ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
CONTUMÁCIA
Sumário

1 - Sendo o arguido sujeito a julgamento e não só a sociedade de que era sócio, deveria ele ser notificado em seu nome pessoal, nos termos e para efeitos da al. b) do nº 4 do art. 105º do RGIT, e não apenas a sociedade.
2 - Tendo o arguido sido notificado, já no decorrer do julgamento, nos termos e para efeitos da alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, é evidente que quando a acusação foi deduzida não estava perfectibilizada quanto a ele, a condição objectiva de punibilidade.
3 - As condições objectivas de punibilidade são circunstâncias que se situam fora do tipo de ilícito e da culpa e de cuja presença depende a punibilidade do facto. Constituem pressupostos materiais da punibilidade.
4 - A falta de uma condição objectiva de punibilidade retira relevância criminal à conduta, pois sendo embora ilícito o facto praticado, sem aquela condição objectiva tal facto não é punível.
5 - Não se pode confundir a existência de uma irregularidade processual, com a falta de uma condição objectiva de punibilidade: perante uma irregularidade o processo pode prosseguir e ela pode sanar-se, mas perante a falta de uma condição objectiva de punibilidade, a conduta não tem relevância criminal enquanto não se mostrar verificada a condição.
6 - O Ministério Público não podia ter deduzido a acusação porque não foi feita a notificação em causa, pelo que a acusação devia ter sido rejeitada, mas não o tendo sido, não pode o juiz de julgamento suprir a falta da condição objectiva de punibilidade por não se tratar de uma mera irregularidade.
7 - Acresce que no momento em que o arguido foi notificado, a prestação tributária em falta (porque já havia sido paga) já não se mostrava devida, estando só em dívida coimas, relativamente às quais não pode, rigorosamente, falar-se de crime de abuso de confiança por apropriação indevida de prestação tributária deduzida e não entregue, nos termos da lei.

Texto Integral

            Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra.

            I.

            No processo comum com intervenção do tribunal singular que, com o nº 170/19.4T8TND, corre termos pelo juízo de competência genérica de Tondela foi proferida a seguinte decisão (transcrição):

- Condeno o Arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º n.º 1 do RGIT, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão efetiva.

- Condeno o Arguido nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s, nos termos das disposições conjugados do artigo 513.º n.º 1 e 3 do Código de Processo Penal e do artigo 8.º n.º 9, por referência à tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.

(…)

*

            Inconformado recorreu o arguido AA para este Tribunal concluindo assim, após convite ao aperfeiçoamento, o seu recurso (transcrição):

 I. A douta Sentença recorrida peca na decisão da matéria de facto, porque desconsidera e erra no julgamento de pontos absolutamente essenciais para a decisão de mérito (condenatória) que postula.

Desde logo,

II. A douta Sentença recorrida errou no julgamento do Facto provado n.º 8, quando decidiu dar como provado que a sociedade A... foi notificada nos termos e para os efeitos previstos na al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT em 15 de maio de 2014 e quando deu a entender que o pagamento da dívida tributária somente ocorreu em 06 de fevereiro de 2017.

Na realidade,

III. A notificação efetuada pela Autoridade Tributária à sociedade em 15 de maio de 2014, constante de fls. 48 e 49, foi dada sem efeito pela própria Instrutora do processo de inquérito que correu seus termos junto do Núcleo de Investigação Criminal da Direção de Finanças ..., Dra. BB, porquanto aquela não continha quer o valor concreto das coimas aplicáveis, quer os dados para que pudesse ser efetuado o respetivo pagamento (cfr. fls. 220 a 229).

IV. Pelo que, a suprarreferida notificação não produziu quaisquer efeitos e, tendo em consideração a sua ineficácia, a Autoridade Tributária desencadeou, aproximadamente um ano depois, uma nova notificação da sociedade A..., para no prazo de 30 (trinta) dias proceder ao pagamento dos impostos, acrescidos e coimas aplicáveis e aí discriminados, “de forma a beneficiar do consagrado no art. 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT – a extinção do procedimento criminal”.

V. A sociedade A... foi, então, eficaz e efetivamente, notificada, na pessoa do seu administrador CC, nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT, em 07 de maio de 2015 e não 15 de maio de 2014 (cfr. notificação de fls.193 e 194 do processo físico).

VI. Consequentemente, o Facto provado n.º 8 não corresponde à verdade, impondo-se concluir que, nos termos e para os efeitos do disposto na al. a) do n.º 3 do art. 412.º do CPP, o mesmo foi incorretamente julgado.

VII. O Facto provado n.º 8 contém, ainda, um erro de julgamento relativamente à data em que foi efetuado o pagamento da dívida tributária.

Afinal,

VIII. A redação do Facto provado n.º 8 transmite a ideia de que o pagamento dos valores da dívida tributária apenas teria ocorrido em 06 de fevereiro de 2017 – o que não corresponde à verdade.

IX. Conforme resulta de fls. 193 e 194 e 220 a 229 do processo físico, à data da notificação da sociedade A... (07 de maio de 2015) já se encontravam pagas as prestações tributárias relativas aos meses de abril, maio e agosto de 2013 e agosto de 2014, nos montantes de €36.656,58, €23.655,49 e €8.422,30, encontrando-se em dívida somente as prestações tributárias referentes aos meses de junho e julho de 2013.

Acresce que,

X. O pagamento da dívida tributária no que se refere aos meses de junho e julho de 2013 também não ocorreu apenas em 06 de fevereiro de 2017, porquanto em 23 de novembro de 2015, já só se encontram em dívida €5.093,30 e €23.199,01, referentes a imposto, juros e custas dos meses de junho e julho de 2013 (cfr. fls. 293); em 30 de novembro de 2016, somente faltava proceder ao pagamento dos montantes de €15,31 e €233,39, no que respeita às dívidas de IVA, juros e custas dos períodos de junho e julho de 2013 (cfr. fls. 320 a 322); e, em 06 de fevereiro de 2017, foi pago o valor remanescente da dívida tributária relativa aos meses de junho (€58,35) e julho de 2013 (€233,39) - cfr. fls. 412 a 432.

XI. Pelo que, a douta Sentença recorrida erra, também, por não representar devida e rigorosamente como foi realizado o pagamento dos valores em dívida.

XII. Face ao que antecede e em conformidade com a prova documental junta aos autos, a redação do Facto provado n.º 8 deve ser alterada, de forma a que dele conste o seguinte:

“8. A sociedade foi notificada, em 07-05-2015, na pessoa do seu administrador CC, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º n.º 4 alínea b) do RGIT.

O pagamento das prestações tributárias relativas aos períodos 2013/04, 2013/05 e 2013/08, nos montantes de €36.656,58, €23.655,49 e €8.422,30, foi efetuado em 26-11-2014, 31-12-2014 e 02-09-2014, respetivamente e, pois, antes de ser notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º n.º 4 alínea b) do RGIT.

À data da notificação da sociedade, apenas permaneciam em dívida as prestações tributárias relativas aos períodos de 2013/06 e 2013/07.

Após notificação da sociedade nos termos do disposto no artigo 105.º n.º 4 alínea b) do RGIT, em 07/05/2015, esta efetuou diversos pagamentos prestacionais do valor da dívida tributária referente aos períodos de 2013/06 e 2013/07, tendo, em 06 de fevereiro de 2017, concluído o pagamento integral das prestações tributárias, juros e custas.”

Ainda da insuficiência da matéria de facto:

XIII.A douta Sentença recorrida peca, ainda, por omitir todo o esforço feito pela A... e seus administradores para suprir a falta cometida.

XIV. Da análise dos elementos documentais juntos aos autos (designada, mas não exclusivamente os constantes de fls. 293, 320 a 322 e 411 a 432), resulta que a sociedade A..., após notificada nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT, foi realizando uma série de pagamentos parciais, de forma regular.

XV.No entanto, a douta Sentença recorrida não esclarece a natureza e/ou a origem desses pagamentos – muito embora tais informações constassem dos autos.

XVI.Conforme consta de fls. 379 a 384 do processo físico, em 17 de julho de 2013 – momento coincidente com a falta de entrega das prestações tributárias sub judice -, a sociedade A... foi submetida a um Processo Especial de Revitalização («PER») que correu seus termos junto do Juízo de Comércio de Viseu – Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu sob o n.º 383/13...., por se encontrar numa situação económica difícil, enfrentando sérias dificuldades para cumprir pontualmente as suas obrigações.

XVII. A Autoridade Tributária reclamou no referido Processo Especial de Revitalização - e foi-lhe reconhecido - um crédito no montante global de €787.050,08, onde se encontravam englobadas as prestações de IVA / IRC e IRS vencidos antes do início do processo, bem como as respetivas custas, coimas e juros (cfr. fls. 483 a 509).

XVIII. O Plano de Pagamento apresentado no referido PER foi homologado, em 10 de março de 2014, com o voto favorável da Autoridade Tributária, no qual se refere expressamente que a dívida tributária seria paga em 150 prestações mensais.

XIX.     É precisamente no cumprimento deste Plano que surgem englobados os supra identificados pagamentos dos valores da dívida tributária sub judice.

XX.      A Autoridade Tributária (AT) instaurou e autuou o inquérito a que os presentes autos se reportam, em 14 de maio 2014; 7 (sete) dias após o trânsito da sentença que homologou, em 10 de março de 2014, o PER da A...; no qual a AT votou favoravelmente e no âmbito do qual a AT celebrou com a A... ACORDO DE PAGAMENTO PRESTACIONAL de Regularização de todas as dívidas fiscais vencidas até àquela data, em que os créditos sub judice seriam pagos em 150 prestações mensais.

XXI.     O Tribunal a quo, ao omitir toda esta factualidade, deixou de se pronunciar sobre factos relevantes para a decisão de mérito da causa - factos esses que eram essenciais tanto para a verificação efetiva da prática do crime imputado ao arguido, como para aferir da sua culpabilidade e para, posteriormente, proceder à escolha e determinação da medida da pena.

Para além disso,

Acerca das questões de Direito:

XXII.    Salvo o devido respeito, que é muito, a douta Sentença recorrida violou o princípio do acusatório consagrado no art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

XXIII.  O Mm.º Juiz a quo, no intervalo entre duas sessões da audiência de julgamento, proferiu um despacho (de fls. 1173) em que pôs em causa a validade da acusação do Ministério Público, ao julgar/decidir que o arguido, ora Recorrente, AA, não havia sido pessoalmente notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT.

XXIV. Perante a inviabilidade manifesta da Acusação, diretamente decorrente da não verificação de uma das condições objetivas de punibilidade do tipo ilícito- criminal que lhe era imputado, cumpria ao Mm.º Juiz a quo julgar imediatamente improcedente a Acusação; ou, quando muito, alvitrar, previamente e por mera cautela, a presença de uma alteração substancial dos factos.

XXV. Isto porque, a notificação ocorrida em 24 de maio de 2024 constituiu um facto inteiramente novo, que não estava presente na Acusação – que é a condição e o limite do julgamento - e que transformava o quadro factual essencial descrito na Acusação, alterando o objeto do processo.

XXVI. Afinal, no caso sub judice, a douta Acusação Pública foi deduzida em 19 de maio de 2018 sem que se tenham verificado as condições de punibilidade do crime de que o arguido AA foi acusado.

            XXVII. A al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT, determina que “Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”

XXVIII. Não basta, assim, que se verifique a não entrega dolosa e tempestiva das prestações tributárias devidas à Autoridade Tributária, tem de se comprovar que o sujeito passivo não procedeu, após notificação para o efeito, ao pagamento da dívida tributária, como condição ao acionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal.

XXIX. A notificação prevista na al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT (e a ausência de pagamento nos 30 dias posteriores), como condição objetiva de punibilidade, deve estar verificada no inquérito, antes da dedução da acusação. Na ausência dela, não pode o juiz (de instrução ou de julgamento) realizá-la, pois a necessidade de proceder à notificação verificou-se em momento anterior à intervenção deste no processo.

XXX. Não é admissível a dedução de uma acusação “sob condição”, dependente da verificação de um facto futuro e incerto porque a condenação do acusado seguramente não se perspetiva quando ainda não se verifica a condição objetiva de punibilidade.

XXXI.   O arguido AA foi, assim, acusado pela alegada prática de uma conduta que não tinha ainda relevância penal; não se verificando os pressupostos para que a ação antijurídica que lhe era imputada tivesse consequência penais.

Sem prescindir,

Acresce que,

XXXII. O arguido, ora Recorrente, AA, não foi notificado para pagar os valores do IVA que alegadamente estavam na base da imputação do crime de abuso de confiança fiscal

XXXIII.Os tributos em dívida, cuja falta de entrega ao Estado poderia constituir crime, encontravam-se integralmente pagos na data da sua notificação em 24 de maio de 2024, pelo que sempre estaria a priori afastada a condição de punibilidade prevista na al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT.

XXXIV.A notificação que foi feita ao arguido, ora Recorrente, visou apenas o pagamento de coimas alegadamente ainda por pagar.

XXXV. O n.º 1 do art. 105.º do RGIT criminaliza a falta de entrega da prestação tributária (v.g. a entrega do IVA), não criminaliza a falta de pagamento de coimas que resultem de processos contraordenacionais desencadeados por efeito daquela mesma falta de entrega da prestação tributária.

XXXVI.Não é punido pelo n.º 1 do art. 105.º do RGIT a falta de pagamento dos juros e das coimas quando a prestação tributária se encontra integralmente paga por ACORDO com a Autoridade Tributária e em momento anterior à notificação a que alude a al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT.

Para além disso,

XXXVII. A notificação efetuada ao arguido AA nos termos e para os efeitos da al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT para proceder ao pagamento das coimas omitia a respetiva referência para pagamento e, uma vez que, nos termos do disposto na al. d) do art. 61.º do RGIT, os correspondentes processos contraordenacionais tributários já se encontravam extintos, não lhe era possível emitir as competentes guias, o que o deixou na impossibilidade real de o efetuar.

XXXVIII.Em face do que, a douta Sentença recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do artigo 105.º do RGIT.

Da escolha e da determinação da medida da pena:

XXXIX. O Mm.º Juiz a quo, com base na redutora factualidade que deu como provada, decidiu condenar o arguido AA “pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1 do RGIT, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão efetiva.”

XL.Caso estivessem verificadas as condições objetivas de punibilidade – e não estavam, como vimos -, sempre deveria ter sido outra a pena aplicada.

Da (não) aplicação da pena de multa:

XLI.     O ilícito previsto no n.º 1 do art. 105.º do RGIT, pelo qual o arguido AA foi condenado, é punido com pena de prisão ou com pena de multa.

            XLII.    No nosso sistema jurídico-penal, conforme resulta do art. 70.º do Código Penal, as penas privativas da liberdade constituem a “ultima ratio” da política criminal.

Ora,

XLIII. No caso sub judice, não se verifica um grau de demérito suficiente para a aplicação da pena de prisão ao invés da pena de multa.

XLIV. Desde logo, porque o atraso na entrega das prestações tributárias devidas foi consequência direta da difícil situação económico-financeira pela qual a sociedade A... vinha atravessando e que motivou a sua submissão ao Processo Especial de Revitalização n.º 383/13...., e que, mais tarde, em 16 de outubro de 2018, levou à declaração da sua situação de insolvência, por sentença proferida nos autos do Proc. nº. 2716/18...., que correu seus termos junto do Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.

XLV. Ainda que passando por todas estas dificuldades, a sociedade A... teve a preocupação de celebrar com a Autoridade Tributária um Plano de Pagamento em Prestações, ao qual deu integral e fiel cumprimento.

 XLVI. Com o que, as prestações tributárias devidas, os respetivos juros e custas foram integralmente pagos – pagamento que ocorreu, maioritariamente, antes mesmo de a sociedade A... e o arguido AA serem notificados para o efeito nos termos e ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT.

XLVII. A notificação efetuada ao arguido AA nos termos e para os efeitos da al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT para proceder ao pagamento das coimas omitia a respetiva referência para pagamento, o que o deixou na impossibilidade real de o efetuar.

XLVIII. Conforme resulta dos Factos provados n.ºs 13 e 18, o arguido AA padece, desde tenra idade, de sérios problemas de saúde.

XLIX. No ano de 2011 (e, pois, em momento anterior à prática do crime pelo qual foi condenado), o arguido AA sofreu uma endocardite e um acidente vascular cerebral que determinaram internamento hospitalar prolongado, acompanhado de um período em coma de cerca de um mês e de perda temporária de visão, tendo sido posteriormente sujeito a vários tratamentos e duas intervenções cirúrgicas de cariz cardíaco.

L.Desde então, o arguido AA passou por um período de convalescença com sucessivas baixas médicas, que se prolongou desde setembro de 2011 até fevereiro de 2014, e que exigiu o seu afastamento da administração da sociedade A....

LI.Todo este circunstancialismo ao nível da saúde do arguido AA foi coincidente com a submissão da sociedade A... ao Processo Especial de Revitalização acima melhor identificado.

            LII.A falta de entrega do IVA aos cofres do Estado coincidiu, pois, com um período de grande turbulência, tanto ao nível pessoal, como societário.

Além disso,

LIII.     Nunca foi intenção do arguido AA apropriar-se, de que forma fosse, dos valores de IVA não entregues à Autoridade Tributária (cfr. Factos não provados A e B) – e a verdade é que deles não se apropriou.

LIV.      Os antecedentes criminais discriminados na douta Sentença recorrida têm que ver, na sua maioria, precisamente com este período de grande sensibilidade para o arguido AA e para a sociedade A... e reportam-se a factos praticados, os mais antigos, há mais de 11 anos e, os mais recentes, há mais de 7 anos – o que deveria ter sido valorado.

Ademais,

LV.       Deveria ter sido considerado que o arguido AA tem 59 anos de idade e encontra-se social, familiar e profissionalmente integrado, beneficiando de uma relação social e familiar equilibrada (cfr. relatório social de fls. 1146 a 1149).

LVI.     O arguido tem um filho com dezoito anos de idade, estudante universitário em instituição privada, que depende economicamente do seu trabalho e com quem mantém uma relação de grande proximidade.

LVII.    Pelo que, sempre lhe deveria ter sido dada a derradeira oportunidade de lhe ver ser aplicada uma pena de multa ao invés de uma pena de prisão.

Sem prescindir,

LVIII. Caso se entendesse que, ainda assim, deveria ter sido aplicada ao arguido AA uma pena de prisão (o que não se concede), sempre deveria a mesma ter sido suspensa na sua execução, nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 50.º do Código Penal, porquanto se encontram verificados os respetivos pressupostos: (i) a medida concreta da pena aplicada ao arguido não ser superior a 5 anos; e (ii) a conclusão por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido.

LIX.     O primeiro pressuposto encontra-se verificado, uma vez que ao arguido foi aplicada uma pena de prisão de 1 (um) ano e 2 (dois) meses.

LX.      Relativamente ao segundo pressuposto, nada faz crer que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

LXI.     O arguido é um indivíduo que passou por inúmeras dificuldades tanto ao nível de saúde, como ao nível profissional e que, ainda assim, tentou, o melhor que pôde, reparar todos os danos que das suas condutas poderiam resultar.

LXII.    É um indivíduo integrado na sociedade e estimado por aqueles que o rodeiam.

LXIII. Não adotou recentemente e desde há mais de sete anos, qualquer conduta que pudesse fazer crer quer o Tribunal a quo, quer a sociedade em geral, que se impunha afastá-lo da comunidade.

LXIV. A personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste permitem fazer um juízo de prognose favorável, quanto aos futuros comportamentos do arguido, ou seja, na formulação de um juízo de que ele não praticará novos crimes.

LXV. Destarte, a suspensão da execução da pena de prisão sempre cumpriria e viabilizaria os desígnios da prevenção especial – apoiando e promovendo a reinserção social do arguido -, bem como os desígnios de prevenção geral – na perspetiva em que, tendo sido, como foram, efetivamente pagos os montantes em dívida, muito antes da constituição de arguido do ora Recorrente, a comunidade não encarará a suspensão como um sinal de impunidade.

LXVI. Com o que se encontram verificados os pressupostos de que depende a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão, concluindo- se que, em última instância, sempre deveria a execução da pena de prisão ter sido suspensa, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 50.º do Código Penal.

Termos em que, em face do exposto e do mais que por VV. Exas. não deixará de ser doutamente suprido, deve o presente recurso ser julgado procedente e provido, revogando-se a douta Sentença recorrida e absolvendo-se o arguido, ora Recorrente, AA, com o que este Venerando Tribunal uma vez mais fará JUSTIÇA.

Caso assim se não entenda, deve a pena cingir-se a pena de multa ou, se de prisão, deve a mesma ser suspensa na sua execução.

*

            Ao recurso respondeu o Ministério Público em primeira instância, assim concluindo a sua resposta (transcrição).

I – O recorrente/arguido AA foi condenado em autoria material e na forma consumada, na prática do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º, nº 1, o RGIT, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão efetiva.

II. O recorrente/arguido não se conformando com a sentença interpôs recurso.

III. A sentença recorrida não padece de quaisquer dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.

IV. O Tribunal “a quo” fez uma correta avaliação dos meios de prova produzidos em audiência de discussão e julgamento e indicou as razões como valorizou os depoimentos das testemunhas, demonstrando o percurso lógico utilizado para chegar às conclusões a que chegou, sendo que tal apreciação não merece censura.

V. Limitou-se, pois, o tribunal a fazer uso do princípio da livre apreciação da prova, que se encontra previsto no artigo 127º, do Código de Processo Penal.

VI. Do teor da sentença recorrida, máxime da convicção quanto à matéria de facto dada com provada, não resultaram dúvidas no espírito do julgador, de que o recorrente/arguido cometeu o crime pelo qual vinha acusado.

VII. O arguido/recorrente foi o gerente de fato da sociedade “A..., S.A.”, cabendo a este proceder à entrega ao Estado das quantias recebidas a titulo de IVA.

VIII. No entanto, a sociedade foi notificada nos termos do disposto no artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, em 15.05.2014 tendo sido restituidos os valores indevidamente retidos, o que ocorreu em 06.02.2017, ficando por pagar o valor correspondente às coimas e juros.

IX. Por outro lado, como também se alcança dos autos, por despacho de fls. 1173, foi proferido despacho a sanar a eventual irregularidade por falta de notificação nos termos do disposto no artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, sendo determinada a notificação pessoal do arguido/recorrente o que ocorreu em 24.05.2024 (cfr. fls. 1186v e 1189).

X. Pelo que, entendemos, como bem entendeu o Tribunal “a quo”, que se encontrava verificada a condição objetiva de punibilidade.

XI. Tendo por base os critérios de determinação da medida concreta da pena que supra enunciamos, entendemos que a pena aplicada ao arguido/recorrente pelo tribunal “a quo” interpretou de forma totalmente correcta os critérios plasmados no Código Penal, bem como os princípios inerentes aos fins das penas que norteiam o nosso ordenamento jurídico penal.

XII. Na verdade, concordamos com a valoração da ilicitude do facto e da intensidade do dolo, da inserção sócio profissional do arguido/recorrente.

XIII. No que se reporta ás condições pessoais e económicas do arguido, entende o Ministério Público que a sentença recorrida valorou as mesmas nos termos do artigo 71º, nº 2, alínea d), do Código Penal, não as olvidando.

XIV. No que concerne às exigências de prevenção especial, ligadas ao objetivo da reinserção social do ora recorrente/arguido, há que ponderar, de modo particular, que o arguido tem vários antecedentes criminais por crime de idêntica natureza e outros (cfr. CRC de fls. 949 a 960).

XV. Entendemos, sem necessidade de outras considerações, que a única pena que satisfaz, no caso concreto, as finalidades da punição é a pena privativa da liberdade, ou seja, a pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão efetiva.

XVI. Pelo exposto, deverá o recurso interposto pelo recorrente/arguido ser considerado improcedente, mantendo-se na íntegra o teor da sentença que decretou a aplicação àquele a pena de prisão efetiva de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão efetiva.

XVII. Não foram violadas quaisquer normas jurídicas.


*

            Remetidos os autos a este tribunal, o Ministério Público entendeu dever ser o recurso julgado parcialmente procedente, apenas no que concerne à pretendida alteração da matéria de facto, em tudo o mais dever manter-se o decidido em primeira instância.

                                                           *

Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP).

                                                           *

Após os vistos, foram os autos à conferência.

            II.

            Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que são as conclusões do recurso que delimitam a apreciação a fazer por este tribunal – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - e que, analisando a síntese conclusiva, temos como questões a apreciar:

- Erro de julgamento da matéria de facto (facto 8) quanto à data da notificação nos termos e para efeitos do artigo 105º, nº 4 alínea b) do RGIT e quanto à data em que foi efetuado o pagamento da dívida tributária;

- Insuficiência da matéria de facto para a decisão;

-Alteração substancial de factos com a notificação ocorrida em 24.05.2024 e irregularidade desta;

- Não preenchimento do tipo de ilícito previsto no artigo 105º, nº 1 do RGIT e consequente absolvição do arguido.

Subsidiariamente,

- Errada escolha e determinação da medida da pena e possibilidade de aplicação de pena de multa ou de pena de prisão suspensa na sua execução.


*

            É a seguinte a matéria de facto e respetiva fundamentação fixada em primeira instância (transcrição):

II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

2.1. Factos provados:

Produzida a prova e discutida a causa resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão a proferir:

1.A sociedade denominada “A..., S.A.”, que tem como objeto a transformação, comercialização e representação de derivados de papel, embalagens e produtos similares, com o CAE 17212-R3, e enquadrada para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado, no regime normal, com periodicidade mensal.

2.Estava, pois, obrigada a liquidar IVA nas faturas que emitia e a entregá-lo nos cofres do Estado, após a realização do apuramento.

3.O Arguido AA era administrador da sociedade, incumbindo-lhe a gestão dos pagamentos aos credores, nomeadamente o pagamento de impostos devidos ao Estado.

4.A sociedade procedeu ao apuramento, preenchimento e entrega à Direção de Serviços de Cobrança do IVA, da declaração periódica relativa ao mês 04/2013, no valor de 36.656,58 EUR (trinta e seis mil, seiscentos e cinquenta e seis euros e cinquenta e oito cêntimos); 05/2013, no valor de 23.665,49 EUR (vinte e três mil, seiscentos e sessenta e cinco euros e quarenta e nove cêntimos); 06/2013, no valor de 39.398,52 EUR (trinta e nove mil, trezentos e noventa e oito euros e cinquenta e dois cêntimos); 07/2013, no valor de 36.697,04 EUR (trinta e seis mil, seiscentos e noventa e sete euros e quatro cêntimos); e 08/2013, no valor de 8.442,30 EUR (oito mil, quatrocentos e quarenta e dois euros e trinta cêntimos).

5.A sociedade recebeu a totalidade dos valores faturados/refletidos a clientes, pelo que tinha na sua posse, na data de entrega da declaração periódica de IVA, meios para efetuar o pagamento do valor apurado a entregar ao Estado, tendo optado por não o fazer.

6.O Arguido não efetuou o pagamento das quantias acima discriminadas, antes tendo optado por utilizar tais meios líquidos gerados noutros destinos.

7.O Arguido tinha perfeito conhecimento da existência das dívidas ao Estado e da obrigação legal da sua entrega ao credor tributário.

8.Após notificação da sociedade nos termos do disposto no artigo 105.º n.º 4 alínea b) do RGIT, em 15/05/2014, foi efetuado o pagamento dos valores da divida tributária, mas apenas em 06/02/2017.

9.Acontece, porém, que o Arguido não efetuou o pagamento das coimas aplicadas, nomeadamente, resultantes dos seguintes processos de contraordenação:

a)Processo n.º  ...66, no valor de 12.264,44 EUR (doze mil, duzentos e sessenta e quatro euros e quarenta e quatro cêntimos);

b)Processo n.º  ...52, no valor de 7.941,71 EUR (sete mil, novecentos e quarenta e um euros e setenta e um cêntimos);

c)Processo n.º ...89, no valor de 13.176,11 EUR (treze mil, cento e setenta e seis euros e onze cêntimos);

d)Processo n.º ...25, no valor de 12.277,90 EUR (doze mil, duzentos e setenta e sete euros e noventa cêntimos);

e)Processo n.º ...59, no valor de 2.876,83 EUR (dois mil, oitocentos e setenta e seis euros e oitenta e três cêntimos);

f)Processo n.º ...76, no valor de 4.559,50 EUR (quatro mil, quinhentos e cinquenta e nove euros e cinquenta cêntimos);

Tudo o que totaliza a quantia de 53.096,49 EUR (cinquenta e três mil e noventa e seis euros e quarenta e nove cêntimos).

10.Atuando o Arguido no seu próprio interesse e no da sociedade “A..., S.A.”, de forma deliberada, livre e consciente, apropriando-se dos valores que deveriam ter entregue ao Estado, bem sabendo que lesava os interesses da Fazenda Nacional.

Mais se provou que:

11.O Arguido AA foi notificado nos termos do disposto no artigo 105.º n.º 4 alínea b) do RGIT, em 24/05/2024, não tendo procedido ao pagamento de qualquer valor até à presente data.

12.O Arguido foi o quinto de seis irmãos, no seio de uma família com boas condições socioeconómicas, oriundo de ..., sendo o seu pai diretor comercial numa empresa do ramo das madeiras e a sua mãe doméstica.

13.Durante a infância, por motivos de saúde, foi-lhe removido o olho esquerdo, usando desde então uma prótese ocular, possuindo algumas dificuldades de visão.

14.Após o secundário, o Arguido concluiu um curso de informática na área da programação.

15.Após trabalhar como empregado de escritório e como trabalhador por conta própria, em 1990 o Arguido assumiu o cargo de diretor comercial durante quatro anos, o que lhe permitiu adquirir experiência e conhecimentos na área empresarial.

16.Em 1994, o Arguido criou várias empresas com outros sócios, no ramo das madeiras e derivados – “B..., Lda” e “C..., S.A.”), nas quais desempenhou funções de gerência e se assumiu como principal promotor do negócio.

17.Em 2006, o Arguido fundou a empresa “A..., S.A.”.

18.No ano de 2011, o Arguido sofreu uma endocardite e um acidente vascular cerebral que determinaram internamento hospitalar prolongado, acompanhado de um período em coma de cerca de um mês.

19.De 1997 a 2010 manteve uma relação afetiva com DD, fruto da qual tem um filho, atualmente com dezoito anos de idade.

20.Atualmente reside num apartamento na ..., cedido gratuitamente pela sua irmã.

21Coabita ocasionalmente com a sua antiga companheira e respetivo filho, em ....

22Contribui com a quantia mensal de 300,00 EUR (trezentos euros) para o seu filho, no que respeito ao pagamento da propina do ensino universitário particular que este frequenta.

23.Na atualidade trabalha como Delegado Comercial por conta própria, na área das embalagens de cartão, auferindo mensalmente a quantia aproximada de 2.500,00 EUR (dois mil e quinhentos euros), beneficiando ainda de uso de automóvel e de ajudas de custo para o combustível.

24.O Arguido tem antecedentes criminais, tendo sido condenado:

a)por sentença datada de 23/11/2011, transitada em julgado em 13/12/2011, no âmbito do Processo Comum n.º 543/10...., que correu termos no Tribunal Judicial de Matosinhos – 4.º Juízo Criminal, pela prática em 02/08/2010 de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 13,00 EUR (treze euros), o que perfaz o total de 1.170,00 EUR (mil, cento e setenta euros);

b)por sentença datada de 14/03/2012, transitada em julgado em 26/04/2012, no âmbito do Processo Comum n.º 2082/09...., que correu termos no Tribunal Judicial da Maia – 1.º Juízo de Competência Criminal, pela prática em 01/04/2002 de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 7,00 EUR (sete euros), o que perfaz o total de 840,00 EUR (oitocentos e quarenta euros);

c)por sentença datada de 09/01/2013, transitada em julgado em 12/03/2013, no âmbito do Processo Comum n.º 541/10...., que correu termos no Tribunal Judicial de Matosinhos – 4.º Juízo Criminal, pela prática em 17/06/2010 de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365.º do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 8,00 EUR (oito euros), o que perfaz o total de 640,00 EUR (seiscentos e quarenta euros);

d)por sentença datada de 19/06/2013, transitada em julgado em 04/09/2013, no âmbito do Processo Comum n.º 29/10...., que correu termos no Tribunal Judicial da Maia – 1.º Juízo de Competência Criminal, pela prática em 01/12/2006 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 2,00 EUR (dois euros), o que perfaz o total de 240,00 EUR (duzentos e quarenta euros);

e)por sentença datada de 14/10/2013, transitada em julgado em 13/11/2013, no âmbito do Processo Comum n.º 6358/11...., que correu termos no Tribunal Judicial de Matosinhos – ... Juízo Criminal, pela prática em 10/2010 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 8 (oito) meses de prisão, substituída pela pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50 EUR (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o total de 1.320,00 EUR (mil, trezentos e vinte euros);

f)por sentença datada de 28/04/2014, transitada em julgado em 28/05/2014, no âmbito do Processo Comum n.º 3621/12...., que correu termos no Tribunal Judicial de Matosinhos – 3.º Juízo Criminal, pela prática em 2012 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 20,00 EUR (vinte euros), o que perfaz o total de 6.000,00 EUR (seis mil euros);

g)por sentença datada de 22/10/2014, transitada em julgado em 24/11/2014, no âmbito do Processo Comum n.º 3077/12...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 1, pela prática em 20/08/2011 de um crime de abuso de confiança na forma continuada, p. e p. pelo artigo 105.º n.º 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 12 (doze) meses de prisão, substituída pela pena de 360 (trezentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 8,00 EUR (oito euros), o que perfaz o total de 2.880,00 EUR (dois mil, oitocentos e oitenta euros);

h)por sentença datada de 04/12/2013, transitada em julgado em 16/01/2014, no âmbito do Processo Comum n.º 3075/12...., que correu termos no Tribunal Judicial de Matosinhos – 3.º Juízo Criminal, pela prática em 10/11/2011 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, tendo sido dispensado de pena;

i)por sentença datada de 19/11/2014, transitada em julgado em 19/12/2014, no âmbito do Processo Comum n.º 829/12...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal da Maia – Juiz 2, pela prática em 15/12/2011 de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11.º n.º 1 alínea a) e 2 do Regime Jurídico dos Cheques sem Provisão, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 10,00 EUR (dez euros), o que perfaz o total de 3.000,00 EUR (três mil euros);

j)por sentença datada de 29/02/2016, transitada em julgado em 11/04/2016, no âmbito do Processo Comum n.º 3760/12...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 2, pela prática em 11/06/2012 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída pela pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 8,00 EUR (oito euros), o que perfaz o total de 1.440,00 EUR (mil, quatrocentos e quarenta euros);

k)por sentença datada de 14/07/2015, transitada em julgado em 29/09/2015, no âmbito do Processo Comum n.º 2956/13...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 3, pela prática em 09/2012 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 12 (doze) meses de prisão, substituída pela pena de 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 6,00 EUR (seis euros), o que perfaz o total de 2.190,00 EUR (dois mil, cento e noventa euros);

l)por sentença datada de 21/06/2018, transitada em julgado em 15/07/2020, no âmbito do Processo Comum n.º 20/14...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Competência Genérica da Mealhada, pela prática em 10/09/2013 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, sujeita à condição de pagamento da dívida fiscal em falta, posteriormente prorrogada pelo período adicional de mais 1 (um) ano e 6 (seis) meses;

m)por sentença datada de 18/06/2019, transitada em julgado em 03/07/2020, no âmbito do Processo Comum n.º 396/17...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local  Criminal de Matosinhos – Juiz 1, pela prática em 2017 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º n.º 1 e 5 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e subordinada à condição do Arguido, no prazo de 2 (dois) anos, proceder ao pagamento dos valor do IVA em dívida respeitante aos períodos de novembro de 2016 a janeiro de 2017 e referente à “A..., S.A.” na quantia de 92.150,55 EUR (noventa e dois mil, cento e cinquenta euros e cinquenta e cinco cêntimos), valor acrescido dos acréscimos legais, devendo ainda o Arguido, até final do prazo, fazer prova, no processo, deste pagamento; posteriormente prorrogada pelo período adicional de mais 1 (um) ano;

n)por sentença datada de 23/09/2022, transitada em julgado em 08/03/2023, no âmbito do Processo Comum n.º 3859/13...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local  Criminal de Matosinhos – Juiz 1, pela prática em 2013 de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103.º n.º 1 alínea b) e 102.º n.º 1 alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 600 (seiscentos) dias de multa, à taxa diária de 5,00 EUR (cinco euros), perfazendo o montante de 3.000,00 EUR (três mil euros);

o)por sentença datada de 24/04/2023, transitada em julgado em 26/10/2023, no âmbito do Processo Comum n.º 2/19...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local  Criminal de Matosinhos – Juiz 1, pela prática em 11/12/2017 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º n.º 1, 2 e 4 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano e subordinada à condição do Arguido, no prazo de 1 (um) ano, proceder ao pagamento do valor do IVA em dívida respeitante ao período de outubro de 2017 referente à sociedade “A..., S.A.”;

p)por sentença datada de 19/07/2023, transitada em julgado em 02/10/2023, no âmbito do Processo Comum n.º 2444/18...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local  Criminal de Matosinhos – Juiz 3, pela prática em 04/04/2018 de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11.º n.º 1 alínea a) e 2 do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos;

q)por sentença datada de 08/11/2019, transitada em julgado em 10/02/2022, no âmbito do Processo Comum n.º 13873/16...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local  Criminal de Matosinhos – Juiz 3, pela prática em 15/11/2009 de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107.º da Lei n.º 15/01, de 05/06, na pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída pela pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00 EUR (cinco euros), o que perfaz o montante de 900,00 EUR (novecentos euros).


*

2.2. Factos não provados:

Produzida a prova e discutida a causa não resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão a proferir:

A.O Arguido optou por utilizar tais meios líquidos gerados em seu proveito próprio, obtendo desse modo vantagens patrimoniais indevidas.

B.Ficou assim o Arguido com tais meios líquidos recebidos dos clientes, integrando-os no seu património.

C.À data dos factos em causa, quem estava encarregue do cumprimento de todas as obrigações fiscais da sociedade A... era o TOC EE, sendo responsável pelas obrigações declarativas, fiscais e de pagamento.

D.À data dos factos em causa, o Arguido estava mais dedicado à sociedade “D... S.A.”.

E.As prestações tributárias em dívida mencionadas na factualidade dada como provada não foram pagas na data devida porque o Diretor da Contabilidade optou por utilizar tal valor para pagar a funcionários e fornecedores.


*

2.3. Motivação da decisão de facto:

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, bem como das declarações do Arguido e do depoimento das testemunhas inquiridas, prova esta que foi concatenada entre si e apreciada ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, plasmada no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

No caso concreto, o Arguido pretendeu prestar declarações, afirmando que não se apropriou do dinheiro para benefício próprio e que não esteve a trabalhar entre o final de 2011 e 2014 (ou seja, no período em causa na acusação pública, entre abril e agosto de 2013), mas antes de baixa médica, não sendo responsável pela administração da sociedade no período em causa nos presentes autos. Juntou diversa documentação clínica e certificados de incapacidade temporária para o trabalho relativos aos seguintes períodos: 25-09-2011 a 21-04-2012; 21-06-2012 a 17-03-2013; 21-09-2013 a 17-02-2014. Confirmou que era o administrador da sociedade em causa desde a sua fundação até aproximadamente 2018 e que não procedeu ao pagamento das quantias respeitantes ao valor das coimas, apesar de notificado para o efeito. Alegou que o valor em dívidas respeitantes às coimas não corresponde à verdade.

Por um lado, as testemunhas FF e GG (ambos funcionários da Autoridade Tributária e Aduaneira), de forma isenta e imparcial, sem qualquer interesse na causa, declararam que levaram a cabo as diligências necessárias e apuraram que a sociedade em causa faturou e recebeu a totalidade dos valores do I.V.A. elencados na acusação pública – o que não foi contrariado pelo Arguido e, aliás, cujo valor das prestações tributárias em dívida foi pago posteriormente na sua totalidade.

Por outro lado, a testemunha HH relatou que chegou a auxiliar a fiscal única da sociedade A..., sendo colaboradora da fiscal única, afirmando que a pessoa que geria de facto a sociedade em causa era o Sr. AA, “a pessoa que mandava”, em particular sempre que a contabilidade da sociedade já não conseguia esclarecer alguma questão mais específica. Confirmou que a sociedade apresentava dívidas ao Estado.

Importa mencionar que a versão do Arguido não se mostra verosímil. Desde logo, da extensa prova documental resulta que o valor das coimas ainda não se encontra pago e que o Arguido foi efetivamente o Administrador da sociedade desde a sua fundação e particularmente entre os meses de abril e agosto de 2013.

Aliás, o Arguido demonstrou um conhecimento muito detalhado sobre a sociedade em causa, modo de funcionamento, diversos credores e devedores da mesma, adesões a regimes especiais transitórios, entre outros. A própria testemunha HH o confirmou.

No mais, o Arguido não logrou demonstrar o por si alegado quanto à ausência da administração da sociedade nos períodos em causa. A testemunha por si arrolada e inquirida, HH, veio confirmar que era ele quem geria e administrava de facto a sociedade, pelo que se conclui que lhe cabia o domínio dos assuntos da sociedade, podendo ditar o destino dos dinheiros da mesma.

Em acréscimo, os certificados de incapacidade temporária para o trabalho juntos pelo Arguido não dizem respeito aos meses aqui em causa, o que indiciam que o mesmo administrou a sociedade entre abril e agosto de 2013, além de que o Arguido foi condenado no âmbito do Processo Comum n.º 20/14.... pela prática de crime idêntico, crime esse praticado em 10/09/2013, contemporâneo destes factos.

Por último, do próprio relatório social resulta que, apesar dos problemas de saúde que o Arguido padeceu com início no ano de 2011, o mesmo “Contudo, e embora com limitações tentou à distância acompanhar o evoluir dos negócios avaliados então como com dificuldades financeiras e gestão ineficiente, situação a que não serão alheios os posteriores confrontos judiciais com que o arguido, nos últimos tempos se tem confrontado, dos quais alguns já sentenciados e outros pendentes” – sublinhado nosso – denotando que, mesmo nos períodos de baixa médica (reitere-se, distintos dos meses em causa nos presentes autos), acompanhou a gestão da sociedade A....

Sem prejuízo, o Tribunal valorou ainda os elementos documentais juntos aos autos, designadamente os documentos de fls. 12-47; a certidão permanente de fls. 526-541 (donde resulta que o Arguido foi Presidente do Conselho de Administração da sociedade); a notificação de fls. 48-49 e 193-194; os documentos de fls. 69-70, 71-151, 214-219 e 321-406; o parecer de fls. 220-229; o assento de nascimento de fls. 306-307; a informação de fls. 411, 516 e 571-584; os documentos de fls. 412-432; a certidão de fls. 483-509; a informação de fls. 571; a notificação assinada pelo Arguido de fls. 1188-1189; documentos cujo teor saiu incólume em sede de audiência de julgamento.

Finalmente, o Arguido, na sua contestação, afirma que no seu artigo 11.º que “À data dos factos em causa, o Arguido estava mais dedicado à sociedade “D... S.A.”, o que não é compatível com as declarações por si prestadas em audiência de julgamento e incongruentes com a afirmação de que esteve afastado por doença nos períodos em causa.

Em suma, todos estes elementos de prova acima assinalados, concatenados entre si, demonstram coerência e consistência, permitindo ao Tribunal afirmar de forma segura que o Arguido adotou tais comportamentos e era o Administrador de Direito e de facto da sociedade A....

Sobre a intencionalidade no agir do Arguido, o Tribunal apenas se pode firmar em factos externos, muitos deles instrumentais ou meramente indiciários e, caldeando-os através das regras da experiência comum, encontrar uma justificação ou razão que dê sentido lógico e humano às condutas.

No presente caso, a versão trazida aos autos pela acusação mostra-se credível, coerente e coaduna-se com aquilo que resulta da prova, bem como das regras da experiência comum.

Com efeito, a ação do Arguido é intencional, para além de que o mesmo já foi condenado pela prática deste crime por diversas vezes.

Quanto às condições pessoais e socioeconómicas do Arguido, o Tribunal estribou-se nos esclarecimentos prestados pelo próprio, em conjugação com o relatório social para determinação da sanção elaborado pela D.G.R.S.P. e com o certificado de registo criminal do Arguido mais atualizado e que consta dos autos.


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Em relação aos factos não provados, a convicção negativa do Tribunal resulta da ausência de prova.

Na verdade, da prova produzida não foi possível apurar qual o destino que foi dado às quantias não pagas a título de I.V.A. respeitantes ao período em análise.

Quantos aos factos C a E, alegados na contestação, o Arguido não juntou qualquer elemento de prova, pelo que necessariamente foram dados como não provados.


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III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

Tendo em consideração a factualidade apurada, proceder-se-á à indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes.

O Arguido vem acusado da prática, autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º n.º 1 do RGIT.


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Do Crime de Abuso de Confiança Fiscal:

Preceitua o artigo 105.º n.º 1, 2, 4 e 7 do RGIT o seguinte:

“1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

(…)

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

(…)

7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.

Trata-se de um crime especial (porquanto tem por base o crime geral de abuso de confiança p. e p. pelo art. 205.º do Código Penal, ainda que com alterações atenta a respetiva especificidade), específico quanto ao agente (na medida em que só o podem praticar agentes com determinadas qualidades, nomeadamente o substituto tributário, que é investido na qualidade de depositário da prestação tributária e é colocado temporariamente na detenção desta), de mera atividade ou de omissão pura (isto é, o desvalor da ação – que consiste na não entrega, no prazo estabelecido, da prestação tributária em dívida – é suficiente para o preenchimento do tipo incriminador, independentemente do resultado) mas também de dano (visto que o crime apenas se consome com a efetiva lesão do património do Estado, ou seja, com a lesão do bem jurídico tutelado pela norma).

O bem jurídico protegido pela norma incriminatória é primacialmente o interesse patrimonial do Estado, que se vê privado de receitas tributárias, essenciais para o normal funcionamento das instituições e exercício das funções estatais, visando em segunda linha a promoção de valores de confiança e de colaboração do sujeito passivo para com a administração tributária (neste sentido, Carlos Teixeira e Sofia Gaspar, in “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, Vol. 2, Universidade Católica Editora, 2011, p. 467).

O tipo objetivo para preenchimento da norma consiste na não entrega, total ou parcial, no prazo estabelecido, da prestação tributária em dívida, desde que em valor superior a 7.500 EUR (sete mil e quinhentos euros).

As condutas que preenchem o tipo objetivo do crime em causa reportam-se essencialmente à não entrega: (i) de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que o agente estava legalmente obrigado a entregar – art. 105.º n.º 1; (ii) de prestação deduzida por conta daquela prestação tributária – art. 105.º n.º 2, 1.ª parte; (iii) de prestação que tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar – art. 105.º n.º 2, 2.ª parte; (iv) de prestação mencionada nos pontos II e III de natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente – art. 105.º n.º 3, todos do RGIT.

No caso específico do Imposto sobre o Valor Acrescentado, subsumível à prestação tributária elencada no art. 105.º n.º 2, 2.ª parte, conforme resulta da letra da lei (“tendo sido recebida”) e do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 8/2015:

“A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 n.º 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efetivamente, recebido”.

 Ou seja, no caso do IVA, o efetivo recebimento é pressuposto essencial do crime.

O Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado constituiu, à data da sua publicação e entrada em vigor (esta em 1 de janeiro de 1986), uma reforma radical no nosso ordenamento jurídico-fiscal e visou alterar o modelo da tributação geral do consumo, até aí configurado no Imposto de Transações.

Este imposto, de acordo com o próprio Relatório do Código do IVA, pode ser definido como um imposto que visa tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, abrangendo na sua incidência todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho, repercutindo-se o mesmo no consumidor final, sendo, porém, a base tributável limitada ao valor crescente em cada fase.

O sujeito ativo deste imposto é o Estado, ao passo que sujeitos passivos serão as pessoas singulares ou coletivas que, com carácter de habitualidade, exerçam transações de produtos em geral.

A sua orgânica faz intervir na recolha do imposto a generalidade dos operadores económicos, diluindo-se o seu peso por um maior número de operadores, desincentivando assim a evasão e a fraude e tornando eficaz o funcionamento do imposto com taxas relativamente elevadas – lê-se no preâmbulo do diploma citado.

A base tributável fica limitada ao valor acrescentado em cada fase e determina-se aplicando a taxa ao valor global das transações da empresa em determinado período, deduzindo o imposto suportado pela empresa nas compras desse mesmo período, revelado nas faturas de aquisição.

Trata-se, desta forma, de um imposto instantâneo ou de obrigação única, que incide sobre atos ou factos isolados, isto é, sem carácter de continuidade, pelo que terá de ser ainda qualificado como um imposto indireto, no sentido de que logo que se verifica o elemento material – a transmissão do bem ou a prestação de serviço – surge o imposto, a obrigação de imposto, certa e exigível. Esta regra está contida no art. 7.º do Código do IVA: o imposto é exigível e torna-se devido no momento em que os bens ou serviços objeto de operações tributáveis entram na disponibilidade do seu adquirente ou destinatário.

Vale isto por dizer que realizado determinado negócio jurídico, por certo preço e conhecida a taxa de imposto, a liquidação opera-se por força da lei (neste sentido, Diogo Leite Campos, in “Separata da Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 55 – II, julho de 1995, p. 550).

Em relação ao tipo subjetivo, nos termos do disposto no artigo 13.º do CP, em regra, só é punível o facto praticado com dolo que constitua crime ou, nos casos especialmente previstos, com negligência.

Conforme é comumente referido na doutrina e na jurisprudência, o dolo corresponde ao conhecimento e à vontade de praticar o facto. O dolo divide-se tradicionalmente em dois elementos: elemento intelectual (representação de um facto que preenche um tipo de crime) e elemento volitivo (intenção de o realizar).

Quanto ao crime em causa, importa reconhecer que o crime apenas conhece a forma dolosa e se basta com o dolo genérico, não se exigindo a verificação de qualquer dolo específico (uma vez que a norma incriminatória do art. 105.º do RGIT não faz referência expressa a qualquer elemento subjetivo específico).

Para além do tipo objetivo e subjetivo, o legislador estabeleceu ainda duas condições objetivas de punibilidade [cfr. art. 105.º n.º 4 als. a) e b) ora transcrito]. Estas não constituem elementos do ilícito típico, sendo elementos exógenos ao tipo (ainda que representem circunstâncias diretamente ligadas com o facto ilícito típico) – neste sentido, ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008.

Ora o crime de abuso de confiança fiscal só é punível pela dupla verificação destas duas condições objetivas de punibilidade, tal como decorre da lei “4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:”.

Uma vez que se trata de um crime omissivo puro, o mesmo considera-se praticado na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários, conforme resulta do disposto no artigo 5.º n.ºs 1 e 2 do RGIT.

Donde, quanto às duas alíneas do n.º 4 da norma transcrita, estamos perante duas condições objetivas de punibilidade (que não integram nem o tipo de ilícito típico, nem o de culpa), atuando como pressupostos para que o atuar antijurídico importe consequências penais – sem a sua dupla verificação cumulativa, a conduta prevista no n.º 1 não é punível.

Dito de outro modo, o crime de abuso de confiança fiscal consuma-se, independentemente da verificação ou não daquelas duas condições (não se confunde o momento da consumação material, com o momento a partir do qual a conduta é criminalmente punível).

O legislador, apesar do crime já se ter consumado, oferece duas oportunidades ao infrator para, querendo, proceder ao integral pagamento da prestação em dívida dentro daqueles dois novos períodos – ou seja, o legislador possibilita haver lugar à extinção da punibilidade da conduta criminosa pelo pagamento.

Tal como referido por Susana Aires de Sousa, in “Os Crimes Fiscais, Análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador”, Coimbra Editora, pp. 136-137: “são sobretudo razões de política criminal que sustentam aquele preceito legislativo. Desde logo, e em primeiro lugar, o legislador terá atendido ao facto da entrega, ainda que fora do prazo, pôr fim ao prejuízo patrimonial do Estado provocado pelo agente; por outro lado, aquela norma constitui um incentivo ao pagamento das prestações em falta e permite ainda evitar os custos que o procedimento criminal acarreta para a administração fiscal; por último, esta alteração legislativa foi sensível à necessidade de um certo lapso temporal que permita à administração fiscal o tratamento das informações fiscais relevantes, designadamente que dizem ao respeito ao não cumprimento dos deveres fiscais.”

Finalmente, é necessário que o concreto agente esteja legalmente obrigado a entregar aquela prestação à administração tributária, devendo entender-se que estão nessa veste os respetivos representantes legais e/ou gerentes de facto (desde que tenham o domínio funcional dos factos, isto é, a efetiva gestão/direção/domínio da empresa, podendo ditar o destino dos dinheiros da mesma) – ver arts. 6.º e 7.º do RGIT e art. 24.º da Lei Geral Tributária, aprovada em anexo ao Decreto-Lei n.º 398/98, de 17/12, na redação atualmente em vigor, bem como Ac. TR Guimarães de 18/02/2013, Relator: Des. Ana Teixeira e Silva.


*

Volvendo ao caso concreto, após este périplo:

Quanto ao tipo objetivo, provou-se que a sociedade denominada “A..., S.A.” se encontrava enquadrada para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado, no regime normal, com periodicidade mensal, estando obrigada a liquidar IVA nas faturas que emitia e a entrega-lo nos cofres do Estado, após a realização do apuramento.

Também resulta que o Arguido AA era administrador da sociedade, incumbindo-lhe a gestão dos pagamentos aos credores, nomeadamente o pagamento de impostos devidos ao Estado.

Mais se provou que a sociedade procedeu ao apuramento, preenchimento e entrega à Direção de Serviços de Cobrança do IVA, da declaração periódica relativa ao mês 04/2013, no valor de 36.656,58 EUR (trinta e seis mil, seiscentos e cinquenta e seis euros e cinquenta e oito cêntimos); 05/2013, no valor de 23.665,49 EUR (vinte e três mil, seiscentos e sessenta e cinco euros e quarenta e nove cêntimos); 06/2013, no valor de 39.398,52 EUR (trinta e nove mil, trezentos e noventa e oito euros e cinquenta e dois cêntimos); 07/2013, no valor de 36.697,04 EUR (trinta e seis mil, seiscentos e noventa e sete euros e quatro cêntimos); e 08/2013, no valor de 8.442,30 EUR (oito mil, quatrocentos e quarenta e dois euros e trinta cêntimos).

A sociedade recebeu a totalidade dos valores faturados/refletidos a clientes, pelo que tinha na sua posse, na data de entrega da declaração periódica de IVA, meios para efetuar o pagamento do valor apurado a entregar ao Estado.

Contudo, o Arguido não efetuou o pagamento das quantias acima discriminadas, antes tendo optado por utilizar tais meios líquidos gerados noutros destinos. O pagamento dos valores da divida tributária apenas foram liquidados em 06/02/2017.

No que concerne ao tipo subjetivo, resultou da matéria de facto que o Arguido tinha perfeito conhecimento da existência das dívidas ao Estado e da obrigação legal da sua entrega ao credor tributário, tendo o mesmo atuado no seu próprio interesse e no da sociedade “A..., S.A.”, de forma deliberada, livre e consciente, apropriando-se dos valores que deveriam ter entregue ao Estado, bem sabendo que lesava os interesses da Fazenda Nacional e que a sua conduta era proibida e punida por lei (aliás, tinha sido condenado pela prática do mesmo crime por sentença datada de 19/06/2013, transitada em julgado em 04/09/2013).

Em relação à respetiva obrigação do mesmo proceder à entrega da prestação do IVA à Autoridade Tributária e Aduaneira, a mesma resulta do facto do Arguido ser administrador da sociedade, incumbindo-lhe a gestão dos pagamentos aos credores, nomeadamente o pagamento de impostos devidos ao Estado.

Sobre a dupla verificação das duas condições objetivas de punibilidade, também resulta da matéria de facto dada como provada que o Arguido não procedeu ao pagamento integral da prestação tributária devida a título de IVA no prazo de 90 dias a contar do dia 20/10/2013 (cfr. despacho judicial datado de 25/01/2024 acerca da data legalmente prevista para pagamento do imposto devido) – o pagamento apenas foi realizado na íntegra em 06/02/2017 – nem procedeu das coimas aplicáveis, nos 30 dias após as notificações que a ele e à sociedade foram feitas para tal fim.

Em síntese, encontram-se, pois, preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito, pelo que o Arguido, com tal conduta, incorreu na sua prática, inexistindo causas de exclusão da culpa e da ilicitude (arts. 31.º e sgs. do CP, nem foi alegada ou se verifica qualquer outra prevista na demais legislação).


*

Da escolha e determinação da medida concreta da pena:

Ao crime de abuso de confiança fiscal corresponde, em abstrato, a pena de prisão até 3 anos ou pena de multa até 360 dias, nos termos do disposto no artigo 105.º n.º 1 do RGIT.

Contudo, importa primeiramente analisar da eventual aplicação dos institutos da dispensa e da atenuação especial da pena ao presente caso.

O artigo 22.º do RGIT dispõe o seguinte:

“1 - Se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária e o crime for punível com pena de prisão igual ou inferior a 2 anos, a pena pode ser dispensada se:

a) A ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves;

b) A prestação tributária e demais acréscimos legais tiverem sido pagos, ou tiverem sido restituídos os benefícios injustificadamente obtidos, até à dedução da acusação;

c) À dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção.

2 - A pena será especialmente atenuada se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo nela fixado”.

Enquanto o n.º 1 da norma transcrita estabelece os requisitos para o Tribunal poder dispensar a aplicação da pena (de natureza facultativa), o n.º 2 impõe a atenuação especial se o agente repuser a verdade fiscal e, cumulativamente, pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo nela fixado (de natureza obrigatória).

Atendendo à factualidade dada como provada, não é possível aplicar a dispensa de pena, desde logo, porquanto o crime de abuso de confiança fiscal é punível com pena de prisão até 3 anos (falta do primeiro pressuposto formal).

Acerca da atenuação especial da pena, no presente caso o Arguido apresentou em tempo e sem indícios de faltar à verdade as necessárias declarações periódicas (primeiro requisito), bem como houve lugar ao pagamento integral das prestações tributárias em dívida e demais acréscimos legais (segundo requisito).

Deste modo, em obediência ao princípio da legalidade, o Tribunal deve proceder à atenuação especial da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 22.º n.º 2 do RGIT, 72.º e 73.º do Código Penal, o que se decide.

Consequentemente, ao crime de abuso de confiança fiscal corresponde, no caso concreto por força da atenuação especial operada e correspondentes normas legais, a pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.


*

Quanto à escolha da pena principal, atento o critério expresso no artigo 70.º do Código Penal, o Tribunal dá preferência a uma pena não privativa da liberdade, desde que esta assegure de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, as quais se identificam com a (i) proteção dos bens jurídico-penais atingidos no caso concreto e (ii) a reintegração do concreto agente na sociedade, nos termos do disposto no artigo 40.º do Código Penal.

As finalidades da punição são predominantemente preventivas na sua dupla dimensão geral e especial (cfr. artigo 40.º n.º 1), pelo que o Tribunal deverá ponderar unicamente as necessidades de prevenção geral e especial que o caso concreto reclame, com a tónica nas suas vertentes positivas e, secundariamente, nas suas vertentes negativas.

As penas são aplicadas, pois, por um lado, para reafirmar perante a comunidade a manutenção da confiança na validade das normas jurídicas que, com a prática do crime, foram infringidas (prevenção geral positiva), bem como para intimidar todos os potenciais delinquentes, com vista a prevenir, a nível societário, a prática de novos crimes, do mesmo ou de outros tipos (prevenção geral negativa).

Por outro lado, as sanções penais são aplicadas com vista a reintegrar o infrator na sociedade (prevenção especial positiva), servindo ainda para o advertir individual e suficientemente pela falta cometida, de modo a o afastar, por essa via, da prática de outros delitos (prevenção especial negativa).

Por último, a culpa do infrator desempenha o triplo papel de (i) pressuposto da pena, porquanto não há pena sem culpa – princípio que se deduz do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade, consagrados nos artigos 1.º e 27.º da Constituição da República Portuguesa; (ii) limite máximo inultrapassável da pena a aplicar (artigo 40.º n.º 2 do CP); e (iii) critério para determinar a sua concreta medida (art. 71.º n.º 1 do CP).

Assim:

Em relação aos crimes fiscais, as exigências de prevenção geral são significativas e intensas, uma vez que contendem com a promoção dos valores económico-sociais, ligadas à estrutura axiológica-constitucional que preside aos valores eleitos pela Constituição, no âmbito dos direitos fundamentais de carácter social e económico.

Adicionalmente, o atual contexto económico-financeiro público tem vindo a importar um alarme social crescente ao longo dos últimos anos, sobre o fenómeno da evasão fiscal (entendida num sentido lato), estando profundamente enraizada na comunidade uma forte convicção sobre a imperativa necessidade de perseguir eficaz e severamente os autores de condutas subtrativas do erário público.

Tal comportamento colide com a ideia de captação das receitas fiscais devidas nos termos da Lei Tributária. Enfim, o dever fundamental de estar sujeito a tributação é absolutamente basilar como paradigma da igualdade na repartição de encargos e no apoio financeiro às funções público-sociais que incumbem ao Estado.

Por outro lado, e isto na vertente da prevenção especial, no que à escolha da pena importa, cumpre referir que o Arguido tem registo de vários crimes por si praticados antes e depois dos factos em análise.

Ora, não obstante as sucessivas penas que lhe foram aplicadas, as mesmas não foram suficientemente eficazes, do ponto de vista da prevenção especial, para afastá-lo, novamente, da prática de ilícitos típicos.

Destarte, o Tribunal aplicará uma pena de prisão.


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Quanto à determinação da medida concreta da pena, tendo em consideração os critérios estabelecidos no art. 71.º do CP, o Tribunal realizá-la-á (i) dentro dos limites definidos na lei, (ii) em função da culpa do agente e (iii) das exigências de prevenção, (iv) atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (sob pena de dupla valoração, o que não é permitido), depuserem a favor do agente ou contra ele (cfr. art. 71.º n.º 2 do CP).

Em relação ao primeiro aspeto, a moldura penal abstrata a considerar é a pena de prisão de 1 mês a 3 anos.

Sobre o segundo e terceiro critérios, o patamar mínimo da pena a aplicar corresponde ao nível abaixo do qual a comunidade jurídica não sente suficiente e eficazmente protegido o bem jurídico que foi violado com a prática do crime correspondente, atendendo-se ao fator da prevenção geral positiva.

O nível máximo é fornecido pelo grau de culpa, já que esta, constituindo o fundamento ético e jurídico da aplicação das penas, representa também o seu máximo inultrapassável, conforme explicita o art. 40.º n.º 2 do CP.

Finalmente, quanto ao quarto critério, a medida concreta da pena deve ser encontrada atendendo às exigências de prevenção especial que o caso reclama (cfr. art. 71.º n.º 2, a cujos itens o julgador deve atender na fixação concreta da pena), bem como especialmente, no caso dos crimes tributários e sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime (artigo 13.º do RGIT):

Debruçando-nos sobre os concretos fatores de medida da pena, estabelecidos no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal e no artigo 13.º do RGIT:

Contra o Arguido importa mencionar que o mesmo atuou com dolo direto.

O grau de ilicitude dos factos é muito elevado, na medida em que os valores arrecadados ao nível do I.V.A. e não pagos no prazo estabelecido na lei se cifram na quantia global de 144.859,93 EUR (cento e quarenta e quatro mil, oitocentos e cinquenta e nove euros e noventa e três cêntimos).

Por outro lado, o Arguido tentou, sem sucesso, eximir-se das suas responsabilidades de Administrador da sociedade A... e não demonstrou ter interiorizado o desvalor da sua conduta, não obstante os sucessivos crimes de abuso de confiança fiscal e contra a Segurança Social em que já foi condenado ao longo dos últimos 22 (vinte e dois) anos.

Na verdade, os antecedentes criminais do Arguido não abonam minimamente em seu favor, porquanto praticou 17 (dezassete) crimes entre 2002 e 2018, sendo 10 (dez) desses crimes idênticos ao crime em causa nos presentes autos, crimes esses praticados quer no período anterior ao descrito na acusação pública, quer posteriormente, revelando a falta de preparação do Arguido para manter uma conduta lícita e responsável.

Em seu favor, importa destacar a sua integração pessoal, familiar e profissional, bem como o facto dos montantes relativos às prestações tributárias em dívida (que não o valor das coimas na quantia global ainda por pagar de 53.096,49 EUR) terem sido saldados, ainda que tardiamente.

Pelo exposto, considerando as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso concreto, conforme supra se explanou, e a culpa do Arguido que é elevada, considera-se justo, pertinente, adequado e proporcional aplicar-lhe a pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão.


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Uma vez determinada a pena principal concreta a aplicar ao Arguido, cumpre decidir se lhe é de aplicar uma pena de substituição, em alternativa à pena curta de prisão.

Ao caso dos autos, e em função da pena supra determinada, é de ponderar a eventual substituição da pena de prisão pela suspensão da sua execução (artigo 50.º do CP), a substituição por trabalho a favor da comunidade (artigo 58.º n.º 1 do CP) e o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação (artigo 43.º do CP), preferindo as primeiras à última, por ser esta mais restritiva da liberdade do Arguido.

Ora, é requisito da aplicação de penas de substituição, antes de mais, que tal forma de cumprimento realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

A propósito da substituição da pena de prisão ora fixada, entende o Tribunal que a eventual substituição da mesma por trabalho a favor da comunidade, no caso concreto, não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição atendendo ao registo criminal do Arguido, demonstrativos de uma atitude de indiferença para com o Direito Penal, não bastando para que o mesmo interiorize o desvalor da sua conduta e para satisfazer as exigências de prevenção geral, a que acresce o facto do mesmo trabalhar, não tendo disponibilidade para o efeito.

Por outro lado, no que se refere à aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, no presente caso concreto, não é possível a este Tribunal formular um juízo de prognose favorável em relação ao Arguido, atendendo à atitude de antinormatividade que manifesta para com o Direito. Nem o contacto formal com as instâncias jurisdicionais, nem a aplicação seja de penas de multa, seja de penas de prisão suspensas serviram para o advertir e o reintegrar na sociedade, voltando, infelizmente, a praticar crimes.

Na verdade, o registo criminal do Arguido não abona minimamente em seu favor, porquanto praticou 17 (dezassete) crimes entre 2002 e 2018, sendo 10 (dez) desses crimes idênticos ao crime em causa nos presentes autos, crimes esses praticados quer no período anterior ao descrito na acusação pública, quer posteriormente, revelando a falta de preparação do Arguido para manter uma conduta lícita e responsável e a ausência da interiorização da censurabilidade dos seus comportamentos.

Conclui-se assim que o Arguido não é merecedor de uma nova oportunidade, sob pena, aliás, de frustração das exigências de prevenção geral, ao passo que uma suspensão da execução da pena de prisão em circunstâncias como as que temos em presença e perante um registo criminal e uma personalidade avessa ao dever ser jurídico-criminal, não deixaria de ser percecionada, pelo Arguido e pela comunidade, como manifesta impunidade de um comportamento que todos reconhecem como nefasto.

Quanto à possibilidade de cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação (artigo 43.º do CP), é requisito da mesma, além do mais, o consentimento do Arguido.

No caso em apreço, o Arguido faltou à 1.ª sessão da audiência de julgamento (sem justificar), compareceu na 2.ª sessão, faltou novamente à 3.ª sessão (sem justificar) e, na data de ontem, contactado telefonicamente para o efeito pela Secção para a importância e necessidade fulcral da sua presença, recusou-se a comparecer voluntariamente, razão pela qual não foi possível colher do seu eventual consentimento nos termos do artigo 4.º n.º 2 da Lei n.º 33/2010, de 02/09, ficando assim prejudicada a aplicação deste regime (nem demonstrou o Arguido uma atitude pró-ativa no sentido de colaborar com a justiça para obter a melhor solução possível ao seu caso, antes demonstrando indiferença para com o desenrolar dos presentes autos e para a sua situação jurídico-criminal).

Afastando todas as penas de substituição aplicáveis, nada mais resta do que a aplicação de prisão efetiva, a cumprir em Estabelecimento Prisional, o que se decide.

                                                                       *

            Apreciação do recurso.

            Como se disse na síntese em que se elencaram as questões a apreciar - e é incontroverso - o âmbito do recurso é aferido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. E há, adianta-se já, questões de conhecimento oficioso que pela sua pertinência se impõe começar por conhecer, mesmo que não elencadas pelo recorrente – ou não elencadas nos exatos termos e pela ordem em que foi requerido que fossem conhecidas.

            E uma dessas questões é a insuficiência da matéria de facto para a decisão a qual, sendo subsumível, como veremos, ao vício previsto no artigo 410º, nº 2, a) do CPP, é de conhecimento oficioso.

            Este vício – que não se confunde com a insuficiência da prova para a fixação da factualidade provada – consubstancia uma omissão de factos necessários para a decisão de direito.

            O recorrente invoca a insuficiência da matéria de facto pela perspetiva de não ter o tribunal atentado na prova documental que, no seu entender, levaria à conclusão de estar errada a data em que ocorreu a notificação da sociedade de que o arguido era sócio gerente, de estar errada a data em que foi efetuado o pagamento da dívida tributária, de não poder ter sido desconsiderado pelo tribunal a quo que o IVA referente aos períodos 2013/14, 2013/05 e 2013/08 foi pago antes de decorridos os 30 dias referidos na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT; de não poder ser, como foi, omitido que foram realizados pagamentos parciais, regularmente, em obediência a um plano de pagamentos prestacionais decorrente da sujeição da sociedade a um Processo Especial de Revitalização, factos estes que o recorrente entende relevantes quer para a decisão de mérito, quer para aferir da verificação efetiva da prática do crime e da culpabilidade, quer, subsidiariamente, para a escolha e medida da pena.

            Isto é, o recorrente considera que o tribunal apreciou mal o acervo probatório dos autos e desconsiderou provas relevantes, que no seu entender levariam a decisão diversa, requerendo que sobre eles se pronuncie este Tribunal.

Não obstante se poder reconhecer valia nos argumentos que sustentam a requerida alteração da matéria de facto e se reconhecer até que os autos evidenciam factos que foram omitidos, não deve este tribunal, sobre eles, iniciar a apreciação do recurso: os primeiros, por resultarem prejudicados pela apreciação que se fará; os segundos, porque se o arguido os entendia pertinentes, deveria durante o julgamento - que é o momento nobre da discussão da matéria de facto - requerer que viessem a ser considerados em sede de sentença, para que em recurso pudessem ser alvo de apreciação. Não o tendo feito, não cabe a este tribunal apreciar e aditar factos novos, não considerados em 1ª instância e sobre os quais não recaiu qualquer decisão.

           

            Mas constatando-se que existe o vício previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP - detetável a partir do próprio texto da decisão recorrida, uma vez que, como se verá, a factualidade apurada, não sustenta a decisão de direito - já não pode deixar este tribunal de sobre ele se debruçar.

            Para tanto comecemos por recordar o tipo legal pelo qual o arguido foi acusado, julgado e condenado.

            Dispõe o artigo 105º, nºs 1, 2, 4 e 7 do RGIT que:

1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

(…)

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

(…)

7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.

O tribunal de primeira instância analisou corretamente em termos teóricos o tipo legal em apreço, razão pela qual não se impõe repetir considerações sobre o crime de abuso de confiança fiscal, para além das que respeitam às condições objetivas de punibilidade, que são as que reclamam, no caso, uma análise mais atenta.

            As condições objetivas de punibilidade constam do nº 4 do preceito acima transcrito. Foram nele introduzidas pelo artigo 95º da Lei 53-A/2006 e, depois da polémica quanto à caracterização do aditamento legal, veio a ser fixada jurisprudência pelo Ac. FJ nº 6/2008 publicado no DR I, de 15.05.2008 nos seguintes termos:

            “A exigência prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, na redação introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade (…) tendo sido cumprida a respetiva obrigação de declaração deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT).

 Condições objetivas de punibilidade são pressupostos adicionais da punibilidade que não se ligando nem à ilicitude nem à culpa, decidem ainda da punibilidade do facto (cfr. Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, I, Coimbra Editora, 2004, 617 e Susana Aires de Sousa in os Crimes Fiscais, Coimbra Editora, 136).

            Isto é, são elementos da norma penal, que, situando-se fora do tipo de ilícito e do tipo de culpa, são exigidos por lei para que a ação antijurídica seja penalmente punível.

            Por isso ficou a constar do Ac. FJ 6/2008 que “…a alteração produzida pelo artigo 95º da Lei 53-A/2006 não implicou qualquer alteração nos elementos constitutivos do crime previsto no artigo 105º do RGIT (a não entrega da prestação tributária retida no prazo legalmente fixado) que permaneceu imodificado na sua tipicidade.

A alteração legal revela-se tão só como a previsão de uma outra condição de punibilidade…”

            Daqui resulta que quando a notificação é efetuada e o devedor não paga a prestação tributária anteriormente recebida, no prazo de 30 dias após a notificação, deverá ser desencadeado o processo com vista à eventual condenação do omitente pela prática do referido crime fiscal.

            Mas daqui resulta também que enquanto não for observada a notificação e, com ela, cumprida a condição objetiva de punibilidade, não deverá ser deduzida acusação por falta de um pressuposto necessário à condenação.

            Posto isto,

            Colhe-se da matéria facto que a sociedade, de que o arguido recorrente era sócio gerente, foi notificada em 15/05/2014 para efetuar o pagamento dos valores da dívida tributária, mas apenas pagou em 06/02/2017 (Facto 8).

            (Este facto está impugnado no que concerne à data da notificação e do pagamento, mas por agora não importa, verdadeiramente, analisar a questão e, eventualmente, corrigir tais datas).

            Consta ainda da matéria de facto que o arguido foi notificado nos termos e para efeitos da alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT já no decorrer do julgamento, em 24/05/2024 (facto 11).

            Isto é, quando a acusação foi deduzida contra o arguido, não havia sido cumprida quanto a ele a notificação que constituiria a condição objetiva de punibilidade.

             Ora, não há dúvida de que sendo o arguido sujeito a julgamento e não só a sociedade de que era sócio, deveria ele ser notificado em seu nome pessoal, nos termos e para efeitos da al. b) do nº 4 do art. 105º do RGIT, e não apenas a sociedade. Que a sociedade o foi, é verdade (não nas datas referidas na sentença, mas é irrelevante); que o arguido só o foi durante o julgamento, também não há dúvida (fls 1168 e ss, 1173 e 1186v a 1189).

 Ora, assim sendo, é forçoso concluir que quando a acusação foi deduzida não estava perfectibilizada quanto ao arguido, a condição objetiva de punibilidade. E, não estando, não podia ter sido deduzida, quanto a ele, acusação.

            O tribunal a quo, quando em julgamento detetou a omissão considerou estar-se perante uma irregularidade.

            É o seguinte o despacho proferido em 15/03/2024: Compulsados os autos, resulta que o Arguido AA não foi pessoalmente notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 105.º n.º 4 alínea b) do RGIT, durante a fase de inquérito, não obstante as diversas tentativas levadas a cabo para o efeito. Estamos perante uma irregularidade, com reflexos no exercício de direitos do Arguido, podendo afetar dessa forma a validade de todos os atos processuais posteriores, irregularidade essa que importa sanar (no mesmo sentido, ver Ac. TR Lisboa de 17/06/2020, Ac. TR Porto de 26/02/2014 e 13/05/2009, Ac. TR Évora de 21/03/2017, bem como Tiago Milheiro, in “Da Punibilidade dos Crimes de Abuso de Confiança fiscal e de Abuso de Confiança contra a Segurança Social”, Revista Julgar nº 11, pp. 86-89). Por conseguinte, ao abrigo do disposto no artigo 123.º n.º 2 do CPP, julgo verificada tal irregularidade e, conforme promovido, solicite ao OPC territorialmente competente a notificação pessoal do Arguido AA, com nota de URGENTE (julgamento já iniciado). Notifique e DN.

Entendeu, portanto, o tribunal a quo estar perante uma irregularidade que podia/teria de ser colmatada e fê-lo, notificando o arguido com vista ao cumprimento da condição objetiva de punibilidade, no decorrer do julgamento. Também o Ministério Público nesta Relação entende que mesmo que a notificação tivesse sido irregular (por dever ter ocorrido antes da acusação) sempre se estaria perante uma irregularidade que não tendo sido invocada pelo recorrente no prazo legal, ter-se-ia de considerar sanada.

            Só que uma coisa é uma irregularidade processual com influência na decisão da causa que pode ser corrigida oficiosamente (artigo 123º, nº 2 do CPP) outra, bem diferente, é faltar o cumprimento de uma condição objetiva de punibilidade.

            De facto, não se pode confundir a existência de uma irregularidade processual, com a falta de uma condição objetiva de punibilidade. É que perante uma irregularidade o processo pode prosseguir e ela pode sanar-se; perante a falta de uma condição objetiva de punibilidade, a conduta não tem relevância criminal enquanto não se mostrar verificada a condição. Isto é, o facto ilícito foi praticado, mas não é punível. E se não é, e enquanto o não é, não pode sequer ser deduzida acusação.

            É que as condições de punibilidade, como já vimos, sendo elementos suplementares do tipo, são-lhes exteriores, mas sem a sua verificação o facto é criminalmente inócuo. Quer sejam inspiradas por razões de política criminal, entendendo o legislador que sem elas não se justifica a punibilidade do facto típico, quer pela ausência de dano efetivo ao interesse tutelado, quer por outra razão de oportunidade e conveniência, o certo é que a categoria da “punibilidade” é uma categoria autónoma da infração criminal a juntar às categorias da ilicitude típica e da culpa, sem a qual o facto não é punível, isto é, o facto não tem consequências penais.

            É certo que há quem entenda (como, aliás, consta do despacho proferido a fls 1173) que a “irregularidade” pode ser colmatada em qualquer fase processual, mas tal implica confundir a omissão da verificação de uma condição objetiva de punibilidade com a existência de uma simples irregularidade o que é, salvo o devido respeito por opinião diversa, incorreto.

            Portanto, assim sendo, antes da acusação ser deduzida contra o arguido teria de ter sido cumprida expressamente a condição objetiva de punibilidade, porque só assim estariam reunidos os pressupostos que viriam a permitir a condenação do arguido.

            Não o tendo sido e chegados os autos a julgamento, não pode durante o julgamento o tribunal acrescentar à factualidade a condição em falta, sob pena de transformar uma conduta criminalmente inócua, numa conduta punível (cfr. Ac. RE de 25/10/2016 proferido no processo 1221/14.4TAFAR.E1), o que até é mais grave do que imputar ao arguido a prática de um crime mais grave e é violador do princípio do acusatório e do contraditório.

            Como é dito no Acórdão da Relação de Lisboa – que seguimos de perto por tratar de situação idêntica – de 24.04.2018, proferido no processo 4373/12.4TALRS.L1-5, “Se o Ministério Público não podia ter deduzido a acusação porque não foi feita a notificação em causa, feito o julgamento e constatada a não verificação da condição objetiva da punibilidade, não faz sentido que o tribunal a supra, precisamente porque o processo a esta fase não devia ter chegado (…).

            O juiz não tem que se empenhar na satisfação de uma não verificada condição objectiva de punibilidade, como não tem que se empenhar na verificação dos restantes elementos do crime.(…)

            E assim sendo, a notificação aí prevista (e o não pagamento subsequente nos 30 dias posteriores) tem que estar verificada antes da acusação, sob pena de os factos aí descritos não constituírem crime (entendido como ação típica, ilícita, culposa e punível).”

            Poder-se-ia objetar que o arguido estivera contumaz e, portanto, ficou inviabilizada tal notificação (situação semelhante, aliás, à do acórdão a que vimos fazendo referência), mas assim sendo, a acusação só seria deduzida quanto a ele quando, cessada a contumácia, fosse possível considerar reunidos todos os pressupostos necessários à punição.

            Poder-se-ia objetar, ainda, que tais pressupostos ficaram reunidos no momento em que o arguido foi notificado. Só que, para além da violação do princípio do acusatório a que já fizemos referência, a prestação tributária em falta (porque já havia sido paga) já não se mostrava devida, estando só em dívida coimas, relativamente às quais não pode, rigorosamente, falar-se de crime de abuso de confiança por apropriação indevida de prestação tributária deduzida e não entregue, nos termos da lei.

            Em face do exposto é evidente que a factualidade apurada não continha factos suficientes para a condenação do arguido e que o seu aditamento durante o julgamento (facto 11) constituiu, como alega o recorrente, uma alteração substancial de factos, aliás, não precedida do cumprimento do disposto no artigo 359º do CPP, com a qual pretendeu o tribunal a quo transformar uma conduta juridicamente inócua, numa conduta punível.

Assim sendo e não sendo possível, em face do estado dos autos e pelas razões já expostas, reparar o apontado vício, necessariamente se terá de concluir pela absolvição do arguido, o que determina que fiquem prejudicadas as demais questões elencadas no recurso.


*

            III.

            DECISÃO.

            Em face do exposto julga-se procedente o recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se o recorrente do crime por que foi condenado.

            Sem custas.

            Notifique.


Coimbra, 28 de maio de 2025

Maria Teresa Coimbra

    Rosa Pinto (vencida)


                                                Helena Lamas

         

Voto de vencida:

Votei vencida por entender que a competência para ordenar o cumprimento do artigo 105º, nº4, alínea b), do RGIT, cabe à entidade perante a qual estiver o processo quando a questão do seu cumprimento se vier a suscitar.

Há muito que a Relação de Coimbra decidiu neste sentido – cfr. Ac. desta Relação de 23.10.2013.

Como se lê neste aresto, “o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social consuma-se com o não cumprimento de um dever, traduzido na não entrega, dolosa, do montante das contribuições deduzidas do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais, no prazo da entrega fixado para cada prestação.

O abuso de confiança contra a Segurança Social é um crime de omissão pura, pese embora exija num primeiro momento um facere traduzido na dedução e retenção das contribuições, fica perfeito quando tais elementos se verificam, pois em tal caso foi colocada em crise o bem protegido pelo tipo, e não perde essa perfeição pela necessidade de coexistência das chamadas condições objectivas de punibilidade, mais concretamente do decurso do prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e do prazo de 30 dias após comunicação para o efeito, mencionados, respectivamente nas alíneas a) e b), n.º 4 do art.105.º do RGIT, aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por força da remissão do art.107.º, n.º2, do mesmo diploma.

As condições objectivas de punibilidade são elementos situados fora da definição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais.

Não integram a tipicidade, a ilicitude ou a culpa, pelo que não sufragamos o entendimento do recorrente de que a notificação a que alude a alínea b), n.º 4, do art.105.º do RGIT, tem, ou deve ter, lugar em momento que lógica e cronologicamente é prévio à existência do facto criminoso”.

Também é o que resulta do corpo do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 6/2008, de 9 de Abril de 2008, bem como do Ac. nº 409/2008 do Tribunal Constitucional.

No referido AUJ pode ler-se que: “Na verdade, o crime de abuso de confiança fiscal consuma-se com a não entrega dolosa no tempo devido das quantias deduzidas pelo agente. O n.º 2.º do artigo 5.º do RGIT esclarece que as infracções tributárias omissivas se consideram praticadas na data em que termine o prazo para cumprimento dos respectivos deveres tributários.

Assim o desenho do crime perfilado no normativo em apreço corresponde a um crime de mera inactividade e, ainda, a uma omissão pura ou própria descrita autonomamente num tipo legal de crime. …

A alteração legal produzida, repercutindo-se na punibilidade da omissão e ligada, de forma inextricável, ao tipo de ilícito, é, todavia, algo que é exógeno ao mesmo tipo. Importa, assim, caracterizar em termos dogmáticos a alteração produzida, o que entronca directamente com a da distinção entre condição objectiva de punibilidade e pressuposto processual.

Revisitando o que a propósito do tema oportunamente se escreveu e como referem Zipf e Maurach, o poder punitivo do Estado é fundamentalmente desencadeado pela realização do tipo imputável ao autor. Não obstante, em determinados casos, para que entre em acção o efeito sancionador requer-se a verificação de outros elementos para além daqueles que integram o ilícito que configura o tipo. Por vezes essas inserções ocasionais da lei, entre a comissão do ilícito e a sanção concreta, inscrevem-se no direito material - hipótese em que se fala de condições objectivas ou externas de punibilidade -, noutros casos constituem parte do direito processual e denominam-se pressupostos processuais.

As condições objectivas da punibilidade são aqueles elementos da norma, situados fora do tipo de ilícito e tipo de culpa, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente global do acontecer, e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte desta acção.

Estamos em crer que é inequívoco o entendimento de que a verdadeira essência das condições objectivas de punibilidade como categoria dogmática autónoma no marco dos pressupostos materiais de punibilidade é, na perspectiva substancial, a sua autonomização em relação à ilicitude. O que sucede dado que esta classe de condições se coloca à margem da conduta ilícita e, consequentemente, a sua verificação vem a colocar em relevo tão-somente a questão da necessidade da pena. Nessa sequência, e num plano de conceitos, os elementos do tipo de ilícito e condições objectivas de punibilidade são noções que se excluem mutuamente.

Como se referiu, as condições objectivas de punibilidade são circunstâncias que se encontram em relação directa com o facto mas que não pertencem nem ao tipo de ilícito nem ao de culpa. Constituem pressupostos materiais da punibilidade.

As condições objectivas de punibilidade são, assim, circunstâncias que se situam fora do tipo de ilícito e da culpa e de cuja presença depende a punibilidade do facto, ou seja, são um pressuposto para que o actuar antijurídico importe consequências penais. São condições em que uma ponderação das finalidades extrapenais tem prioridade em face da necessidade da pena.

Uma vez que não pertencem ao tipo não se requer que sejam abrangidas nem pelo dolo nem pela negligência. A aparição das condições objectivas de punibilidade é indiferente para o lugar e tempo do facto.

Na verdade, e no que concerne à situação sob análise, foi intenção publicitada do legislador, expressa de forma inequívoca na letra da lei, o objectivo de conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta omissiva. A nova lei é mais favorável para o agente pois que lhe proporciona a possibilidade de, por acto dependente exclusivamente da sua vontade, preencher uma condição que provoca o afastamento da punição por desnecessidade de aplicação de uma pena”.

Por sua vez, também o TC já apreciou a questão, desde logo no Ac. nº 409/2008, onde se afirma que:

“Constitui, assim, objecto do presente recurso, a questão da inconstitucionali­dade, por violação dos princípios da legalidade e da separação de poderes, consagrados nos artigos 202.º e 219.º da CRP, da interpretação do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista.

Os invocados artigos 202.º e 219.º da CRP respeitam, respectivamente, à defini­ção da função jurisdicional e das funções e estatuto do Ministério Público.

O primeiro pre­ceito define os tribunais como os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo‑lhes, nessa função, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados. O segundo comete ao Ministério Público a representação do Estado e a defesa dos interesses que a lei determinar, bem como a participação na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, o exercício da acção penal orientada pelo princípio da legalidade e a defesa da legalidade democrática.

O critério adoptado no acórdão recorrido de que competente para determinar a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT é a entidade titular do pro­cedimento ou do processo (Administração, Ministério Público, tribunal de instrução criminal ou tribunal do julgamento), consoante a fase em que ele se encontre quando surge a necessi­dade de proceder a essa notificação, em nada colide com os preceitos constitucionais citados, nem mesmo com o princípio da separação de poderes, na perspectiva da constituição de uma reserva da Administração.

Quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa notificação, ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas típica da Administração Tributá­ria, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto titular da acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar uma decisão de acusação ou de não acusação. Similar­mente, quando o juiz de instrução ou o juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se limitam a praticar um acto instrumental necessário à comprovação da existência, ou não, de uma condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia ou não pro­núncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é: em todas essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público ou por magistrados judiciais insere‑se perfeitamente dentro das atribuições constitucionais dessas magistraturas”.

De qualquer forma, mesmo que assim não fosse, como bem se refere no Parecer da Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, “no caso sub judice, resulta dos factos provados que a sociedade foi notificada nos termos do disposto na al. b), do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT em 15.05.2014, (facto provado 8, mas impugnado no presente recurso) e que o arguido veio a ser notificado no decurso do julgamento em 24.05.2024 (facto provado 11). Não havendo dúvidas de o arguido foi notificado nos termos do disposto na al. b), do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT, em 24.05.2024, em momento posterior à acusação … .

Com efeito, resultam dos presentes autos as diligências efetuadas pela Autoridade Tributária, assim como do inquérito criminal para apurar o paradeiro do arguido, que não foi possível localizar, constando que se tinha ausentado para parte inserta, cfr. despacho prévio à acusação, fls. 554, 556, 561, 562 e 566, vindo a ser declarado contumaz”.

Como se refere no Ac. da RE de 18.2.2020, in www.dgsi.pt, “se a notificação, que não faz parte do tipo de crime, não integra a ilicitude nem a culpa e visa apenas dar a oportunidade ao arguido (que já realizou o crime) de regularizar a dívida fiscal e não ser punido, nos casos em que a administração diligenciou em vão pela notificação, é de considerar verificada a condição objectiva de punibilidade.

As situações de concreto esgotamento das diligências processuais para a notificação do arguido, em que a notificação não ocorre por responsabilidade exclusiva deste, devem ser equiparadas aos casos em que a notificação é ordenada e devidamente concretizada”.

Jurisprudência que se acompanha.

A ser assim, neste particular, nenhuma censura merece a sentença recorrida.

                                 Rosa Pinto