I - A responsabilização criminal exige uma acção penalmente relevante, simultaneamente típica, ilícita e culposa.
II - Incorre em erro de direito o tribunal que condenou o arguido, menor de idade à data dos factos, ao invés de o declarar inimputável, em razão da sua menoridade.
III - Contendo o processo todos os elementos relativos à idade do agente, pode o tribunal de recurso declarar a sua inimputabilidade, em razão da idade, em relação ao crime pelo qual foi indevidamente acusado e condenado.
IV - Uma vez que há que retirar da procedência do recurso as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida, se a decisão condenou o arguido por um outro crime cometido quando ele era já maior, mantém-se a pena aplicada por este crime, retirando-se do cúmulo jurídico realizado a pena aplicada pelos factos praticados quando ele era menor, e, de igual modo, reduzindo a indemnização arbitrada, circunscrevendo-se a mesma ao crime cuja condenação se mantém.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam, em conferência, na 4º Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
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I. Relatório
AA, filho de BB, nascido a ../../2006, natural de ... – ..., de nacionalidade portuguesa, portador do Cartão de Cidadão n.º ...44, residente na Rua ..., ..., ..., em ..., foi condenado no processo comum singular nº 106/22.... do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão – Juiz 2, por sentença datada de 5.09.2024, nos seguintes termos:
“ A. ABSOLVER o arguido AA da prática do crime de ameaça de que vinha acusado.
B. ABSOLVER o arguido AA da prática dos dois crimes de ameaça agravado de que vinha acusado.
C. CONDENAR o arguido AA, na pena única de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros) a que correspondem as seguintes penas parcelares do concurso de crimes:
i. 100 (cem) dias de multa pela prática de um crime de coacção, praticado em 25.03.2022, previsto e punido pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal;
ii. 90 (noventa) dias de multa pela prática de um crime de coacção, praticado em 12.08.2022, previsto e punido pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal.
D. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por CC e, em consequência CONDENAR o demandado civil AA no pagamento àquele da quantia de €200,00 (duzentos euros), a título de danos não patrimoniais, absolvendo-o do demais peticionado.
(…)”.
O Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
“ 1. Por sentença, proferida a 4 de setembro de 2024, foi decidido condenar o arguido AA, pela prática de um crime de coação, previsto e punido pelo disposto no artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, por factos praticados em 25.03.2022.
2. O arguido nasceu no dia ../../2006.
3. Pelo que, à data da prática desses factos (25.03.2022) o mesmo tinha 15 anos.
4. São inimputáveis em razão da idade, todos aqueles que tenham menos 16 anos de idade à data da prática dos factos, como decorre do disposto no artigo 19.º do Código Penal.
5. A inimputabilidade é uma causa de exclusão da culpa.
6. Ao não absolver o arguido AA o tribunal a quo fez uma incorreta interpretação e aplicação do disposto no artigo 19.º do Código Penal.
7. Em face do exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que absolva o arguido pela prática de um crime de coação previsto e punido pelo disposto no artigo 154.º, do Código Penal, praticado no dia 25.03.2022.”
*
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
O arguido, não apresentou resposta.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer nos seguintes termos:
“(…) 5. Assim, revendo-nos nos fundamentos do recurso apresentado, apenas complementarmente dizemos:
O arguido AA foi condenado na pena de 100 (cem) dias de multa pela prática de um crime de coação previsto e punido pelo disposto no artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, por factos praticados no dia 25.03.2022 (facto 1 dos factos dados como provados).
O julgamento foi realizado na ausência do arguido, nos termos dos artigos 333º-1 e 196º, n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal.
Tal sentença julgou procedente a acusação que havia sido deduzida, porque provados os factos ali descritos, da autoria do arguido, ocorridos em 25.03.2022.
Todavia, apesar da participação criminal da GNR ..., auto de interrogatório de arguido constar como data do seu nascimento o dia ../../2006, que é corroborado pela pesquisa informática por nós realizada nas bases de dados da identificação civil, afigurando-se-nos com relevância a junção datada de 06.09.2024, consta como data de nascimento do arguido o dia 16.04.2024.
Ou seja, quer o despacho de acusação, quer a sentença judicial enfermam de lapso quanto à data de nascimento do arguido, impondo-se a correção da sentença nessa parte, nos termos do disposto no art.º 380.º n.º 1 al. b) do CPC, por forma a que na identificação do arguido passe a constar a data de nascimento ../../2006 em substituição do dia 16.04.2006, que por lapso ai consta.
De qualquer forma, à data dos factos- 25.03.2022- o arguido era inimputável em razão da idade, sendo legalmente inadmissível o procedimento criminal, pelo que processo, nesta parte, teria de ser arquivado e determinada a extração de certidão, para a instauração de inquérito tutelar educativo, cfr. art.º 1.º da Lei Tutelar Educativa, a remeter à Procuradoria da Republica do Juízo de Família e Menores da área de residência do jovem, cfr. art.º 31.º da L.T.E..
Tal não sucedeu e por isso a sentença proferida nos autos que o condenou como autor material de um crime de coação, p.p. pelo n.º 1 do art.º 154.º do CP, não pode produzir efeitos, sendo a condenação ilegal por força do artigo 19º do Código Penal. Ora, não tendo o tribunal se pronunciado sobre questão que se devia pronunciar, como sendo a inimputabilidade do arguido, incidindo sobre o juiz a obrigação de o fazer, cabe-nos perguntar qual a consequência dessa omissão.
Sufragando o entendimento do acórdão do STJ de 13.10.2010, disponível in wwwdgsi.pt, quanto à omissão de pronúncia a que alude o art.º 379.º n.º 1 al. c) do CPP e suas consequências, “A omissão de pronúncia significa, na essência, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa sobre questões que lhe sejam submetidas: as questões eu o juiz deve apreciar são todas aquelas que os sujeitos processuais submetam à apreciação do Tribunal(art.º 660.º n.º 2 do CPP) e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual. As nulidades referidas, mesmo não alegadas, são oficiosamente cognoscíveis em recurso, visto que as nulidades da sentença enumeradas no art.º 379.º n.º 1 do CPP, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes atos processuais, estabelecendo-se no n.º 2, que as nulidades devem ser arguidas ou conhecidas em recurso.”
A propósito das nulidades da sentença refere o Juiz Conselheiro Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 1183:
“Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso, a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do nº2, estabelece que «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso», o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença devem ser…conhecidas em recurso».
(…) “Aliás, nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e mesmo sem dispositivo. A não serem as nulidades da sentença suscetíveis de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, passaríamos a ter decisões, quer absolutórias, quer condenatórias, eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superior”.
Assim, cremos que a sentença enferma de nulidade a que alude o n.º 1 al. c) do art.º 379.º do CPP e não obstante a possibilidade de sanação do vício, mesmo por parte do tribunal de recurso, cfr. art.º 379.º n.º 2 do CPP, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 3ª Edição atualizada, página 962/963:
“O tribunal de recurso tem o poder de “suprir” as nulidades da sentença. Mas este poder é muito reduzido na prática, porque ele só poderá ser exercido negativamente. Isto é, o tribunal de recurso só pode exercer o poder de suprir a nulidade nos casos em que o tribunal recorrido se tenha pronunciado sobre questões de que não podia conhecer (nulidade da 2ª parte da alínea c) do nº1). Neste caso, o tribunal superior exerce o seu poder de suprimento da nulidade simplesmente declarando suprimida na sentença recorrida a parte atinente à questão que não deveria ter sido conhecida. Em todos os outros casos, o tribunal de recurso não pode exercer o seu poder de suprimento, pois esse exercício corresponderia à supressão de um grau de jurisdição (acórdão do TRL, de 14.4.2003, in CJ, XXVIII, 2, 143, e acórdão do TRE, de 8.7.2003, in CJ, XXVIII, 4, 252). A sentença deve ser anulada e os autos devem baixar ao tribunal a quo para que nele se proceda à elaboração de nova sentença (...) conhecendo-se nela das “questões” que o tribunal deveria ter apreciado (nulidade da 1ª parte da alínea c) do nº1). Não deve, pois, nestes casos anular-se o próprio julgamento (acórdão do STJ de 31.5.2001, in SASTJ, 51, 97). Do exposto resulta também evidente a inaplicabilidade no processo penal da disposição do artigo 715, nº1 do CPC.”
Pelo exposto, enfermando a sentença recorrida de nulidade, nos termos do disposto no art.º 379.º, n.º 1 al. c) do CPP, não podendo tal nulidade ser sanada pelo Tribunal de recurso, sob pena de violação do duplo grau de recurso, devem os autos baixar à 1.ª instância para que o Tribunal se pronuncie sobre a invocada inimputabilidade do arguido, à data da prática dos factos em que foi condenado - 23.05.2023.
6. Face ao exposto, somos, somos de parecer que o recurso deve ser julgado procedente, declarando-se a nulidade da sentença nos termos do disposto no n.º 1 al. c) do art.º 379.º do CPP, ordenando-se a remessa dos autos ao Tribunal da 1.ª Instância, para se pronunciar sobre a invocada questão.
7. Requer-se que seja dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P. “
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II. Questões a Decidir:
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada ⸺ a sentença proferida nos autos ⸺ a única questão suscitada pelo recorrente prende-se com saber se o arguido é inumputável, em razão da idade, em relação aos factos praticados em 25.03.2022, e pelos quais foi condenado pela prática de um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154º, nº 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa.
III. Trancrição dos Segmentos da Decisão Recorrida Relevantes para Apreciação do Recurso Interposto[1]
Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:
“ (…)
II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A) Resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 25.03.2022, na parte da manhã, o demandante civil CC dirigiu-se à residência em que o arguido habita e sita na Rua ..., ..., ..., em ..., e após uma troca de palavras sobre o pagamento das rendas em atraso, o arguido, em tom de voz hostil, disse-lhe: “saia daqui ou acabo contigo”.
2. No dia 12.08.2022, na parte da manhã, o arguido deslocou-se à residência do demandante civil sita na Rua ..., ..., ..., em ..., e dirigiu as seguintes palavras, em tom de voz sério, ao demandante civil: “se fizer queixa, eu vou partir tudo dentro de sua casa e os seus carros”.
3. No dia 11.09.2022, na parte da tarde, o arguido dirigiu-se à residência do demandante civil e disse as seguintes palavras, em tom de voz sério, ao ofendido: “olha se eu souber quem matou o cão eu dou-lhe um tiro”, expressão que aquele escutou e lhe causou medo pela sua vida e integridade física.
4. No dia 16.09.2022, pelas 16:00 horas, o arguido deslocou-se à residência do demandante civil e munido de uma reprodução de arma de fogo, mostrou-a ao ofendido e disse-lhe: “com isto eu vou matar”.
5. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as palavras proferidas nos pontos 1 e 2 eram aptas a determinar a saída do ofendido da residência do demandante civil e de o demover a apresentar queixa por incutir receio pela sua vida e integridade física.
6. Nas situações descritas nos pontos 3 e 4, o arguido proferiu as expressões referidas e dirigidas ao demandante civil, com o propósito de as utilizar, bem sabendo que as mesmas eram aptas a causar ao ofendido medo, receio e inquietação pela sua vida e integridade física, o que representou.
7. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Do pedido de indemnização civil
8. Em virtude do aludido em 1, 2, 3, 4 dos factos provados o demandante civil andava angustiado.
Mais se provou que:
9. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
(…)”
III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A) Enquadramento jurídico-penal dos factos
1. Do crime de coacção:
O arguido vem acusado da prática de dois crimes de coacção, do artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal.
O artigo 154.º prescreve que “quem, por meio de violência ou ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (…)”.
O bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de acção, que são o lado interno e o lado externo da liberdade de acção.
O crime de coacção não só abrange as acções que apenas restringem a liberdade de decisão e de acção - as acções de constrangimento em sentido estrito, ou seja, a tradicional vis compulsiva -, mas também as acções que eliminam, em absoluto, a possibilidade de resistência - a chamada vis absoluta - bem como as acções que afectam os pressupostos psicológico-mentais da liberdade de decisão, isto é, a própria capacidade para decidir.
O tipo objectivo de ilícito da coacção consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma acção, omitir determinada acção, ou suportar uma actividade.
Os meios de coacção são a violência ou a ameaça com mal importante, sendo um crime de execução vinculada ou de processo típico.
No que ora importa, quanto ao caso em apreço, tratar-se-á de uma ameaça com mal importante, pelo que importa concretizar este conceito.
Duas questões se levantam: qual o conceito de ameaça e qual o conceito de "mal importante".
Relativamente ao conceito de ameaça, como meio do crime de coacção, tem que se considerar quais as características do conceito de ameaça: mal, futuro e na dependência da vontade do agente.
São três as características essenciais do conceito de ameaça, normalmente apontadas pela doutrina e na jurisprudência:
i. anúncio de um mal;
ii. futuro;
iii. cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
O mal ameaçado tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial.
Tem é que configurar, em si mesmo, um facto ilícito típico contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
O mal ameaçado tem de ser futuro, não podendo, pela sua iminência, confundir-se com uma tentativa de execução do respectivo acto violento.
A concretização futura do mal depende, ou aparece como dependente, da vontade do agente.
O tipo subjectivo requer o dolo, que exige a consciência da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado, sendo necessário, para que este se afirme, que o agente conheça e represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo.
Seja qual for a qualidade do mal ameaçado exigida pelo tipo legal, poder-se-á dizer que a ameaça, enquanto meio do crime de coacção, tem que ter por objecto um mal importante.
Deve, em primeiro lugar, ter-se por firme que o mal importante, em si mesmo considerado, tanto pode ser ilícito como não ilícito, isto é, o mal ou dano não tem de ser, necessariamente, ilegítimo.
“Por outras palavras e mais correctamente: a execução da conduta, objecto da ameaça, não tem de constituir um ilícito, seja penal ou de qualquer outra espécie”.
O segundo critério orientador da definição concreta do "mal importante" é o da adequação da ameaça a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante.
Isto é, só deverá considerar-se mal importante aquele que é, nas circunstâncias do caso concreto, susceptível ou adequado a fazer "dobrar" a vontade do ameaçado.
Há, portanto, que relacionar a importância ou a gravidade do mal ameaçado com a exigência típica da adequação (imputação objectiva) deste a constranger o ameaçado.
Daqui resultam duas equações: mal importante é igual a mal adequado a constranger o ameaçado, e mal adequado é igual a mal que, tendo em conta as circunstâncias concretas (idade, pobreza, dependência económica do coagido face ao homem comum como susceptível de coagir o ameaçado.
Em conclusão, o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objectivo-individual:
objectivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum; individual, uma vez que se tem de ter em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça, nomeadamente as sub-capacidades (económicas, mentais, etc.) do ameaçado (quando conhecidas ou quando, se não conhecidas, o agente tinha o dever de as conhecer).
O crime em apreciação é um crime de resultado, já que a consumação do mesmo basta-se com o simples início da execução da conduta coagida:
- se o objecto da coacção for a prática de uma acção, a coacção consuma-se, quando o coagido iniciar esta acção, sendo essa pessoa efectivamente constrangida a praticar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua própria vontade;
- se o objecto da coacção for a omissão ou a tolerância de uma determinada acção, a coacção consuma-se no momento em que o coagido é, por causa da violência ou da ameaça, impedido de agir ou reagir.
Para haver consumação, não basta a adequação da acção, ou seja, a adequação do meio utilizado: violência ou ameaça com mal importante, e a adopção, por parte do destinatário da coacção, do comportamento conforme a imposição do coactor, mas é ainda necessário que, entre este comportamento e aquela acção de coacção haja uma relação de efectiva causalidade.
Se a conduta do sujeito passivo, isto é, do destinatário da coacção - apesar de coincidente com a que o coactor impunha foi livremente decidida, e não consequência ou resultado directo da acção de coacção, isto é, do medo da concretização da ameaça, não há consumação, mas apenas tentativa.
Quanto ao elemento subjectivo, temos que o crime de coacção exige dolo, bastando o dolo eventual.
Assim, não é necessário que a acção do agente vise, especificamente, humilhar ou constranger o coagido (dolo especifico), bastando que o agente, sejam quais forem as suas motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que fez é susceptível de constranger e com tal se conforme.
No caso em apreço, afigura-se-nos claro e inequívoco que, face à factualidade provada [factos provados 1 e 2], o arguido cometeu o tipo de ilícito de que vinha acusado.
É a seguinte a factualidade provada:
- No dia 25.03.2022, na parte da manhã, o demandante civil CC dirigiu-se à residência em que o arguido habita e sita na Rua ..., ..., ..., em ..., e após uma troca de palavras sobre o pagamento das rendas em atraso, o arguido, em tom de voz hostil, disse-lhe: “Saia daqui ou acabo contigo”.
- No dia 12.08.2022, na parte da manhã, o arguido deslocou-se à residência do demandante civil sita na Rua ..., ..., ..., em ..., e dirigiu as seguintes palavras, em tom de voz sério, ao demandante civil: “se fizer queixa, eu vou partir tudo dentro de sua casa e os seus carros”
-O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as palavras proferidas nos pontos 1 e 2 eram aptas a determinar a saída do demandante civil da residência do demandante civil e de o demover de apresentar queixa, por incutir receio pela sua vida e integridade física.
As expressões referidas consubstanciam objectivamente uma ameaça com mal importante, já que, nas circunstâncias que ficaram provadas as expressões proferidas pelo arguido, sugerem abertamente, no critério do homem comum, que se o demandante civil não saísse do local o arguido acabaria com o demandante civil e que se fizesse queixa o arguido iria partir tudo dentro da casa do demandante civil e os seus carros também, o que consubstancia ameaças com a prática de um crime, idónea a provocar o constrangimento do visado.
Quanto ao elemento subjectivo, atendendo a que o arguido agiu com intenção de constranger o demandante civil a praticar as acções em causa, o que quis, querendo levar o mesmo, com as ameaças proferidas, a realizar essas acções, sabendo que tais actuações eram punidas como crime, pelo que agiu com dolo directo.
Preenchidos que se encontram os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito, não pode deixar de se concluir que o arguido incorreu na prática de dois crimes de coacção de que vinha acusado.
*
(…)
B) Das consequências jurídicas do crime
1. A escolha da pena:
Verificada a prática por parte do arguido de dois crimes de coacção cumpre agora extrair as respectivas consequências posteriores ao preenchimento do tipo incriminador em causa – uma pena.
O crime em causa é punido, em alternativa, com pena de multa ou pena de prisão – artigos 154.º, n.º 1, 41.º, n.º 1 e 47.º, n.º 1 do Código Penal.
Tratando-se de penas alternativas, de prisão ou de multa há que determinar qual a pena aplicável ao arguido.
Dispõe o artigo 70.º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa da liberdade e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realização de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Determina este preceito legal que a escolha entre uma pena privativa da liberdade e uma pena não privativa da liberdade deve ser realizada em função das exigências de prevenção geral e especial do caso concreto (artigo 70.º parte final e artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal).
Deste modo, a aplicação de uma pena de prisão constitui a ultima ratio, só podendo ser aplicada quando as exigências de prevenção geral e especial não foram salvaguardadas adequada e suficientemente pelas penas não privativas da liberdade.
Estatui o artigo 40.º, n.º 1 Código Penal quanto aos fins das penas que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
O direito penal tem como fim a protecção dos bens jurídicos, sendo a pena o meio de realização desse fim. Contudo, é necessário estabelecer uma correspondência entre a medida da pena e a necessidade de prevenir a prática de futuros crimes.
A prevenção geral positiva assume relevância enquanto finalidade da pena e traduz-se na estabilização contra fáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma violada.
A prevenção especial positiva tem como objecto o agente, tendo como finalidade a ressocialização do agente.
“Pela prevenção geral (positiva) faz-se apelo à consciencialização geral da importância social do bem jurídico tutelado e pelo outro no restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal dos bens tutelados.
Pela prevenção especial pretende-se a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa) 10”.
As exigências de prevenção geral constituem o limite mínimo da pena e a culpa do agente constitui o seu limite máximo.
Vejamos no nosso caso.
As exigências de prevenção geral são elevadas, pois os crimes contra a liberdade pessoal causam alarme social, protegendo um bem jurídico essencial para a vivência em comunidade que é a liberdade de cada um, que apenas pode ser coartada em circunstâncias excepcionais.
No que concerne às exigências de prevenção especial, as mesmas devem considerar-se moderadas. Não obstante o arguido não ter antecedentes criminais
registados e desconhecer-se a sua situação profissional e familiar, temos que se visa impedir que o arguido volte a cometer este tipo de ilícitos.
No caso em apreço, a aplicação ao arguido de uma pena de multa satisfaz de forma suficiente e adequada as finalidades das normas incriminadoras, porquanto representa uma censura suficiente dos factos e revela-se adequada a repor as expectativas comunitárias na validade e vigência das normas violadas.
Deste modo, atendendo aos factores supra, entende-se aplicar ao arguido uma pena de multa quanto à prática dos ilícitos criminais em causa.
2. Da medida concreta da pena
O crime de coacção é punido com pena multa de 10 a 360 dias de multa – artigos 154.º, n.º 1, e 47.º, n.º 1 do Código Penal.
Para a determinação da medida concreta da pena o julgador tem de atender à culpa do agente – limite inultrapassável da pena (artigo 40.º, n.º 2 Código Penal) e às exigências de prevenção geral e especial (artigo 71.º, n.º 1 Código Penal), ponderando ainda todas “as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime”, depuserem a favor ou contra o agente (artigo 71.º, n.º 2 Código Penal).
No caso dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 71.º, do Código Penal, atende-se na determinação da medida concreta da pena, ao seguinte:
- o arguido actuou com dolo directo, ou seja, a forma mais intensa do dolo;
- o grau de ilicitude do facto típico é elevado, atenta as concretas expressões utilizadas;
- a falta do arguido na audiência de julgamento, sem justificar a mesma, o que demonstra uma atitude de indiferença perante o sistema penal;
- a ausência de antecedentes criminais.
Face às circunstâncias supra descritas considera-se justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido das seguintes penas concretas individuais:
- pela prática de um crime de coacção de 25.03.2022: 100 dias de multa;
- pela prática de um crime de coacção de 12.08.2022: 90 dias de multa.
*
3. Do cúmulo de penas
Dispõe o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
E o n.º 3 dispõe que “se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”.
Conforme vimos supra, aplicou-se ao arguido duas penas de multa.
Tendo sido aplicadas duas penas da mesma natureza, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, caberá agora encontrar uma pena única, na qual sejam considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido.
Segundo o preceituado no n.º 2 deste preceito legal, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e 900 dias, tratando-se de pena de multa, e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Assim, a pena resultante do cúmulo jurídico das penas de multa acima fixadas será encontrada dentro da moldura com o limite mínimo de 100 dias e o limite máximo de 190 dias.
Para determinar a medida concreta da pena única a aplicar há que valorar, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, avaliando, assim, «a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique»11.
Sobretudo, há que aferir se a personalidade do agente, manifestada nos factos praticados, revela já uma tendência para o crime ou apenas uma pluriocasionalidade, bem como o efeito previsível que a pena terá no comportamento futuro do agente.
O arguido praticou dois ilícitos criminais, num espaço temporal de cerca de cinco meses.
A ilicitude global dos factos praticados é considerável, tendo em conta a concreta actuação do arguido.
Desconhece-se se o arguido se encontra inserido profissional e familiarmente inserido.
Tudo visto e ponderado, em cúmulo jurídico das penas de multa aplicadas ao arguido, julga-se adequada e proporcional a aplicação ao arguido da pena única de 140 dias de multa quanto à prática dos dois crimes de coação.
*
Fixado o número de dias da pena de multa aplicado ao arguido, há que ponderar o quantitativo diário.
Quanto à fixação do montante diário da multa, dispõe o artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal que na fixação do quantitativo diário é de atender à situação económica e financeira do arguido, fixando-se esses limites entre €5,00 e €500,00.
Este preceito legal visa dar consagração ao princípio da igualdade de ónus e de sacrifícios, promovendo, consequentemente, a eficácia preventiva da multa12, ou seja, o montante diário da pena de multa não deve ser doseada por forma a que a pena não represente qualquer sacrifício para o arguido, sob pena de gerar na comunidade um sentimento de impunidade desta, ao mesmo tempo que gera a falta de confiança da comunidade na justiça.
Quanto à situação económica do arguido, desconhece-se a mesma.
Face ao exposto, entende-se ser de fixar o quantitativo diário em €5,00 (cinco euros).
*
IV – Do pedido de indemnização civil
O demandante civil deduziu pedido de indemnização civil contra o demandado civil, no qual pediu a condenação deste no pagamento da quantia de €2.000,00, a título de danos não patrimoniais, tendo como fundamento os factos imputados na acusação pública.
O artigo 129.º, do Código Penal dispõe que “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.”
Neste âmbito estipula o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Deste modo, são pressupostos da responsabilidade civil subjectiva ou por factos ilícitos: o facto voluntário; a ilicitude do facto; a culpa (dolo ou negligência do autor do facto); o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano sofrido pelo lesado.
Vejamos.
O facto voluntário consiste no comportamento humano dominado ou dominável pela vontade (positivo ou simplesmente omissivo) que desencadeia o evento danoso, podendo o facto revestir a forma de acção ou omissão.
A ilicitude respeita ao lado externo do comportamento, podendo esta consistir na violação de direito alheio (direito subjetivo) ou de violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios. A ilicitude surge em qualquer uma destas modalidade configurada como um juízo de desvalor atribuído pela ordem jurídica. Este juízo de desvalor incide sobre o resultado da acção (teoria do desvalor do resultado).
Relativamente à culpa do agente (a imputação do facto ao lesante), a lei prevê que o agente tenha actuado com dolo ou mera culpa (negligência), ou seja, há um juízo de censura do comportamento do agente por parte da ordem jurídica.
A culpa pode revestir a forma de dolo, em qualquer das suas vertentes (directo, necessário ou eventual) ou a forma de negligência (mera culpa), consistindo esta na omissão do cuidado e diligência exigível ao agente, que tanto pode ser consciente ou inconsciente.
Preceitua o artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, que “a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”.
Por outro lado, nos termos do n.º 1 da referida norma, que cabe ao lesado o ónus da prova de que o lesante atuou com culpa, excepto se puder funcionar uma presunção de culpa.
O dano traduz-se na lesão a um bem jurídico ou interesse juridicamente protegido.
Tradicionalmente distingue-se entre dano real – isto é, «a perda in natura que o lesado sofreu» no bem ou interesse tutelado e dano de cálculo, enquanto expressão pecuniária do dano real; danos patrimoniais – insusceptíveis de avaliação pecuniária – e danos patrimoniais – suscetíveis de avaliação pecuniária (…).
Por último, temos o nexo de causalidade entre o facto e o dano, entre o facto e o dano, que, em concreto, seja condição “sine qua non” do dano e, em abstracto, seja adequado a produzir aquele tipo de dano, de acordo com um critério de normalidade, à luz da teoria da causalidade adequada – artigo 563.º do Código Civil.
Verificados que estejam os pressupostos determinativos da responsabilidade civil, nasce a obrigação de indemnização a cargo do lesante nos termos dos artigos 562.º, 564.º, n.º 1 e 566.º, todos do Código Civil.
No caso em apreço, o pedido de indemnização civil tem como causa de pedir os mesmos factos que acima consideramos para efeitos de integração jurídico criminal e aplicação da sanção criminal.
No que concerne aos factos ocorridos em Junho de 2022, os factos constantes da acusação não foram dados como provados e os factos ocorridos em 11.09.2022 e 16.09.2022 não foram considerados como crime.
Não se tendo provado a prática do facto ilícito que vinha imputados ao arguido e não obstante se ter provado a prática dos factos supra, os mesmos não
consubstanciam um ilícito criminal, pelo que cai o pedido de indemnização formulado pelo demandante civil contra o demandando civil, neste conspecto.
Relativamente aos factos constantes da acusação pública, temos que ficou provado que o arguido no dia 25.03.2022 e em 12.08.2022 proferiu as expressões dadas como provadas em 1 e 2.
O demandado civil podia e devia ter-se abstido de praticar tais factos, bem sabendo que ao proferir as expressões constantes da factualidade provada em 1 e 2 eram aptas a determinar a saída do demandante civil da residência do demandado e de o demover de fazer queixa, mas, mesmo assim, quis fazê-lo, actuando com culpa – dolo.
É ainda necessário que o facto, ilícito e culposo, provoque um dano, o qual corresponde um prejuízo ou desvantagem que é causado nos bens jurídicos, de carácter patrimonial ou não patrimonial, em função da sua suscetibilidade de avaliação pecuniária.
Nos termos do artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil admite-se a indemnização dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo irrelevantes, designadamente “os pequenos incómodos ou contrariedades, assim como os sofrimentos ou desgostos que resultam de uma sensibilidade anómala”.
A doutrina e a jurisprudência, quase unanimemente, fazem uma interpretação concretizadora desta postulada “gravidade”, limitando a indemnização àqueles casos que tenham efectiva relevância ética e moral por ofenderem profundamente a personalidade física ou moral.
Assim, não serão indemnizáveis os simples incómodos ou pequenos desgostos, sendo, no entanto, objecto de reparação aqueles danos morais naturais cuja reparação pecuniária se destina a compensar, embora indirectamente, os sofrimentos físicos, morais e desgostos e que, por serem factos notórios, não necessitam de ser alegados nem quesitados, mas só pedidos.
A gravidade do dano mede-se por um padrão objectivo, embora atendendo às particularidades de cada caso, e não à luz de factores subjectivos, como uma sensibilidade exacerbada ou requintada, e tudo segundo critérios de equidade, devendo ter-se ainda em conta a comparação com situações análogas decididas em outras decisões judiciais e que a indemnização a arbitrar tem uma natureza mista: ade compensar esses danos e a de reprovar ou castigar, no plano civilístico, a conduta do agente.
Transportando as considerações que acabamos de tecer para o caso em apreço, temos que apenas resultou provado que o arguido se sentiu angustiado.
Atendendo à gravidade das consequências danosas e às condições económicas do demandado, reputamos por excessiva a indemnização peticionada no valor de €2.000,00 pelos danos sofridos com a prática de dois crimes de coacção, afigurando-se equitativa a indemnização por danos não patrimoniais no valor de €200,00.
(…)”
IV. Mérito do Recurso
Como acima se assinalou a única questão trazida a este Tribunal de Recurso prende-se com a inimputabilidade do arguido, em razão da idade, nos termos do artigo 19º do Código Penal, no que diz respeito aos factos ocorridos no dia 25.03.2022.
No entanto, antes de mais, cumpre assinalar que o texto da decisão recorrida contém um manifesto lapso de escrita, por aí se mencionar que o arguido nasceu em “../../2006” [tal como já constava da acusação deduzia pelo Ministério Público], quando do seu Certificado Do Registo Criminal resulta que o mesmo nasceu em ../../2006 [cf. CRC juntos aos autos em 11.11.2022, 16.12.2023 e 01.03.2024].
Tal discordância numérica não deixa de ser um erro de transposição, um verdadeiro lapsus calami, que este Tribunal ad quem rectifica ao abrigo do disposto no artigo 380º, nº 1. alínea b) e nº 2 do Cód. Processo Penal.
Por conseguinte, onde se lê na sentença “nascido a ../../2006” deve passar a ler-se: nascido a ../../2006.
Ultrapassa esta questão de natureza formal, vejamos, então, o caso em apreço.
Importa salientar que o objecto do recurso se circunscreve apenas aos factos praticados pelo arguido em 25.03.2022 e pelos quais o mesmo foi condenado em 100 (cem) dias de multa pela prática de um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154º, n.º 1, do Código Penal.
Ora, independentemente de a factualidade apurada apontar para o cometimento de um facto ilícito-típico, susceptível de integrar a prática de um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154º, nº 1, do Código Penal, a verdade é que, para existir responsabilização jurídico-penal do agente, não basta a realização por este de um tipo de ilícito (facto humano antijurídico e correspondente ao tipo legal) antes se torna necessário que aquela realização lhe possa ser censurada como culpa[2].
O juízo de culpabilidade tem por conteúdo a censura por um comportamento não ter sido como poderia ser, ou seja, conforme o direito, considerando-se que o sujeito devia agir de acordo com a norma porque podia actuar de acordo com ela.
Tal pressupõe, evidentemente, que o agente actue com plena consciência e liberdade de vontade ⸺ isto é, disponha de autonomia decisória⸺ pois só assim se pode considera-lo responsável por praticar o facto.
No presente caso, sem prejuízo de os factos em causa serem passíveis de integrar o mencionado ilícito criminal, como se alcança dos autos, o arguido era à data dos factos menor de 16 anos, pelo que não podia ser responsabilizado criminalmente.
Com efeito, o artigo 19º do Código Penal prevê que “Os menores de 16 anos são inimputáveis”, definindo, assim, pela negativa, quem tem capacidade de culpa, isto é, quem for inimputável não é susceptível de um juízo de culpa-penal, logo, não poderá ser julgado como um adulto.
A responsabilização criminal exige uma acção penalmente relevante, simultaneamente típica e ilícita, e que sobre o agente do crime recaia um juízo de censura, ou seja, uma culpa concreta do agente, dolosa ou negligente.
Ora, consistindo a culpa no juízo de censura dirigido ao agente pelo seu facto ilícito, quando aquele agente, por razões de ser menor de 16 anos, não tem capacidade de se motivar e de escolher agir segundo a licitude, não lhe poderá ser dirigido aquele juízo de censura pelos factos que praticou, uma vez que não terá consciência de ilicitude dos seus factos.
A capacidade de culpa atribui-se ao indivíduo que conhece (ou deveria conhecer) as exigências do Direito, entendendo, assim, o legislador que apenas a partir dos dezasseis se é penalmente imputável.
A opção político-criminal do legislador decorre da presunção legal de que o menor de dezasseis anos não possui desenvolvimento biopsicológico, social e estrutural para entender os seus comportamentos e acções e/ou para orientar as suas atitudes de acordo com essa compreensão.
No caso, o Tribunal a quo não tomou em consideração o facto de o arguido à data da prática dos factos [25.03.2022] ser menor de 16 anos de idade [informação que consta dos autos e, não obstante o lapso de escrita, já emerge da própria sentença recorrida], o que conduziu a sua condenação no processo, embora o mesmo não fosse passível de um juízo de censura pelos factos e, consequentemente, a pena que lhe foi aplicada não tinha suporte axiológico-normativo, concretamente por a culpa estar legalmente excluída, nos termos do artigo 19º do Código Penal.
Pois bem, significa isto que o Tribunal não valorou correctamente os factos ⸺ que já constavam dos autos aquando do julgamento, conforme resulta do auto de notícia, da acusação pública, e dos vários CRC do arguido juntos ⸺ e, nessa medida, percepcionando incorrectamente a realidade, incorreu num manifesto erro de direito ao não declarar o arguido inimputável, em razão da idade, nos termos do artigo 19º do citado código, quanto aos factos praticados em 25.03.2022.
Deste modo, considerando que os autos contêm todas as informações relativas à idade do arguido [nascido a ../../2006], impõe-se, sem mais delongas, declarar o mesmo inimputável, em razão da idade, em virtude de à data da prática dos factos [25.03.2022] o arguido ser menor de 16 anos.
Nestes termos, impõe-se declarar o arguido inimputável, em razão da idade, para a prática do ilícito-típico, ocorrido em 25.03.2022, e pelo qual foi condenado e indevidamente acusado.
Deste modo, considerando que os autos contêm todas as informações relativas à idade do arguido [nascido a ../../2006], impõe-se, sem mais delongas, declarar o mesmo inimputável, em razão da idade, para a prática do ilícito-típico, ocorrido em 25.03.2022, pelo qual foi condenado e indevidamente acusado.
Porém, resultando da decisão recorrida que o arguido foi ainda condenado em “90 (noventa) dias de multa pela prática de um crime de coacção, praticado em 12.08.2022, previsto e punido pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal” ⸺ data em que já era imputável e, consequentemente, penalmente responsável, há que extrair as devidas ilações do supra decidido a respeito da inimputabilidade do arguido no que tange aos factos ocorridos em 25/3/2022, o que passará por desfazer o respectivo cúmulo jurídico que englobou estes factos e os posteriormente ocorridos em 12.08.2022, mantendo-se apenas a sua condenação na referida pena parcelar de 90 dias de multa, à taxa diária de €5,00.
De igual modo resultando também da decisão recorrida que a condenação do arguido/demandado no pedido de indemnização civil formulado pelo demandante englobou os factos ocorridos no mencionado dia 25/3/2022, impõe-se, também, nesta sede, retirar as devidas ilações, o que passará por reduzir, em conformidade, o montante indemnizatório fixado pelo tribunal recorrido a título de danos não patrimoniais, julgando-se agora mais adequado e equitativo o valor de €100,00 (cem euros).
O recurso é, assim, procedente nos mencionados termos.
V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, decide-se:
a) Rectificar o lapso de escrita constante da sentença recorrida a respeito da data de nascimentos do arguido, de modo a que onde se lê arguido “nascido a ../../2007”, passe a ler-se “nascido a ../../2006”.
b) Revogar a decisão recorrida na parte em que condenou o arguido pelos factos ocorridos em 25.03.2022, declarando-o agora inimputável, em razão da idade, para a prática do ilícito-típico respectivo.
c) Manter a decisão recorrida no que concerne à condenação do arguido em “90 (noventa) dias de multa pela prática de um crime de coacção, praticado em 12.08.2022, previsto e punido pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal (..), à taxa diária de € 5,00”.
d) Alterar o decidido no que respeita à condenação do arguido/demandado no pagamento a CC da quantia de € 200,00 (duzentos), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, a qual se reduz agora para o montante de €100,00 (cem euros).
Sem tributação.
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Coimbra, 28 de Maio de 2025.
Capitolina Fernandes Rosa
(Juiz Desembargador Relatora)
Maria de Fátima Sanches Calvo
(Juiz Desembargador Adjunta)
Cândida Martinho
(Juiz Desembargador Adjunta)
[1] Da transcrição da decisão recorrida foram eliminadas as notas de rodapé.
[2] Cf. Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, 1Vol.Rei dos Livros, 1995, pág.177.