REVOGAÇÃO DO PERDÃO CONCEDIDO SOB CONDIÇÃO RESOLUTIVA
AUDIÇÃO PRÉVIA DO ARGUIDO - PESSOAL E PRESENCIAL
Sumário

1 - A causa resolutiva do perdão é a prática do crime doloso que se concretiza com a condenação, isto é, com o seu trânsito em julgado, não havendo ponderação de motivos que possam levar à não resolução do perdão.
2 - A decisão determinando a revogação do perdão afecta inevitavelmente o aqui recorrente, porque implica o cumprimento da parte da pena perdoada, aqui interessando o invocado art. 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP, que não obstante e neste âmbito, carece de relevância para a tomada de decisão do tribunal e consequentemente não tem qualquer efeito útil concreto.
3 - A audição prévia do arguido nunca poderia contribuir para a decisão uma vez que a decisão de revogação do perdão não depende de juízo valorativo por parte do Juiz, antes tem apenas como pressuposto formal a prática pelo arguido de uma infracção dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, cuja verificação importa obrigatoriamente a revogação automática do perdão.
4 - Não se estando perante situação em que seja exigida a comparência para audição pessoal e presencial do condenado, e, vigorando em sede de nulidades o princípio da tipicidade (art. 118.º, n.º 1, do CPP), é inexistente a nulidade insanável que vem invocada pelo recorrente, prevista no art. 119.º, alínea c), do CPP.
5 - Acresce que o Ministério Público promoveu a revogação do perdão concedido ao recorrente pela prática de factos ilícitos criminais dolosos, praticados em 13.03.2024 e notificado de tal promoção, veio o recorrente responder-lhe, nos termos que constam do requerimento apresentado em 07.10.2024.
6 - Assim, não ocorreu violação de qualquer garantia constitucional.

Texto Integral

            Acordam em conferência os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

            I-Relatório

            1. No do Proc. Comum Singular Nº 527/19.0GCLRA, que corre termos no Juízo Local Criminal de Leiria – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, foi declarado perdoado o remanescente da pena que nele havia sido aplicada ao arguido e condenado AA, vindo esse perdão a ser revogado, por despacho proferido em 19.11.2024, e neste também a ser ordenada a emissão de mandados de detenção para cumprimento da (remanescente) pena de 11 (onze) meses e 3 (três) dias de prisão.


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            2.  Não se conformando com o decidido em tal despacho veio o arguido e condenado AA dele interpôr recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

                “1. O presente recurso tem por objeto o Despacho proferido nos presentes autos a 19/11/2024,coma referência nº109013118,através doqualdecretou extinção do perdão concedido, aplicando ao arguido o cumprimento da (remanescente) pena de 11 (onze) meses e 3 (três) dias de prisão a que foi condenado nestes autos.

                2. O recorrente não pode, de todo, concordar com a decisão recorrida.

                3. O arguido nos presentes autos foi condenado na pena única de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão (efectiva).

                4. Não resultando dos autos que o arguido se encontrasse em alguma das situações previstas no artigo 7º, nº 1, als. i), j e l), da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, e conforme despacho proferido a 01/09/2023, com a ref. nº 104667398, ao recorrente declarou-se perdoado o remanescente da pena de prisão que lhe restava cumprir, a qual, reportada àquela data (01.09.2023), era de 11 (onze) meses e 3 (três) dias de prisão, perdão esse sob a condição resolutiva doarguidonãopraticarinfracçãodolosa noanosubsequenteà data da entrada em vigor da presente Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, caso em que a pena aplicada à infracção superveniente acrescerá a pena ou parte da pena ora perdoada, sendo o recorrente, consequentemente, libertado.

                5. Em 09/09/2024,veio o Ministério Públicopromover pelarevogaçãodoperdão concedido ao recorrente, na medida em que consta no CRC do arguido condenação averbada pelo processo nº 38/24...., pela prática de factos ilícitos criminais dolosos, praticados em 13.03.2024.

                6. Tendo o recorrente respondido à promoção do MP no dia 07/10/2024.

                7. Não obstante, veio o tribunal recorrido a 19/11/2024 concordar com a promoção do MP, proferindo o Despacho com a ref. nº 109013118 através do qual decretou a extinção do perdão concedido, condenando o arguido no cumprimento da (remanescente) pena de 11 (onze) meses e 3 (três) dias de prisão a que foi condenado nos presentes autos.

                8. Entende o ora recorrente que a revogação do perdão constitui decisão que o afecta pessoalmente, termos em que, ao abrigo do disposto no art. 32º, nºs 1, 5 e 7 do art. da C.R.P. e do art. 61º n.º 1 alínea b) do CPP, deveriaantes demaiso recorrentetersidoouvido antes dadecisãoproferida pelo tribunal recorrido, sob pena de constituir inconstitucionalidade e nulidade processual a ser declarada por violação dos indicados dispositivos legais.

                9. No caso dos presentes autos, o recorrente não foi em momento algum ouvido, ou seja, não lhe foi designada qualquer audição de arguido perante o tribunal, momentoemqueomesmopoderia serouvido eexercer ocontraditório, tendo tido simplesmente revogado por parte do tribunal recorrido o perdão anteriormente concedido.

                10. Ora, para além de prevista a forma como deve ser exercido em vários termos do processo, encontra-se atribuído genericamente ao arguido no art. 61º, n.º 1, al. b) do CPP: «1. O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e, salvas as excepções da lei, dos direitos de: (…) b) ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte».

                11. Portanto, entende o recorrente que a revogação aqui proferida pelo tribunal recorrido não é automática, mas que obrigatoriamente deverá ser realizada uma audição prévia do arguido antes da revogação do perdão concedido sob condição resolutiva.

                12. A observância do princípio do contraditório, estabelecido no artigo 32º, da Constituição da República, consubstancia-se “no direito/dever do juiz de ouvir as razões do arguido e demais sujeitos processuais, em relação a questões e assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão, bem como no direito do arguido a intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os elementos de prova e argumentos jurídicos trazidos ao processo, direito que abrange todos os actos susceptíveis de afectarem a sua posição ou de atingirem a sua esfera jurídica”.

                13. Odireitodedefesa,decorrentedo Estadode direitodemocrático,traduzido na observância do princípio ou direito de audiência, “(…) implica que a declaração do direito do caso penal concreto não seja apenas tarefa do juiz ou do tribunal (concepção “carismática” do processo), mas tenha de ser tarefa de todos os que participam no processo (concepção democrática do processo) e se encontrem em situação de influir naquela declaração de direito, de acordo com a posição e funções processuais que cada um assuma.

                14. Assim, e uma vez que não foi ouvido para os fins supra expostos, entende o ora recorrente que a decisão recorrida violou as normas constitucionais contidas no art. 32º, nºs. 1, 5 e 7 da C.R.P.e, ainda, no art. 61º, n.º 1 alíneas a) e b) do CPP- INCONSTITUCIONALIDADE QUE SE ALEGA PARA TODOS OS EFEITOS LEGAIS.

                15. Acresce, ainda, que a falta de audição pessoal e presencial do arguido constitui nulidade insanável, nos termos do art. 119º al. c) do Código de Processo Penal. – NULIDADE QUE SE ALEGA PARA TODOS OS EFEITOS LEGAIS.

            16. Portanto, face ao exposto, requer-se a V. Exas. que o presente recurso seja julgado procedente, e que seja declarada a revogação do despacho recorrido, com a sua substituição por outro que defira a pretensão do recorrente, isto é, que ao recorrente seja designada audição de arguido para que o mesmo possa ser ouvido e exercer o seu direito de defesa antes da decisão da revogação ou não do perdão concedido nos presentes autos.

•             NORMAS VIOLADAS:

- Art. 32º, nº s 1, 5 e 7 da CRP.

- Art. 61º, n.º 1, alínea b) do CPP.

- Art. 119º, alínea c) do CPP.

Pelo que deve ser o douto despacho ora em crise ser revogado e substituído por outro em que seja designada a audição de arguido para que o recorrente possa ser ouvido e exercer o seu direito de defesa antes da decisão da revogação ou não do perdão concedido nos presentes autos”


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            3. Cumprido o disposto no art. 413º, nº1 do CPP, veio a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância responder ao recurso interposto pelo arguido e condenado, concluindo na resposta apresentada da seguinte forma (transcrição):

“1.º

                O recorrente vem recorrer do despacho proferido nos presentes autos que revogou o perdão da pena que lhe foi concedido.

2.º

                Para tanto, alega que, antes da revogação, impunha-se a sua audição, uma vez que se trata de uma decisão que o afeta pessoalmente.

3.º

                Com tal afirmação não podemos concordar.

4.º

                Se é verdade que a revogação do perdão é uma decisão que afeta, pessoalmente, o condenado, também é verdade que nada na lei impõe a sua prévia audição.

5.º

                Aliás, tanto assim não é que revogação do perdão não se equipara à revogação da suspensão da pena de prisão, uma vez que a Lei do perdão não prevê essa obrigatoriedade de audição, mas também porque se tratam de regimes diferentes.

6.º

                Na Lei do perdão, verificando-se a condição prevista no artigo 8.º, da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, o perdão é automaticamente revogado, não carecendo da prévia audição do condenado.

7.º

Aquando da revogação do perdão, não é necessário ponderar a culpa do agente na verificação da condição resolutiva (v.g. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 25/10/2006, proferido no âmbito do processo n.º 1043/01.2TBVIS-B.C1).

8.º

Desta forma, o despacho proferido pelo Tribunal a quo que revogou o perdão da pena aplicada ao arguido, sem a sua prévia audição, não violou qualquer norma ou direito constitucionalmente protegido.

9.º


                O despacho do Tribunal a quo não está, assim, ferido de nulidade nem é inconstitucional.

10.º

                Pelo que, dever-se-á manter na integra o despacho que revogou o perdão de penas, sem a prévia audição do arguido, na convicção de que assim se fará JUSTIÇA.”

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            4. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta aderiu à posição sufragada na resposta ao recurso pelo Ministério Público junto da 1ª instância, acrescentando, ainda, o seguinte (transcrição):

            “O recorrente alega ter sido violado o disposto no artº 32º da CRP nos nº s 1, 5 e 7, os quais têm o seguinte teor:

            Artigo 32.º

            (Garantias de processo criminal)

            1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. (…)

                5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório. (…).

            7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.

            Assumindo que a invocação do nº 7 se ficou a dever a lapso, temos que concluir que, em relação ao disposto no nº 1 da norma citada, não resulta preterido qualquer direito de defesa, incluindo o de recurso – pois o condenado recorreu da decisão e tal recurso foi admitido.

            Por outro lado, o disposto no número 5 tem uma aplicação limitada, desde logo, por estar ultrapassada a fase de julgamento. Assim, não resulta de nenhuma norma, nesta fase e para o ato impugnado, a obrigatoriedade de audição presencial (cf. nº 6).

            Para além do mais, é falso que não tenha sido concedido, ao condenado, amplo exercício do contraditório. O próprio refere que foi notificado da promoção do Mº Pº antes de qualquer decisão e que apresentou resposta à mesma. O recorrente foi também notificado do teor do despacho de fls. 890, o qual indeferiu a audição presencial e determinou a obtenção de certidão da sentença relativa ao “novo” crime praticado no decurso temporal previsto no artigo 8.º, da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto.

            Assim, caso se estivesse perante algum erro quanto à pessoa, algum erro quanto à data, ou outra circunstância que impedisse a verificação objetiva da condição resolutiva, o condenado teve ampla possibilidade de contraditar o pressuposto de revogação.

            É que o contraditório não se esgota na presença física. O princípio do contraditório significa que o tribunal, antes de proferir as suas decisões, deve ouvir a acusação e a defesa e que estas devem ter a possibilidade de se pronunciarem sobre as atuações ou condutas processuais realizadas pela contraparte. Mas o contraditório é eficazmente assegurado, em múltiplas fases e atos processuais, por via da notificação para tomada de conhecimento e prazo para manifestação de posição dos intervenientes.

                Quanto ao disposto no artigo 61º do C.P.P., o mesmo rege os direitos do arguido. Trata-se, pois de norma com vocação para a fase processual anterior à culpa formada – pelo que não tem aplicação, sem mais, na fase de execução de pena. Qualquer interpretação nesse sentido deverá ter em conta a adaptação exigida pelas diferentes fases processuais e garantias próprias de cada uma.

                Quanto ao disposto no artigo 119º alínea c) do CPP, o mesmo não tem aplicação por falta de norma expressa que exija a presença do condenado para a tomada de decisão de revogação do perdão.

                Como tal, tendo sido devidamente cumprido e respeitado o direito de contraditório, e tendo o condenado exercido o mesmo, designadamente respondendo à p. de revogação, e estando assegurado o seu direito de defesa, sendo-lhe reconhecido direito a recorrer do despacho que o afeta, não se vislumbra a ocorrência de qualquer vício que afete a decisão posta em crise.”


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            5. O arguido não respondeu ao parecer.

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            6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência.

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            II- Fundamentação
A) Delimitação do objeto do recurso

            Dispõe o art. 412º, nº1, do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

            Definindo-se o objeto do recurso pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, nas quais deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido, sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág. 340, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009,  pág. 1027 a 1122, Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).

            Assim, no caso vertente, atentas as conclusões apresentada pelo recorrente, a questão a decidir, consiste em saber:

            -  se foi cometida nulidade, decorrente da não audição presencial do arguido antes de decidida a revogação do perdão;

            - se a decisão recorrida postergou o princípio do contraditório na interpretação que fez do disposto no art. 61º, nº1, alíneas a) e b) do CPP, por violação do preceito constitucional contido no art. 32º, nºs. 1, 5 e 7 da C.R.P


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            B) Decisão Recorrida

            Com vista ao conhecimento da questão objeto dos presentes recursos supra enunciada, importa ter presente o que consta do despacho, que se transcreve:

            “ Nos presentes autos, foi o arguido, AA, nascido a ../../1998, condenado, por Sentença proferida em 15.11.2021, transitada em julgado em 14.07.2022, pela prática, em co-autoria material, na forma consumada e em concurso real, de 2 (dois) crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, al. e), ambos do Código Penal, nas penas parcelares de 2 (dois) anos de prisão, por cada um dos mesmos crimes e, em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão (cfr. fls. 299 a 313 e 401 a 459, respectivamente.).

                Os factos pelos quais o arguido foi condenado foram cometidos no período compreendido entre as 18:00 horas do dia 28 de Agosto de 2019 e as 8:30 horas do dia 29 de Agosto de 2019 pelo que, nessa data, o arguido tinha 20 anos de idade.

                O arguido AA encontrava-se em cumprimento da referida pena única à ordem dos presentes autos, a qual teria o seu termo no dia 3 de Agosto de 2024 (cfr. fls. 820 e 821), quando, em 01.09.2023, num momento em que remanescia por cumprir 11 (onze) meses e 3 (três) dias de prisão, lhe foi perdoada essa (remanescente) pena ao abrigo do preceituado nos artigos 1º, 2º, nº 1, 3º, nº 1 e 8º, nº 1, todos da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto (cfr. fls. 829ª 829v. dos autos), perdão esse sob a condição resolutiva de arguido não praticar infracção dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da referida Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, caso em que a pena aplicada à infracção superveniente acrescerá a pena ou parte da pena ora perdoada.

                Nessa sequência, foram emitidos os competentes mandados de libertação do arguido, os quais foram cumpridos nessa mesma data (01.09.2023 – fls. 831 dos autos).

                Sucede, porém, que sobreveio ao conhecimento dos autos que o arguido veio a ser condenado, no âmbito do Processo Sumário n.º 38/24...., que correu termos pelo Juízo de Competência genérica da Nazaré, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6.00 (seis euros), à qual foi descontada 1 (um) dia atenta a detenção aí sofrida pelo arguido, pela prática, em 13.03.2024, de um crime de desobediência (refs. citius 08122774 e 11089816, ambas de 02.09.2024, e ainda certidão judicial sob a ref. citius 11295021, de 06.11.2024).

                Nos termos do mencionado artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º nº 38-A/2023, de 2 de agosto “O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada”.

                Ora, a Lei n.º nº 38-A/2023, de 2 de agosto, entrou em vigor em 01.09.2023 (artigo 15.º), pelo que importa averiguar se o arguido praticou infracção dolosa no período compreendido entre tal data e 01.09.2024 (um ano).

                Compulsados os autos, verifica-se que o arguido, em 13.03.2024, praticou um crime de desobediência, pelo qual veio a ser condenado no âmbito do referido Processo Sumário n.º 38/24...., que correu termos pelo Juízo de Competência genérica da Nazaré.

                Nestes termos, mostra-se verificada a condição resolutiva do perdão da pena prevista no n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto, o que conduz à extinção do perdão concedido, que, assim, fica sem efeito.

                Notifique.

                Após trânsito:

                - Remeta boletins à DSIC;

                - Emitam-se os competentes mandados de detenção do condenado para cumprimento da (remanescente) pena de 11 (onze) meses e 3 (três) dias de prisão a que foi condenado nestes autos.”


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            C) Apreciação do recurso

            Pretende o recorrente que foi praticada a nulidade insanável, prevista no art. 119º, alínea c) do CPP, por ter sido decidida no despacho recorrido a revogação do perdão que lhe tinha sido concedido ao abrigo da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, sem antes ter sido o mesmo ouvido pessoal e presencialmente e que a interpretação seguida do despacho recorrido relativamente às normas que estão subjacentes a tal procedimento fere os princípios constitucionais ínsitos no art. 32º, nºs. 1, 5 e 7 da CRP.

            Para cabal alcance das questões que, assim, vêm equacionadas pelo recorrente, convirá ter presente as incidências processuais que ressumam dos autos:

            - O recorrente foi condenado, nestes autos, na pena única de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão (efetiva);

            - Não resultando dos autos que o agora recorrente se encontrasse em alguma das situações previstas no artigo 7º, nº 1, als. i), j e l), da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, por despacho proferido a 01.09.2023, com a ref. 104667398, declarou-se perdoado o remanescente da pena de prisão que ao mesmo restava cumprir, a qual, reportada àquela data (01.09.2023), era de 11 (onze) meses e 3 (três) dias de prisão, perdão esse que foi concedido sob a condição resolutiva de não praticar infração dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, caso em que a pena aplicada à infração superveniente acresceria a pena ou parte da pena ora perdoada, sendo o recorrente, consequentemente, libertado;

                - Por despacho proferido em 09.09.2024, o Ministério Público promoveu a revogação do perdão concedido ao recorrente, com fundamento em que consta no respetivo CRC a condenação averbada pelo processo nº 38/24...., pela prática de factos ilícitos criminais dolosos, praticados em 13.03.2024:

                - Notificado de tal promoção, veio o recorrente responder à mesma, nos termos que constam do requerimento por ele apresentado em 07.10.2024, com a refª. 11200735, no qual, entre o mais, requereu a designação de data para a sua audição a fim de exercer o seu direito de defesa antes da decisão de revogação do perdão concedido;

                - Sobre tal requerimento pronunciou-se o Ministério Público no sentido do indeferimento do por ele requerido, posição que veio a ser sufragada pela Mma. Juiz a quo no despacho por esta proferido em 29.10.2024, com a refª 108781414;

                - Após junção aos autos da certidão com nota de trânsito da condenação imposta ao ora recorrente no âmbito do referido proc. nº 38/24...., foi proferido o despacho ora recorrido supra transcrito, no qual foi decidido revogar o perdão concedido ao ora recorrente e determinado o cumprimento do remanescente da pena de prisão de 11 onze) meses e 3 (três) dias.


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            Como é sabido, o processo penal está subordinado ao princípio da legalidade dos atos, porém, como decorre do art. 118º. Nº1 do CPP, “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”.

            Como afirma Henriques Gaspar, in Código Processo Penal Comentado, 3ª dição revista, pag. 329, “ A natureza e as finalidades dos actos processuais condicionam a teoria e a apreciação das nulidades no processo; a construção e as finalidades do processo, em que os actos estão ordenados em sequência e preordenados à realização de determinada finalidade no processo, supõem uma ligação ordenada e coerente em interdependência; a invalidade de uma acto, não fica, assim, por regra, limitada ao próprio acto, mas pode contaminar o próprio processo como meio idóneo e legalmente previsto para a realização das finalidades a que está pressuposto – a declaração do direito do caso e a decisão da causa, segundo um processo adequado e legalmente válido”.

            Daí que, como acrescenta o mesmo autor, “A relevância e a essencialidade do acto em relação às finalidades do processo têm consequências na definição do tipo e dos efeitos das nulidades.

            As nulidades insanáveis são determinadas pelos desvios à regularidade do acto e pela inobservância das leis de processo que afectam pressupostos fundamentais, sem os quais o próprio exercício da jurisdição fica afectado ou o processo não pode realizar a sua finalidade; são as condições de regularidade da própria jurisdição, o desvio à natureza acusatória do processo, ou a garantia do contraditório. As violações que constituem nulidades insanáveis são invalidades que prejudicam a realização integral da justiça.”

            Todavia, a lei define quais são as nulidades insanáveis, elencando nas alíneas a) a f) do art. 119 o numerus clausus das causas de nulidade insanável, cujo elenco, porém, não esgota a tipicidade das mesmas, porquanto, a lei pode, especificamente, cominar a consequência para a violação ou inobservância das condições de perfeição de atos previstas em outras disposições legais, dependendo da regulação própria de algum ato em especial e da expressa cominação da consequência.

            No que diz respeito à nulidade insanável prevista na alínea c) do art. 119º do CPP que vem invocada pelo recorrente – cuja verificação decorre da ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência – impõe-se pelo interesse público em assegurar as condições de integridade do direito de defesa que justificam a necessidade da presença pessoal do arguido, garantido pelas consequências para a inobservância dos direitos consagrados nos arts. 61º, nº1 e 64º, nº1, ambos do CPP.

            Todavia, a forma de assegurar o direito de defesa do arguido previsto no citado art. 61º, nº1 do CPP, não passa sempre por convocá-lo para, pessoal e presencialmente o exercer, uma vez que a própria lei se encarrega de definir quais as concretas situações em que essa presença se impõe para o exercício do mesmo antes de serem tomadas decisões que lhe digam respeito.

            Sendo, embora, verdade que a decisão de revogação do perdão se trata de uma decisão que diretamente diz respeito ao arguido e antes da mesma tem aquele o direito de ser ouvido, não é menos certo que a lei não impõe que essa audição tenha de ser presencial.

            No caso em vertente, foi dado conhecimento ao arguido da promoção do Ministério Público que propendia para a revogação do perdão que lhe havia sido concedido, e, na sequência disso veio o mesmo exercer o seu direito de defesa, aduzindo as razões que, no seu entender, ditariam a não revogação do perdão, assim se mostrando respeitado e observado o direito ao contraditório, e, só depois disso é que veio a ser decidida a revogação do perdão.

            Não exigindo a lei que previamente à decisão de revogação do perdão tivesse de ser ouvido presencialmente o arguido, não estava o tribunal a quo impedido de, uma vez cumprido o contraditório pela dita forma, decidir a revogação do perdão.

            Neste sentido se vem orientando a jurisprudência, sendo disso exemplo os seguintes arestos: ac. do TRP, 14.04.2004, publicado na CJ II/2004, p. 213; ac. do TRP, de 23.11.2005, proc. 051547, ac. do TRE, de 24.06.2004, ac. do TRE de 27.09.2004, ac. do TRC, de 15-02-2006, e, mais recentemente, ac. do TRE, de 29.10.2013, ac. do TRL, de 2.02.2023, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

            Entendimento que, igualmente, perfilhamos, por considerarmos, à semelhança dos mesmos, que para a revogação do perdão aplicado - no caso em vertente à luz da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto - releva, apenas, a prática de crime doloso no ano subsequente à sua concessão, não havendo que apreciar e muito menos indagar, das circunstâncias de vida atuais do arguido/condenado, levando a verificação de tal condição resolutiva à extinção do perdão concedido que, assim, fica sem efeito.

         A causa resolutiva do perdão é a prática do crime doloso que se concretiza com a condenação, isto é, com o seu trânsito em julgado, não havendo ponderação de motivos que possam levar à não resolução do perdão - como acontece no caso da suspensão da execução da pena ou da liberdade condicional que segue o regime daquela, podendo não haver revogação por razões ponderosas que levem a considerar que a prática de novo crime no decurso da medida não colocou em causa as finalidades com ela visadas - razão pela qual não se mostra necessária a audição presencial do condenado em tais situações.
            Daí que, não se estando perante situação em que seja exigida a comparência para audição pessoal e presencial do condenado, e, vigorando em sede de nulidades o princípio da tipicidade (art. 118.º, n.º 1, do CPP), se conclua pela inexistência da nulidade insanável que vem invocada pelo recorrente, prevista no art. 119.º, alínea c), do CPP,

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            Doutra parte, também, ao contrário do que propende o recorrente, não se patenteia qualquer violação do princípio do contraditório, ínsito no art. 32º do CRP, ao ter-se decidido a revogação do perdão concedido ao mesmo sem antes o ter ouvido presencialmente.
            Preceitua-se e, tal comando constitucional, a respeito das garantias de processo criminal, que:
            “1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
            2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
            3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.
            4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.
            5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
            6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.
            7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.
            8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
            9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
            10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”
            Com efeito, o princípio do contraditório tem no moderno processo penal o sentido e o conteúdo das máximas audiatur et altera pars e nemo potest inauditu damnari (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1974, p. 149 e segs).
            Tal princípio, que deve ter conteúdo e sentido autónomos, impõe que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afete, nomeadamente que seja dada ao acusado a efetiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação. A construção da verdadeira autonomia substancial do princípio do contraditório impõe que seja concebido e integrado como princípio ou direito de audiência, dando «oportunidade a todo o participante processual de influir através da sua audição pelo tribunal no decurso do processo» (cfr. idem, pág. 153).
            Tal princípio tem assento constitucional – artigo 32º, nº 5, da CRP.
            A sua densificação deve, igualmente, relevante contributo à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que tem considerado o contraditório um elemento integrante do princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no artigo 6º, parágrafo 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
            Na construção convencional, o contraditório, colocado como integrante e central nos direitos do acusado (apreciação contraditória de uma acusação dirigida contra um indivíduo), tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação.
            Tendo como fundamento a própria estrutura acusatória do processo penal, o princípio do contraditório significa que ninguém pode ver tomada uma decisão que afete a sua esfera jurídica sem para tanto lhe ter sido dada a possibilidade de ser ouvido (nemo potest inauditu damnari).
            Como salienta Inês Fernandes Godinho, in Considerações a Propósito do Principio do Contraditório no Processo Penal Português, “[q]uando perspetivado da parte do arguido, este princípio é uma das garantias de defesa que o processo criminal lhe deve assegurar (artigo 32º, n.º 1, da CRP). O princípio do contraditório encontra-se constitucionalmente reflectido no artigo 32º, n.º 5 da Lei Fundamental, representando, portanto, uma exigência axiológica estruturante do processo penal. A subordinação do processo penal português a este princípio implica, assim, que a acusação e a defesa se encontram em situação de igualdade de armas na possibilidade de apresentação de razões, de facto (incluindo matéria probatória) e de direito, no sentido das suas teses processuais, devendo os diversos contributos ser (necessariamente) tidos em conta na formulação da decisão judicial. Trata-se, afinal, de dar sentido ao princípio do contraditório em sentido amplo que resulta da Lei Fundamental. Deste modo, sempre que uma questão suscitada seja susceptível de afectar a posição de outro sujeito processual, existe por parte do último, uma legitimidade constitucional de intervir, uma vez que este princípio, tal como constitucionalmente consagrado (art. 32º), apenas pode ser interpretado como uma garantia fundamental dos cidadãos”.
            No caso em vertente, não foi postergada a legitimidade constitucional de intervenção do arguido no desenrolar do processo, designadamente, no que tange à decisão de revogação do perdão que lhe havia sido concedido, porque lhe foi dada a possibilidade de exercer o seu direito de defesa antes da tomada decisão quanto à mesma, possibilidade esta que este, efetivamente, exerceu através do requerimento por si apresentado em 07.10.2024, com a refª. 11200735, no qual aduziu as razões que, no seu entender, deveriam ditar a não revogação do perdão que lhe havia sido concedido.
            E, ainda que para tal lhe não tenha sido dado a oportunidade de o fazer pessoal e presencialmente, tal não significa que se mostre violado o âmbito normativo-constitucional que o citado art. 32º da CRP comporta, designadamente nos seus nºs 1 e 5 (entendendo-se que a menção que o recorrente faz também ao nº7 do mesmo se deverá a mero lapso, por não ser cogitável no caso em vertente) nem das normas processuais penais art. 61º, nº1 alíneas a) e b) do CPP que são corolário de tal preceito constitucional.
            Face ao que, também nesta parte, não assiste razão ao arguido.
            Termos em que, se julga improcedente o recurso.

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            III- Decisão

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra, em:

            1. Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, e, consequentemente, confirmam o despacho recorrido.

            2. Condenar o recorrente nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs ( Art. 513º nº1 CPP, 8º nº9 do RCP e Tabela III a este anexa).


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Coimbra, 28 de maio de 2025

                (Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP)

(Maria José Guerra – relatora)

(Helena Lamas – 1ª adjunta)

  (Maria Teresa Coimbra – 2ª adjunta)