RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECLAMAÇÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INCONSTITUCIONALIDADE
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


Resultando dos termos da reclamação que o reclamante se limita a expressar o seu inconformismo e discordância relativamente ao acórdão proferido, pretendendo que o STJ inverta o sentido da sua decisão e conheça da matéria de facto, reapreciando-a e reformando em conformidade a decisão anterior, o processado atinente à reclamação afirma-se como estranho ao normal desenvolvimento da lide, devendo ser tido como incidente anómalo e, como tal, sujeito a tributação nos termos do disposto no artigo 7.º, n.ºs 4 e 8, do Regulamento das Custas Processuais.

Texto Integral


Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório:

Notificado do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 20.03.2025, dele veio o recorrente reclamar nos termos dos arts. 1º e seguintes, nomeadamente, arts. 379º nº 1 c), 419º 3º b), todos do Cód. Proc. Penal (sic!) nos seguintes termos:

O recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo entre outros, por objecto o seu recurso, a reapreciação da matéria de facto decidida em segunda instância pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

Tendo tal recurso, sido interposto pelo arguido de decisão condenatória proferida pela primeira vez no processo pelo Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto nos arts. 1º e ss. do Cód. Proc. Penal.

Sucede que, o STJ decidiu não conhecer o recurso da matéria de facto, porquanto interpretou que o art. 434º do Cód. Proc. Penal, exclui o recurso em matéria de facto. Apreciando e decidindo, oficiosamente, que tal interpretação não enferma de inconstitucionalidade. Não violando, assim, o art. 32º nº 1 e 18º nº 2, ambos da Constituição da República Portuguesa, segundo o seu entendimento. Entende-se que o acórdão ora reclamado, consubstancia uma nulidade processual, porquanto o Supremo Tribunal de Justiça deixou de conhecer questão à qual estava obrigada a conhecer.

Assim, é apresentada a presente reclamação.

Para o acórdão escusar-se a reapreciar a matéria de facto, teceu os seguintes fundamentos:

“impõe-se concluir com igual segurança que o arguido e recorrente não pode interpor recurso para o STJ relativamente a matéria de facto, mesmo que fosse restrito ao conhecimento dos vícios previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º do CPP, porque, in casu, os poderes de cognição do STJ se encontram limitados a matéria de direito pelo artigo 434º.

Tal não impede, porém, o conhecimento oficioso dos vícios previstos no artigo 410º nº 2 quando o STJ se veja confrontado com hipótese que possa enquadrar se em algum deles, como tem sido entendimento mantido pelo STJ pelo menos desde o Acórdão (de fixação de jurisprudência) nº 7/95, desde que o vício oficiosamente detetado seja inultrapassável para o STJ, impedindo-o de conhecer das questões de direito que integram o objeto do recurso, conforme se verificava no Ac STJ de 23.11.2023, rel. António Latas, situação específica que não se verifica no presente recurso, pois não se vislumbra, sequer, vício que pudesse enquadrar-se na previsão das alíneas do nº2 do art. 410º CPP.

11.1.2.Posto isto e apesar de o recorrente não suscitar a respetiva inconstitucionalidade, impõe-se aferir se a irrecorribilidade da decisão em matéria de facto para o STJ, decorrente da redação do artigo 434º do CPP introduzida pela Lei 94/2021de de 21.12., com o sentido que lhe reconhecemos supra, se mantém no caso particular das decisões da relação que invertam decisão absolutória de primeira instância, como se verifica no caso sub judice, ou se deve entender-se que a recorribilidade do acórdão inovatório da Relação em matéria de facto para o STJ é constitucionalmente imposta nestes casos.

A este respeito pronunciou-se já o Ac STJ de 15.02.2023, rel. Ana Brito (acessível em www.dgsi.pt) no sentido de não ser inconstitucional a irrecorribilidade em matéria de facto da decisão condenatória da Relação proferida em recurso, que inverte decisão absolutória de 1ª instância, entendimento, que igualmente perfilhamos, assente em grande medida na argumentação desenvolvida no citado Ac STJ de 15.02.3023.

11.1.3. Sucede, porém, que este posicionamento é questionado na doutrina, com fundamento em razões de natureza constitucional, pronunciando-se no sentido da admissibilidade de recurso em matéria de facto de acórdão condenatório da Relação quando esta decide em recurso invertendo decisão absolutória de primeira instância, como se verifica no caso sub judice, Helena Morão e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 5ª ed. p. 728 e Helena Morão, A Revista Penal em Revista in a Revista – Supremo Tribunal de Justiça, julho a dez. 2022, p. 147. Entendem aqueles autores no Comentário citado que é inconstitucional, por violação do artigo 32º nº1 da Constituição, a norma do artigo 434º, se interpretada no sentido de impedir que o STJ assuma, por analogia, poderes do TR em matéria de facto (artigos 412º nº6, 428º e 431 als a) e b, tanto nos recursos interpostos pelo arguido de decisões condenatórias proferidas em 1ª instância pelo TR (contra magistrados – art. 432º nº1 a)), como nos recursos (como o presente) interpostos pelo arguido de decisões condenatórias proferidas pela primeira vez no processo pelo TR em 2ª instância (art. 400º nº 1 al. e, parte final, haja ou não reenvio quanto à questão da pena.)

Considera ainda a autora no seu texto de 2022 supracitado, que: «Apesar de, neste caso, já duas instâncias se terem pronunciado sobre a causa, diversamente do que ocorre na situação da al. a) [ do nº1 do artigo 432º] , a primeira decisão é uma absolvição e, assentando a decisão condenatória da Relação numa apreciação distinta da prova, esta discordância em matéria de facto só poderá ser corretamente dirimida num recurso sobre essa matéria. O direito ao recurso da defesa configura, deste modo, um limite constitucional à função de mero tribunal de revista penal do Supremo Tribunal de Justiça, tendo em atenção que outra interpretação redundaria numa estruturação do sistema de recursos contrária à presunção de inocência, i.e., em que à acusação é conferida uma melhor oportunidade de obter uma inversão de absolvição em recurso da questão por um tribunal superior, quer quanto à matéria de direito quer quanto à matéria de facto» .

Sucede, porém, que tal como se destaca no Ac STJ de 15.2.2023 supracitado, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da conformidade constitucional da tese da irrecorribilidade, considerando em diversos acórdãos (v.g Acs TC 523/21, 524/21 e 525/21, todos de 13.07.2021), « … não se revelar desproporcionado ou excessivo que o arguido fique circunscrito à faculdade de influir ex ante no juízo decisório da Relação e sem a possibilidade de uma impugnação ex post, atenta a menor gravidade da sanção [pena de prisão igual ou inferior a 5 anos de prisão ou pena não privativa da liberdade] e a necessidade de racionalização do acesso ao Supremo. (…)».

Igual juízo parece-nos impor-se nos casos de irrecorribilidade da decisão proferida em matéria de facto, quando esta decisão foi proferida em via de recurso por tribunal da relação que inverteu decisão absolutória do tribunal de 1ª instância (como no caso sub judice). Essencialmente, porque os termos do recurso em matéria de facto concedem ao arguido sérias oportunidades de participar na conformação da decisão a proferir pelo tribunal da relação em via de recurso, apesar de apenas intervir ex ante.

11.1.4.2. Com efeito, tendo presente a distinção conceptual entre o direito a um grau de recurso expressamente mencionado no art. 32º nº 1 CRP enquanto garantia de defesa do arguido e a garantia de um duplo grau de jurisdição (que, apesar de não ser expressamente mencionada no texto constitucional, constitui pelo menos um pressuposto do direito ao recurso) – cf. fundamentação do acórdão do Ac. TC 595/2018 -, temos por

certo que, sendo a garantia de um duplo grau de jurisdição assegurada no caso presente por via da admissibilidade de recurso da decisão absolutória (ainda que consagrada a favor de outros sujeitos processuais e contra o arguido), a tramitação do recurso no tribunal recorrido possibilita que o arguido recorrido se pronuncie suficientemente sobre o objeto do recurso e os respetivos fundamentos, participando ex ante da decisão do recurso em matéria de facto em termos que não se afastam significativamente do que resultaria, ex post, da interposição de recurso da decisão da matéria de facto proferida em 1º instância, se a lei de processo o previsse.

11.4.1.3. Na verdade, impondo o artigo 412º nº3 als a), b) e c), que o recorrente especifique os pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, eventualmente, as provas que entende deverem ser renovadas (caso tal se verificasse), bem como as especificações das passagens das provas gravadas ( nº4), tem o arguido recorrido a faculdade de se defender ampla e circunstanciadamente do recurso em matéria de facto, em termos praticamente decalcados das exigências de forma e conteúdo impostas ao recorrente (artigo 413ºnº5).

Com efeito, depois da interposição de recurso e da sua admissão por despacho, o juiz do processo ordena a notificação da interposição do recurso ao recorrido, nos termos conjugados dos artigos dos artigos 414º nº1 e 411º nº 6, para que conheça a respetiva fundamentação in totum e possa pronunciar-se circunstanciadamente sobre o respetivo mérito em 30 dias (prazo igual ao do recorrente), incluindo eventual tomada de posição sobre a prova que suporte o recurso da decisão absolutória recorrida, em matéria de facto, e para que possa indicar outra prova que contrarie a indicada pelo recorrente, outros pontos que considere erradamente julgados e a prova respetiva, fazendo as respetivas especificações, tal como expressamente lhe permite o citado artigo o artigo 413º nº 4– vd neste sentido e com interesse para as demais questões versadas, o Ac STJ de 13.2.2025, rel. Jorge Gonçalves.

Os meios concretamente disponibilizados ao arguido para fazer valer no processo os seus direitos de defesa no caso de interposição de recurso em matéria de facto contra decisão absolutória proferida em 1ª instância asseguram, pois, em substância, o direito ao recurso - e ao duplo grau de jurisdição que aquele pressupõe - consagrado no art. 32º nº1 CRP.

Também a CEDH se mostra respeitada com o referido regime legal da recorribilidade em matéria de facto , na medida em que o Protocolo nº 7 que prevê no seu artigo 2º o direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal, admite exceções a tal direito no seu nº2, nomeadamente “… quando o interessado tenha sido … declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição”, precisamente a hipótese colocada no caso presente – vd, já nestes termos os citados Ac STJ de 15.2.2023 e de 13.02.25. Por último, sempre se diga que ao aprovar a Lei 94/2021 o legislador merecerá o crédito de ter ponderado seriamente a hipótese de inconstitucionalidade da irrecorribilidade em matéria de facto de acórdão da Relação que, inovadoramente, condena arguido absolvido em 1.ª instância. Porquanto, pode dizer-se, tem andado um passo à frente da jurisprudência do Tribunal Constitucional (bem como do regime da CEDH) ao reconhecer a recorribilidade de decisão condenatória que, na sequência de inversão de anterior decisão absolutória, aplique pena não privativa da liberdade (incluindo pena de substituição) ou mesmo pena de prisão não superior a 5 anos, apesar de o Tribunal Constitucional (apenas) se ter pronunciado pela inconstitucionalidade da norma que estabelece [ia] a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos (cf. Ac TC, com força obrigatória geral, Ac TC 595/2018).”

Ora, com a devida vénia, não se aceita tal fundamentação. Sendo que, entende-se que resulta da mesma, que o Supremo Tribunal de Justiça devia ter conhecido e reapreciado a matéria de facto. Pois, e como resulta da fundamentação, 11.1.3. Sucede, porém, que este posicionamento é questionado na doutrina, com fundamento em razões de natureza constitucional, pronunciando-se no sentido da admissibilidade de recurso em matéria de facto de acórdão condenatório da Relação quando esta decide em recurso invertendo decisão absolutória de primeira instância, como se verifica no caso sub judice, Helena Morão e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 5ª ed. p. 728 e Helena Morão, A Revista Penal em Revista in a Revista – Supremo Tribunal de Justiça, julho a dez. 2022, p. 147.

Entendem aqueles autores no Comentário citado que é inconstitucional, por violação do artigo 32º nº1 da Constituição, a norma do artigo 434º, se interpretada no sentido de impedir que o STJ assuma, por analogia, poderes do TR em matéria de facto (artigos 412º nº6, 428º e 431 als a) e b, tanto nos recursos interpostos pelo arguido de decisões condenatórias proferidas em 1ª instância pelo TR (contra magistrados – art. garantias de defesa asseguradas ao arguido em processo criminal, a propósito do qual se pronunciam Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed.-2007 p. 516, no sentido de que «…em matéria penal, o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição [que se traduz] na reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto à matéria de direito quer quanto à matéria de facto» . Sendo que,

Entende-se que o Protocolo nº 7 da CEDH, tem um sentido diferente, ao parcialmente transcrito no acórdão ora reclamado. Pois, resulta do texto completo de tal normativo:

ARTIGO 2°

Direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal

1. Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei.

2. Este direito pode ser objecto de excepções em relação a infracções menores, definidas nos termos da lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição. (o sublinhado é nosso)

Ora, no caso concreto, como é obvio não estamos perante uma infracção menor!

Mas sim,

Uma condenação ao arguido pela prática de:

- Um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea a), por referência ao disposto no art. 202º, alínea b), todos do C. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão e de

- Um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo artigo 256.º, n.º1, alínea d), por referência à alínea a) do artigo 255º, todos do C. Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão.

Em cúmulo jurídico, aplicou-lhe a pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos.

Sendo entendimento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem:

“O artigo 13º não garante um recurso para o tribunal superior ou o direito a um segundo grau de jurisdição. Porém, quando a questão tem natureza penal é aplicável o art. 2º do Protocolo nº 7.” (acórdão Gurepka c.Ucrânia, de 06/06/2005, considerando 51, 57 e ss.)

Logo, a interpretação dada ao art. 434º do Cód. Proc. Penal, pelo douto acórdão ao decidir não conhecer o recurso da matéria de facto, porquanto interpretou que tal norma exclui o recurso em matéria de facto, e sua consequente reapreciação, enferma de inconstitucionalidade, violando os art. 32º nº 1 e 18º nº 2, ambos da Constituição da República Portuguesa.

Assim, deverá, ao abrigo do disposto do art. 432º, 434º do Cód. Proc. Penal, ser conhecida e reapreciada a matéria de facto, nos termos constantes do recurso interposto.

CONCLUSÕES

1. O recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo entre outros, por objecto o seu recurso, a reapreciação da matéria de facto decidida em segunda instância pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

2. Tendo tal recurso, sido interposto pelo arguido de decisão condenatória proferida pela primeira vez no processo pelo Tribunal da Relação.

3. Sucede que, o STJ decidiu não conhecer o recurso da matéria de facto, porquanto interpretou que o art. 343º do Cód. Proc. Penal, exclui o recurso em matéria de facto, apreciando e decidindo, oficiosamente, que tal interpretação não enferma de inconstitucionalidade.

4. Não violando, assim, o art. 32º nº 1 e 18º nº 2, ambos da Constituição da República Portuguesa, segundo o seu entendimento

5. Entende-se que o acórdão ora reclamado, consubstancia uma nulidade processual, porquanto o Supremo Tribunal de Justiça deixou de conhecer questão à qual estava obrigada a conhecer.

6. Ou seja, a reapreciação da matéria de facto.

7. Assim, é admissível o recurso em matéria de facto de acórdão condenatório da Relação quando esta decide em recurso invertendo decisão absolutória de primeira instância, como se verifica no caso sub judice.

8. Sendo inconstitucional, “por violação do artigo 32º nº1 da Constituição, a norma do artigo 434º, se interpretada no sentido de impedir que o STJ assuma, por analogia, poderes do TR em matéria de facto (artigos 412º nº6, 428º e 431 als a) e b, tanto nos recursos interpostos pelo arguido de decisões condenatórias proferidas em 1ª instância pelo TR (contra magistrados – art. 432º nº1 a)), como nos recursos (como o presente) interpostos pelo arguido de decisões condenatórias proferidas pela primeira vez no processo pelo TR em 2ª instância (art. 400º nº 1 al. e, parte final, haja ou não reenvio quanto à questão da pena.)” Helena Morão e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 5ª ed. p. 728.

9. Pois, «Apesar de, neste caso, já duas instâncias se terem pronunciado sobre a causa, diversamente do que ocorre na situação da al. a) [ do nº1 do artigo 432º] , a primeira decisão é uma absolvição e, assentando a decisão condenatória da Relação numa apreciação distinta da prova, esta discordância em matéria de facto só poderá ser corretamente dirimida num recurso sobre essa matéria. O direito ao recurso da defesa configura, deste modo, um limite constitucional à função de mero tribunal de revista penal do Supremo Tribunal de Justiça, tendo em atenção que outra interpretação redundaria numa estruturação do sistema de recursos contrária à presunção de inocência, i.e., em que à acusação é conferida uma melhor oportunidade de obter uma inversão de absolvição em recurso (designadamente, um pleno recurso em matéria de facto) do que ao arguido para afastar uma condenação em recurso (simples recurso de revista ampliada), o que não se pode aceitar.» ob. cit.

10. Diz ainda a mesma autora, que « … não parecendo aceitável, à luz do princípio da igualdade, que o arguido condenado pela primeira vez em segunda instância tenha um direito de defesa da condenação, em recurso, de conteúdo mais reduzido do que o daquele que o tenha sido no primeiro nível de jurisdição e recorra para a Relação, designadamente quanto à impugnação do julgamento de facto (artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal), terá de se consentir, sem apelo nem agravo e sob pena de inconstitucionalidade, que o Supremo assuma, neste tipo de casos, poderes mais amplos que os correspondentes à mera revista alargada (artigo 434.º), por aplicação analógica das normas dos artigos 412.º, n.º 6, 428.º e 431.º, alíneas a) e b), relativas à possibilidade de modificação da matéria de facto » - Vd Helena Morão, Direito Processual Penal dos Recursos, Coimbra, Almedina, 2024, pp. 185 e sgs.”

11. Bem como, «…em matéria penal, o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição [que se traduz] na reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto à matéria de direito quer quanto à matéria de facto» Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed.-2007 p. 516.

12. Finalmente, a isso o impõe o Protocolo nº 7 da CEDH atendendo ao crime pelo qual o arguido foi condenado e respectiva pena.

13. Logo, a interpretação dada ao art. 434º do Cód. Proc. Penal, pelo douto acórdão de entender não conhecer o recurso da matéria de facto, porquanto interpretou que tal norma exclui o recurso em matéria de facto, enferma de inconstitucionalidade, violando os art. 32º nº 1 e 18º nº 2, ambos da Constituição da República Portuguesa.

14. Assim, deverá, ao abrigo do disposto do art. 432º, 434º do Cód. Proc. Penal, ser conhecida e reapreciada a matéria de facto, e em consequência ser revogado o acórdão ora reclamado.

Termos em que (…) deverá a reclamação interposta ser julgada procedente, e assim, ser conhecida e reapreciada a matéria de facto, e em consequência ser revogado o acórdão ora reclamado.

Apreciando e decidindo:

O recorrente e ora reclamante apresentou reclamação nos termos dos arts. 1º e seguintes, nomeadamente, arts. 379º nº 1 c), 419º 3º b), todos do Cód. Proc. Penal.

A referência aos arts. 1º e seguintes do Código de Processo Penal ter-se-á certamente estribado na vã esperança de que este Supremo Tribunal encontrasse ele próprio um fundamento para admissão da reclamação, de tal modo estaria o reclamante ciente da sua inadmissibilidade à luz das duas normas que de seguida concretizou.

O art. 379º, nº 1, al. c), determina a nulidade da sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, norma que manifestamente não tem cabimento no caso concreto. Com efeito, pretendendo o recorrente que o STJ conhecesse da matéria de facto, o acórdão reclamado deixou bem claro que sendo o recurso exclusivamente de direito, nos termos previstos no art. 434º do CPP, não haveria lugar à reapreciação ampla da decisão proferida em matéria de facto, cujo julgamento ficou definitivamente realizado pelas instâncias, tendo explicitado detalhadamente e com clareza as razões subjacentes a essa decisão.

Só haveria omissão de pronúncia se o Tribunal infundadamente se tivesse eximido a conhecer de qualquer das questões suscitadas e desde que o respectivo conhecimento não estivesse prejudicado pela resposta dada a outra ou outras, o que não sucedeu. Nessa medida, não se verifica a nulidade apontada pelo reclamante.

O art. 419º, nº 3, al. b), por seu turno, estabelece que o recurso é julgado em conferência quando a decisão recorrida não conheça, a final, do objecto do processo, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º, não se logrando descortinar o que pretende o recorrente com a referência a esta norma.

Os termos da reclamação permitem verificar que o reclamante se limita a expressar o seu inconformismo e discordância relativamente ao acórdão proferido, pretendendo que o STJ inverta o sentido da sua decisão e conheça da matéria de facto, reapreciando-a e reformando em conformidade a decisão anterior, pretensão que não encontra acolhimento na lei. Aliás, a lei processual penal apenas contempla a reclamação de decisão sumária, nos termos do artigo 417.º, n.º 8, do CPP, não alargando essa possibilidade aos acórdãos proferidos em recurso, sem prejuízo da possibilidade de o recorrente suscitar vício de que a decisão padeça e que, podendo traduzir-se em nulidade, deva ser conhecido.

O processado atinente à reclamação afirma-se como estranho ao normal desenvolvimento da lide, devendo ser tido como incidente anómalo e, como tal, sujeito a tributação nos termos do disposto no artigo 7.º, n.ºs 4 e 8, do Regulamento das Custas Processuais.

Pelo exposto, acordam na 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a reclamação, condenando o recorrente na taxa de justiça correspondente a uma UC, nos termos do citado art. 7º, nºs 4 e 8, do Regulamento das Custas Processuais.

*

Supremo Tribunal de Justiça, 28.05.2025

Jorge Jacob (relator)

Ernesto Nascimento

José Piedade

(Processado pelo relator e revisto por todos os signatários)