ESCUSA
JUIZ NATURAL
Sumário

1 - Não é suscetível de suscitar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz na boa administração da justiça, o facto de, em obediência a uma decisão de um Tribunal Superior, o referido Juiz ter proferido despacho de recebimento da acusação e - mantendo-se a sua intervenção nos autos, por razões de carácter orgânico e funcional, - ter de intervir, na qualidade de juiz presidente, na audiência de julgamento e prolação do acórdão.
2 - O pedido de escusa traduz num desvio ao princípio do juiz natural, que visa assegurar a isenção e independência de um Juiz quando toma uma decisão, só sendo admissível o afastamento do juiz natural quando este não ofereça garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função.
3 - O cumprimento de decisões proferidas por Tribunal de Recurso em sentido contrário ao do Juiz a quo, só por si, não constitui fundamento de escusa por não ser apto a gerar desconfiança da comunidade sobre a imparcialidade e isenção do Juiz no exercício da função.
4 - Se todos os casos em que o recurso interposto da decisão do Juiz obtém provimento, constituíssem motivo de escusa (ou de recusa) do magistrado, estaria encontrada a forma de impedir o andamento normal dos processos.

Texto Integral

Acordam, em Conferência, na 5. Secção do Tribunal – Criminal - da Relação de Coimbra

Relatório
O Meritíssimo Senhor Juiz de Direito Dr. AA, em exercício de funções no Juízo Central Criminal- Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, veio, nos termos do disposto no artigo 43.º nº. s 1 e 4 do Código Processo Penal, apresentar pedido de escusa de intervenção no processo comum coletivo 867/23.....
Em ordem a fundamentar tal pedido invocou, para tanto, o seguinte:
- “é titular do Proc. 867/23...., que lhe foi distribuído. Sucede que o signatário não recebeu a acusação aí deduzida, por considerar que os factos imputados não constituíam crime.
Nessa sequência, foi interposto recurso deste despacho, vindo o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra a anular tal decisão, determinando que a mesma fosse substituída por outra, que recebesse a acusação, decisão essa que o signatário acatou, como é seu dever, recebendo a acusação.
Não obstante, o signatário já formou um pré-juízo sobre a causa, ao entender não se estar perante a prática de um crime. Atenta tal circunstância, entende o signatário que presidir a esse julgamento, tendo já feito expressamente esse pré-juízo, é uma situação que corre o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade- cf. art. 43,0, n.0 1 e 4, do Código de Processo Penal.(…)”

Os presentes autos mostram-se instruídos com as peças processuais para a decisão de mérito, não se revela, por isso, necessária a produção de outras provas.

Nesta Relação, o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto entende que a pretensão deve ser indeferida.
     Foi efetuado exame preliminar, colhidos os vistos legais e realizada a conferência.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.

II - Apreciação do incidente de escusa.
A questão a dirimir, no presente incidente de escusa de juiz, consiste em aquilatar da verificação ou não de motivo de suspeição sobre a imparcialidade do Mmº. Juiz, para presidir à audiência de julgamento no processo comum coletivo nº 867/23...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Central Criminal, juiz 3.

Vejamos, então.

Consagra o artigo 203º da Constituição da República Portuguesa o princípio fundamental da independência dos Tribunais, aí se estatuindo que: “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei “.
Por sua vez, estabelece o artigo 32º, nº 9, da Constituição da República Portuguesa, que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.
O direito a um tribunal imparcial e justo, próprio de um Estado de direito democrático, é também reconhecido em instrumentos que integram o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, nomeadamente no artigo 6º. da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no artigo 14º. do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, no artigo 10º. da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 47º. da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Não obstante o legislador consagrar, como principio inalienável, o princípio do juiz natural ou legal, pressupondo tal princípio que intervém no processo o juiz a quem o processo foi distribuído, segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito, estabeleceu o seu afastamento em casos-limite, - artigos 39º e 40º, 426º-A e 43º a 45º do Código de Processo Penal-, ou seja, quando se evidenciem situações que ponham em causa a garantia de imparcialidade do juiz penal e da confiança dos sujeitos processuais e do público em geral nessa imparcialidade e independência.
Preconiza o artigo 43º, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Recusas e Escusas” que:

“1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.

 3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.

4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.os 1 e 2. (…)”
Como é sabido, a lei processual penal não define o que deve entender-se por “motivo sério e grave”, mas realça que ele terá que ser adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador.

A densificação que tem sido efetuada, pela doutrina e jurisprudência, desta cláusula geral atinente à imparcialidade de um juiz sublinha que deve ser delimitada numa dupla dimensão subjetiva e objetiva.

Na perspetiva subjetiva da imparcialidade do Juiz está relacionada com o que o Magistrado pensa no seu foro íntimo perante um determinado acontecimento da vida real. Nesta perspetiva se internamente o Magistrado Judicial tiver algum motivo para desfavorecer um sujeito processual em favor de outro, ou por outras palavras se tiver um preconceito sobre o mérito da causa, ocorrerá uma situação de parcialidade. A imparcialidade do Juiz presume-me nesta vertente.

No concernente à vertente objetiva a imparcialidade do Juiz encontra-se relacionada com o comportamento exteriorizado pelo Magistrado Judicial, apreciado do ponto de vista do cidadão comum e das dúvidas fundadas sobre a sua conduta.

Neste particular, realça o Acórdão do Tribunal Constitucional nº.935/96, in www.tribunalconstitucional.pt que: “ (…) Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de "administrar justiça". Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis. Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais, ao "administrar a justiça", actuem, de facto, "em nome do povo" (cfr. artigo 205º, nº 1, da Constituição)". (…) salienta Ireneu Barreto (cfr. Notas para um Processo Equitativo, Análise do Artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à Luz da Jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in Documentação e Direito Comparado nºs. 49/50, p. 114,115): "A imparcialidade do juiz pode ser vista de dois modos, numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos".
O fundamento invocado pelo Mmº. Juiz para alicerçar o seu pedido de escusa radica na circunstância da decisão que não recebeu o despacho de acusação ter sido revogada por acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra que determinou a substituição por outra que recebesse a acusação, por essa razão, entende que já formou um pré-juízo sobre a causa, o que é suscetível de criar uma suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade- cf. art. 43,0, n.0 1 e 4, do Código de Processo Penal. (…)”

Ora, como se vê, o Mmº. Juiz não manifesta ter qualquer relação com os sujeitos processuais, nenhum interesse pessoal no caso a julgar, suscetível de comprometer a sua imparcialidade, a qual, aliás, se presume existir.

Assim, o que releva decisivamente, neste quadro, é a possível imparcialidade do Mmº. Juiz, na dimensão objetiva, que pode afetar a imagem externa de garantia de isenção para o julgamento da causa.

Com efeito, tendo em linha de conta o juízo do homem médio, representativo da comunidade, não se vê que, no caso, o facto do Mmº. Juiz, em obediência a uma decisão de um Tribunal Superior, ter proferido despacho de recebimento da acusação e mantendo-se a sua intervenção nesses autos, por razões de carácter orgânico e funcional, terá de intervir, na qualidade de juiz presidente, na audiência de julgamento e prolação do acórdão, não é suscetível de suscitar desconfiança sobre a imparcialidade do Senhor Juiz na boa administração da justiça.

O afastamento do princípio do juiz natural, de consagração constitucional, só deve ocorrer perante motivos que, face à sua seriedade e gravidade, sejam objetivamente aptos a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, o que no caso não se verifica.
Dito isto, concluímos, pois, que as circunstâncias invocadas pelo Sr. Juiz de Direito não são de molde a constituir risco sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, pelo que se decide não conceder a escusa peticionada.


IV- Decisão.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes na 5º. Secção do Tribunal – Criminal - da Relação de Coimbra em indeferir o pedido de escusa formulado pela Sr.º Juiz de Direito Dr. AA, relativamente à sua intervenção no processo comum coletivo 867/23.....
Sem tributação.
Notifique e demais diligências necessárias, remetendo de imediato o processo à primeira instância.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que o presente acórdão foi elaborado pela relatora e revisto pelas signatárias.
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Coimbra, 28 de Maio de 2025

Maria da Conceição Miranda
Sandra Rocha Ferreira
Alcina da Costa Ribeiro