1 - A Lei 113/2009 de 17/9 é aplicável ao cancelamento provisório de condenações pelo crime de maus tratos cometido contra idosos.
2 - O legislador pretendeu assegurar a inscrição nos certificados de registo criminal destinados à aferição da idoneidade de quem exerça ou pretenda exercer atividade que envolva contacto regular com menores de um conjunto de elementos adicionais, que incluem não apenas as decisões resultantes de crimes sexuais cometidos contra menores, mas também as decisões decorrentes de crimes cometidos contra a liberdade sexual independentemente da menoridade da vítima, bem como as resultantes de crime de violência doméstica e de maus tratos cometidos quer contra menores quer contra maiores de idade.
3 - De acordo com o estabelecido nos arts 10º, nº 6 e 12º da Lei nº 37/2015, de 5 de Maio e 2º e 4º da Lei nº 113/2009, de 17 de Setembro, a decisão do cancelamento provisório do averbamento da sentença condenatória por crime previsto nos artigos 152.º e 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, terá de ser precedida da realização de uma perícia de carácter psiquiátrico à requerente, com intervenção de três especialistas.
4 - A realização da referida perícia de carácter psiquiátrico é obrigatória, mesmo que o julgador a considere desnecessária em face dos contornos do caso concreto: não a pode dispensar, - mesmo que a julgue inútil ou irrelevante - por se tratar de uma prova legal vinculada.
5 - Esta subtracção ao julgador da faculdade de dispensar a sujeição do requerente à aludida perícia foi considerada conforme à nossa Constituição pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 852/2024.
6 - A irregularidade consubstanciada na não realização de um meio de prova obrigatório, afectou nitidamente o valor do acto praticado, ou seja, o cancelamento provisório da condenação pelo crime de maus tratos no certificado de registo criminal requerido para efeitos de exercício de profissão que envolve contacto regular com menores.
7 - Tratando-se de uma irregularidade de conhecimento oficioso e por influir no conhecimento e decisão da causa, impõe-se determinar a respectiva reparação em consonância com o estabelecido no artigo 123º, nº 2 do C.P.P., determinando a realização da omitida prova pericial e, depois, a apreciação do pressuposto previsto no nº 4, do artigo 4º da Lei nº 113/2009.
Acordam, em conferência, na 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. RELATÓRIO
1.1. A decisão
No Processo de Cancelamento Provisório do Registo Criminal nº 294/24.6TXCBR do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, foi julgado procedente o pedido de AA, de cancelamento provisório da decisão averbada no seu Certificado de Registo Criminal.
1.2.O recurso
1.2.1. Das conclusões do Ministério Público
Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo-se da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1.AA, com a finalidade de exercer a actividade como auxiliar de acção educativa numa Escola Profissional, veio requerer, ao abrigo do disposto no art. 229º do Código de Execução de Penas e Medidas de Privação da Liberdade, o cancelamento provisório do registo criminal da sentença, proferida no processo 915/19...., transitada em julgado a 09.11.2022, que a condenou, como autora material, de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, al. b) do Código Penal, na pena de 75 dias de multa, e de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º-A do mesmo compêndio legal, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 anos e seis meses.
2. O Tribunal, por decisão de 23.01.2025, julgou procedente o pedido determinando o cancelamento provisório daquela decisão averbada no certificado de registo criminal do requerente.
3. De acordo com o estabelecido nos arts 10º, nº6 e 12º da Lei nº 37/2015, de 5 de Maio, e 2º e 4º da Lei nº 113/2009, de 17 de Setembro, a decisão do cancelamento provisório do averbamento da sentença condenatória aqui em causa, por incluir a condenação pela prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º-A do Código Penal, terá de ser precedida da realização de uma perícia de carácter psiquiátrico à requerente, com intervenção de três especialistas.
4. O Tribunal não determinou a realização da referida perícia.
5. Não se mostra, portanto, verificado o mencionado requisito formal exigível à decisão do cancelamento da inscrição do averbamento constante do certificado de registo criminal da requerente.
6. E a inobservância do apontado requisito formal (realização de perícia de carácter psiquiátrico, com intervenção de três especialistas) contende com o mérito da decisão em apreço.
7. Sem a referida prova pericial o Tribunal não está habilitado a dar como assente a verificação dos dois requisitos substanciais necessários à decisão do cancelamento da inscrição do averbamento constante do certificado de registo criminal da requerente.
8. O cancelamento do averbamento constante no registo criminal da requerente exige que se demonstre que seja fundadamente de esperar que a mesma conduzirá a sua vida sem voltar a cometer crimes da mesma espécie, sendo sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão, emprego, função ou atividade a exercer - (cfr. nºs 3 e 4 do art. 4, da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro).
9. E impõe que se considere que a requerente se mostra reabilitada - (cfr. nº 3 do art. 4, da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, e al. b) do art. 12º, da Lei 37/2015, de 5 de Maio).
10. A decisão ora em recurso deu como certa a verificação das aludidas exigências legais.
11. Tal conclusão, segundo o estabelecido na lei, no caso em apreço, por se tratar de um crime de maus tratos e a requerente pretender exercer a sua actividade laboral numa escola onde parte da população é menor de idade, reclama especiais conhecimentos técnicos e científicos que o julgador não possui, daí a lei impor um juízo técnico e científico a levar a efeito por três especialistas (psiquiatras) - cfr. nºs 3, 4 e 5 do art. 4º, da Lei n.º 113/2009, de 17/09.
12.Não obstante isso, dispensando o exame e avaliação psiquiátrica da requerente, o Tribunal deu como certo que não existem sinais de qualquer tendência criminogénea por parte da requerente e é expectável que conduza a sua vida sem voltar acometer crimes da mesma espécie, sendo sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão, emprego, função ou actividade que venha a exercer.
13. A especificidade da situação reclama especiais conhecimentos técnicos e científicos para a apreciação das indicadas circunstâncias e, por isso, o Tribunal, desprovido de tais competências, não podia extrair a referida ilação.
14. De todo o modo, a reconhecer-se que a perícia psiquiátrica não se justifica, o que só por mera hipótese académica se equaciona, a factualidade descrita nos autos não permite reconhecer que os apontados requisitos substanciais, previstos nos nºs 3 e 4 do art. 4, da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro e al. b) do art. 12º, da Lei 37/2015, de 5 de Maio, se mostram verificados.
15 Efectivamente, dos elementos de prova carreados para os autos, resulta que o
tempo decorrido entre as datas da prática do crime de maus tratos por parte da requerente e do trânsito em julgado da respectiva sentença condenatória (09.10.2019 e 09.11.2022) é pouco.
15. A pretensão formulada tem por finalidade o exercício de funções de auxiliar de acção educativa numa escola profissional onde uma grande percentagem da população estudantil tem menos de 18 anos de idade.
16. E da sentença não consta que, entretanto, a requerente exerceu actividade que envolvesse o contacto com pessoas frágeis e vulneráveis, designadamente, menores, ao invés, do relatório elaborado pela DGRSP consta que tem vindo a ocupar-se maioritariamente das atividades familiares e na procura de emprego.
17. Circunstâncias que não permitem assegurar, sem mais, nomeadamente sem um estudo da sua personalidade por parte de um especialista com competência técnica para o efeito, que a requerente está reabilitada e não tem tendência criminogénea, sendo expectável que conduza a sua vida sem voltar a cometer crimes da mesma espécie e sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão, emprego, função ou actividade que venha a exercer.
18. O Tribunal, ao concluir dessa forma, estribou-se tão só no facto de se tratar da primeira condenação da requerente, apoiou-se no seu percurso de vida (dinâmica sociofamiliar normativa e organizada, integrando um agregado familiar composto pelo marido e duas filhas menores de idade), amparou-se na circunstância daquela revelar sentido crítico sobre os comportamentos por si cometidos no passado e sustentou-se na imagem positiva que a mesma goza no meio social onde está inserida.
19. Tais dados, atenta a especificidade da situação – crime de maus tratos e pretensão de exercer actividade profissional numa escola onde parte da população estudantil é menor de idade -, não permitem depreender, sem mais, pela ausência de uma disfunção de personalidade da requerente ou propensão para comportamentos maltratantes, designadamente, maus tratos de pessoas frágeis e vulneráveis.
20. Não foi apresentado qualquer elemento clínico do foro psiquiátrico que suporte tal conclusão.
21. E a avaliação de tal circunstância requer conhecimentos específicos que o Tribunal não detém.
22. Tanto assim é que o legislador, compreensivelmente, no caso como o que está em avaliação, estabeleceu a exigência da realização prévia de uma perícia de carácter psiquiátrico, com intervenção de três especialistas, sujeita ao regime previsto no art. 163º do Código de Processo penal, que no caso não se verificou.
23. O Tribunal ao deferir o cancelamento provisório do registo criminal do requerente violou o estabelecido nos arts. 4º, nºs 3, 4 e 5, da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, e 10º, nº6 e 12º, al. b), da Lei 37/2015, de 5 de Maio.
Pelo exposto, requer-se que:
- se revogue a decisão ora em recurso e
- determine a realização da perícia a que se alude nos arts 10º, nº6 e 12º da Lei nº 37/2015, de 5 de Maio, e 2º e 4º da Lei nº 113/2009, de 17 de Setembro,
ou, caso não se decida pela realização dessa prova pericial,
- determine a manutenção em vigor da inscrição constante do certificado de registo criminal da requerente.
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1.2.2 O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer :
Tendo em conta o preceituado nos artigos 2.º, 4.º, n.ºs 1, 3, 4 e 5 da Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, 10.º, n.º 6 e 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, e nos artigos 2.º, 4.º, n.ºs 1, 4 e 5 da Lei 113/2009, de 17 de setembro, o cancelamento provisório do averbamento no certificado de registo criminal de sentença condenatória pela prática de crime de maus tratos, previsto no art.º 152.º-A do Código Penal, independentemente da idade da vítima, exige a prévia realização de perícia de carácter psiquiátrico à condenada, com intervenção de três especialistas.
Em face da omissão dessa diligência legalmente imposta – perícia -, não resta senão revogar a decisão ora em recurso e determinar a realização da perícia.
1.2.3. Foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência.
II. OBJECTO DO RECURSO
De acordo com o disposto no artigo 412º do C.P.P. e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. 1ª série-A de 28/12/95, o objecto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respectiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Assim, examinadas as conclusões de recurso, a questão a decidir prende-se com a manutenção ou não do cancelamento provisório de determinada condenação no certificado de registo criminal de AA .
III. FUNDAMENTAÇÃO
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido na primeira instância (transcrição):
3.1. Decisão recorrida
I. Relatório
AA veio requerer o cancelamento provisório da decisão constante no seu certificado de registo criminal, através da qual aquela foi condenada pela prática de um crime de desobediência e de um crime de maus tratos, nas penas de 75 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 e de 1 ano de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano e seis meses, respectivamente.
Para tanto, alegou que pretende candidatar-se, como trabalhadora na categoria de assistente operacional, a um concurso público numa escola profissional agrícola, sendo obrigatório, para a admissão da sua candidatura, a apresentação do seu CRC, cujo teor poderá prejudicar a hipótese da sua contratação. Mais referiu que ambas as penas se encontram extintas e que não foi condenada a pagar qualquer indemnização.
A requerente juntou documentos para prova do alegado.
Foi elaborado relatório social acerca da situação de vida da requerente.
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O Ministério Público emitiu parecer favorável, promovendo o deferimento do requerido cancelamento provisório do registo criminal para os efeitos indicados.
*
II. Saneamento
O tribunal é competente.
O processo é o próprio.
Não há nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III. Fundamentação
III.1. Dos Factos
Finda a instrução consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a boa decisão da causa:
1. Por sentença proferida no processo n.º 915/19...., transitada em julgado a 09.11.2022, a requerente AA foi condenada pela prática de um crime de desobediência, previsto pelo artigo 348.º n.º1 do Código Penal, numa pena de 75 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 e pela prática de um crime de maus tratos, previsto pelo artigo 152.º-A n.º1, a) do Código Penal, numa pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano e seis meses.
2. Os factos consubstanciadores dos crimes praticados pela requerente ocorreram 9.10.2029.
3. As penas referidas em 1) foram declaradas extintas, por decisões proferidas, respectivamente, a 18.01.2023 e 24.06.2024.
4. A requerente não sofreu quaisquer outras condenações para além da mencionada em 1).
5. Após as referidas condenações, a requerente tem desenvolvido o seu percurso de vida numa dinâmica sociofamiliar normativa e organizada, integrando um agregado familiar composto pelo marido e duas filhas menores de idade, revelando sentido crítico sobre os comportamentos por si cometidos no passado e gozando de uma imagem positiva no meio social onde está inserida.
*
A prova dos factos supra descritos assentou na conjugação do teor dos diversos documentos constantes dos autos, valorando-se, quanto à situação jurídico-penal da requerente, o seu CRC e a certidão das decisões condenatórias e de extinção das penas.
No mais, nomeadamente que concerne à situação pessoal e social da requerente, teve-se em consideração o teor do relatório social junto pela DGRSP.
*
III.2. Do Direito
Segundo o disposto no artigo 12.º da Lei n.º 37/2015 de 5 de Maio (Lei de Identificação Criminal) sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17.09 estando em causa qualquer dos fins a que se destina o certificado requerido nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º pode o tribunal de execução das penas determinar o cancelamento, total ou parcial, das decisões que dele deveriam constar, desde que:
a) Já tenham sido extintas as penas aplicadas;
b) O interessado se tiver comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptado; e
c) O interessado haja cumprido a obrigação de indemnizar o ofendido, justificado a sua extinção por qualquer meio legal ou provado a impossibilidade do seu cumprimento.
No caso sub judice, mostram-se objectivamente verificados os pressupostos formais previstos nas alíneas a) e c) do artigo 12.º da Lei de Identificação Criminal, na medida em que as penas aplicadas à requerente foram já declaradas extintas.
Quanto às exigências adicionais previstas no artigo 4.º n.º3, 4 e 5 da Lei n.º 113/2009, de 15.09, pronunciámo-nos já nos autos, por ocasião da dispensa de realização de perícia psiquiátrica à requerente, acerca da sua inaplicabilidade ao presente caso, por força de uma interpretação teleológica da norma, aqui se renovando os fundamentos ali expostos, que se dão por integralmente reproduzidos.
De todo o modo, atenta a matéria de facto descrita nos pontos 4 e 5 do elenco supra enunciado, conclui-se que as condenações em causa ocorreram numa circunstância temporal delimitada e no âmbito de um particular contexto, não existindo sinais de qualquer tendência criminogénea por parte daquela, que tem vindo, posteriormente à prática dos factos, a pautar a sua conduta de vida por critérios normativos e socialmente adequados. Pelo que se considera igualmente verificado o pressuposto contido na alínea b) do referido artigo 12.º da Lei de Identificação Criminal, sendo igualmente possível concluir que, face à sua actual condição social, é expectável que a requerente conduza a sua vida sem voltar a cometer crimes da mesma espécie, sendo sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão, emprego, função ou actividade que venha a exercer.
Concluímos, assim, estarem verificados os requisitos previstos no artigo 12.º da Lei n.º 37/2015 para que se possa operar o cancelamento provisório da condenação proferida contra a requerente, AA, deferindo-se a sua pretensão.
*
IV. Decisão
Face a todo o exposto, decide-se julgar procedente o pedido do requerente AA e, consequentemente, determina-se o cancelamento provisório da decisão averbada no seu Certificado de Registo Criminal.
*
Adverte-se a requerente que o cancelamento provisório agora determinado será revogado, nos termos do disposto no artigo 233.º do CEPMPL, caso a mesma incorra em nova condenação por crime doloso e se se vierem a verificar os pressupostos da pena relativamente indeterminada ou da reincidência.
*
Custas pela requerente, com taxa de justiça pelo mínimo.
*
Notifique e comunique à DSICCOC.
*
Proceda ao depósito da presente sentença, nos termos do n.º 5 do artigo 372.º, ex vi artigo 154.º do CEPMPL.
3.2. Despacho de 16/12/2024 que dispensou a realização de perícia psiquiátrica (para o qual remete expressamente a decisão recorrida):
Quanto à realização de perícia psiquiátrica à requerente, entende-se não se justificar in casu a aplicação do disposto no artigo 4.º n.º3, 4 e 5 da Lei n.º 113/2009, de 15.09, mediante uma interpretação teleológica da norma.
Com efeito, o referido diploma foi criado em cumprimento do artigo 5.º da Convenção do Conselho da Europa contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual de Crianças, visando estabelecer medidas de protecção de menores, salvaguardando o perigo decorrente dos contactos daquelas com pessoas, em exercício de funções profissionais, que hajam cometido crimes de violência doméstica, de maus tratos ou tipos de crime dirigidos contra a liberdade e autodeterminação sexual.
O foco da tutela visada com este diploma é, pois, conforme resulta do preambulo da dita Convenção, a “luta contra todas as formas de exploração sexual e de abusos sexuais de crianças” e, nessa medida, deve ser à luz dessas finalidades que se hão-de interpretar as respectivas normas concretizadoras do objectivo ali definido e anunciado, nomeadamente aquelas que, no direito interno, se destinam a cumprir tais determinações europeias.
Entendemos, assim, que a previsão dos crimes punidos nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal no leque de ilícitos abrangidos pela aplicação do referido diploma, se justifica unicamente porque nas acções compreendidas naqueles tipos de crime estão previstas ofensas de natureza sexual contra menores, sendo para enquadrar tais situações que, segundo cremos, se elencaram tais crimes no artigo 4.º n.º3 da Lei n.º 113/2009, de 15.09.
Ora, no caso em apreço, a requerente foi condenada pela prática de maus tratos dirigidos contra idosos, não tendo, quanto a nós, cabimento aplicar as normas previstas na referida Lei, que visa proteger os menores de contactos com indivíduos com antecedentes criminais associados a maus tratos infantis.
Acresce que o emprego a que a requerente pretende candidatar-se diz respeito a uma Escola Profissional, que é frequentada por menores com idade necessariamente superior a 12 anos e o relatório social junto aos autos contém já informações bastantes acerca da vida da requerente que nos permitem fazer a avaliação dos requisitos exigidos no artigo 12.º da Lei n.º37/2015, de 5.05.
Pelo que se julga desnecessária a realização de perícia psiquiátrica à requerente, que não se tem por obrigatória no caso presente, nos termos previstos no artigo 4.º n.º 5 da Lei n.º 113/2009, de 15.09.
IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO
Os presentes autos tiveram início com o pedido, formulado por AA, de cancelamento provisório da decisão condenatória contra si proferida no processo nº 915/19.... – pelos crimes de desobediência p. e p. pelo artigo 348º, al. b) do C.P. e de maus tratos p. e p. pelo artigo 152º-A, nº 1, al. a) do C.P. – para fins de emprego público, concretamente, para trabalhar na Escola Profissional ..., na ....
O Ministério Público promoveu a realização de perícia de carácter psiquiátrico à requerente, que foi indeferida pelo despacho, supra transcrito, de 16/12/2024.
A decisão recorrida, de 23/1/2025, julgou verificados os pressupostos descritos no artigo 12º da Lei nº 37/2015 de 5/5, inaplicáveis as exigências adicionais do artigo 4º, nºs 3, 4 e 5 da Lei nº 113/2009 de 15/9, pelo que deferiu aquele pedido.
De acordo com o artigo 2º, nº 1 da Lei nº 37/2015, de 5/5 - Lei da Identificação Criminal -, «A identificação criminal tem por objeto a recolha, o tratamento e a conservação de extratos de decisões judiciais e dos demais elementos a elas respeitantes sujeitos a inscrição no registo criminal e no registo de contumazes, promovendo a identificação dos titulares dessa informação, a fim de permitir o conhecimento dos antecedentes criminais das pessoas condenadas e das decisões de contumácia vigentes.».
Estão sujeitas a inscrição no registo criminal, entre outras, as decisões transitadas em julgado que apliquem penas e medidas de segurança – cfr. os artigos 6º, al. a) e 7º, nº 2 do mesmo diploma legal.
O acesso a esta informação, além do próprio titular, é assegurado às entidades públicas enumeradas no artigo 8º e exclusivamente para as finalidades aí previstas, as quais se prendem essencialmente com a Justiça e a Segurança interna e internacional.
O conhecimento da informação inscrita no registo criminal é concretizado com a emissão de um certificado de registo criminal – artigo 9º -, o qual, em princípio, contém todas as inscrições vigentes no registo.
Porém, nos termos do artigo 10º, consoante a finalidade a que se destina, a informação que consta do certificado de registo criminal, o seu concreto conteúdo, pode variar :
«1- O certificado de registo criminal identifica a pessoa a quem se refere e certifica os antecedentes criminais vigentes no registo dessa pessoa, ou a sua ausência, de acordo com a finalidade a que se destina o certificado, a qual também é expressamente mencionada.
(…)
5 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para fins de emprego, público ou privado, ou para o exercício de profissão ou atividade em Portugal, devem conter apenas:
a) As decisões de tribunais portugueses que decretem a demissão da função pública, proíbam o exercício de função pública, profissão ou atividade ou interditem esse exercício;
b) As decisões que sejam consequência, complemento ou execução das indicadas na alínea anterior e não tenham como efeito o cancelamento do registo;
c) As decisões com o conteúdo aludido nas alíneas a) e b) proferidas por tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, comunicadas pelas respetivas autoridades centrais, sem as reservas legalmente admissíveis.
6 - Os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para o exercício de qualquer profissão ou atividade para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência, total ou parcial, de antecedentes criminais ou a avaliação da idoneidade da pessoa, ou que sejam requeridos para qualquer outra finalidade, contêm todas as decisões de tribunais portugueses vigentes, com exceção das decisões canceladas provisoriamente nos termos do artigo 12.º ou que não devam ser transcritas nos termos do artigo 13.º, bem como a revogação, a anulação ou a extinção da decisão de cancelamento, e ainda as decisões proferidas por tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, nas mesmas condições, devendo o requerente especificar a profissão ou atividade a exercer ou a outra finalidade para que o certificado é requerido.».
De acordo com o artigo 12º desta Lei, «Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, estando em causa qualquer dos fins a que se destina o certificado requerido nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º pode o tribunal de execução das penas determinar o cancelamento, total ou parcial, das decisões que dele deveriam constar, desde que:
a) Já tenham sido extintas as penas aplicadas;
b) O interessado se tiver comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptado; e
c) O interessado haja cumprido a obrigação de indemnizar o ofendido, justificado a sua extinção por qualquer meio legal ou provado a impossibilidade do seu cumprimento.».
Deste modo, a regra é a de que o certificado de registo criminal deve apresentar a transcrição de todas as inscrições vigentes. Contudo, ponderando a não estigmatização e a integração social do condenado, situações há em que o legislador restringiu a informação apresentado no certificado de registo criminal.
Nas palavras do acórdão da Relação de Lisboa de 12/9/2019, processo 171/17.7pbmta-A.L1-9, relatado por João Abrunhosa, in jurisprudencia.pt, «… a normalidade em matéria de registo criminal é a transcrição, sendo a não transcrição a excepção, pois visando o registo criminal permitir o conhecimento dos antecedentes criminais das pessoas condenadas e das decisões de contumácia vigentes, a não transcrição só pode mesmo ser considerada uma excepção, a qual tem na base razões de não estigmatização do condenado, já que se reporta a certificados para fins do exercício de profissão e sempre associadas a crimes de pequena gravidade, o que, manifestamente, não acontece no crime de violência doméstica».
Na verdade, a divulgação de uma condenação criminal pode acarretar prejuízo para a imagem do condenado, especialmente se estiver em causa a obtenção de um emprego, o que pode não se justificar se aquela condenação não assumir determinada gravidade.
No caso presente, a requerente foi condenada pela prática de dois crimes :
- um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, al. b) do C.P., em pena de multa;
- um crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152º-A, nº 1, al. a) do C.P., na pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses.
Resulta claro dos autos que este crime de maus tratos foi praticado contra uma pessoa com 68 anos de idade, portadora de incapacidade, e que o emprego a que a requerente se pretende candidatar é numa escola profissional frequentada por alunos (também) menores de idade.
Neste quadro, importa averiguar se há lugar ou não à aplicação da Lei nº 113/2009 de 17/9, uma vez que aquele artigo 12º da Lei nº 37/2015 salvaguarda o disposto naquela Lei nº 113/2009.
A decisão recorrida entendeu que não, na medida em que só se aplicaria se o crime de maus tratos cometido pela requerente tivesse sido praticado contra menores e consistisse numa ofensa de carácter sexual.
Por sua vez, o recorrente entende que o legislador pretendeu que os crimes elencados na Lei nº 113/2009 não se restrinjam aos cometidos contra menores.
Vejamos:
A Lei nº 113/2009 veio estabelecer medidas de protecção de menores em cumprimento do artigo 5º da Convenção do Conselho da Europa contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual de Crianças, conforme consta expressamente do seu artigo 1º.
Este artigo 5º da Convenção de Lanzarote (aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 75/2012 de 28/5), estipula:
«1 - Cada Parte toma as necessárias medidas legislativas ou outras para sensibilizar as pessoas que contactam regularmente com crianças nos sectores da educação, saúde, protecção social, justiça e manutenção da ordem, bem como nos sectores relacionados com as actividades desportivas, culturais e de lazer, para a protecção e os direitos das crianças.
2 - Cada Parte toma as necessárias medidas legislativas ou outras para garantir que as pessoas referidas no n.º 1 tenham um conhecimento adequado da exploração sexual e dos abusos sexuais das crianças, dos meios de os detectar e da possibilidade prevista no n.º 1 do artigo 12.º
3 - Cada Parte toma as necessárias medidas legislativas ou outras, em conformidade com o seu direito interno, para que as condições de acesso às profissões cujo exercício implique, de forma habitual, contactos com crianças permitam garantir que os candidatos a tais profissões não foram anteriormente condenados por actos de exploração sexual ou abusos sexuais de crianças.».
Analisando o texto da Convenção, bem como o respectivo preâmbulo, constatamos que o objectivo de tal diploma é a protecção das crianças contra todas as formas de exploração/abuso sexual.
Porém, o nosso legislador, em cumprimento das obrigações assumidas internacionalmente, não se limitou a proteger as nossas crianças ao nível da sua liberdade e autodeterminação sexual; foi mais longe, e incluiu os crimes de violência doméstica e de maus tratos – cfr. os artigos 2º, nº 4, al. a) e 4º, nº 3 da lei nº 113/2009.
Ora, qualquer um destes ilícitos abrange uma multiplicidade de «agressões», além das de cariz sexual:
A Jurisprudência tem entendido que se incluem no conceito de maus tratos físicos, as ofensas à integridade física e nos maus tratos psíquicos, entre outras acções, as ameaças, as injúrias, as críticas destrutivas e/ou vexatórias, as humilhações, as provocações, as privações da liberdade e outras estratégias conducentes ao isolamento social, as perseguições e as esperas não consentidas, bem como o controlo do dinheiro e do acesso a bens alimentares.
Por força do artigo 2º da Lei nº 113/2009:
«1 - No recrutamento para profissões, empregos, funções ou actividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, a entidade recrutadora está obrigada a pedir ao candidato a apresentação de certificado de registo criminal e a ponderar a informação constante do certificado na aferição da idoneidade do candidato para o exercício das funções.
(…)
3 - No requerimento do certificado, o requerente especifica obrigatoriamente o fim a que aquele se destina, indicando a profissão, emprego, função ou actividade a exercer e indicando ainda que o seu exercício envolve contacto regular com menores.
4 - O certificado requerido por particulares para os fins previstos nos n.os 1 e 2 tem a menção de que se destina a situação de exercício de funções que envolvam contacto regular com menores e deve conter, para além da informação prevista nos n.os 5 a 8 do artigo 10.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio:
a) As condenações por crime previsto nos artigos 152.º, 152.º-A ou no capítulo V do título I do livro II do Código Penal;
b) As decisões que apliquem penas acessórias nos termos do n.º 1 do artigo 69.º-B, do artigo 69.º-C e do artigo 152.º do Código Penal, ou medidas de segurança que interditem a atividade;
c) As decisões que sejam consequência, complemento ou execução das indicadas nas alíneas anteriores e não tenham como efeito o cancelamento do registo.
(…)».
Mais se estipula, no seu artigo 4º, a propósito do registo criminal :
« (…)
3 - Estando em causa o exercício de emprego, profissão ou atividade que envolva contacto regular com menores, o cancelamento provisório de decisões de condenação por crime previsto nos artigos 152.º e 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, só pode ocorrer nas condições previstas nos números seguintes e no artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio.
4 - Sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, estando em causa a emissão de certificado de registo criminal requerido para os fins previstos no artigo 2.º da presente lei, o Tribunal de Execução das Penas pode determinar, a pedido do titular, a não transcrição, em certificado de registo criminal requerido para os fins previstos no artigo 1.º da presente lei, de condenações previstas no n.º 1, desde que já tenham sido extintas a pena principal e a pena acessória eventualmente aplicada, quando seja fundadamente de esperar que o titular conduzirá a sua vida sem voltar a cometer crimes da mesma espécie, sendo sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão, emprego, função ou atividade a exercer.
5 - A decisão referida no número anterior é sempre precedida de realização de perícia de carácter psiquiátrico, com intervenção de três especialistas, com vista a aferir a reabilitação do requerente.».
Analisando estas normas e a sua razão de ser, concluímos que a defesa do (superior) interesse das crianças não se compadece com ser apenas ponderado com particular cuidado o cancelamento provisório de crimes praticados contra (outras) crianças por factos de índole sexual.
Na verdade, a entender-se assim, o cancelamento provisório de condenações por crimes de maus tratos praticados contra crianças consubstanciados em graves agressões físicas, como por exemplo, espancamentos, ou mantê-las acorrentadas sem acesso a água, não estaria abrangido pela previsão da Lei nº 113/2009 e, por conseguinte, prescindiria da averiguação de que o condenado «conduzirá a sua vida sem voltar a cometer crimes da mesma espécie, sendo sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão», bem como prescindiria da avaliação pericial da sua reabilitação.
Mas mais, o que a Lei nº 113/2009 de 17/9 pretende evitar, é o risco de, pessoas anteriormente condenadas pela prática de crimes graves contra as pessoas, voltarem a praticar factos idênticos contra crianças, no exercício de profissões, empregos, funções ou actividades cujo exercício envolva contacto regular com menores.
A este propósito e à definição do respectivo âmbito de aplicação, não terá sido alheia a circunstância de ser conhecida a probabilidade de reincidência de determinados comportamentos!
Na verdade, para se aferir do perigo de reiteração criminosa, será pouco relevante que o crime de maus tratos anteriormente cometido tenha sido dirigido contra crianças, ou, como sucedeu no caso da requerente, contra uma pessoa idosa, igualmente vulnerável pela sua idade, e com a agravante de padecer de incapacidade – relembramos que a ora requerente explorava uma estrutura residencial para pessoas idosas e colocou uma idosa num buraco de cerca de 1,10 metros de altura por 0,90 metro de largura, aberto na parede de uma garagem situada na cave, sem ventilação nem luz, que se encontrava dissimulado por detrás de um estrado e um colchão, sendo que, dada a exiguidade do espaço, a idosa encontrava-se encolhida, de joelhos no chão, sem espaço para se ter de pé ou mesmo para se mover.
Em suma, onde o legislador não distinguiu, não deve o julgador distinguir.
O nosso legislador, que sabe «exprimir o seu pensamento em termos adequados» - cfr. o nº 3 do artigo 9º do C.C. – se pretendesse que apenas os crimes de violência doméstica e maus tratos por actos de índole sexual cometidos contra crianças exigissem, para o cancelamento provisório das respectivas condenações, a aplicação da Lei nº 113/2009, tê-lo-ia afirmado claramente. Mas não. Remeteu genericamente para os crimes dos artigos 152º e 152º-A e do capítulo V do título I do Livro I do código penal, sabendo bem que naqueles primeiros cabem variadíssimas agressões de outra índole e que neste capítulo estão descritos crimes cometidos contra pessoas maiores de idade.
Aliás, isto mesmo foi reconhecido no Acórdão nº 852/2024 do Tribunal Constitucional (processo nº 1259/2023, 3ª secção, relatado pela Conselheira Joana Fernandes Costa):
«Como se vê, a Proposta de Lei n.º 257/X/4 pretendeu ir além do que resultaria do simples cumprimento das obrigações impostas pela Convenção em matéria de proteção das crianças contra o risco de abuso e exploração sexual, pretensão essa que se registou a dois níveis: o primeiro, expressamente assumido na exposição de motivos, prende-se com a adoção das medidas consagradas no artigo 3.º da Lei n.º 113/2009, destinadas a permitir a aferição da idoneidade das pessoas a quem os menores possam vir a ser confiados, na tomada de decisões que estes respeitem; o segundo, só em parte reconhecido na exposição de motivos, diz respeito ao alargamento do universo dos crimes a serem tidos em conta na aferição de idoneidade dos condenados para efeitos de acesso a funções que envolvam contacto regular com menores.
Quanto a este último aspeto - aquele que mais diretamente releva para o enquadramento da norma sindicada -, verifica-se que o regime constante da Proposta de Lei n.º 257/X/4, que acabou por ser consagrado no artigo 2.º da Lei n.º 113/2009, determina que o certificado de registo criminal a requerer por particulares tendo em vista o seu recrutamento para profissões, empregos, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, deverá conter, para além das menções que constam obrigatoriamente dos certificados requeridos para fins de emprego, público ou privado, ou para o exercício de profissão ou atividade em Portugal, referidas no n.º 5 do artigo 10.º da Lei n.º 37/2015 - grosso modo, as decisões que decretem a demissão da função pública, proíbam o exercício de função pública, profissão ou atividade ou interditem esse exercício, bem como aquelas que sejam consequência, complemento ou execução das anteriores e não tenham como efeito o cancelamento do registo - ainda as seguintes: (i) condenações por crime previsto no artigo 152.º (violência doméstica), no artigo 152.º-A (maus tratos) ou no Capítulo V do Título I do Livro II (crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual) do Código Penal; (ii) decisões que apliquem penas acessórias nos termos do n.º 1 do artigo 69.º-B, do artigo 69.º-C e do artigo 152.º do Código Penal, ou medidas de segurança que interditem a atividade; e (iii) decisões que sejam consequência, complemento ou execução das indicadas nas alíneas anteriores e não tenham como efeito o cancelamento do registo.
Pretendeu-se, assim, assegurar a inscrição nos certificados de registo criminal destinados à aferição da idoneidade que exerça ou pretenda exercer atividade que envolva contacto regular com menores de um conjunto de elementos adicionais, que incluem não apenas as decisões resultantes de crimes sexuais cometidos contra menores, mas também as decisões decorrentes de crimes cometidos contra a liberdade sexual independentemente da menoridade da vítima, bem como as resultantes de crime de violência doméstica e de maus tratos cometidos quer contra menores quer contra maiores de idade.».
Assim, no caso em apreço temos:
- a requerente pretende candidatar-se a um emprego que envolve contacto regular com menores;
- sofreu uma condenação por crime previsto no artigo 152º-A do C.P. (cfr. a alínea a) do nº 4 do artigo 2º da Lei nº 113/2009) que pretende ver cancelada provisoriamente;
- a pena aplicada, de 1 ano de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses, já foi declarada extinta;
- a requerente não foi condenada a indemnizar a ofendida;
- a reabilitação da requerente não foi apreciada por especialistas em psiquiatria (cfr. o nº 5 do artigo 4º da Lei nº 113/2009), nem foi apreciado se o risco para a segurança e bem-estar das crianças com quem irá trabalhar é «sensivelmente diminuto» (cfr. o nº 4 do artigo 4º da Lei nº 113/2009).
Ora, a realização daquela perícia de carácter psiquiátrico é obrigatória, mesmo que o julgador a considere desnecessária em face dos contornos do caso concreto: não a pode dispensar, mesmo que ache que a mesma é inútil ou irrelevante.
Aliás, esta subtracção ao julgador da faculdade de dispensar a sujeição do requerente à aludida perícia foi considerada conforme à nossa Constituição pelo Tribunal Constitucional no atrás referido Acórdão nº 852/2024.
Estamos, assim, em face de uma prova legal vinculada – cfr. António Latas, in Comentário Judiciário do Código de Processo penal, tomo II, 3ª edição, 2021, Almedina, p. 394.
Quais as consequências da sua omissão?
De acordo com o princípio da legalidade que vigora ao nível das nulidades em processo penal, só são nulos os actos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência. É o que está consagrado no artigo 118º, nº 1 do C.P.P..
Nos casos em que a lei não comina a nulidade, o acto ilegal é irregular – cfr. o nº 2, do artigo 118º.
Estabelece o artigo 123º do mesmo código que:
«1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do acto praticado.».
A irregularidade em questão – não realização de um meio de prova obrigatório – afectou nitidamente o valor do acto praticado, ou seja, o cancelamento provisório da condenação pelo crime de maus tratos no certificado de registo criminal requerido para efeitos de exercício de profissão que envolve contacto regular com menores, tanto mais que nem sequer foi ponderado se é sensivelmente diminuto o risco para a segurança e bem-estar das crianças com quem a requerente irá trabalhar.
De tal modo, que estamos em face de uma irregularidade de conhecimento oficioso, por influir no conhecimento e decisão da causa.
Em consequência, impõe-se determinar a reparação da apontada irregularidade, em consonância com o estabelecido no artigo 123º, nº 2 do C.P.P., determinando a realização da omitida prova pericial e, depois, a apreciação do pressuposto previsto no nº 4 do artigo 4º da Lei nº 113/2009.
V. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em:
Julgar totalmente procedente o recurso interposto e, atenta a irregularidade de que padece a decisão recorrida, determinar a sua substituição por outra que determine a realização da perícia prevista no nº 5 do artigo 4º da Lei nº 113/2009 e a apreciação do pressuposto previsto no nº 4 do mesmo artigo.
Sem custas.
Coimbra, 28 de Maio de 2025
(Helena Lamas - relatora)
(Rosa Pinto – 1ª adjunta)
(João Abrunhosa – 2º adjunto)