedentes depressivos sem, sequer, dar como provado qualquer facto relacionado com a existência desses mesmos antecedentes, usando dois pesos e duas medidas para a mesma situação, apenas se podendo considerar que se deveriam ter dado como provados os factos n) a bb) da matéria de facto não provada, pese embora, desde o momento em que apresentou a sua Petição Inicial, em 11 de Dezembro de 2018 e o momento da sua inquirição, como parte, em 22 de Setembro de 2022, quase 4 anos depois, a Autora ter melhorado.
XI. Assim sendo, a este propósito, a Autora, aquando da sua inquirição como parte em 22 de Setembro de 2022, cuja gravação faz parte integrante dos autos, prestou ao Tribunal os seguintes esclarecimentos:
● Ao ser questionada acerca de como se sentiu após os factos em causa nos autos, a Autora esclareceu entre o minuto 25:55 e o minuto 26:11 do seu depoimento: "Mal. Sentia-me injustiçada, sentia-me triste, muitos pesadelos, sem forças para sair. Emagreci muito, fiquei muito abatida, mesmo muito, muito abatida".
● Mais esclareceu entre o minuto 26:59 e o minuto 27:22 do seu depoimento que "sentia dor, umas picadas, comichão, não andava...fazia caminhadas, tinha que deixar de fazer, porque transpirava muito e dava muita comichão na zona da cicatriz. Era muito, era uma pessoa cheia, muito vaidosa, porque senão também não queria fazer um branqueamento, certo? Fazia muita impressão, usava lenço para tapar a cicatriz. Apanhei o jeito de estar assim, os meus filhos chamavam a atenção."
● Uma vez que o sistema de gravação apenas regista som, e não imagem, perante a afirmação supra, acerca do "jeito" que a Autora apanhou, que a mesma exemplificou com um gesto, levando a mão ao pescoço, foi-lhe questionado, expressamente, ao minuto 27:23 das suas declarações se "Apanhou o jeito de pôr a mão na parte da cicatriz?", ao que a mesma respondeu ao minuto 27:24 "Tapar a cicatriz, tapar a cicatriz, sim."
● Referiu, ainda, a Autora a partir do minuto 27:35 das suas declarações que "Sim, tive muita dificuldade, sim, muita dificuldade. Tive que tomar medicação para dormir, tive que tomar medicação para dormir, e até que cheguei, depois, os meus filhos notaram que eu estava muito em baixo, muito triste, e foi mesmo a minha filha que quis que eu fosse a um psiquiatra.", mais esclarecendo ao minuto 28:07 que teve medo de morrer porque sentia muita dificuldade em respirar.
● Logo de seguida, ao minuto 28:43 afirmou que, desde a ocorrência dos factos em causa nos autos, que ficou com medo de ser tratada por medicina dentária.
● Concluindo ao minuto 29:00 das suas declarações que, ainda hoje, quando pensa no assunto, se sente "Muito nervosa. Mexe muito comigo, pensando nos meus filhos, pensando naquela situação. No que fui desvalorizada, me senti desvalorizada."
● Sem esquecer que, a propósito dos seus antecedentes de sintomatologia depressiva, a Autora foi expressamente questionada de como se sentia antes da ocorrência dos factos em causa, tendo respondido ao minuto 36:28 que estava "Muito bem" e que "Até que eu queria fazer o branqueamento porque eu ia ser madrinha do casamento do meu afilhado. E saiu todo, ao contrário, até que eu já não queria ser madrinha. Já não queria sair de casa. Ou melhor ainda, eu não queria que ninguém me visse."
● Ou seja, como se reitera ao minuto 36:52 das declarações, na concreta altura dos factos a Autora não estava deprimida nem havia qualquer "problema de depressão pendente", a Autora, nas suas próprias palavras do minuto 36:57, "Estava óptima. estava".
XII. Tudo isto foi confirmado pelos filhos da Autora, inquiridos como testemunhas:
● Logo ao 22:21 do seu depoimento, a Dra. EE, filha da Autora, explicou que: "porque a minha mãe tem tendência a fazer cicatriz colóide. E é uma zona muito exposta. Ela é um bocadinho vaidosa, então estava-lhe a fazer alguma confusão e ela fez, aplicou os pensos específicos, o gel, a pomada, isso tudo conforme recomendação";
● A partir do minuto 25:02, depois de explicar com rigor técnico e objectividade embora não sem uma grande emoção patente na voz, as causas médicas da dificuldade em respirar relatada pela sua mãe e o medo que a mesma sentiu de morrer, explicou que: "Sim, mas sobretudo o abcesso, porque poderia fazer uma compressão da parte das vias respiratórias, e mesmo a própria evolução da infecção que estava a descer, porque ela tinha a inflamação da parte da pele, portanto, a infecção descendo, daí poderia evoluir para uma mediastinite, causava-lhe isso. (...) No fundo nós temos algo a crescer entre as nossas estruturas normais, que pode expandir para o exterior, e daí ela ter aquele edema, mas também faz compressão das estruturas internas. Daí aquela sensação de compressão e de maior dificuldade em respirar. Sim, e claro que é difícil ela não conseguindo abrir a boca, mais difícil se torna. E ela teve essa noção, e eu sei que sim. E durante esse período ela não queria acabar... Ela contactava connosco lá em casa, não queria sair, ela tinha o casamento do afilhado, que ia ser madrinha de casamento também, não queria ir. A minha mãe passava a tapar a cicatriz, usava sempre os lenços, mas ela não dormia bem, tinha pesadelos. ela ficou... Traumatizada? Sim, ela não era a minha mãe. Eu não posso dizer que ela era a pessoa que após este evento..."
Ao minuto 27:16 acrescenta que: "Nós costumávamos fazer caminhadas, até principalmente eu mais ao fim de semana, porque era quando estava em casa. Ela evitava. Não só por não querer o contacto social, mas também por... Causava-lhe desconforto a própria transpiração, picava. É desconfortável e inicialmente dá mesmo aquela dor. Teve pesadelos. Sempre que saía. usava o lenço."
● Pouco depois, ao ser expressamente questionada acerca da existência de alguma depressão ou qualquer problema do foro psicológico no momento da intervenção dentária em causa nos autos, ao minuto 30:29 do seu depoimento a testemunha nega, esclarecendo "Não, nós estávamos bem, eu estava a trabalhar, o meu irmão estava a estudar, estava no curso que queria, ela em casa tem uma vida familiar estável, sim, com o meu pai, tudo, estava... é a minha mãe.;
● Concluiu, então, a testemunha, ao minuto 40:29 do seu depoimento, depois de lhe ser perguntado se os factos em causa, nestes autos, causaram ansiedade à Autora e se ela consegue falar deles com normalidade, dizendo: "Não, não. Demorou bastante tempo até ela se libertar do lenço e daquelas ... (cicatrizes?). Sim, mantém esse desconforto. como é óbvio, porque é normal, é uma lesão que é crónica. Continua com receio de ir ao dentista. sim, mas, pronto, já passaram 7 anos."
● E, voltando a ser questionada, mais tarde, acerca do estado psicológico da mãe, à data do evento em causa nos autos, esclarece, ao minuto 48:23 que esta "Teve um síndrome depressivo que estava controlado"
XIII. Por sua vez, o filho da Autora, DD, inquirido nos autos como testemunha a 24 de Abril de 2022, cuja gravação se encontra nos autos, a propósito dos danos sofridos pela mãe, referiu:
● Questionado se a mãe, depois do sucedido, voltou ao normal, ao minuto 39:36 do seu depoimento respondeu: "Não, ficou com um desconforta, ficou uma cicatriz bastante visível. A minha mãe sempre gostou de se cuidar. Inevitavelmente na zona em que era e todo este processo a nível emocional também a afectou imenso até porque no mês seguinte, abril salvo erro, tinha o casamento do afilhado no qual seria madrinha de casamento e o branqueamento era um dos motivos também para esse evento. Inevitavelmente ficou afectada (...) Começou a usar lenços, algo que nunca..."
● Pouco depois, ao minuto 40:42 do seu depoimento acrescentou, ainda, que a mãe: "Tinha pesadelos com esta situação. Sentia um coçar, uma irritação somente nos dias de maior calor, da transpiração mais na zona do pescoço. Eram as queixas mais relevantes que tinha."
● Ao minuto 43:15, e quando lhe for perguntado se a Autora, depois do que sucedeu, fez o branqueamento dentário, negou, explicando que: «Não se sentia confortável sempre com aquele receio, mesmo hoje em dia. Sempre aquele receio sempre, aquela nuvenzinha de algo pode correr mal".
● Explicando logo de seguida, ao minuto 43:31, que a Autora ficou com medo de dentistas.
● Mais concluindo, por fim, ao minuto 43:50 do seu depoimento que: "Na convivência social... A minha mãe gostava de se arranjar, de sair, ... Resguardou-se mais. Sempre com movimentos a tentar tapar a zona da cicatriz. A auto-estima inicia/mente ficou mais em baixo. Queria ficar sempre mais resguardada, sair menos de casa, mais fechada porque até afectou a auto-estima".
● Finalmente, quando questionado acerca dos antecedentes de sintomatologia depressiva da Autora, a testemunha esclareceu, ao minuto 55:28 do seu depoimento que o síndrome depressivo havia ocorrido vários anos antes, por ocasião da morte do irmão da Autora e que "eslava completamente controlado".
XIV. Perante a versão dos factos relatada pela Autora, totalmente compatível com as regras da experiência comum (vaidade de uma mulher que procura um branqueamento dentário vs complexos físicos por ter ficado com uma cicatriz visível; medo de morrer quando se passa por uma cirurgia não programada, necessária em contexto de internamento em urgência, tristeza, desgostos, etc) e confirmada por todas as testemunhas inquiridas a propósito, não sendo tais factos contraditados por qualquer outra prova, documental ou testemunhal, deveriam ter-se dado como provados os factos em questão, não sendo a simples existência de antecedentes depressivos prévios suficientes para a sua exclusão, especialmente quando o síndrome depressivo não foi dado como provado e estava, há anos, controlado.
XV. Os danos sofridos pela Autora resultaram de um abcesso parafaríngeo sofrido como complicação posterior da extracção do dente em causa nos autos - (vide facto provado n.º 41), sendo tal ato médico, de extracção de um dente a um paciente, por implicar uma acção invasiva, com necessária e inevitável lesão do corpo de uma pessoa, mesmo que, no caso concreto, fosse tecnicamente adequado a solucionar o problema de saúde da doente e a melhorar o seu bem-estar, ilícito se não for realizado com o consentimento do lesado (arts 70.º e 340.º do C.C.).
XVI. O médico dentista, aqui terceiro Réu, antes de realizar a intervenção de extracção dentária (vide factos provados n.ºs 10 a 13), tinha o dever de esclarecer a paciente sobre o diagnóstico, a terapêutica e o prognóstico da sua doença e sobre os aspectos relevantes do acto, dos seus objectivos e consequências funcionais, permitindo que a doente pudesse consentir em consciência, o que não foi feito, razão pela qual não existiu qualquer consentimento livre, consciente e esclarecido (a paciente limitou-se a confiar no Réu, como referiu entre os minutos 5:34 e 5:49 da gravação do seu depoimento) e não pode ser meramente presumido quando o paciente está presente no acto e na plena posse das suas faculdades físicas e intelectuais.
XVII. A este propósito, a sentença, de que se recorre, diz expressamente que: "No mais, e com extrema relevância para a sorte da lide, importa referir que, no que se refere aos factos h) e i) do elenco dos factos não provados, tratando-se de factos relativos ao cumprimento do dever de prestação de informação de obtenção de consentimento informado (e com excepção da referência às duas abordagens possíveis para a resolução do problema) cuja prova incumbiria aos RR., não tendo sido feita qualquer prova neste sentido, ao tribunal nada mais restou senão firmar a sua convicção nestes termos.
Na verdade, e como já referido, inexistem, pelo menos, nos autos, quaisquer registos das informações clínicas ou dossier clínico relativo à A. e da lavra dos 2.° e 3.° RR., documentos dos quais, ainda que por via de presunções naturais, e tendo em conta a qualidade da informação vertida, fosse possível retirar o cumprimento do dever de informação (até mais do que qualquer formulário pré-impresso de consentimento informado).
Por outro lado, a única pessoa ouvida, em juízo, presente aquando da ocorrência dos factos em apreço, foi a própria A. que, naturalmente, referiu que nada lhe foi esclarecido quanto aos riscos (em particular, sem qualquer referência ao tipo de riscos, mais ou menos graves, mais ou menos frequentes)".
XVIII. A acção de responsabilidade civil por actos médicos pode fundar-se tanto no erro médico como na violação do consentimento informado, protegendo-se, tanto a saúde e a vida do paciente, como o seu direito à autodeterminação na escolha dos cuidados de saúde, tendo o dever de informação e consentimento do paciente para prática do ato médico um conteúdo elástico, que deve ser aferido à luz das especificidades de cada caso concreto.
XIX. A responsabilidade civil, da qual emerge a obrigação de indemnização, tanto pode resultar da falta de cumprimento de obrigações emergentes de contratos, negócios jurídicos unilaterais ou de obrigações emergentes da lei - fala-se então de responsabilidade contratual ou obrigacional -, como da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causem prejuízos a outrem - fala-se então em responsabilidade extracontratual (Vide: Antunes Varela in "Das Obrigações Em Geral", Vol. I, 5ª Ed., pág. 473), e por terem ambos os tipos de responsabilidade civil pressupostos muito semelhantes, a doutrina tem vindo a defender maioritariamente, que se podem cumular ambos os regimes que concorrem para a solução do caso concreto (neste sentido: Rui Alarcão in "Direito das Obrigações", 1983, Ed. Policopiada, pág. 211 a 212; Carlos Mota Pinto in "Cessão da Posição Contratual, 1982, pág. 411; João Álvaro Dias in "Procriação Medicamente Assistida e Responsabilidade Médica", 1996, pág. 231; Miguel Teixeira de Sousa in "Concurso de Títulos de Aquisição da Prestação - Estudos Sobre a Dogmática da Pretensão e do Concurso de Pretensões", 1988, pág.s 136 e ss e 313 e ss; e Menezes Cordeiro in "Da responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais", LEX, 1999, pág. 491 e 492).
XX. A responsabilidade contratual tem o seu quadro legal essencialmente nos arts. 798.º e ss do C.C., onde se estabelece desde logo a regra geral de que «o devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causar ao credor», o que pressupõe uma relação jurídica de natureza creditícia, resultando a obrigação de indemnização da violação de deveres decorrentes desse vínculo obrigacional originário, que nos autos advém de um contrato de prestação de serviços médicos, mais especificamente de serviços médicos de dentista, o qual, por não ter regulamentação legal própria típica, se reconduz à categoria genérica dos contratos de prestação de serviços (cfr. art. 1154.º do C.C.), subordinada às regras supletivas do contrato de mandato, com as devidas adaptações (cfr. art. 1156.º do C.C.), para além das regras de natureza administrativa e deontológica próprias do ramo de actividade considerado.
XXI. Nestes autos resulta provado um acto médico, praticado sem o devido cumprimento do dever de prestação de informação de obtenção de consentimento informado pessoal, livre e esclarecido), do qual resultou um abcesso parafaríngeo sofrido como complicação posterior, implicando para a Autora sequelas, já provadas, razão pela qual é aplicável o regime dos arts. 70.º e 340.º do CC, por violação dos arts. 44.º e 45.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (aprovado pelo Regulamento n.º 14/2009 de 13/1).
XXII. Esse dever de esclarecimento decorre, em conclusão do art. 157.º do CP., das obrigações emergentes do cumprimento do contrato de prestação de serviços (art. 1161.º n.º 1 als. b) e c) do C.C. "ex vi" art. 1154.º do mesmo diploma legal), da necessária observância dos deveres de informação emergentes do princípio da boa-fé (art. 762.º n.º 2 do C.C.) e dos deveres deontológicos impostos aos profissionais médicos (v.g. arts 44.º e 45.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Regulamento n.º 14/2009 de 13/1).
XXIII. Pelo exposto, dado que nenhuma explicação foi dada à Autora, apenas se pode considerar ter sido violado o dever de esclarecimento, o qual era fundamental para obter o consentimento da lesada essencial à licitude do ato médico (art. 340.º n.º 1 do C.C.), que, assim sendo, apenas se pode considerar ilícito por violador dos direitos de outrem, ao se agir de maneira desconforme ao que era objectivamente devido nos termos da lei, e sem que se verifique qualquer causa justificativa da ilicitude, nem esteja em causa o exercício regular de um direito ou o cumprimento de um dever (Vide: Pessoa Jorge in "Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil", 1999, pág. 62 e ss).
XXIV. A ilicitude de um ato médico não se resume à correcção técnica da intervenção verificada, porquanto implicando esse acto a invasão e lesão do corpo do paciente, ainda que com finalidade curativa, não pode ser afectada a integridade física alheia sem o consentimento livre e esclarecido do lesado (arts 70.º n.º 1 e 340.º n.º 1 do C.C.).
XXV. No caso dos autos, estando em causa uma extracção dentária, não há fundamento para se presumir o consentimento do doente nos termos do art. 47.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, já que o consentimento presumido só funciona nos casos em que o lesado não está presente, ou não está em condições de pessoal, livre e conscientemente poder prestar o seu consentimento no caso concreto - vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06-02-2018, proferido pelo Ex.mo Sr. Relator Dr. Carlos Oliveira no âmbito do Processo n.º 1889/15.4T8CSC.L1-7, in site www.dgsi.pt.
XXVI. Neste sentido, só pela simples ausência de consentimento livre e esclarecido da Autora, demonstrada nos autos pela sua ausência de prova, deveria ter-se considerado ilícita a intervenção da extracção dentária da qual resultou a complicação que determinou as sequelas da Autora provadas nestes autos e, nesse sentido, o cálculo do montante indemnizatório por danos não patrimoniais deverá ser feito com base em critérios de equidade, atendendo, nomeadamente, ao grau de culpabilidade/censurabilidade do responsável médico e bem como do próprio lesado na situação geradora desses danos, à gravidade e dimensão desses mesmos danos e à própria situação económica quer do lesante, quer do lesado - vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/2021, preferido no âmbito do Processo n.º 711/10.2TVPRT.P1.S1, pelo Ex.mo Sr. Dr. Juiz Relator Isaías Pádua, no site atrás referido.
XXVII. Em todo o caso, in casu incorreram os Réus numa série de erros, de maior ou menor gravidade, que determinaram um encadeamento de factos que, só por intervenção atempada, aliás diga-se, urgente, do Hospital 2..., não teve consequências bem piores do que aquelas que hoje discutimos.
XXVIII. De forma isolada, até se poderia considerar que os médicos agiram da melhor forma possível em cada momento (o que não se aceita), mas, fazendo uma análise global de tudo quanto se passou e que resulta provado nos autos (factos provados 5 a 55), apenas se pode considerar que os Réus agiram de forma negligente, por descuidarem totalmente os riscos de complicações, bem como desconsideraram toda a sintomatologia relatada pela paciente, com base numa presunção de que as suas queixas eram exacerbadas e sem fundamento, não tendo sido capazes, sequer, de diagnosticar a infecção mediante a observação da doente, sendo certo que, não fosse a rápida intervenção da filha da Autora, que, sendo médica, encaminhou a mãe para o Hospital 2..., a infecção poderia ter evoluído para uma mediastinite, pondo em risco a própria vida da mesma - vide declarações da testemunha EE a partir do minuto 11:00 do seu depoimento já atrás transcritas.
XXIX. Logo no dia 05/03/2015, nas circunstâncias que se deram como provadas nos factos 5 a 7 da matéria de facto provada, foi feito um tratamento dentário sem os devidos cuidados, já que a Autora se dirigiu à Clínica para um tratamento de branqueamento, puramente estético, e, logo nesse dia, depois de lhe ter sido dito que estaria tudo bem, começou a sentir fortes dores e algo semelhante a um orifício - vide factos provados n.ºs 6 e 8.
XXX. Existe, portanto, responsabilidade do Réu Dr. CC porquanto, após a destartarização efectuada à Autora no dia 05/03/2015, não a acompanhou devidamente, com a cautela que devia imperar nos procedimentos clínicos por si levados a cabo com a paciente em questão, sendo que, logo nesse primeiro atendimento, ou o diagnóstico não foi devidamente realizado, induzindo a recorrente em erro no sentido de que poderia fazer o tratamento de branqueamento pretendido, ou o tratamento de destartarização foi realizado sem os devidos cuidados, não se tendo detectado uma cárie pré-existente, o que levaria a um tratamento necessariamente diferente.
XXXI. Por outro lado, não se pode deixar de considerar que quer a antibioterapia prévia e, essencialmente, a posterior à extracção dentária teria sido um procedimento prudente, já que "A utilização de antibióticos como medida profiláctica, em caso de extracção de terceiros molares, mostra-se indicada nos casos em que já existe um quadro infeccioso em curso como a pericoronarite, nas situações de endocardite ou no caso do paciente se apresentar imunodeprimido". - vide facto provado n. ° 43.
XXXII. Perante uma paciente com uma forte dor de aparecimento súbito, posterior a uma intervenção dentária no dia anterior, as próprias circunstâncias em que a Autora se apresentou na clínica, no dia 06/03/15 eram já indicativas da existência de um quadro infeccioso em curso que, por si só, obrigaria a uma cautela maior e a que se tratasse previamente do foco da dor, nomeadamente com a prescrição de antibiótico profiláctico, e só após, se partisse para a extracção do dente, ou, pelo menos, se, efectuasse tal prescrição após a extracção, até porque a mesma foi demorada, por ter sido necessário realizar uma odontosecção, quebra do dente em dois, - vide facto provado n.º 14).
XXXIII. As directrizes internacionais, como as do American Heart Association (AHA) e do National Institute for Health and Care Excellence (NICE), sugerem que o antibiótico profiláctico seja prescrito para pacientes de alto risco de complicações infecciosas, como os portadores de condições sistémicas que comprometam o sistema imunológico, incluindo endocardite infecciosa prévia ou doenças cardíacas valvulares, pacientes imunocomprometidos ou de diabetes descontrolada, devendo o médico fazer uma análise casuística já que, também pacientes submetidos a extracções múltiplas ou cirurgias orais invasivas, especialmente em casos de infecção pré-existente, também se podem beneficiar de antibióticos preventivos.
XXXIV. A necessidade de antibiótico profiláctico em casos de infecção pré-existente em extracções dentárias surge principalmente para prevenir a disseminação de bactérias para outros locais do organismo durante o procedimento cirúrgico, uma vez que a manipulação do tecido infectado durante a extracção pode promover a liberação de bactérias na corrente sanguínea, elevando o risco de bacteremia e, em alguns casos, de complicações sistémicas graves, como a que a Autora, infelizmente, acabaria por desenvolver.
XXXV. A cavidade oral é colonizada por uma vasta microbiota, e quando há uma infecção dentária activa (in casu, a Autora apresentava, como provado nos autos, dor forte - vide facto provado n.º 8), os tecidos podem conter concentrações significativas de bactérias patogénicas, e, durante a extracção, podem romper-se barreiras teciduais e expor o leito cirúrgico ao fluxo sanguíneo, facilitando a entrada de bactérias no sistema circulatório, sendo que o uso de antibiótico profiláctico reduz a incidência de infecções pós-operatórias e complicações sistémicas - vide "Estudos Clínicos sobre Extracções Dentárias em Pacientes de Risco", uma meta-análise publicada no Journal of Oral and Maxillofacial Surgery.
XXXVI. No artigo "Antibiotic Prophylaxis for Dental Procedures" publicado no British Dental Journal, se discute especificamente o uso de antibióticos profilácticos em pacientes com infecções pré-existentes, observando-se que, em procedimentos cirúrgicos envolvendo dentes infectados, a profilaxia com amoxicilina ou clindamicina mostrou-se eficaz na redução de infecções secundárias e complicações pós-operatórias.
XXXVII. Finalmente, as Directrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendam que a profilaxia antibiótica em pacientes com infecções pré-existentes seja cuidadosamente avaliada, especialmente em procedimentos invasivos.
XXXVIII. Salvo o devido respeito, considera a Autora que, atento o facto de a mesma se apresentar com uma forte dor num dente com cárie e tendo sido feita a sua extracção sem antibiótico prévio, deveria ter existido uma maior cautela por parte do dentista que realizou o procedimento, o terceiro Réu nos presentes autos, o Dr. CC, o qual, além do mais, não procedeu ao monitoramento activo do pós-operatório, não fazendo qualquer orientação da Autora sobre os sinais de infecção, muito menos transmitindo a importância de retorno ou contacto imediato em caso de dor, inchaço ou febre para evitar que pequenas complicações evoluíssem para quadros graves.
XXXIX. A própria testemunha FF, Professora Universitária, investigadora, perita forense, escritora e dentista em prática individual, arrolada pelos Réus, quando inquirida nos presentes autos a 11 de maio de 2023, referiu ao minuto 45:31 que a paciente deveria ser alertada para a necessidade de ter em conta "o sangramento... se tiver dificuldade a estancar sangue, se tiver dificuldade a, se inchar, se ganhar abcesso, ou se tiver dificuldade a abrir a boca, se vir que tem dores fortes, como descrevi que não é suficiente, (aqui se referindo à medicação prescrita), para entrar em contacto logo.
XL. A extracção dentária foi realizada, a uma sexta-feira, aproximando-se o fim de semana e estando a clínica, como é prática habitual, fechada durante todo esse tempo, ou, pelo menos, na sua maioria, não tendo sido, sequer, fornecido à Autora, paciente que se apresenta com dor e que acabara de sofrer uma extracção dentária sem qualquer profilaxia antibiótica, um telemóvel para acesso fácil aos médicos dentistas, aqui Réus, em caso de haver uma urgência.
XLI. Numa fase posterior, já depois de surgirem as complicações, e de a Autora já ter sido obrigada a recorrer, por duas vezes, a um serviço de urgência hospitalar (em horários fora do horário de expediente da clínica Ré e sem acesso directo aos dentistas, aqui Réus), também o Dr. BB, segundo Réu nos presentes autos, negligenciou gravemente os cuidados a ter com a sua paciente, menosprezando por completo os sintomas e queixas da Autora ao, apesar de verificar que a Autora não conseguia abrir a boca (vide facto provado n.º 25), a ponto de não conseguir falar ou alimentar-se, mesmo com palhinha (vide facto provado n.º 23), lhe receitar medicação oral, recomendando-lhe que regressasse à clínica ao fim de três dias -vide facto provado n.º 26.
XLII. Não obstante a Autora não conseguir falar, abrir a boca, alimentar-se, beber, nem com uma palhinha, sabendo que a mesma havia recorrido já ao Serviço de Urgência dos Hospitais ... e Amarante, no fim de semana, por sentir fortes dores, febre, edema, dores de cabeça, inchaço, sem sinais de melhorias, muito pelo contrário, o Réu em questão limitou-se a prescrever-lhe Adalgur, um relaxante muscular com tamanho médio, aproximadamente entre 10 a 12 mm de diâmetro, que, objectivamente, a paciente não conseguiria ingerir.
XLIII. O Réu em questão ignorou todas as queixas da Autora, tal como ignorou o edema e eritema visíveis e o trismus marcado e, ainda, a celulite sobre o angulo mandibular, com prolongamento sub-mandibular e cervical anterior atingimento sub-esternal, bem como, glândula sub-mandibular esquerda aumentada, que, nesse mesmo dia, poucas horas depois, foram diagnosticados pelo Serviço de Urgência do Hospital 2... - vide facto provado n.º 29), não prescrevendo a realização de qualquer exame complementar, nem recomendando que a Autora se dirigisse à urgência hospitalar, não obstante a Associação ... estabeleça critérios claros para a avaliação e o manejo de emergências odontológicas, recomendando que o paciente seja encaminhado a um hospital se houver risco à saúde geral ou se o tratamento necessário exceder os recursos do consultório dentário, enquanto a Ordem dos Médicos Dentistas determina que o dentista deve agir em conformidade com normas éticas e de boas práticas clínicas, garantindo a segurança do paciente.
XLIV. O médico dentista, como qualquer profissional de saúde, tem o dever de agir de acordo com os padrões aceites pela ciência médica, tomando decisões baseadas na melhor evidência disponível e na avaliação clínica individualizada do paciente, encaminhando os seus pacientes ao hospital quando o caso exceder as suas capacidades.
XLV. Em suma, a responsabilidade dos Réus baseia-se em quatro pilares principais: 1) Avaliação Inicial inadequada: Num primeiro momento, o terceiro Réu deveria ter realizado uma anamnese detalhada e um exame clínico completo, identificando factores de risco que, entre outras medidas, justificassem a prescrição de antibióticos profilácticos, jamais iniciando a destartarização sem confirmar se havia alguma cárie, como sucedeu no caso dos autos, com o dente do siso 38, e, muito menos passar para uma extracção do referido dente como ocorreu, sem qualquer cautela - cfr. arts. 5 a 10.
Por sua vez, o segundo Réu deveria ter realizado essa mesma anamnese detalhada e, após um exame clínico completo, dentro das limitações físicas da paciente, diagnosticando, desde logo, o trismus que a impedia de abrir a boca, bem como a demais sintomatologia mandibular e submandibular indicativas do alastramento do processo infeccioso.
2) Tomada de Decisões precipitadas e contrárias às Diretrizes: Quanto ao terceiro Réu, a prescrição de antibióticos, ou a decisão de não os prescrever, deveria ter sido baseada em directrizes clínicas e numa avaliação do caso em concreto, fundamentada e com análise do risco-benefício, o que, como atrás referido, não foi feito.
Já quanto ao segundo Réu, tendo o mesmo sido confrontado com um abcesso dentário com disseminação sistémica, por se ter expandido já para além do local afectado, e, especialmente sendo já observável celulite facial, e no pescoço, pelo risco de disseminação bacteriana para outras áreas, como o espaço submandibular, e de comprometimento das vias aéreas, conjugado com a presença de febre alta e persistente, deveria ter diagnosticado uma emergência médica que precisava de ser tratada, imediatamente, em ambiente hospitalar, e não o fez.
3) Falta de acompanhamento no Pós-Operatório e incapacidade de diagnóstico de Complicações: Os dentistas tinham a responsabilidade de fornecer orientações adequadas sobre o que a Autora deveria cuidar de observar no pós-operatório e deviam estar disponíveis para a avaliar em caso de complicações, o que não fizeram.
4) Falta de comunicação e Consentimento Informado: Antes de qualquer procedimento cirúrgico, como uma extracção dentária, os dentistas deveriam informar claramente a paciente sobre os riscos envolvidos, incluindo a possibilidade de infecções pós-operatórias, e discutir com a paciente a opção do uso de antibióticos profilácticos, o que não fizeram.
XLVI. Nos termos do art. 799.º n.º 2 do C.C. a culpa é apreciada nos termos da responsabilidade civil, ou seja, na falta de outro critério pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias concretas de cada caso (487.º nº 2 do C.C.).
XLVII. Por estamos perante profissionais de saúde, este dever é especialmente reforçado, devendo ter-se em consideração a actuação de um profissional em circunstâncias semelhantes e com qualificações profissionais idênticas.
XLVIII. Embora marcado por um proteccionismo e solidariedade profissional típicos da classe médica quando se discutem questões de negligência médica, a supra identificada testemunha FF, afirmou, ao minuto 51:11 do seu depoimento que, por estar em causa nos autos uma complicação rara, os Réus não estavam preparados, admitindo que, se fosse consigo, teria agido de forma diferente:
51:11: "Não estão preparados.
Às vezes só os casos graves a aparecer e serve de lição para a vida.
51:30: Mas com certeza que nunca mais esquece. Tenha 70.25.30 anos.
53:38: Nós, cá fora, não vemos esses casos graves diariamente. Às vezes podem passar 20, 30 anos sem o termos visto. Faz muita falta essa formação... Muita mesmo. É uma realidade. Eu contribuo também, tenho muitos colegas, aleito, que tenham atenção. Eram, mas pode acontecer, façam, mesmo, sem, às vezes..."
54:48: "Ora bem, penso que também confiou."
XLIX. Concluindo, quando objectivamente questionada ao minuto 58:00 do seu depoimento, que, se o episódio médico em causa nos autos se tivesse passado consigo, no dia 09/03/2015, "tinha encaminhado para o hospital numa situação desta?, respondendo:
58:04 "Ah, eu quantas vezes levo os pacientes até ao próprio hospital. Já me aconteceu."
58:10 "Quando sinto que não está alguma coisa bem. Que não quero que complique. Eu iá os tenho levado. Pois acredite."
L Assim sendo, e por tudo o exposto, face às leges artis da profissão verifica-se que, por parte dos Réus dentistas, houve uma actuação descuidada, no mínimo negligente, não servindo de justificação o argumento de que "confiaram", especialmente se, como se começou por explicar, desde o primeiro momento, essa "confiança" teve por base uma atitude discriminatória face a uma "alegada" personalidade depressiva que, nem sequer, se deu como provada.

***
A 4.ª Ré apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil). Face às conclusões da recorrente, são as seguintes as questões a decidir:
a) Se devem ser alterados em sentido afirmativo os pontos n) a bb) da matéria de facto julgada não provada;
b) Se ocorreu violação do dever de esclarecimento e incumprimento relevante, ou cumprimento defeituoso da prestação, por parte dos 2.º e 3.º recorridos;
c) Se, provada a falta de cumprimento por parte dos recorridos e presumindo-se a mesma culposa, nos termos do art.° 799°, n.° 1, do Código Civil, existe por parte dos recorridos o dever da indemnizar a autora pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados.
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A 1.ª instância declarou provados e não provados os seguintes factos:
A) - Factos provados:
1) A 1.ª Ré dedica-se, entre outros, à prestação de cuidados de saúde na área de Medicina Dentária.
2) O 2.º Réu é médico dentista e prestava a sua actividade profissional na Clínica da 1.ª Ré que gira sob o nome comercial de C..., entre 5/3/2015 e 9/3/2015, por conta desta, além de ser seu sócio e gerente.
3) O 3.º Réu, filho do 2.º Réu, também é médico dentista e prestava serviços na clínica da 1.ª Ré por conta desta, no período compreendido entre 05/03/2015 e 09/03/2015.
4) Os 1.ª, 2.º e 3.º Réu transferiram a sua responsabilidade civil pela prática de actos médicos para a então Seguradora D..., actual B..., acima identificada como 4.ª Ré, por contrato de seguro titulados pelas apólices n.º ..., ... e ....
5) A Autora foi à Clínica C... da 1.ª Ré no dia 05/03/2015 tendo sido atendida e consultada pelo 3.º Réu, Dr. CC, a fim de realizar um procedimento de branqueamento dentário, o que foi assegurado.
6) Mais lhe referiu que tudo estava bem, tendo dado indicação apenas para, passado uma semana, ir lá levantar as referidas goteiras e o gel para fazer tratamento em casa,
7) Não tendo, em tal dia, prescrito qualquer medicação.
8) Nesse mesmo dia, mais para o final, a Autora sentiu fortes dores num dente, sentindo igualmente algo semelhante a um orifício no mesmo,
9) Motivo pelo qual no dia 06/03/2015 se dirigiu à Clínica da 1.ª Ré, tendo sido atendida pelo 3.º Réu,
10) Que lhe fez um raio-X, exame por via do qual foi constatada a existência de uma cárie no dente 38 (dente do siso), com localização distal e parcialmente oculta pela gengiva do trigonio retro-molar.
11) Face a tal, foi proposto à A., para tratamento da referida cárie, um tratamento conservador por desvitalização que necessitaria de 3 sessões,
12) Ou extracção do referido dente.
13) A A. optou pela extracção do dente.
14) Tal extracção implicou a realização de odontosecção (quebra do dente em dois).
15) Depois de extraído o dente, o 3.º Réu receitou à Autora Brufen 600,
16) Mais lhe tendo dito o referido Dr. CC para "comer o primeiro gelado do ano".
17) A A. entendeu, face ao referido em 16), da necessidade de colocação de gelo na zona afectada pela extracção da peça dentária.
18) Apesar de ter a Autora tomado o referido medicamento de acordo com o prescrito, a mesma começou a sentir um agravamento nas suas dores, bem como, tumefacção no rosto e no pescoço.
19) Pelo que, no dia seguinte 07/03/2015 (sábado) sentiu necessidade de recorrer aos Serviços Médicos de Urgência do Hospital ..., onde lhe receitaram um antibiótico, dizendo-lhe para continuar com o Brufen e alternar com o Benuron, o que a A. fez.
20) Não obstante, a Autora piorou, tendo que, de novo, se dirigir a uma urgência hospitalar, o que fez junto do Hospital 1... em Penafiel, no dia seguinte, a dia 08.03.2015 (domingo).
21) A A. não suportava as dores, atingiu um pico febril de 39,5º, o volume da face continuava a aumentar, tinha cefaleias intensas e não conseguia abrir a boca.
22) Em tal hospital, aplicaram à Autora uma injecção com hidrocortisona 100 mg/2ml Amp Im/Im e medicaram-na com Cetorolac 30mg/MI, solução injectável, tendo-lhe referido para continuar a tomar o antibiótico que já lhe havia sido prescrito no Hospital ..., no dia anterior.
23) No dia 09.03.2015, segunda feira, porque o seu estado de saúde se agravou, ao ponto de a Autora não conseguir falar, abrir a boca, alimentar-se, mesmo com palhinha,
24) Dirigiu-se esta à clínica da 1.ª Ré, acompanhada pelo seu filho, DD, tendo sido atendida desta feita pelo Sr. Dr. BB, 2.º Réu e pai do 3.º Réu.
25) Uma vez aqui, e atendendo a que o referido clínico constatou que a A. não conseguia abrir a boca, não sendo, por isso, possível examiná-la.
26) Como a Autora não conseguia abrir a boca, e não aceitou a realização de exame sob anestesia local, receitou-lhe o dito médico, o ora 2.º Réu, o medicamento Paracetamol - Tiocolquicosido 500mg+2mg -comprimido, para tomar de 8h/8h durante três dias, após o que deveria regressar à Clínica da 1.ª Ré.
27) No mesmo dia, e atendendo a que o quadro se mantinha, a conselho da sua filha EE, a A. dirigiu-se ao Centro Hospitalar ..., Hospital 2....
28) Aí deu entrada - no serviço de urgência - pelas 17h28 - e foi observada por Cirurgia Maxilo-Facial.
29) Ao exame objectivo constatou a dita especialidade médica que a Autora apresentava trismus marcado, celulite sobre o ângulo mandibular com prolongamento sub-mandibular e cervical anterior com atingimento subesternal, bem como, glândula sub-mandibular esquerda aumentada, sem flutuação palpável, edema moderado.
30) Foi a Autora internada em tal instituição hospitalar, na cirurgia Maxilo Facial/ESTOM., pelas 21h19m do dia 09/03/2015 para terapêutica endovenosa, após ter efectuado ecografia, para vigilância com TAC e drenagem cirúrgica, onde permaneceu desde o dia 09/03/2015 a 13/03/2015.
31) No dia imediatamente seguinte, 10/03/2015, foi a Autora submetida a Drenagem cirúrgica de abcesso parafaríngeo sub-mandibular esquerdo, de origem odontogénica, no bloco de urgência, porquanto nas primeiras 12 horas de internamento mantinha tumefacção submandibular e eritema com extensão cervical pré-esternal.
32) Durante o internamento manteve a Autora antibioterapia, à qual já havia sido submetida no Serviço de Urgência, desta feita, com Amoxicilina / Ácido Clavulânico +Metronidazol IV + Dexametazona (fosfato) + CCT IV + Protector Gástrico + Paracetamol (comprimidos).
33) Teve a Autora alta do internamento em 13/03/2015 pelas 09h38m com prescrição de antibioterapia + analgesia oral + cuidados de penso..
34) Ficou a Autora com dreno, tendo apenas em 16/03/2015 se deslocado ao Hospital 3... onde foi vista por enfermagem, sendo que não retiraram os pontos em tal dia, por aconselhamento dos mesmos, aliás seguindo o conselho constante da Nota de Alta.
35) Mantendo os cuidados de penso nos Centro de Saúde ... e de ... e no Hospital acima referido de ..., em dias alternados.
36) Em 19/03/2015, pelas 9.30H, deslocou-se a Autora à consulta externa de Cirurgia Maxilo-Facial no Hospital 2... onde retirou os pontos de sutura da ferida cirúrgica.
37) A Autora deu conhecimento ao respectivo médico de família da Nota da Alta do Hospital 2..., onde foi a mesma orientada para consulta externa do referido Centro Hospitalar e Centro de Saúde.
38) Fez, posteriormente, a Autora em 24-04-2015 - de novo ecografia às partes moles (pescoço) para estudo da região solicitada, a saber, na região cervical à esquerda, onde a mesma foi submetida a cirurgia para drenagem do abcesso, tendo-se verificado alguns gânglios de carácter reaccional, o maior deles medindo 34 x 6mm, bem como, discretas alterações fibrocicatriciais nas partes moles, ao nível da cicatriz.
39) Em 30/04/2015, pelas 12h e 07 m teve a Autora nova consulta externa no Hospital 2..., onde teve alta com a indicação para recorrer directamente ao serviço de Cirurgia Maxilo-Facial em caso de aparecimento de sintomatologia ou qualquer outra alteração relacionada com o evento.
40) No período compreendido entre o dia 09 de Março de 2015 e o mês de Junho de 2015 foram várias as vezes, no mínimo 4, em que ligaram da Clínica aqui 1.ª Ré para a Autora a fim de saberem o estado em que a mesma se encontrava, a saber nos dias 10/03/2015, 11/03/2015, 19/03/2015 e, ainda, em dia não concretamente determinado do mês de Junho de 2015.
41) A extracção do dente acima mencionado, a saber o terceiro molar inferior esquerdo (38), cursou para a ocorrência do abcesso parafaríngeo sofrido pela A., como complicação posterior.
42) A ocorrência de abcesso parafaríngeo como complicação posterior a exodontia de peça dentária como em causa nos autos é de verificação possível mas rara, indicando os estudos verificação, consoante os critérios adoptados pelos estudos, uma taxa de incidência de infecções pós-operatórias que varia entre 1% e 12,6%.
43) A utilização de antibióticos como medida profiláctica, em caso de extracção de terceiros molares, mostra-se indicada nos casos em que já existe um quadro infeccioso em curso como a pericoronarite, nas situações de endocardite ou no caso do paciente se apresentar imunodeprimido.
44) A A. considera que foi injustiçada devido à forma como foi tratado o seu caso pelos Réus.
45) Resultaram para a Autora as seguintes sequelas relacionadas com o evento descrito:
46) Face: ausência do dente 38;
47) Pescoço: cicatriz de 4 cm de comprimento, disposta obliquamente de cima baixo e da esquerda para a direita, rosada, localizada na face antero-lateral do pescoço, aderente aos planos profundos e com parestesias à palpação.
48) O dano estético permanente é fixável em grau 2, em escala crescente de 7 graus, dada as características da cicatriz.
49) A Autora nasceu no dia ../../1963, tendo, à data dos factos, 51 anos de idade.
50) A data da consolidação médico legal é fixável em 30/04/2015.
51) O défice funcional temporário total é fixável num período de 9 dias, sendo parcial fixável num período de 48 dias.
52) O quantum doloris é fixável num grau 5 numa escala crescente de 7 graus de gravidade, tendo em conta as lesões, o período de recuperação funcional e os tratamentos efectuados.
53) O défice funcional permanente da integridade físico psíquica da Autora é fixável em 2 pontos.
54) Nas circunstâncias descritas em 25), o 2.º R. não apresentou qualquer proposta de intervenção, não efectuou ou prescreveu à Autora que fizesse qualquer tipo de exame auxiliar de diagnóstico, nem prescreveram qualquer medicação para além da ali referida.
55) Qualquer um dos ditos RR. orientou a Autora a recorrer a um serviço de urgência ou à especialidade Maxilo-Facial.
56) Tendo sido accionado o seguro de responsabilidade civil correspondente à apólice relativa ao contrato de seguro celebrado com o 3.º Réu, e efectuada a reclamação de terceiro por parte da Autora junto da B..., Companhia de Seguros S.A, (ex D...), veio esta por carta datada de 02/01/2017, declinar a respectiva responsabilidade, alegando que não vislumbra qualquer ato / omissão culposa, qualquer erro técnico - profissional por parte do respectivo segurado, o aqui 3.º Réu, e que contribuísse para a produção dos alegados danos reclamados pela Sinistrada, aqui Autora.
57) A Autora incorreu na despesa de de € 629,13 nomeadamente em despesas de farmácia, consultas e relatório.
58) Das despesas referidas em 57), apenas o valor de 19,56 euros corresponde a aquisição de medicamentos prescritos em razão do quadro infeccioso descrito em 19) a 34).
59) A Autora, por meio de notificações judiciais avulsas dirigidas aos Réus, interpelou-os para "pagarem à Autora a quantia a título de indemnização global de € 35.629,13, no prazo de 30 dias após o respectivo cumprimento da respectiva notificação".
60) Mais os interpelou para que "se tal pagamento não fosse efectuado no dito prazo se vencem juros moratórios à taxa legal em vigor sobre a referida quantia desde o primeiro dia após o decurso do prazo de 30 dias fixado para efeitos de pagamento de indemnização.
61) A Ré B... foi notificada em 13/12/17 e os 1º a 3.º Réus foram notificados em 15/11/2017.
62) Ora, apesar de tal notificação, nada responderam ou fizeram os Réus, nada tendo pago à Autora a título de indemnização peticionada.
63) A Autora é beneficiária da Segurança Social com o n.º ....
B) Factos não provados:
a) A 1 .ª Ré dedica-se, entre outros, à prestação de cuidados de saúde na área de Estomatologia.
b) Os 2.º e 3.º RR. são médicos estomatologistas tendo ficado apenas demonstrado apenas o vertido em 2) e 3).
c) Nas circunstâncias descritas em 5), o 3.º R. referiu à Autora foi-lhe feita uma destartarização e moldes para goteiras, tendo antes ficado demonstrado o ali vertido.
d) Nas circunstâncias descritas em 5), perguntada, na anamnese a que o 3.º R. procedeu, a A. referiu não ter qualquer sintomatologia dentária ou quaisquer outros problemas dessa ou outra natureza, relevantes para o efeito.
e) Nas circunstâncias referidas em 9), o 3.º R., depois de observar a A. disse-lhe que tudo estava bem
f) Com esta situação a Autora não se conformou, atentas as fortes dores que sentia, razão pela qual o referido médico lhe fez um RX.
g) Perante tal situação o 3.º Réu propôs-lhe um tratamento que implicaria duas ou três sessões ou a extracção dentária, inclinando-se mais para a imediata extracção dentária, ao que a Autora acedeu, atentas as fortes dores que sentia.
h) Nas circunstâncias descritas em 11), o 3.º R. transmitiu à A. toda a informação relativa às alternativas, respectivos incómodos, riscos e inconvenientes e custos de cada uma das soluções propostas
i) Designadamente, e em caso de extracção dentária, a possibilidade de ocorrência de um quadro de abcesso parafaríngeo como o descrito em 19) a 34).
j) Nas circunstâncias descritas em 14), o procedimento durou cerca de 40 minutos e foi feita por duas vezes, já que o dente em causa teve que ser partido em dois, tendo o filho da Autora, de nome DD, presenciado tal procedimento, tendo ficado determinado apenas o ali vertido.
k) Nas circunstâncias descritas em 15), o 3.º R. prescreveu Desloratadina 5mg, tendo referido à A. referido que precisaria de 4 pontos mas que não os ia dar porque o dente em questão era de difícil acesso.
l) Aquando da extracção da peça dentária, a A. ficou a sangrar bastante.
m) Nas circunstâncias descritas em 25) e 26), o 2.º R. ordenou à Autora que abrisse a boca, o que a Autora não conseguiu fazer, apontando esta, por sua vez, para a sua face, pescoço e para o peito, chamando-lhe a atenção para o estado em que se encontrava, nomeadamente com edema e ruborização eritema.
n) A Autora ficou com ansiedade marcada e agravamento de sintomatologia depressiva por causa da conduta dos Réus.
o) Tendo sempre havido uma maior preocupação destes pela preservação do nome comercial, (pelo qual gira a clínica da 1.ª Ré do que com a saúde da Autora,
p) Estando bem consciente esta Ré do risco que a Autora correu de evolução para um quadro clínico de mediastinite, que poderia ter evoluído até à forma fatal, facto que a Autora teve bem presente aquando do seu internamento, pensando nos filhos que iria deixar, situação que viveu de uma forma muito solitária, pois, nem sequer conseguia respirar com facilidade, o que ainda mais lhe agravou o sofrimento.
q) Só o facto de ter de abordar o assunto em causa nos autos fez com que ficasse desnorteada, com dificuldade em se concentrar, com sensação de "não sou eu", com sudação abundante, palpitações e sensação de bola faríngea.
r) Tendo, por vezes, de recorrer a Benzodiazepina para se acalmar.
s) Teve também pesadelos com o ocorrido,
t) Por sentir medo de usar o lado esquerdo da boca, mastiga a Autora só à direita, prática que não consegue abandonar,
u) Sente a Autora picadas e mal estar na região submandibular, assinalando a existência de um ponto na cicatriz do pescoço, doloroso ao toque, cicatriz esta que também lhe causa incómodo na extensão cervical, devido ao facto de estar aderente, motivo pelo qual se habituou a andar com o pescoço flectido,
v) postura que lhe permite também reduzir a visibilidade da cicatriz sendo que muito frequentemente ali leva a mão esquerda com a intenção de a ocultar (a dita cicatriz).
w) A Autora sente, ainda, assimetria da face, considerando que a região submandibular esquerda está mais "descaída", além da retracção na região do pescoço onde se localiza a cicatriz, o que é causa de desconforto e de mal-estar.
x) A Autora agora sente medo de voltar a ser tratada por Medicina Dentária.
y) A Autora deixou de fazer caminhadas dado que a sudação lhe causa desconforto na região da cicatriz.
z) A cicatriz localizada no pescoço da A. determinou mobilidade do pescoço muito ligeiramente reduzida pelo facto da A. se defender em virtude da cicatriz e da sensação de retractilidade da mesma.
aa) Fruto do sucedido a A. isolou-se quer da família, quer socialmente, tentando aos poucos recuperar esta situação.
bb) No entanto, o facto da cicatriz ser visível causa-lhe um sentimento de vergonha, o que dificulta a sua recuperação.
cc) De acordo com as boas práticas médicas, é recomendada a prescrição de antibiótico, como medida profiláctica, em caso de extracção de peças dentárias, como a que está em causa nos autos.
dd) O processo infeccioso que ocorreu e evoluiu da forma referida em 19) a 34) do elenco dos factos provados deveu-se ao facto de ser tido omitida a administração de antibiótico e seria prevenida caso tal ad
ministração tivesse ocorrido.
ee) Tal quadro infeccioso apenas não teve desfecho fatal porque a A. foi socorrida em tempo útil pelos profissionais do Hospital 2....
ff) No dia em a Autora foi observada pelo 2.º Réu, Dr. BB, 09/03/2015, na Clínica C..., propriedade da 1ª Ré, este informou erroneamente a Autora de que o dito que o processo infeccioso / inflamatório nada tinha a ver com a extracção do dente que o 3.º Réu havia feito em 06/03/2015.
gg) Os aqui 2.º e 3.º Réus dispunham de meios de preparação médica e logísticos para tratarem do quadro infeccioso que cursou e que a A. apresentou a 09.03.2015.
hh) O 3.º R. procedeu à destartarização sem o cuidado de ver se a Autora tinha ou não dentes careados, quer antes, quer depois.
ii) A A. correu risco de vida.
***
A presente apelação tem como âmbito declarado no seu intróito do recurso em matéria de facto e da nulidade da sentença.
Começando, logicamente, pela nulidade da sentença, que é um vício formal, o artigo 615º, n.º 1, al. b), do CPC, estabelece que a sentença é nula quando os fundamentos se encontrem em oposição com a decisão. Trata-se, obviamente, de um vício muito grave no raciocínio do julgador, conducente a um vício silogístico a todos os títulos evidente, por contradição entre as premissas de facto e de direito e a conclusão. É o que sucede quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto. Esta nulidade só se verifica quando se descortine uma contradição real, flagrante, entre os fundamentos e a decisão (tal qual a ineptidão da petição inicial – artº 186º nº2 al.b) C.P.Civ. – cfr. Teixeira de Sousa, Estudos, pg.224): “a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente” (cfr. Alberto dos Reis, CPC Anotado, V/141 e Antunes Varela, José Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual, 2ªed., pg. 686). Ora, a sentença resume a fundamentação de direito nos seguintes termos: “Aqui, como ali, tendo em conta a matéria de facto demonstrada, não é possível sustentar nem a gravidade, nem a natureza significativa (pela frequência de ocorrência, não pela subjectividade da paciente, a A., que, obviamente, não colocamos em causa) do risco ocorrido, razão pela qual entendemos que não está demonstrada a violação do dever de prestação pela ré da informação indispensável à prestação de consentimento livre e informado. Face ao exposto, e também por esta via, deve a A. improceder, o que ora se determina e adiante se reitera”. Em ponto nenhum da sua exposição anunciou a Mma. Juíza que a solução devesse ser outra que não a improcedência da acção. Tanto basta para afastar a invocada nulidade, tendo, ao invés, as divergências que a recorrente manifesta solução em sede de mérito.
O inconformismo da apelante prende-se, igualmente, ainda que de forma algo perdida entre as suas conclusões, com o julgamento da matéria de facto constantes dos pontos n) a bb) da matéria de facto julgada não provada, que entende que deveriam ter sido dados como provados. Nos termos do art. 662º, n.º 1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:
“(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Constata-se que a matéria que a recorrente pretende ver reapreciada diz inteiramente respeito ao dano corporal e psicológico por si própria sentido na sequência da intervenção e dos tratamentos a que se submeteu, ministrados pelos 2.º e 3.º réus no âmbito da actividade social da 1.ª ré, quando em causa está o entendimento da 1.ª instância quanto aos pressupostos da obrigação de indemnizar reclamada dos réus, sem cuja modificação a presente apelação não surtirá qualquer efeito. Ora, como se observou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-07-2021 (Proc.º 65/18.9T8EPS.G1.S1, in dgsi.pt). a impugnação da decisão da matéria de facto, por si só, não tem relevância nem se justifica quando desacompanhada da impugnação da decisão de mérito prolatada nos autos, pois que assume um mero cariz instrumental desta última. O que se pretende é que, com o resultado da impugnação de facto, a parte que impugnou passe a ter ao seu dispor elementos capazes de influenciar a decisão de mérito, modificando-a, assim logrando obter um efeito juridicamente útil ou relevante. Ou seja, se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo. O mesmo é dizer que só se justifica que a Relação faça uso dos poderes de controlo da matéria de facto da 1ª instância quando essa actividade da Relação recaia sobre factos que tenham interesse para a decisão da causa, ut artº 130º do CPC. Quando assim não ocorre, a Relação deve abster-se de apreciar tal impugnação - é que aqui, como refere Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e actualizada, p. 298, a solução do caso, considerando as soluções plausíveis da questão de direito, não está minimamente dependente da modificação que o apelante pretende ver operada na matéria de facto a considerar provada. No mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, os acórdãos do STJ de 19/05/2021 (Rel. Cons. Júlio Gomes) e da Relação de Coimbra de 14/01/2014 (Rel. Cons. Henrique Antunes).
Como tal, não irá conhecer-se desta particular impugnação, dado que o seu resultado seria absolutamente inútil, a menos que viesse a concluir-se diversamente quanto à questão dos pressupostos da obrigação de indemnizar.
Em sede de enquadramento jurídico, face à matéria de facto enunciada na sentença recorrida, cumpre agora apreciar as questões de direito suscitadas pela recorrente, no sentido de saber se estão configurados os pressupostos da obrigação de indemnizar a favor da recorrente, conforme vem peticionado, concretamente, se ocorreu, por parte dos recorridos cumprimento defeituoso. Devendo, desde já, notar-se que a sentença recorrida se orientou por um silogismo, segundo o qual o pressuposto ou requisito da ilicitude se traduz na violação de deveres profissionais do médico (por acção ou omissão), correspondendo as leges artis nos "métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica como os mais adequados e eficazes, à luz dos conhecimentos técnicos e das melhores práticas da ciência médica à data. A violação das leges artis pode decorrer de imperícia, imprudência, desatenção, negligência ou inobservância dos regulamentos, ou da conjugação de dois ou mais destes factores. Demonstrada a violação das leges artis, opera a presunção de culpa a que se reporta o art.º 799.º CC, cabe ao médico demonstrar a conformidade entre a sua conduta efectivamente observada e a actuação que lhe era exigível. In casu, não resulta demonstrado que os procedimentos adoptados pelos réus fossem inadequados perante o quadro clínico da A., como também que utilização profiláctica de antibiótico fosse adequada a impedir a verificação do desfecho indesejado, pelo que não pode operar a presunção de culpa constante do art.º 799.º do CC, sendo que cabia à A. alegar e provar a desconformidade objectiva entre os actos praticados/omitidos pelos médicos e as leges artis, bem como o nexo de causalidade entre tais actos e o dano.
É fora de dúvida que a 1.ª ré actuou no âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, previsto no art. 1154.º do CCivil, que define genericamente como aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição. Tratando-se de um contrato oneroso, em que era devido pelo A. o pagamento de um preço, tendo como contraprestação serviços médicos, consistindo, num primeiro momento num procedimento de branqueamento dentário, e, porque no mesmo dia, mais para o final, a Autora sentiu fortes dores num dente, tendo sido constatada por exame a existência de uma cárie no dente 38 (dente do siso), no tratamento da referida cárie. É hoje pacífica a aceitação da concepção contratual da actividade médica, superadas que se encontram as teses que enquadravam a responsabilidade civil médica no exclusivo âmbito da responsabilidade extracontratual, baseadas no pressuposto de que os direitos e deveres dos médicos resultam apenas da lei e de normas deontológicas, não podendo a vida e saúde humanas ser objecto de relações jurídicas de troca.
A obrigação assumida ou devida pelo médico tem vindo a ser qualificada, em geral, como obrigação de meios, sustentando os defensores desta orientação que esse profissional só está obrigado a utilizar os meios adequados para atingir um certo diagnóstico ou definir uma terapia, não lhe sendo exigível alcançar qualquer resultado efectivo, ou seja, a cura do paciente. Não assegurando nem podendo, naturalmente, assegurar a cura da sua enfermidade – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Sobre o ónus da prova nas acções de responsabilidade civil médica, p. 125, Direito da Saúde e Bioética, AAFDL e Carlos Ferreira de Almeida, Os contratos civis de prestação de serviço médico, mesma revista, p. 110, citados pelo Ac. STJ de 15/12/2011, Proc. 209/06.3TVPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.
Em situações contadas, em que o acto médico não comporta, no estado actual da ciência, senão uma ínfima margem de risco, aceita a jurisprudência que o médico se não encontre apenas vinculado a actuar segundo as leges artis, entendendo, até por razões de justiça distributiva, que assumiu um compromisso que implica a obtenção de um resultado, aquele resultado que foi prometido ao paciente (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/03/2008, Proc.º 08A183, in dgsi.pt). Assim, tratando-se de actos médicos de cirurgia estética, entendeu já o Supremo que, se a obrigação contratual do médico pode não ser uma obrigação de resultado, com o médico a comprometer-se “em absoluto” com a melhoria estética desejada, prometida e acordada, é seguramente uma obrigação de quase resultado porque é uma obrigação em que “só o resultado vale a pena”. A ausência de resultado ou um resultado inteiramente desajustado são a evidência de um incumprimento ou de um cumprimento defeituoso da prestação por parte do médico devedor, competindo-lhe, em termos de responsabilidade contratual, o ónus da prova de que o resultado não cumprido ou cumprido defeituosamente não procede de culpa sua, tal como o impõe o nº 1 do art. 799º do CCivil. Não lhe bastando, para cumprir esse ónus, a prova de que o tipo de intervenção efectuada importa um determinado risco (eventualmente aceite pelo paciente); é necessário fazer a prova de que a sua conduta profissional, o seu rigoroso cumprimento das “leges artis”, foi de molde a poder colocar-se o concreto resultado dentro da margem de risco considerada e não dentro da percentagem em que normalmente a intervenção teria êxito (cfr. Acórdão do STJ de 17-12-2009, Proc.º 544/09.9YFLSB, in dgsi.pt; no mesmo sentido, Acórdão desta Relação do Porto de 17-06-2021, Proc.º452/14.1T8PVZ.P1, dgsi.pt).
Nos restantes casos, considera-se que o tratamento é defeituoso, em relação á obrigação principal, quando seja desconforme com as “leis da arte médica”, com as leges artis, de harmonia com os estádios do conhecimento da ciência ao tempo da prestação dos cuidados de saúde Carlos Ferreira de Almeida, ob. cit., p. 116.. E entendendo-se por leges artis o conjunto das regras de arte médica, isto é, das regras conhecidas pela ciência médica em geral como as apropriadas à abordagem de um determinado caso clínico, na concreta situação em que tal contacto ocorre (cfr. Álvaro da Cunha G. Rodrigues, Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos, Direito e Justiça, vol. XIV, t. 3, p. 137). O médico obriga-se, e apenas se compromete, a proporcionar cuidados conforme as leges artis e os seus conhecimentos pessoais. Só se vincula a prestar assistência mediante uma série de cuidados ou tratamentos normalmente exigíveis com o intuito de curar. E assumindo uma obrigação de meios, só haverá violação ilícita do direito de outrem se a intervenção médica se processar ao arrepio das leges artis, também aqui se podendo falar em cumprimento defeituoso. Deixando o médico de realizar a prestação a que está vinculado (art. 762.º, nº 1, do CC), incumbe-lhe provar, depois de apurada a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação, que estes não procedem de culpa sua (art. 799.º, nº 1 do CC), valendo igualmente neste domínio aquele padrão de culpa vertida no art. 487.º, nº 2, para a responsabilidade extracontratual, adoptado, na responsabilidade contratual em apreço, pelo art. 799.º, nº 2, ambos do CC.
Na tese da recorrente, a violação dos deveres deontológicos e das leges artis por parte dos Réus desdobra-se em duas vertentes: a) realização de um acto médico de extracção de um dente sem o consentimento da paciente; e b) desconsideração de toda a sintomatologia relatada pela paciente e descuido dos riscos de complicações, que na sua perspectiva exigiriam a administração de antibioterapia prévia.
No tocante à ausência de consentimento da autora para o acto médico de extracção do dente do siso 38, a tese da autora carece de adesão à prova. Vem provado sob 10) a 12) que na sequência de queixas de fortes dores foi efectuado um exame por raio-x à autora, por via do qual foi constatada a existência de uma cárie no referido dente 38.; em face do que lhe foi proposto, em alternativa, para tratamento da referida cárie, um tratamento conservador por desvitalização, ou a extracção do referido dente. A partir desse momento, a par do problema exclusivamente estético que levou a autora à clínica dentária passou a existir um problema funcional ou sanitário, de saúde oral. E foram colocadas à consideração da autora as duas alternativas de terapia possíveis, tendo a autora optado pela extracção. É certo que não vem especificamente provado que tivessem sido expostos a autora mais detalhes sobre as vantagens e os inconvenientes de cada opção, nem que a autora tivesse pedido esclarecimentos mais aprofundados. Em qualquer caso, a extracção é uma intervenção habitualmente considerada de rotina, que não suscita dúvidas relevantes relativamente a riscos corridos por pacientes isentos de condições particulares de saúde. O alívio da dor e do inchaço após a extracção do dente do siso é conseguido em casos normais com compressa de gelo, que foi recomendada – facto 16). Não se tratando, assim, de acto médico imposto ou abusivo, contrário à vontade do paciente, ou que lhe tenham sido negados os esclarecimentos devidos nos termos do art.º 22.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas, aprovado pelo Regulamento n.º 515/2019 - Diário da República n.º 115/2019, Série II de 2019-06-18, ou do correspondente preceito do anterior, então vigente, aprovado pelo Regulamento interno n.º 2/99 (Diário da República — 2.ª série, n.º 143, de 22 de Junho)
No que respeita á actuação que a autora qualifica de negligente por parte dos réus, por terem omitido, previamente à extracção, a utilização de antibióticos como medida profiláctica ou preventiva, como refere a própria autora, ela mostra-se indicada nos casos em que já existe um quadro infeccioso em curso como a pericoronarite, nas situações de endocardite ou no caso do paciente se apresentar imunodeprimido. É um tratamento prescrito para pacientes de alto risco de complicações infecciosas, como os portadores de condições sistémicas que comprometam o sistema imunológico, incluindo endocardite infecciosa prévia ou doenças cardíacas valvulares, pacientes imunocomprometidos ou de diabetes descontrolada, devendo o médico fazer uma análise casuística já que, também pacientes submetidos a extracções múltiplas ou cirurgias orais invasivas, especialmente em casos de infecção pré-existente. Para doentes que não venham sinalizados como portadores dessas espécies de condições susceptíveis de comprometer o sistema imunológico ou de risco cardiovascular não existe especial indicação para o uso dos antibióticos, que pode até envolver riscos graves: a habituação aos antibióticos leva à perda da eficácia dos mesmos, com o consequente desenvolvimento de micro-organismos resistentes aos antibióticos. Ora a autora não vinha sinalizada como pertencendo a um dos aludidos grupos indicados para a terapia preventiva com antibióticos, não constando que estivesse afectada das referidas vulnerabilidades e que disso tivesse informado os réus. E o despiste dessas patologias exige conhecimentos técnicos e meios complementares de diagnóstico próprios de outras especialidades, que não estão habitualmente disponíveis em clínicas dentárias. Pelo que não resultou violado o dever de exercer a profissão de acordo com as leges artis, compreendido nos princípios fundamentais de conduta constantes do art.º 8.º do aludido Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas.
Impondo-se, pelo exposto, concluir como a 1.ª instância, que não está demonstrada qualquer condição prévia ou contemporânea da A. que tornasse mais provável o risco infeccioso que veio a concretizar-se, bem como não está demonstrada a violação do dever de prestação pela ré da informação indispensável à prestação de consentimento livre e informado.
Não merece, pelo exposto, qualquer reparo a douta sentença recorrida, cuja confirmação se impõe, improcedendo a apelação.

Decisão.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, em função do que confirmam a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 04/06/2025
João Proença
Márcia Portela
Rui Moreira