NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA
FALTA DE DESCRIÇÃO DO ELEMENTO SUBJECTIVO
ABSOLVIÇÃO
Sumário

1 - A imputação do elemento subjetivo deve constar da decisão administrativa de forma, clara, concreta, - e não através de menções de direito conclusivas, -não só porque não é indiferente o grau de culpa determinante da conduta, mas acima de tudo porque desse mesmo grau depende muitas vezes a determinação da coima aplicável.
2 - Ainda que se esteja perante uma pessoa coletiva (e não perante uma pessoa física), tal não dispensa a alegação de factos dos quais se possa concluir a imputação subjetiva, seja a título de dolo, seja a título de negligência, não sendo exigida, para a respectiva responsabilização pelo cometimento de uma contraordenação, a indicação das pessoas singulares representantes da pessoa coletiva que concretamente cometeram a infração.
3 - A decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contraordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal para as decisões condenatórias.
4 - A nulidade da decisão administrativa, decorrente da omissão de descrição quanto aos factos do tipo subjetivo, tem como consequência a absolvição da arguida.

Texto Integral

Relator: Cândida Martinho
Adjuntos: Helena Lamas
Maria Teresa Rocha Coimbra

            Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            I-Relatório

1.

Por decisão administrativa proferida pelo Centro Nacional de Cibersegurança, no âmbito do processo de contraordenação nº...9, veio o Município de ... a ser condenado no pagamento de uma coima única no valor de 10.000,00€ (dez mil euros), pela violação:

-i. do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 65/2021, de 30 de julho, conjugado com o artigo 2.º do Regulamento n.º 183/2022, de 21 de fevereiro;

 ii. do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 65/2021, de 30 de julho, conjugado com o artigo 3.º do Regulamento n.º 183/2022, de 21 de fevereiro;

iii. do nº 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 65/2021, de 30 de julho, conjugado com os n.ºs 3 e 4 do artigo 4.º do Regulamento n.º 183/2022, de 21 de fevereiro;

 iv.do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 65/2021, de 30 de julho, conjugado com o artigo 5.º do Regulamento n.º 183/2022, de 21 de fevereiro.

 

2.

Não se conformando com tal decisão administrativa, o Município de ... veio deduzir impugnação judicial, a qual veio a dar origem aos presentes autos com o 6/24.... que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Nelas, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, nos quais, por despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 64º, nº2 do Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, datado de 23/7/2024, veio a decidir-se no sentido de “declarar nula a decisão recorrida, por violação do disposto no artigo 58.º, n.º 1, b) do DL 433/82, de 27 de outubro e, em consequência, absolve-se o recorrente Município de ...”.


*

3.

Não se conformando com o decidido, veio o Ministério Público interpor o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso versa sobre a sentença absolutória proferida pelo Tribunal a quo, que declarou nula a decisão administrativa, por entender que não se encontra descrito o elemento subjetivo, entendendo que se encontrava violado o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do DL 433/82, de 27 de outubro, abordando-se, no presente recurso, os seguintes pontos: (in)existência na decisão administrativa condenatória da factualidade atinente ao elemento subjetivo da contraordenação, e em caso de ocorrência dessa omissão, qual a sua consequência jurídica.

2. A Presidência do Conselho de Ministros, Gabinete Nacional de Segurança, Centro Nacional de Cibersegurança decidiu condenar a arguida, na coima única de € 10.000,00 (dez mil euros), pela prática de várias contraordenações nos termos dos artigos 4.º, 5.º, 6.º n.º 3 e 8.º do Decreto-Lei n.º 65/2021 de 30 de julho, conjugados, respetivamente, com os artigos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º do Regulamento n.º 183/2022, de 21 de fevereiro e artigos 23.º e 25.º da Lei n.º 46/2018 de 30 de julho.

3. Nos termos do preceituado na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do DL 433/82, de 27 de outubro “A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: b) A descrição dos factos imputados com indicação das provas obtidas”.

4. A decisão administrativa contém nos pontos 12 e 15 factos pelos quais se conclui que a arguida agiu negligentemente, em virtude de uma omissão de ação por parte da mesma, pois tinha a obrigação de conhecer os normativos legais que regulamentam o estatuto de operador de serviço essencial e ainda das circunstâncias do tipo legal das infrações em causa, bem como do seu sentido e significado.

5. O rigor da fundamentação imposto no processo de natureza contraordenacional não é (por regra) equivalente ao que é exigível no âmbito da sentença penal.

6. A arguida apresentou impugnação judicial, revelando perfeita compreensão dos factos que lhe foram imputados e do título a que o foram na decisão administrativa, ficando desta forma assegurado o exercício do direito de defesa.

7. Em face de tudo o exposto, e com todo o respeito por entendimento contrário, resulta que a decisão administrativa contém todos os elementos de facto e de direito, conforme estipula o artigo n.º 1 do artigo 58.º do DL 433/82, de 27 de outubro.

8. A decisão do Tribunal a quo violou as normas dos artigos 1.°, 8.°, n.° 1, 41.°, 58.°, 62.°, n.° 1, do DL 433/82, de 27 de outubro, artigos 13.°, 14.° e 15.°, do Código Penal e artigos 283.°, n.° 3, 374.° e 379.° do Código de Processo Penal e artigos 4.º, 5.º, 6.º n.º 3 e 8.º do Decreto-Lei n.º 65/2021 de 30 de julho, conjugados, respetivamente, com os artigos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º do Regulamento n.º 183/2022, de 21 de fevereiro e artigos 23.º e 25.º da Lei n.º 46/2018 de 30 de julho.

9. Neste conspecto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho do Tribunal a quo, ora recorrido, porquanto a decisão administrativa não padece de qualquer nulidade nem de qualquer outro vício, devendo, em consequência os autos prosseguirem a sua normal tramitação, sendo ordenada a prolação de decisão que conheça do mérito da impugnação judicial apresentada pela arguida.

10. Caso assim não se considere, e concordando-se que a decisão administrativa proferida padece, do vício invocado, uma vez que tal vício é sanável, deverá ser ordenado o envio do processo à autoridade administrativa com vista à prolação de nova decisão, para suprimento dessa nulidade.

11. Caso contrário, verifica-se a violação do disposto nos artigos, 41.º e 58.º do DL 433/82, de 27 de outubro e artigos 122.º, nºs 1 e 2, 311.º, 2, alínea a), 374.º e 379.º, todos do Código de Processo Penal ex-vi artigo 73º, nº 1 e 74º, nº 1, do DL 433/82, de 27 de outubro e artigos 4.º, 5.º, 6.º n.º 3 e 8.º do Decreto-Lei n.º 65/2021 de 30 de julho, conjugados, respetivamente, com os artigos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º do Regulamento n.º 183/2022, de 21 de fevereiro e artigos 23.º e 25.º da Lei n.º 46/2018 de 30 de julho.

12. Pelo que, deve o presente recurso ser considerado procedente, por provado, e, em consequência, ser revogada a sentença, pugnando pela sua substituição por outra que devolva os autos à entidade administrativa com vista à sanação da declarada nulidade.

            4.

            O Município de ... veio responder ao recurso, concluindo pela sua improcedência nos seguintes termos:

            “1-Adecisão administrativa padece de vícios formais susceptíveis de gerar a nulidade de tal acto, designadamente quanto à imputação dos factos, à modalidade da culpa e a respectiva subsunção dos factos às normas violadas.

2 - Da análise do auto que deu origem ao processo de contraordenação não consta qualquer facto relativo ao sujeito ou agente que supostamente praticou ou representou os factos, não fazendo a imputação subjectiva a qualquer agente.

3-Carece igualmente o auto dos elementos subjectivos do facto, isto é, da representação do tipo a título de dolo ou negligência, para se concluir da intenção ou do conhecimento por parte do agente do dever que sobre ele impendia e consequente acção ou omissão e conformação em obediência ao mesmo.

4-Do mesmo só consta imputações genéricas, vagas e imprecisas, sem identificação do agente e remissão, sem imputação subjectiva, para a norma supostamente violada.

5 - No direito penal e contra ordenacional, não há lugar a formas vagas e imprecisas, mas sim a certeza e segurança, aliadas ao principio da tipicidade penal, segundo o qual, ao agente deverá de forma objectiva e subjectiva, imputar a representação de facto típico e consciência da sua ilicitude e culpabilidade.

6 -Nulidade da decisão administrativa que deverá manter-se inalterada”.

5.

A Exma Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação veio pugnar pela procedência do recurso, remetendo para os argumentos nele já aduzidos.

6.

Foi observado o disposto no nº2 do art.417º do C.P.P, não tendo sido apresentada qualquer resposta ao parecer.

7.

Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado n art.419º, nº3, al. c), do diploma citado, cumprindo agora decidir.        

II. Fundamentação


A) Delimitação do objeto do recurso

Cumpre apreciar e decidir, sendo que em matéria de contraordenações, o Tribunal da Relação funciona como Tribunal de revista, conhecendo apenas da matéria de direito - art. 75, nº1, do D.L. 433/82, de 27/10, sem prejuízo da apreciação dos vícios referidos no art. 410º, nº2, do C.P.P. e das nulidades que não devam considerar-se sanadas.

Tendo em conta o teor das conclusões do recurso, a questão a decidir prende-se com a nulidade da decisão administrativa por falta de descrição do elemento subjetivo e suas consequências.

B) Decisão Recorrida

            “(…)    

           

NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA

Decorre da leitura da decisão administrativa em análise que a mesma não elenca os factos provados.

A única referência aos factos é a que consta do ponto 5 e para registar que se consideram provados os factos constates do auto de contraordenação.

Isto é, a decisão administrativa não especifica factos suficientes passíveis de integrarem os elementos subjetivos associados à prática do ilícito contraordenacional em causa e que qualifica como negligente.

Ora, tal circunstância importa, na perspetiva deste Tribunal, e salvo o devido respeito por opinião contrária, a nulidade da decisão administrativa de aplicação de coima, proferida nos presentes autos de contraordenação, por falta de fundamentação nos termos dos artigos 58.º, n.º1 e 41.º do RGCO e 374.º, n.º 1, a) e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP.

Vejamos com outro detalhe as razões de tal entendimento.

Dispõe o artigo 58.º, n.º 1, b) do DL 433/82, de 27 de outubro, legislação subsidiária de contraordenações, que “a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: (…) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas (…)”.

Os factos que constituem a prática punível de uma infração contraordenacional devem, assim, abranger a parte objetiva, material da conduta, mas também a parte subjetiva, da culpa, pois que só pode ser punido quem agir com dolo ou, nos casos especialmente previstos, por negligência (artigo 8.º, n.º 1 do DL 433/82, de 27 de outubro).

Porém, como se referiu, depois de lida a decisão sub judice não se antolha a indicação dos concretos factos dados como provados e, nessa medida, a existência de descrição factual suficiente para formular um juízo de subsunção à norma que prevê a infração no que respeita ao seu elemento subjetivo.

            Na verdade, a decisão administrativa é insuficiente – na matéria de facto – quanto ao referido elemento.

            Com efeito, não resulta da decisão qualquer facto que permita concluir que o arguido atuou com culpa ou sequer com negligência.

            E pese embora não se ignore que o dever de fundamentação no âmbito dos processos contraordenacionais não seja tão exigente quanto o é nos processos de natureza criminal, a realidade é que isso não pode equivaler a uma ausência da indicação dos factos.

            Nesse sentido, veja-se Victor Sequinho ao referir que “apesar de a impugnação judicial da decisão do artigo 58.º do RGCO dar origem a um julgamento em primeira instância, não sendo, por isso, um recurso em sentido estrito, é indispensável que aquela decisão seja devidamente fundamentada de facto, desde logo para que seja idónea para cumprir uma das suas funções primordiais na fase judicial - delimitar o objecto do processo” .

Tais considerações, valem segundo este autor, “quer para os factos que integram o tipo objectivo, quer para aqueles que integram o tipo subjectivo. Todos e cada um deles são necessários para fundamentar a condenação” - sublinhado nosso.

            Na jurisprudência, veja-se o recentíssimo acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 10.05.2023, relatora Exma. Sra. Desembargadora Dra. Ana Carolina Cardoso, ao sumariar, de forma absolutamente cristalina, que “para a efetivação do direito de audição estabelecido no artigo 50.º do RGCO, o arguido tem de ter conhecimento da descrição dos factos imputados, o que implica a “descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento contraordenacionalmente relevante e essa descrição deve contemplar a caraterização, objetiva e subjetiva, da ação ou omissão de cuja imputação se trate”. II – O artigo 8.º do RGCO consagra o princípio da culpa, pelo que o elemento subjetivo do ilícito terá de incluir-se na decisão administrativa, pois só assim resulta assegurado o exercício efetivo do direito de defesa. III – Nunca a ausência de factos integradores do elemento subjetivo da contraordenação, quer no auto de notícia, quer na decisão administrativa, quer na sentença de 1ª instância, poderá ser suprida, por força do princípio da vinculação temática que também vigora no processo contraordenacional, não sendo, pois, admitida a integração de novos factos” – itálico, destacado e sublinhado nosso.

No mesmo sentido, o Douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 21.06.2023, proferido no Processo n.º414/22.5T8TND.C1, relator Ex.mo Sr. Desembargador, Dr. José Eduardo Martins, ao registar na fundamentação do acórdão, além do mais, o seguinte: “ (….) Simplesmente a conclusão de que há negligência tem que assentar em factos concretos e não em afirmações conclusivas, não devendo ser considerado que tal mera alusão sirva para colmatar/completar a deficiência prévia existente. Pela sua pertinência relativamente à questão que merece agora a nossa atenção, entendemos, por bem citar o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 19/11/2020, Processo n.o 351/19.0T8MBR.C1, relatado pela Exma. Desembargadora Maria José Nogueira, in www.dgsi.pt:  “(…) Se se nos afigura incontestável não conterem os factos que foram dados por provados na decisão administrativa os elementos subjetivos da infração contraordenacional, também transparece inequívoco que a decisão, globalmente considerada, é tudo menos esclarecedora no que a tal respeita. Na verdade, não é a afirmação, em sede de direito, do dolo eventual, que resolve a disfunção detetada nas precedentes e subsequentes considerações sobre a falta de dever de cuidado, da diligência devida com vista à recolha da informação que evitaria a prática da infração.

Temos por pacífico que também a matéria relativa ao elemento subjetivo do ilícito terá de incluir-se na decisão administrativa, pois só assim resulta assegurado o exercício efetivo do direito de defesa, o qual apenas «poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão.» - [cf. Simas Santos e Lopes de Sousa, in-Ordenações, Anotações ao Regime Geral artigo 58.o].

Também vimos entendendo que o rigor da fundamentação imposto no processo de natureza contraordenacional não é (por regra) equivalente ao que é exigível no âmbito da sentença penal (artigo 374.o, n.o 2 do CPP) e isto no essencial pelas razões assim apontadas no acórdão do TRC de 12.07.2011 (proc. n.o 990/10.5T2OBR.C1): «por um lado, porque esta é uma decisão administrativa, que não se confunde com a sentença penal, como o ilícito contraordenacional não se confunde com o ilícito penal (são realidades distintas, revestindo a sentença penal uma maior solenidade, tendo em conta, precisamente, uma supremacia dos interesses em causa); por outro, porque aquela decisão, quando impugnada, converte-se em acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial (art.o 62.o, n.o 1, do DL)».

Contudo, a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da contraordenação, o que sucede no caso em apreço. Com efeito, se ainda nos parece possível conviver com a sua consideração para além do âmbito (da parte reservada) dos factos provados, posto que decorra inequivocamente do texto da decisão, considerado no seu todo, a forma de realização, ao nível da culpa, do ilícito, já não se nos afigura tolerável a ambiguidade em que, neste domínio, incorre a decisão administrativa. Com a certeza exigível, em face do teor da mesma, alguém poderá ficar seguro (na vertente factual) de se estar perante uma imputação ao nível subjetivo a título de dolo ou, pelo contrário, a título de negligência? (…) no mesmo sentido, ver Acórdão do TRP, datado de 9/11/2022, Processo n.o 1004/22.8T9AVR-P1, relatado pela Exma. Desembargadora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt.” - itálico, destacado e sublinhado nosso.

            E percebe-se que assim seja, bastando, por exemplo, atentar que o arguido foi condenado numa coima de dez mil euros, isto é, penalizações elevadas que não se compadecem com fundamentações menos exigentes, sob pena de coartar o direito de defesa da pessoa diretamente afetada pela decisão.

Dito de outra forma, condenações com esta natureza devem ser devidamente justificadas para que os visados possam compreender com exatidão aquilo que lhes é imputado e bem assim os concretos motivos pelos quais são condenados em valores tão avultados.

E não obstante não se ignorar que na respetiva fundamentação a autoridade administrativa aduziu algumas considerações teóricas para justificar a imputação da respetiva conduta ao arguido/recorrente, certo é que tais asserções são, com o devido respeito, conclusivas e genéricas, ao invés de assentarem em factos concretos, como se impunha e que constassem devidamente individualizados da decisão.

            Além disso, importa notar que a circunstância de o arguido/recorrente exercer e estar sujeito a atividades reguladas por lei, não permitem, sem mais, asseverar o preenchimento do elemento subjetivo, ficando-se, na realidade, por perceber como e com que fundamento é que a autoridade administrativa exarou tal conclusão.

            Na verdade, porque é que a autoridade administrativa concluiu que o arguido agiu com negligência e não com dolo?

            A decisão administrativa não explica, com recurso a factos, e não a considerações genéricas, perceber como é que chegou a esta conclusão.

Impunha-se, pois, que a autoridade administrativa escrevesse e explicasse, por escrito, as concretas razões pelas quais considerou que o arguido atuou de forma negligente e bem assim indicasse, ponto por ponto, os concretos factos em que estribou essa sua afirmação.

            Outrossim, da leitura da decisão administrativa ficam por responder as seguintes questões essenciais:

            Estava o arguido em condições de conhecer as suas obrigações e não se certificou, como se impunha, das normas jurídicas violadas?

            Agiu o arguido de forma livre e consciente, mas não previu, quando estava em condições de prever a violação das normas que lhe são imputadas?

            Ora, como se viu, a decisão administrativa não permite, por recurso a factos, responder a nenhuma destas questões, pelo que afirmar que o arguido atuou a título de negligência constitui, com o devido respeito, um juízo de valor conclusivo e sem qualquer suporte factual.

            Pelo que retomando a doutrina que temos como correta quanto a estas matérias, tomamos a liberdade de citar o Exmo. Sr. Desembargador Dr. Beça Pereira ao sublinhar, em comentário à alínea b) do n.º1 do artigo 58.º do RGCOC, que “a decisão condenatória deve especificar quais os fatos que considera provados, bem como a prova de que eles resultam. Não deve a autoridade administrativa substituir essa descrição dos fatos, por conceitos jurídicos (nomeadamente os que constam da norma incriminadora) ou por expressões conclusivas”  – como sucede na decisão em análise.

Por outro lado, mas não menos relevante, neste tipo de situações, em que está em causa a condenação de uma pessoa coletiva, impõe-se também apurar o tipo de atuação da pessoa ou pessoas singulares responsáveis pela pessoa coletiva, para saber se a pessoa coletiva agiu a título de dolo ou a título de negligência, na medida em que existe uma incontornável e inevitável conexão entre o tipo de imputação subjetiva referente à pessoa coletiva e o tipo de imputação subjetiva referente à pessoa singular responsável por esta.

Isto porque, no âmbito da lei penal e contraordenacional portuguesa, a imputação da responsabilidade sancionatória a entidades coletivas, nomeadamente, no que diz respeito à imputação subjetiva, funda-se numa conceção derivada ou reflexa que reproduz o tipo de culpa da pessoa singular que é, nas concretas circunstâncias de tempo e espaço em causa, responsável pela pessoa coletiva.

Também no RGCOC o modelo de imputação da responsabilidade sancionatória das entidades coletivas é em tudo idêntico àquele que o Código Penal consagra no n° 2, do seu artigo 11°.

De facto, preceitua o n.º 1 do artigo 7.º do RGCOC que “as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas, bem como às associações sem personalidade jurídica”.

Todavia, acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito legal que “as pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”.

Isto é, a responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas depende necessariamente da verificação cumulativa de três condições:

            Prática e/ou omissão de ato que constitua contraordenação;

            Esse ato seja praticado/omitido por algum dos seus órgãos; e, por último,

            No exercício das suas funções.

            Flui, pois, das assinaladas normas uma conexão entre o tipo de imputação subjetiva referente a pessoa coletiva e o tipo de imputação subjetiva referente a pessoa singular que atue no exercício das suas funções, de tal forma que a imputação subjetiva, enquanto momento irrenunciável da determinação da responsabilidade sancionatória, há de ser feita em função da determinação do dolo ou da negligência da(s) pessoa(s) singular(es) que a representavam, à data dos factos, operando, assim, tal imputação em termos reflexos.

            Tudo, pois, para referir que a determinação do elemento do tipo subjetivo concretamente imputado a uma pessoa coletiva implica, salvo o devido respeito por opinião contrária, a determinação - fundada, obviamente, num substrato factual que a sustente - do título de imputação subjetiva, seja ele dolo ou negligencia, da(s) pessoa(s) singular(es) que atue(m) enquanto titular(es) de um cargo da pessoa coletiva.

            E para tanto, torna-se necessário que se apurem e demonstrem factos que permitam afirmar tal imputação e, depois, possibilitem a sua subsunção ao conceito de culpa.

            Com efeito, neste tipo de análise, em que está em causa a atuação de uma pessoa coletiva, impõe-se sempre apurar a intervenção da pessoa singular cuja atividade deva juridicamente analisar-se como sendo a da pessoa coletiva, pois só assim se poderá apreciar o tipo de atuação desta última.

            A atuação de uma pessoa coletiva (entendida como uma entidade não física ou, como Germano Marques da Silva as categorizou, um “ser descarnado” ) realiza-se, sempre e necessariamente, por representação de uma ou mais pessoas físicas qualificadas de órgãos ou de representantes.

            Muito embora não se ignore a posição daqueles que entendem desnecessário o apuramento desta relação no âmbito da responsabilidade contraordenacional, propendemos, porém, com o devido respeito, para a posição daqueloutros que consideram que a imputação da responsabilidade sancionatória às entidades coletivas deve assentar num modelo de imputação reflexa que, ao nível da imputação subjetiva, determina que tenha que ser apreciada a verificação dos elementos subjetivos do tipo quanto às pessoas singulares que atuem como titulares de órgãos ou como seus representantes.

            A este propósito, veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no âmbito do Processo n° 6334/11.1TBMAI.P1, de 21.03.2013, ao sumariar que “a responsabilidade das pessoas coletivas ou equiparadas por contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções [art. 7º, nº 2 do D.L. n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCOC)] depende da alegação e prova de que o facto tipicamente ilícito e culposo foi cometido por titular do órgão ou por outrem no estrito cumprimento de instruções ou ordens de serviço por aquele determinadas quer de modo geral e abstrato, quer individual e concretamente”.

            A responsabilidade contraordenacional imputada ao arguido dependia, assim, da verificação e densificação dos elementos de facto que permitissem concluir pela imputação subjetiva do tipo contraordenacional em causa à pessoa singular que, à data dos factos, atuava como titular e/ou responsável pela pessoa coletiva.

            Porque não resultam densificados na decisão recorrida e, muito menos, demonstrados os elementos de facto que permitam concluir pela imputação subjetiva do tipo à/s pessoa/s singular/es que atuou/atuaram em representação da arguida relevantes para efeitos desta matéria, entende-se que a mesma é nula, pelas referidas razões.

            De modo que, em razão de tudo quanto antecede, afigura-se-nos, salvo melhor e avisado saber, que a conclusão que se impõe é sempre a mesma: a decisão não permite imputar subjetivamente à arguida a contra-ordenação pela qual vem condenada.

            Pelo que, aqui chegados, e por se entender que tal lacuna não é passível de ser colmatada nesta fase, considera-se a referida decisão nula e, nessa medida, sem qualquer efeito - nos termos do disposto nos artigos 379.º do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 41.º do RGCO”.

           

C)Apreciação do recurso

Decorre da decisão administrativa que a Câmara Municipal de ... foi condenada pela prática de quatro contraordenações, nos termos dos artigos 4.º, 5.º, 6.º n.º 3 e 8.º do Decreto-Lei n.º 65/2021 de 30 de julho, conjugados, respetivamente, com os artigos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º do Regulamento n.º 183/2022, de 21 de fevereiro e artigos 23.º e 25.º da Lei n.º 46/2018 de 30 de julho,  porquanto, tendo sido notificada no dia 31 de janeiro de 2023, pelas 12h00,  na qualidade de operador de serviço essencial, no âmbito de aplicação do regime jurídico da segurança do ciberespaço, não procedeu ao cumprimento  das respetivas obrigações nos prazos estabelecidos na legislação em vigor, mais concretamente, à designação e comunicação ao Centro Nacional de Cibersegurança de ponto de contato permanente (…), à designação e comunicação ao Centro Nacional de Cibersegurança de responsável  de segurança  (…), à elaboração e comunicação ao Centro Nacional de Segurança de lista de ativos (…), à elaboração e comunicação ao Centro Nacional de Cibersegurança de relatório anual (…), pelo que verificada a falta de cumprimento por parte da referida entidade das obrigações legais  a que se encontrava adstrita, veio a ser condenada, respetivamente, em quatro coimas de €5.000 (cinco mil euros), nos termos dos artigos 23º da Lei nº46/2018, de 13 de agosto e  nº1do artigo 21º do D.L 65/2021, de 30 de julho, e, em cúmulo jurídico, na pena única de €10.000 (dez mil euros).

            Sem que nela mais se fizesse constar factualmente, para além da menção à falta de cumprimento das referidas obrigações legais a que a arguida se encontrava adstrita, veio a concluir-se na decisão administrativa  que com a conduta descrita mostram-se “preenchidos os elementos típicos das condutas que integram as contraordenações em análise, que permitem qualificar a conduta da arguida como negligente (na forma de negligência consciente), nos termos conjugados do nº1, do artigo 8º do Decreto-Lei nº433/83, de 27 de outubro, e dos artigos 23º e 25º da Lei nº46/2018, de 13 de agosto e do nº1 do artigo 21º, do Decreto-Lei nº65/2021, de 30 julho, pois enquanto operador de serviço essencial, para efeito de aplicação do Regime Jurídico da Segurança do Ciberespaço, não ignorava os deveres inerentes a este Regime Jurídico”.      

Como decorre das conclusões apresentadas, a razão de discordância do Ministério Público com a decisão recorrida prende-se com a declaração de nulidade da decisão administrativa, ao abrigo do disposto no artigo 58º,nº1,al.b), do D.L. 433/82, de 27 de outubro, por nela se ter entendido não se encontrar descrito o elemento subjetivo das contraordenações imputadas à ora arguida Câmara Municipal de ....

Sustenta  o recorrente, na sua 4ª conclusão, que ao contrário do que se refere na decisão recorrida, a decisão administrativa contém nos seus pontos 12 e 15  a descrição do elemento subjetivo das contraordenações em causa, porquanto neles se conclui que a arguida “agiu negligentemente, em virtude de uma omissão de ação por parte da mesma, pois tinha a obrigação de conhecer os normativos legais que regulamentam o estatuto de operador de serviço essencial e ainda as circunstâncias do tipo legal das infrações em causa, bem como do seu sentido e significado”.

            Vejamos então se em face da descrição fáctica vertida na decisão administrativa a razão está do lado do recorrente.

            Adiantando a nossa conclusão, cremos que não.

Prescreve o artigo 1º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, que “Constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”.

Por sua vez, estatui o art. 8º, nº1, desse mesmo diploma, que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.

Da conjugação destes preceitos legais, parece-nos incontroverso que para que um facto constitua contra-ordenação, há de ser culposo – para além de típico e ilícito.

Pese embora a culpa no domínio das contraordenações não esteja baseada numa censura ética, como a jurídico-penal, ela não deixa de ser um elemento subjetivo indispensável à punição.

Tal como sucede com o direito penal, também em matéria de direito contraordenacional inexiste punibilidade sem culpa do agente (dolo ou negligência), sem que sobre este se possa realizar um juízo de censurabilidade. 

O conceito de dolo e de negligência são fornecidos, respetivamente, pelos artigos 14º e 15º do Código Penal, aplicáveis por força do disposto no artigo 32º do RGCO.

            Dispõe este último preceito legal que «Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal». E já em sede de regime adjetivo, dispõe o art° 41° do mesmo diploma que “1. sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal. 2. No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma".

No caso vertente, como resulta (conclusivamente) da decisão administrativa, a contraordenação foi imputada à arguida a título de negligência consciente.

No citado artigo 15º, prevêem-se duas formas de negligência: a consciente, descrita na alínea a), e a inconsciente, definida na alínea b). Comum a ambas é a existência da violação de um dever objetivo de cuidado ou diligência daí advindo um resultado típico que possa ser objetivamente imputado, sob um prisma de «causalidade adequada», à conduta descuidada do agente.

É a omissão desse dever de cuidado quando o agente se encontrava em condições objetivas e pessoais de o cumprir, como estava obrigado, que estriba a culpa do agente e justifica a censurabilidade da conduta.

A diferença consubstancia-se na circunstância de que enquanto na primeira forma (consciente) o agente prevê a possibilidade de ocorrência do facto tipificado como contra-ordenação – que não deseja que aconteça – mas confia que o mesmo não sucederá, quando as circunstâncias concretas com que se deparava e as regras da experiência comum impunham que não tivesse confiado, na segunda forma (inconsciente) o agente nem prevê a hipótese da ocorrência do facto, mas devia tê-la conjeturado, pois que a conduta levada a cabo é, habitualmente e em concreto, geradora daquele risco, exigindo a adoção de cuidado por banda de quem a adota de modo a obstar à concretização do resultado que a norma pretende evitar.

Como se sintetizou no Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 17.09.2014, proferido no proc. 150/12.0EACBR.C1, «I. A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa. II. O tipo objetivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objetivo de cuidado; a possibilidade objetiva de prever o preenchimento do tipo; e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado. III. A violação pelo agente do cuidado objetivamente devido é concretizada com apelo ás capacidades da sua observância pelo «homem médio». IV. A não observância do cuidado objetivamente devido não torna perfeito, por si própria, o tipo de ilícito negligente, antes importa que ela conduza a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do tipo. V. Para que exista culpa negligente, com preenchimento do tipo-de-culpa, necessário é ainda que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado. VI. Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta.»

            A respeito do modo como na decisão administrativa se fez menção à imputação subjetiva da conduta à arguida, aduziu-se na decisão recorrida o seguinte:

“(…) depois de lida a decisão sub judice não se antolha a indicação dos concretos factos dados como provados e, nessa medida, a existência de descrição factual suficiente para formular um juízo de subsunção à norma que prevê a infração no que respeita ao seu elemento subjetivo.

            Na verdade, a decisão administrativa é insuficiente – na matéria de facto – quanto ao referido elemento.

            Com efeito, não resulta da decisão qualquer facto que permita concluir que o arguido atuou com culpa ou sequer com negligência.

            E pese embora não se ignore que o dever de fundamentação no âmbito dos processos contraordenacionais não seja tão exigente quanto o é nos processos de natureza criminal, a realidade é que isso não pode equivaler a uma ausência da indicação dos factos.

            (…) não obstante não se ignorar que na respetiva fundamentação a autoridade administrativa aduziu algumas considerações teóricas para justificar a imputação da respetiva conduta ao arguido/recorrente, certo é que tais asserções são, com o devido respeito, conclusivas e genéricas, ao invés de assentarem em factos concretos, como se impunha e que constassem devidamente individualizados da decisão.

            Além disso, importa notar que a circunstância de o arguido/recorrente exercer e estar sujeito a atividades reguladas por lei, não permitem, sem mais, asseverar o preenchimento do elemento subjetivo, ficando-se, na realidade, por perceber como e com que fundamento é que a autoridade administrativa exarou tal conclusão.

            Na verdade, porque é que a autoridade administrativa concluiu que o arguido agiu com negligência e não com dolo?

            A decisão administrativa não explica, com recurso a factos, e não a considerações genéricas, perceber como é que chegou a esta conclusão.

Impunha-se, pois, que a autoridade administrativa escrevesse e explicasse, por escrito, as concretas razões pelas quais considerou que o arguido atuou de forma negligente e bem assim indicasse, ponto por ponto, os concretos factos em que estribou essa sua afirmação.

            Outrossim, da leitura da decisão administrativa ficam por responder as seguintes questões essenciais:

            Estava o arguido em condições de conhecer as suas obrigações e não se certificou, como se impunha, das normas jurídicas violadas?

            Agiu o arguido de forma livre e consciente, mas não previu, quando estava em condições de prever a violação das normas que lhe são imputadas?

            Ora, como se viu, a decisão administrativa não permite, por recurso a factos, responder a nenhuma destas questões, pelo que afirmar que o arguido atuou a título de negligência constitui, com o devido respeito, um juízo de valor conclusivo e sem qualquer suporte factual.

(…)”.

Revemo-nos nas considerações aduzidas.

De facto, compulsada a decisão administrativa, não vislumbramos na descrição da conduta omissiva imputada à arguida, traduzida no não cumprimento das obrigações legais decorrentes do Regime Jurídico da Segurança do Ciberespaço, qualquer juízo de censura, designadamente a título de negligência consciente (como conclusivamente se referiu), o qual não se pode bastar com a alegação que a arguida não ignorava os deveres inerentes ao referido regime jurídico.

Como refere Eduardo Correia, in Direito Criminal I, 1968, pág.421, a negligência é, antes de mais, “a omissão de um dever jurídico de cuidado ou diligência”.

“(…) a omissão de um dever jurídico de cuidado, adequado a evitar a realização do tipo legal de crime não justifica só por si, efetivamente, a censura a título de negligência. É ainda necessário que o agente possa ou seja capaz, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de prever ou de prever corretamente a realização do tipo legal de crime”.

Como já referimos, sustenta o recorrente, na sua 4ª conclusão, que a decisão administrativa contém nos seus pontos 12 e 15 (inexistem na decisão administrativa), a alegação do elemento subjetivo das contraordenações em causa.

Tal sustentação apenas se conceberá à luz de uma confusão entre o relatório da proposta de decisão (que não é uma decisão) com a decisão administrativa propriamente dita.

 Mas ainda que assim fosse, ou seja, ainda que se admitisse que tais pontos do relatório contivessem densificado tal elemento subjetivo (o que não corresponde à verdade, pois pouco mais vai além do que ficou a constar da decisão administrativa), convirá lembrar que a decisão administrativa em momento algum os reproduziu ou para eles remeteu, e daí que tal densificação nunca colmataria a omissão de que padece a decisão administrativa.

Em suma, outra solução não resta que concluir no sentido em que concluiu a decisão recorrida, ou seja, que a decisão administrativa não contém factos que permitam imputar à arguida um juízo de culpabilidade, designadamente a título de negligência consciente.

Temos para nós, na senda da jurisprudência dominante, que imputação do elemento subjetivo deve também constar da decisão administrativa de forma, clara, concreta, e não através de menções de direito conclusivas, não só porque não é indiferente o grau de culpa determinante da conduta, mas acima de tudo porque desse mesmo grau depende muitas vezes a determinação da coima aplicável.

Ainda que se esteja perante uma pessoa coletiva ( e não perante uma pessoa física), tal não dispensa, de modo algum, a alegação de factos, nos termos descritos, dos quais se possa concluir a imputação subjetiva, seja a título de dolo, seja a título de negligência, ainda que não se perfilhe do entendimento – defendido na decisão recorrida - de que tenham de ser indicadas as pessoas singulares representantes da pessoa coletiva infratora e responsáveis pelas infrações.

Como salientou Germano Marques da Silva, in Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e representantes, Verbo, 2009, pág. 161, as pessoas coletivas, ainda que incapazes de atividade física que as concretize, são dotadas de consciência e vontade próprias, devido à sua estrutura organizativa, sendo, pois, suscetíveis de culpa pela violação das normas que visam proteger os bens jurídicos de que são destinatárias.

            É essa atuação dos seus órgãos que cria a sua vontade, consciência e responsabilidade.

Como também salientaram Oliveira Mendes e Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas, Coimbra, Almedina, 2003 pág. 35, a sua vontade nasce do encontro das vontades individuais dos seus membros, vontade que se concretiza em cada etapa da sua vida através da reunião, voto e deliberação, vontade que é capaz de cometer factos típicos tanto como a vontade individual.

            O modo de expressão da pessoa coletiva traduz assim uma verdadeira vontade coletiva, capaz de dolo ou culpa visto que é suscetível de ser dirigida tanto para atividades lícitas como para atividades ilícitas e daí serem responsabilizadas e coimadas, sem que haja necessidade de identificar a pessoa concreta que agiu ou deixou de agir.

 Aqui chegados, concluindo-se que da decisão administrativa não evola a pertinente factualidade tendente à demonstração de que a arguida agiu negligentemente, impõe-se determinar qual a consequência jurídico-penal nos casos, como o presente, em que a autoridade administrativa omite na descrição factual os elementos subjetivos da infração.

Considerou-se na decisão recorrida, e bem, que tal decisão administrativa violou o disposto no artigo 58º, al. b), do RGCO, do qual decorre, para além do mais, que a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter, para além do mais, a descrição dos factos imputados, violação essa que por aplicação do artigo 379º, nº1, al. a) do CPP, ex vi do artigo 41º do RGCO, entendeu dever conduzir à nulidade da decisão administrativa, nulidade esta que tendo sido decorrente da omissão de descrição quanto aos factos do tipo subjetivo, teve como consequência a absolvição da arguida.

A questão da consequência da nulidade da decisão administrativa, designadamente por omissão dos factos integradores do ilícito contraordenacional - e no caso concreto está em causa a omissão do elemento subjetivo - não tem sido pacífica, defendendo o recorrente, para a hipótese de se concluir pela nulidade da decisão administrativa que tal não deverá conduzir à absolvição da arguida, mas antes à remessa dos autos à autoridade administrativa com vista à respetiva sanação.

Respeitando tal entendimento, seguimos, porém, o perfilhado no acórdão desta Relação de Coimbra, trazido à liça na decisão recorrida (Ac. de 11/11/2020 (e não 19/11/2020), proferido no proc.351/19.0T8MBR.C1) e por esta seguido, acórdão esse no qual, após exposição dos entendimentos que vêm sendo defendidos, se veio a concluir pela absolvição da arguida ( o mesmo entendimento foi seguido no acórdão desta Relação de Coimbra proferido no passado dia 14 de maio, no âmbito do proc.145/24.1T9NLS.C1).

Limitamo-nos a trazer à liça o acórdão do STJ de 29/1/2007 (proc.nº06P3202), trazido à liça no citado acórdão de 11/11/2020.

“A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58.º, n.º 1 do RGCOC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.

A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão – sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material – tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41.º do RGCOC sobre “direito subsidiário”, que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.

Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contra-ordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias.

(…) Não estando integrados os elementos da tipicidade da contraordenação referida pela decisão administrativa, a consequência terá de ser a absolvição.”

Se quisermos estabelecer o paralelo com o que sucede ao nível do processo criminal, equivalendo a decisão administrativa, quando judicialmente impugnada, à acusação, então temos de reconhecer que uma acusação manifestamente infundada, por omissa quanto à narração (completa) dos factos e que não obstante ultrapasse o crivo do artigo 311.º do CPP, mais tarde, realizado o julgamento, só pode conduzir à absolvição. Na verdade, sempre entendemos não ser possível na falta de descrição de todos os elementos do ilícito típico o tribunal socorrer-se dos institutos prevenidos nos artigos 358.º/359.º do CPP para transformar em crime aquilo que, à luz da acusação/pronúncia, o não era; pensamento este que resultou ainda mais fortalecido com a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador n.º 1/2015.

Dada a natureza sancionatória do processo por contraordenação, não se vislumbra motivo válido para que semelhante orientação não seja seguida no âmbito do mesmo, sendo certo que a questão não pode, ao nível das consequências ser encarada como o que se passa com os vícios, designadamente da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Trata-se de problemática que se coloca a montante do vício, produzindo um efeito /consequência) muito mais definitivo, no caso a absolvição.

Em boa verdade, a equivalência da decisão administrativa, se judicialmente impugnada, à acusação transporta-nos para a disciplina do artigo 283.º do CPP enquanto comina de nulidade a acusação que não contiver a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança; patologia esta, que, respeitando à ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime, não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, não se vendo razão para que o mesmo não seja aplicável ao ilícito contraordenacional”.

Em suma, sem necessidade de mais considerações, bem andou o tribunal recorrido ao concluir pela absolvição da arguida Câmara Municipal de ..., das contraordenações em que foi condenada pela decisão da autoridade administrativa.

III- Decisão

           

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Seção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra, julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Recurso sem tributação.

Coimbra, 28 de maio de 2025

            (Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP).