I. Enquanto na determinação de cada uma das penas parcelares o agente é sancionado pelo facto criminoso individualmente considerado à luz do juízo de censura que esse facto merece dentro dos limites admissíveis [em função da culpa e das particulares exigências de prevenção verificadas quanto a cada um dos crimes], na fixação da pena única atende-se ao conjunto dos factos analisados numa perspectiva dinâmica, avaliando-se a dimensão e gravidade do ilícito global enquanto expressão da personalidade que lhe subjaz.
II. A personalidade do agente é alcançável através de múltiplos factores. Sem dúvida, através de relatórios médicos e sociais; mas também através dos factos concretos referentes aos crimes praticados, da sua motivação, da verificação da existência de uma interconexão revelada por uma reincidência homótropa ou por outros factores que permitam estabelecer uma relação entre eles; e ainda através do número de crimes cometidos, do período em que foram praticados e da sua gravidade objectiva com expressão ao nível das penas aplicadas.
III. Deverão intercorrer no juízo de formação da pena única considerações de adequação e de proporcionalidade, tendo subjacentes a culpa do arguido por referência à sua personalidade e as exigências de prevenção geral e de prevenção especial de socialização, estas últimas com particular relevo na análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 291/292).
IV. O problema clássico suscitado pela proibição da dupla valoração prende-se essencialmente com a autónoma valoração na determinação da pena de factos correspondentes a elementos já considerados no tipo. Na vertente do cúmulo jurídico de penas a questão não se coloca, suposto a valoração relativa ao conjunto dos factos revestir, face à ponderação individualizada de cada um dos crimes, uma coloração essencialmente diversa, evidenciando que em rigor não traduz a ponderação do mesmo factor já anteriormente considerado (Cf. Figueiredo Dias, idem, pág. 292).
V. Na sindicância da medida da pena, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que com ressalva da ostensiva violação dos critérios legais, o tribunal ad quem não deve imiscuir-se no quantum exacto. A margem de intervenção do tribunal superior contém-se essencialmente na verificação da observância dos critérios legais e na adequação da dosimetria encontrada, de tal forma que se a pena encontrada pelas instâncias se contiver ainda no âmbito da faixa que o próprio tribunal superior teria utilizado, a pena estará correctamente doseada e não deverá sofrer alteração. Trata-se, afinal, da recuperação, também aqui, do paradigma da intervenção determinada pela congruência das normas e princípios legais, à luz dos ensinamentos da jurisprudência, com a decisão sindicada. Se, de acordo com esses princípios, normas e critérios a pena estiver fundamentada e se oferecer como justa, deverá ser mantida. Apenas será alterada se assim não suceder.
I – Relatório:
Por acórdão da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 11.12.2024 foi julgado procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogado o acórdão recorrido na parte em que se refere às penas aplicadas ao arguido, fixando-se a pena parcelar para cada um dos 38 (trinta e oito) crimes de abuso sexual de crianças agravado cometidos pelo arguido AA em 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão e a pena única resultante do cúmulo jurídico dessas penas em 7 (sete) anos de prisão. Em tudo o mais, foi confirmado o acórdão recorrido.
Inconformado, o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal, não admitido pela Relação.
Apresentada reclamação, o Exmo. Vice-Presidente do STJ decidiu no sentido da admissibilidade do recurso limitado à pena única fixada, por quanto a ela não haver dupla conforme, admitindo recurso em função da sua medida.
No recurso interposto foram formuladas as seguintes conclusões (transcrição):
1ª - Em 1ª instância o arguido foi condenado na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos e com um regime de prova, tendo a Relação de Coimbra alterada esta condenação para 7 anos, daqui resultando a impossibilidade legal da suspensão da sua execução.
2ª -Apena única aplicada ao arguido, resultou do cúmulo jurídico das penas parcelares de 1 ano e 9 meses, por cada um dos crimes praticados pelo arguido.
3ª – A motivação de direito que foi invocada em sede de 1ª instância, é adequada a justificar a escolha e medida das penas aplicadas ao arguido.
4ª – Contrariamente aquilo que parece resultar do douto acórdão da Relação de Coimbra, a aplicação de uma pena suspensa na sua execução não é nenhum privilégio concedido ao arguido.
5ª – É uma punição que é aplicada no interesse da comunidade.
6ª – Nos termos do art.º 71 do C. Penal o Tribunal não pode menosprezar todas as circunstâncias que militam a favor do arguido.
7ª – O Tribunal de 1ª instância, ao contrário da Relação de Coimbra, levou em linha de conta todas as circunstâncias, quer agravantes quer atenuantes para apurar a medida da pena.
8ª – Tendo inclusive se socorrido de jurisprudência e doutrina para fundamentar a decisão.
9ª – Tendo em conta a personalidade do arguido, o seu enquadramento na sociedade, o facto de ser primário, não ser conhecida qualquer tendência ou carreira para a prática de actos similares, justificam a aplicação da pena decidida em 1ª instância.
10ª – O arguido não desvalorizou a gravidade da sua conduta desconforme á lei.
11ª – O arguido não demonstrou qualquer propensão para a prática de crimes da mesma natureza dos praticados nos presentes autos.
12ª – Nada resultou provado em sede de julgamento, que possa levar o Tribunal às conclusões enumeradas em 10ª e 11ª.
13ª – O arguido demonstrou uma atitude correcta e responsável ao ter aceite as medidas que lhe foram propostas: consultas de psicologia e sexologia. Este facto não foi valorizado, como deveria ter sido, pela relação de Coimbra.
14ª –Ainserção social, familiare profissional do arguido deveservalorizada e não considerada de somenos importância, como parece resultar do douto Acórdão da Relação de Coimbra.
15ª – Igualmente, deve ser valorizado o facto de a suspensão da pena ser sujeita a um regime de prova por parte do arguido.
16ª –Ao contrário do que resulta da análise do douto acórdão da Relação de Coimbra, o Tribunal de 1ª instância aplicou correctamente os princípios gerais de escolha de determinação da pena, tendo as exigências de prevenção geral, quer a positiva que a negativa, sido devidamente acauteladas.
17ª – O Tribunal de 1ª instância, atendendo a toda a matéria que ficou provada, formulou um prognostico muito favorável acerca do comportamento do arguido, para a sua vida futura.
18ª – Daí que o Tribunal de 1ª instância, e bem, tenha aplicado ao arguido as penas parcelares de 1 ano e 9 meses de prisão por cada um dos crimes praticados, cumprindo com as exigências de prevenção geral e de prevenção especial, tendo em atenção as necessidades de tutela do bem jurídico violado e as exigências sociais decorrentes daquela lesão.
19ª – Não se pode concordar com a pena parcelar aplicada pela Relação de Coimbra, pois a mesma é manifestamente exagerada, atendendo à prova produzida e a todas as circunstâncias que militam a favor do arguido e que não podemos olvidar.
20ª – Menosprezar as circunstâncias que militam a favor do arguido é fazer uma aplicação distorcida dos normativos legais.
21ª – Quanto à suspensão da execução da pena de 5 anos de prisão aplicada ao arguido e suspensa por igual período, o Tribunal de 1ª instância, andou bem nesta sua decisão.
22ª – Note-se que o Ministério Publico não é frontalmente contra a aplicação da pena dos 5 anos, mas sim pela sua suspensão.
23ª - A Relação de Coimbra decidiu que a pena única a aplicar ao arguido deverá ser de 7 anos, sendo que, assim, fica vedada a possibilidade de se suspender na sua execução.
24ª – É elemento importante para determinar a pena única a personalidade do agente.
25ª – Isto é importante dado que assim se pode aferir se estamos perante uma tendência criminosa, ou se se trata de uma mera ocasionalidade que não tem alicerce na personalidade do agente.
26ª – O Tribunal de 1ª instância, contrariamente à Relação de Coimbra, atendeu à personalidade do arguido, designadamente ao seu caracter, ás condições de vida, concretamente á sua inserção social, profissional e familiar, à sua conduta anterior e posterior ao crime, nomeadamente a ausência de antecedentes criminais.
27ª – A simples ameaça da execução da pena de prisão é suficiente para evitar a reincidência do arguido.
28ª – Não se entende como a Relação de Coimbra chegou à conclusão de que existiu, por parte do arguido, ausência de autocriticae de empatia pela vítima e não ter interiorizado a sua culpa.
29ª – Enviar o arguido para a prisão, quando está bem inserido e se mostrou disponível para se submeter às consultas de psicologia e sexologia, em nada contribuirá para a sua ressocialização/reabilitação.
30ª – Mais, o envio do arguido para a prisão, neste caso concreto, em nada contribuirá para a resposta energética que o sistema judicial necessita de dar.
31ª – Não podemos esquecer que a suspensão da execução da pena é acompanhada de um regime de prova.
32ª – A suspensão acompanhada de um regime de prova garante as finalidades da punição, sem que seja necessária a privação da liberdade.
33ª – A suspensão da pena acompanhada de um regime de prova, impõe um controlo rigoroso sobre o arguido, sendo certo que o arguido tem consciência que se não cumprir com o regime de prova verá a pena de prisão ser efectivada.
34ª - Para a comunidade é mais vantajoso o arguido ficar em liberdade com o ónus de ter de cumprir com o regime de prova do que ser preso, pois, a comunidade é protegida tanto pela possibilidade de efectivar a pena em caso de reincidência, como pela ressocialização do arguido.
35ª - A suspensão da execução da pena de prisão, associada ao regime de prova, garante uma resposta penal proporcional.
36ª – Com a decisão da Relação de Coimbra, encontram-se violados os art.ºs 40º, 71º, nºs 1 e 2, 77º, 171 e 177º do Código Penal.
Nestes termos (…) deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto acórdão da Relação de Coimbra e mantendo-se o douto acórdão proferido em primeira instância nos seus precisos termos.
O Ministério Público no Tribunal da Relação de Coimbra respondeu, pronunciando-se pela total improcedência do recurso.
Neste Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela improcedência do recurso, considerando nenhuma censura suscitar a decisão recorrida, sendo de concluir que a pena única aplicada, fixada ligeiramente acima do primeiro quinto da penalidade abstractamente aplicável (de 2 anos e 3 meses de prisão a 25 anos de prisão) se configura justa, por adequada e proporcional à gravidade dos factos e à personalidade do agente, e conforme aos critérios definidores dos artigos 40.º, n.º 1 e 2, 71.º e 77.º, do Código Penal.
Colhidos os vistos legais, os autos foram à conferência.
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação – sem prejuízo do que for de oficioso conhecimento pelo tribunal ad quem –, a única questão a decidir prende-se com a medida da pena do concurso de crimes, que o recorrente considera excessiva.
II – Fundamentação:
A matéria de facto fixada pelas instâncias é a seguinte:
a) Factos provados
a.1) BB nasceu no dia ... de ... de 2011 e é filha de AA e de CC.
a.2) O arguido divorciou-se de CC em 12/10/2012.
a.3) BB ficou a viver com a mãe e passou a estar com o arguido, na residência deste, sita na Rua do ..., em ..., ao fim-de-semana, uma vez por mês, de sexta feira à noite a domingo até cerca das 17h00m.
a.4) Tal sucedeu desde 2014 e até 21 de Outubro de 2023, exceptuados os períodos de confinamento/limitação de mobilidade por motivo da pandemia por Covid – Coronavírus, nos períodos de 18 de Março de 2020 a meados de Abril de 2020 e de 15 de Janeiro de 2021 até 15 de Abril de 2021.
a.5) Desde data não concretamente determinada de Maio de 2020 e até 21 de Outubro de 2023, durante os fins-de-semana em que teve a filha BB aos seus cuidados, na sua residência, o arguido começou a acariciar e a apalpar o corpo da filha e a dar-lhe beijos, como forma de satisfazer os seus instintos libidinosos.
a.6) Para tanto, quando ambos estavam no sofá da sala a ver televisão, deitados um ao lado do outro, o arguido despiu-a, começando por lhe retirar a roupa de cima e depois a de baixo, ficando a menor completamente nua.
a.7) Após, o arguido virava-se para a filha, encostava-se a ela com o peito, fazendo-o umas vezes com, outras vezes sem a camisa, e começava a passar-lhe a mão pelo rosto, e depois por todo o corpo, acariciando-o e apalpando-o, mormente na cara, nas pernas e na vagina.
a.8) Simultaneamente, o arguido beijava o corpo da filha, nomeadamente no rosto, no pescoço, nas mamas e nos braços.
a.9) O arguido apalpava as mamas da filha e fazia-lhe círculos nos mamilos com os dedos.
a.10) Seguidamente, continuava a acariciar o corpo daquela, baixando as mãos até à zona genital, abria-lhe as pernas e massajava com os dedos, e com alguma pressão, o clitóris da filha, fazendo movimentos circulares.
a.11) O arguido, depois de acariciar, apalpar e beijar o corpo da filha nos termos descritos, deslocava-se à casa de banho, onde se masturbava.
a.12) Enquanto o arguido permanecia na casa de banho, a BB ficava na sala e vestia-se.
a.13) O arguido aproveitou o facto de ser pai de BB e de a ter aos seus cuidados para a sujeitar aos actos descritos, sendo que esta, dada a sua idade aquando do início de tais práticas, não percebia o que lhe fazia.
a.14) Com efeito, aquela só se apercebeu que a conduta do arguido não era correcta, em data não apurada, mas quando tinha nove anos de idade, depois de assistir a um programa televisivo relacionado com a temática dos abusos sexuais de crianças.
a.15) A partir dessa altura, a menor, sempre que o arguido a sujeitava à prática dos actos acima mencionados, ficava paralisada e não reagia por medo e vergonha, não tendo contado nada a ninguém, atentos os sentimentos referidos, bem como por receio do que pudesse vir a suceder ao arguido, caso se viesse a descobrir o que lhe fazia.
a.16) BB só contou, em data não determinada de 2022, às colegas da escola DD e EE que o pai a despia e que tal lhe causava vergonha e tristeza.
a.17) Em dia não concretamente apurado, mas depois de ter visto o referido programa televisivo, BB, como forma de o arguido não a sujeitar aos actos descritos, sabendo com antecedência a hora a que este chegaria a casa, fechou-se no quarto e, quando este chegou, inventou uma desculpa para ali permanecer, sendo que nesse dia aquele não lhe fez nada.
a.18) Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB sentiu-se triste, desconfortável, perturbada e envergonhada, bem como com receio de ser alvo de actos de natureza sexual mais graves por parte do pai.
a.19) Ao adoptar a conduta acima descrita, o arguido actuou sempre sabendo que BB é sua filha e qual a sua idade.
a.20) O arguido agiu sempre com o propósito concretizado de sujeitar a sua filha BB à prática dos actos sexuais acima descritos, aproveitando-se do facto de ser pai desta, bem como de estar a viver consigo naquelas ocasiões, sabendo que tal não lhe era permitido.
a.21) Actuou o arguido do modo supra descrito, com a vontade repetida e persistente de satisfazer os seus instintos libidinosos, sabendo que atentava contra o livre desenvolvimento da personalidade e a liberdade ao nível da sexualidade da sua filha, bem como que punha em crise os sentimentos de pudor e vergonha da mesma, querendo, ainda assim, fazê-lo.
a.22) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Mais se provou:
a.23) Por força dos descritos contactos sexuais entre AA e a sua filha menor BB, esta sentiu desconforto, tristeza, vergonha, repulsa e receio do arguido.
a.24) Em consequência da conduta do arguido a menor BB viu atingida a sua integridade física e moral e o seu livre e pleno desenvolvimento psíquico-sexual e afectivo.
Mais se provou, ainda:
a.25) À data da prática dos factos, o arguido residia sozinho numa moradia própria, sem encargos bancários associados, situada em ..., que dispõe de dois quartos e condições de habitabilidade e conforto.
a.26) O arguido beneficia de uma estrutura de apoio familiar consistente, por parte da mãe e dos tios, com quem existe uma relação estruturante e de proximidade, com laços de afetividade e coesão entre os seus elementos. O pai faleceu em ... de 2021.
a.27) À data da prática dos factos o arguido geria a agência funerária da família “F..., Lda., empresa com três áreas de atividade: florista, corte de pedra e tratamento dos corpos para celebração fúnebre. O arguido exercia atividades na área do corte/acabamento de pedra mármore e granito e na preparação e ornamentação dos cadáveres, auferindo um vencimento bruto de 1345 euros mensais.
a.28) O arguido iniciou o seu percurso profissional com 16/17 anos, para a empresa do pai, na área do corte de pedra e fazendo trabalhos ocasionais para a funerária, sem vinculo contratual, que só veio a adquirir a partir dos 18 anos. Realizou uma formação no Instituto de Medicina Legal de ..., com duração de dois meses, na área da preparação e ornamentação de cadáveres.
a.29) AA iniciou o seu percurso escolar em idade regular, tendo mantido uma trajetória sem registos comportamentais ou dificuldades no processo de ensino/aprendizagem. Sofreu uma retenção no 4º. ano e abandonou o sistema de ensino com a conclusão do 9º. ano de escolaridade, com 17 anos, por estar motivado para iniciar o seu percurso laboral.
a.30) O arguido é reputado como uma pessoa sociável e tranquila, trabalhadora, humilde e sempre disponível para ajudar o próximo, de quem a comunidade vicinal tem boa imagem.
a.31) O arguido praticou futebol entre os 17 e os 21 anos no Clube União de .... Posteriormente passou a jogar no Clube ..., em ..., com jogos duas vezes por semana, seguidos de convívio com os amigos. Ocasionalmente jogava online, com o irmão.
a.32) AA viveu com dois irmãos junto da avó paterna, que recorria à mendicidade para subsistir, até esta entregar os menores numa instituição. Com cinco anos de idade, o arguido e uma irmã foram adotados por um casal sem filhos, que detinha uma condição socioeconómica equilibrada, em que os progenitores detinham uma funerária e outros negócios inerentes àquela atividade. O outro irmão foi adotado por um irmão do pai adotivo do arguido.
a.33) Em termos afetivos-sexuais, o arguido terá iniciado a sua vida sexual com 18 anos com a namorada da altura, um ano mais velha, com quem manteve relacionamento durante cerca de três anos. Estabeleceu outra relação entre os 20 e os 23 anos com outra namorada. Ambas as relações terminaram devido ao ingresso das parceiras no ensino superior.
a.34) Iniciou relacionamento de namoro aos 24 anos com a mãe da filha, um ano mais velha, com quem veio a contrair casamento dois anos mais tarde. Em 2011 nasceu a filha do casal que veio a divorciar-se em 2012.
a.35) A relação do casal era “pacífica”, com uma convivência pautada pelo entendimento e um relacionamento de intimidade gratificante, contudo, após ter engravidado, o cônjuge deixou de querer manter relações sexuais e, após o nascimento da bebé, sofreu uma depressão pós-parto desenvolvendo um sentimento de aversão pelo arguido que produziu um mal-estar na relação e um clima de desentendimentos frequentes que conduziu o casal ao divórcio.
a.36) Desde então o arguido não manteve relações de intimidade com ninguém.
a.37) Foi regulado o exercício das responsabilidades parentais, ficando fixada a pensão de alimentos no valor de 300 euros e o regime de visitas, inicialmente de um fim-de-semana de 15 em 15 dias e posteriormente um fim-de-semana por mês, devido à mudança de residência do ex-cônjuge.
a.38) AA encontra-se preso preventivamente desde 15 de novembro de 2023, afeto ao Estabelecimento Prisional da ... desde 11 de dezembro de 2023.
a.39) O arguido mantém uma conduta adaptada e normativa, ocupando o tempo com jogos de cartas com os reclusos.
a.40) O arguido beneficia de apoio por parte da progenitora, dos tios e do irmão, que o visitam e contribuem assim para a sua estabilidade pessoal no Estabelecimento Prisional.
a.41) Do CRC actualizado do arguido nada consta.
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b) Factos não provados
Para além dos que ficaram descritos, não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa, designadamente, não se provou:
i) Que os factos relatados pela menor BB e constantes da acusação não correspondam à verdade;
ii) Que no período referido na acusação o arguido tenha estado com a menor sua filha um total de 46 fins de semana;
iii) Que apenas por uma vez o arguido tenha tocado a menor nas mamas e no clitóris, e a tenha beijado nos braços, na cara e nas mamas.
***
Em causa no recurso está exclusivamente a medida da pena unitária determinada em cúmulo jurídico, que o Tribunal da Relação de Coimbra fixou em 7 (sete) anos de prisão, aumentando por essa via em dois anos a pena única anteriormente fixada em 1ª instância em 5 (cinco) anos de prisão que, aliás, tinha sido suspensa na sua execução por 5 anos, com regime de prova e a obrigação de sujeição do arguido a tratamento psicológico e acompanhamento em consultas de sexologia.
Vejamos então, num primeiro momento, como se determina a pena do concurso, para depois analisarmos a concreta situação dos autos em ordem a verificar se a determinação da pena obedeceu ao critério legal e se esta foi fixada numa medida justa.
Fazendo apelo ao texto do acórdão deste STJ, de 15.12.2021, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Nuno Gonçalves, diremos que o cúmulo jurídico é uma construção normativa, de matriz dogmática, com a finalidade de fundir numa pena única as penas de prisão em que o mesmo agente foi condenado por ter cometido uma multiplicidade de crimes que, entre si, estão numa relação juridicamente determinada 1.
Por seu turno, o Exmo. Juiz Conselheiro Rodrigues Gaspar, em acórdão também deste STJ, datado de 15/12/2011, refere que a punição do concurso de crimes com uma «única pena» pressupõe, pois, a existência de uma pluralidade de crimes praticados pelo mesmo agente que tenham de comum um determinado período de tempo, delimitado por um ponto de referência ad quem estabelecido na norma - o trânsito em julgado da condenação por qualquer deles; todos os crimes praticados antes de transitar em julgado a condenação por um deles devem determinar a aplicação de uma pena única, independentemente do momento em que seja conhecida a situação de concurso, que poderá só ocorrer supervenientemente por facto de contingências processuais várias 2.
Para a determinação da pena unitária há que encontrar a moldura do concurso segundo os ditames do art. 77º, nº 2, do Código Penal. Essa moldura, quando estejam em causa exclusivamente penas de prisão, deverá conter-se entre o limite máximo correspondente à soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes sem que possa exceder 25 anos e o limite mínimo correspondente à mais elevada das penas concretamente aplicadas.
O critério da medida da pena resultante do cúmulo jurídico tem consagração na parte final do nº 1 do art. 77º do Código Penal, na parte em que dispõe que “na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, o que não significa que esta norma esgote na sua totalidade os factores a ponderar. Também a pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares pressupõe o recurso às exigências de prevenção, geral e especial, e também ela encontra limite na medida da culpa. Simplesmente, a determinação desta pena única, porque se trata de uma pena referida a uma multiplicidade de factos temporalmente encadeados mas analisados de per se relativamente a cada uma das penas parcelares, exige, em sede de cúmulo jurídico, a adopção de um critério complementar, consubstanciado na ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente, posto que aqueles factos poderão ou não afirmar-se como um reflexo da personalidade. Assim, os factos fornecerão o âmbito de incidência do juízo de censura e a personalidade do agente funcionará como o seu elemento aglutinador, sendo através da correlação daqueles factos com esta personalidade que se determinará se aqueles não são mais do que uma actuação delitiva plúrima, sem verdadeira interconexão 3, a reflectir essencialmente uma resposta conjuntural a condições de vida mais adversas, a um circunstancialismo mais propício ao cometimento dos crimes, ou a qualquer outro estímulo exógeno que não permite afirmar os factos como produto da natureza intrínseca do arguido, isto é, da sua personalidade, ou se constituem já a expressão de uma verdadeira tendência criminosa, reflexo de uma personalidade que optou decididamente pela senda do crime, caso em que se deverá atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta 4.
Assim, enquanto que na determinação de cada uma das penas parcelares o agente é sancionado pelo facto criminoso individualmente considerado à luz do juízo de censura que esse facto merece dentro dos limites admissíveis [em função da culpa e das particulares exigências de prevenção verificadas quanto a cada um dos crimes], na fixação da pena única atende-se ao conjunto dos factos analisados numa perspectiva dinâmica, avaliando-se a dimensão e gravidade do ilícito global 5 enquanto expressão da personalidade que lhe subjaz.
A personalidade do agente é alcançável através de múltiplos factores. Sem dúvida, através de relatórios médicos e sociais; mas também através dos factos concretos referentes aos crimes praticados, da sua motivação, da verificação da existência de uma interconexão revelada por uma reincidência homótropa ou por outros factores que permitam estabelecer uma relação entre eles; e ainda através do número de crimes cometidos, do período em que foram praticados, e da sua gravidade objectiva com expressão ao nível das penas aplicadas.
Por fim, deverão intercorrer no juízo de formação da pena única considerações de adequação e de proporcionalidade, tendo subjacentes a culpa do arguido por referência à sua personalidade e as exigências de prevenção geral e de prevenção especial de socialização, estas últimas com particular relevo na análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente 6.
A gravidade relativa de cada um dos factos criminalmente relevantes terá sido já considerada na determinação da pena correspondente, pelo que na determinação da pena conjunta os critérios gerais indicados no art. 71º – culpa e prevenção – funcionam, em princípio, apenas como referência da pena única. Não se segue, porém, que os factores conformadores das exigências de prevenção, ou mesmo da culpa, por já valorados na determinação concreta de cada uma das penas parcelares, não possam ser de novo atendidos, não valendo aqui a objecção da proibição de dupla valoração. Em sede de cúmulo jurídico de penas o que essencialmente releva é a visão de conjunto, pelo que a conformação individual de cada facto se esbate perante a perspectiva do conjunto, por só esta permitir correlacionar os factos entre si em ordem à verificação de uma verdadeira tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade. O problema clássico suscitado pela proibição da dupla valoração prende-se essencialmente com a autónoma valoração na determinação da pena de factos correspondentes a elementos já considerados no tipo. Na vertente do cúmulo jurídico de penas a questão não se coloca, suposto a valoração relativa ao conjunto dos factos revestir, face à ponderação individualizada de cada um dos crimes, uma coloração essencialmente diversa, evidenciando que em rigor não traduz a ponderação do mesmo factor já anteriormente considerado 7.
No caso vertente todas as penas em concurso são penas de prisão, estabelecendo-se a moldura do concurso entre um limite mínimo de 2 (dois) anos e 3 ( três ) meses de prisão e o limite máximo de 25 (vinte e cinco) anos de prisão, resultante da compressão imposta pelo nº 2 do art. 77º do Código Penal.
Determinada esta moldura, há que encontrar a pena única de acordo com uma visão de conjunto relativamente aos factos praticados, no seu ordenamento histórico e cronológico em interacção com a personalidade do agente, sopesando ainda os demais itens apontados no critério que desenvolvemos supra.
Na sindicância da medida da pena, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que com ressalva da ostensiva violação dos critérios legais, o tribunal ad quem não deve imiscuir-se no quantum exacto. Não obedecendo a pena a critérios matemáticos, antes a um critério de ordem jurídica, a margem de intervenção do tribunal superior contém-se essencialmente na verificação da observância dos critérios legais e na adequação da dosimetria encontrada, de tal forma que se a pena encontrada pelas instâncias se contiver ainda no âmbito da faixa que o próprio tribunal superior teria utilizado, a pena estará correctamente doseada e não deverá sofrer alteração. Trata-se, afinal, da recuperação, também aqui, do paradigma da intervenção determinada pela congruência das normas e princípios legais, à luz dos ensinamentos da jurisprudência, com a decisão sindicada. Se, de acordo com esses princípios, normas e critérios a pena estiver fundamentada e se oferecer como justa, deverá ser mantida. Apenas será alterada se assim não suceder.
Vejamos então qual foi o raciocínio desenvolvido pelo Tribunal da Relação na determinação da pena única, por apelo ao texto do correspondente acórdão, nessa parte, do qual consta o seguinte (transcrição):
(…)
Existe homogeneidade de conduta no que respeita aos crimes praticados pelo arguido sobre a mesma e única vítima, quer pela sua natureza, quer pela sua localização, quer, ainda, pelo modo de execução.
Já no que tange ao período temporal por ela abrangida, importa dizer que entre a prática do primeiro crime (em Maio de 2020) e a prática do último (em Outubro de 2023) decorreram cerca de três anos e meio, ou seja, um longo período.
Também quanto à ilicitude dos factos, que deverá ser ponderada como de grau muito elevado relativamente a cada um dos 38 crimes cometidos pelo arguido, realça-se, para tanto, que a conduta do arguido relativamente a tais crimes de abuso sexual de crianças agravado por ele cometidos compreendeu sempre distintas formas abrangidas pelo referido tipo legal, acariciando e beijando várias zonas do corpo da filha menor (rosto, pescoço, mamas, braços e pernas ) e acariciando e massajando com os dedos a zona genital da mesma, e, com alguma pressão, o clitóris, entendimento que não contende com a circunstância trazida a lume pelo recorrido em sede de resposta ao recurso, relacionada com a ausência de consequências, pelo menos ao nível da integridade física da menor, porquanto, a mesma, não fazendo parte do tipo dos crimes de abuso sexual de crianças agravado pelos quais foi o mesmo condenado, não poderá justificar diferente entendimento quanto ao grau da ilicitude das suas condutas.
Para além disso, o recorrente revela ausência de autocrítica e de empatia para com a vítima, sua filha, não assumindo os seus vários e reiterados comportamentos para com a mesma, demonstrativo de não ter interiorizado a sua culpa, aproveitando-se da natural inocência da menor para satisfação dos seus instintos libidinosos, quando o que dele se esperava, como pai, é que tudo fizesse para, durante a estadia da mesma consigo no âmbito do regime de visitas delineado, usufruindo da sua companhia de forma sã, segura e saudável, de forma a proporcionar-lhe um desenvolvimento da sua personalidade, em crescimento, de forma harmoniosa.
Para além disso, apesar da sua inserção social, familiar e profissional, que dever ser ponderada, assim como a ausência de passado criminal, tais circunstâncias, ainda que de pendor favorável, pouco relevam, tendo em conta a natureza dos crimes em causa.
E, não sendo embora possível concluir pela existência de uma carreira criminosa, a imagem global do facto e as necessidades de prevenção a nível geral relativamente a crimes desta natureza, impõem uma resposta enérgica do sistema de justiça que se não compadece com o quantum da pena única decidida no acórdão recorrido, a qual, mesmo em face das penas parcelares nele decididas sempre pecaria por defeito.
Daí que, atenta a moldura penal abstrata aplicável ao concurso de crimes e as considerações que antecedem, entendamos que a pena única de 7 (sete) anos de prisão seja a que se mostra adequada e proporcional às circunstância do caso, e sempre plenamente suportada pela medida da culpa do arguido, (…)
Na aplicação prática da perspectiva que antes desenvolvemos é-nos dado verificar que num período de tempo de cerca de 3 anos e meio, que se iniciou em Maio de 2020 e se protelou até Outubro de 2023, o ora recorrente praticou uma sucessão de crimes de abuso sexual de crianças agravado, incidindo todos eles sobre a mesma vítima, sua filha.
A matéria de facto, dando conta das circunstâncias dos diversos crimes cometidos, denota uma intenção bem vincada, dominada por uma forte vontade de cometimento dos crimes, sobressaindo uma solução de continuidade que opera a ligação dos diversos ilícitos praticados por referência a uma personalidade claramente atreita ao cometimento daquele tipo de ilícitos.
A gravidade dos factos praticados, reflectindo-se na ilicitude global do facto, projecta-se na culpa enquanto “razão de ser” da pena, mas também enquanto factor determinante do seu limite, traduzindo um juízo ético-jurídico de censura dum facto típico por referência à pessoa do seu agente 8 (por não ter actuado de forma diversa podendo e devendo tê-lo feito), implicando, no caso, um juízo de censurabilidade superior à mediania.
As necessidades de prevenção geral são elevadas, evidenciando o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) referente a 2024 ser o crime de abuso sexual de crianças o crime de natureza sexual mais relevante dentro da tipologia dos crimes sexuais, predominando a respectiva prática em contexto familiar.
O número de crimes cometidos e o lapso temporal em que perdurou a actuação sancionada geram uma perspectiva de conjunto, ou seja, uma imagem global do facto em análise, que para além de em nada favorecer o recorrente reclama expressão ao nível da pena única resultante do cúmulo jurídico. A sucessão de actos criminosos praticados retira relevo à ausência de antecedentes criminais, circunstância que, de resto, não releva com a amplitude que o recorrente pretende atribuir-lhe, projectando-se nas exigências de prevenção especial.
No enquadramento fáctico descrito, valoradas ainda as condições pessoais do recorrente nos termos provados, há que concluir que a pena única de 7 anos de prisão que veio a ser imposta em recurso pelo Tribunal da Relação de Coimbra não excede a medida da culpa, satisfaz as exigências de prevenção geral referentes ao tipo de crime em análise e dá resposta adequada à necessidade de influir no comportamento futuro do agente em termos de adesão aos valores ético-sociais. Dito de outro modo, é uma pena justa, que tem subjacente um ponderado equilíbrio dos factos na sua relação com a personalidade do agente, tendo sido equilibradamente fixada dentro da moldura penal, pelo que deverá ser confirmada.
III – Dispositivo:
Nestes termos, acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando integralmente o acórdão recorrido.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em 6 UC (art. 513º, nº 1, do CPP, art. 8º, nº 8, do Regulamento das Custas Processuais e correspondente Tabela III).
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Supremo Tribunal de Justiça, 28.05.202
Jorge Jacob (relator)
Ernesto Nascimento
Ana Paramés
(Processado pelo relator com recurso a meios informáticos e revisto por todos os signatários)
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1. - Proc. nº 5402/20.3T8LRS.S1
2. - Proc. nº 222/07.3PBCLD-A.L1.S1
3. - «Uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade», na expressão de Figueiredo Dias. Cf. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 291.
4. - Figueiredo Dias, ob. e pág. citadas.
5. - A expressão é de Figueiredo Dias, ob. e pág. citadas.
6. - Uma vez mais Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 291/292.
8. - Para utilizar a expressão de Taipa de Carvalho, trata-se de uma «atitude ético-pessoal de oposição ou de indiferença perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta ilícita». Cf. Direito Penal - Parte Geral, pág. 466.