1 - Explicitados os diversos momentos e horários, desde a entrada ao serviço do militar da G.N.R., intercepção do condutor Arguido, até à realização do teste ao álcool por ar expirado (quer no aparelho qualitativo, quer no aparelho quantitativo) e por colheita sanguínea, não existe qualquer fundamento para desconsiderar o valor de alcoolemia detectado no IML.
2 - A prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez apenas pode ser provada através de prova pericial, mais propriamente, um teste quantitativo -, pois apenas desse modo se obtém, com a clareza e certeza necessárias, o valor real da taxa de álcool no sangue do condutor e agente infractor.
3 - No âmbito do artigo 126º do CPP, relativo aos métodos proibidos de prova, há que distinguir entre os procedimentos que são considerados absolutamente proibidos (n.ºs 1 e 2), interditos em qualquer circunstância, mesmo mediante consentimento do visado, e os que são relativamente proibidos, posto que se consente a sua admissão ou por via dos casos previstos na lei, onde se estabelecem as condições em que é permitido o constrangimento do direito, ou por via do consentimento do titular do mesmo (n.º 3).
4 - A nulidade resultante de uma proibição de prova, absoluta ou relativa, não se confunde com o sistema de nulidades insanáveis e sanáveis a que aludem os artigos 118º a 122º do CPP, constituindo, antes, um regime autónomo de sancionamento cujo resultado, uma vez verificada a inerente violação dos direitos e liberdades fundamentais afectados, é a não utilização do meio de prova ou de obtenção de prova trazido ao processo por meio de expedientes ou recursos não permitidos, como se nunca tivesse existido.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:
I - RELATÓRIO
1. A SENTENÇA RECORRIDA
No processo comum singular nº 161/23.0GCTND do Juízo de Competência Genérica de Tondela, por sentença datada de 17 de Fevereiro de 2025, foi decidido:
· condenar o Arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º nº 1 e 69º nº 1 al. a), ambos do Código Penal, na pena principal de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5,00 EUR (cinco euros), perfazendo o montante global de 450,00 EUR (quatrocentos e cinquenta euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses.
2. Esta sentença surge na sequência de um nosso anterior aresto desta Relação, datado de 6.11.2024 (C1), no qual foi decidido o seguinte:
«Anular a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que colmate as lacunas apontadas no ponto 3.2.2., decidindo em conformidade»
3. O RECURSO
Inconformado, o arguido AA recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões[1] (transcrição):
«1ª - Somos de considerar que o Tribunal a quo, não obstante, com a decisão ora recorrida, datada de 17.02.2025, e que é muitíssimo idêntica à anterior, continua a não colmatar as lacunas, nomeadamente as apontadas no ponto 3.2.2. do douto Acórdão do TRC. Isto é, mantém-se: Falta de exame crítico da prova – O tribunal de primeira instância não realizou uma análise detalhada sobre como e por que razão considerou provados os factos imputados ao arguido, especialmente no que diz respeito à fiabilidade da prova pericial; Inconsistências nos horários da colheita de sangue – A decisão recorrida baseou-se numa prova pericial cuja hora da colheita de sangue não corresponde com a hora de admissão no hospital, o que compromete a credibilidade do exame laboratorial e, consequentemente, do valor da TAS apurada; Deficiência na justificação da alteração não substancial de factos – O tribunal alterou a hora da interceção do arguido, continuando sem justificar devidamente os fundamentos dessa alteração, o que torna impossível aferir o momento exato da recolha da prova e a sua validade; Insuficiência na fundamentação sobre a idoneidade da prova – O tribunal limitou-se a afirmar que o erro na indicação da hora era um "mero lapso", sem demonstrar de forma objetiva como esse erro não afecta a validade do exame pericial; Falta de explicação sobre a compatibilidade da vinheta do médico – Foi identificado uma disparidade com a vinheta do médico que alegadamente realizou a colheita, que não corresponde ao médico que efetivamente a fez. O tribunal continua a não explicar como essa divergência não compromete a validade da prova. O arguido foi novamente condenado através da sentença agora recorrida « 1. (…) pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º n.º 1 e 69.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal, na pena principal de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5,00 EUR (cinco euros), perfazendo o montante global de 450,00 EUR (quatrocentos e cinquenta euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 (seis)meses.»;
2ª - É dessa mesma condenação que o arguido discorda, uma vez que, entende o arguido que o Tribunal a quo não poderia dar como provado os pontos 4 e 5 constantes no ponto 2.1 Factos provados da sentença ora recorrida pois, da prova produzida em sede de discussão e julgamento,não resulta que o arguido tenha praticadoqualquer ilícitopenal;
3ª - A sentença ora recorrida não deveria ter dado como provado – como deu – que O exame laboratorial confirmou que o arguido conduzia o veículo em causa na via pública, com pelo menos uma TAS de 1,32 g/l, depois de deduzida a margem de erro de + ou – 0,20 g/l;
4ª - Constata-se a existência de uma contradição insanável entre a informação constante no auto de notícia (a fls. 9-10), o Relatório final do exame pericial nº ...3.1 do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (a fls 11), e o documento de análise para a quantificação da taxa de álcool no sangue da GNR (s/n de folha – junto a fls. 12) – e que referem que a hora da colheita da amostra de sangue foi realizada às 15:30 horas – e, por sua vez, o documento do Hospital de Tondela, denominado de RELATORIO PARA A POLÍCIA, relativo ao episódio de urgência nº ...87 ao arguido (a fls. 12), e que refere a hora de admissão às 17:15 horas;
5ª – Assim, a informação da hora da colheita da amostra de sangue (15:30 horas) NÃO tem correspondência com a hora de admissão do arguido no Hospital de Tondela (17:15 horas) e que consta do relatório do Hospital para a polícia, a fls. 12;
6ª - Concluindo-se, pois, que a informação que consta no Relatório do exame pericial laboratorial nº ...3.1 do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (a fls 11), por NÃO retratar a realidade e ter como base factos que não são verdadeiros – nomeadamente ainformação relativamente àhora da colheita e que aíé referida como tendo ocorrido às 15:30 minutos – obsta a que a referida prova pericial seja admissível, sendo a mesma, por conseguinte, NULA. Nulidade que desde logo se invocou para os devidos efeitos legais em sede da contestação devidamente motivada, datada de 03.04.2024, com a refª Citius 6495273;
7ª - A nulidade da prova pericial realizada determinará a absolvição do arguido, uma vez que essa se trata da única prova nos presentes autos dotada de idoneidade para comprovar qual a TAS – se é que se verificava – com que o arguido conduzia o veículo;
8ª - Em sede de contestação, foi requerido ao Tribunal a quo que oficiasse ao Hospital de Tondela para proceder à junção da cópia do episódio de urgência nº ...87, datado de 15.02.2023, relativamente ao arguido e ao qual é feita referência no RELATORIO PARA A POLÍCIA, a fls. 12;
9ª - O Centro Hospitalar Viseu-Tondela, Epe, por ofício datado de 17.04.2024, com a refª Citius 6522404, proceder ao envio da informação clínica referente ao episódio de urgência [nº ...87] de 15.02.2023 a fls. e que aqui damos por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais e para o qual respeitosamente remetemos;
10ª - Na acta/sentença ora recorrida o Tribunal a quo pronunciou-se quanto à Nulidade da Prova Pericial suscitada na contestação, indeferindo a requerida nulidade;
11ª -Discordamos, pois,na verdade,não só ainformação constanterelativamente àhora de colheita do sangue está incorrecta, como inquina de forma irremediável o resultado da prova pericial, concretamente o teor do relatório do exame pericial laboratorial nº ...3.1 do INML a fls. 11 e que serve de suporte à condenação do arguido;
12ª - Ao contrário do que é referido no ponto 2.3. Motivação da decisão de facto, e considerando aquelas que foram as declarações da testemunha BB, militar da GNR autuante, as mesmas [declarações] foram tudo menos claras, revelando uma inobservância por procedimentos que corrompem e colocam em causa a idoneidade da prova obtida;
13ª - Sendo que esta testemunha apenas decidiu alterar a sua versão dos factos, inicialmente corroborando a hora constante no auto de notícia (a fls. 9-10), após ser confrontada com a hora de admissão do arguido no episódio de urgência a fls.
14ª - Refere o Tribunal a quo que «O depoimento desta testemunha é ainda corroborado pela extensa prova documental que consta do processo, bem como dos documentos ora juntos, donde resulta que houve um mero lapso na indicação da hora que o Arguido foi submetido ao referido exame laboratorial, bem como na hora em que houve lugar a interceção do Arguido para efeitos de fiscalização rodoviária.». Sendo proferido, com base no depoimento desta mesma testemunha, despacho, que consta na página 5 da acta de audiência de discussão e julgamento, datada de 06.05.2024, com a refª 95370604, que comunicou a alteração não substancial dos factos, relativamente ao teor do auto de notícia – a fls. 9-10, sendo que, «Em relação ao facto constante do primeiro parágrafo da acusação, em vez de se ler “No dia 15 de fevereiro de 2023, pelas 14H50 (…)”, deverá ler-se “No dia 15 de fevereiro de 2023, cerca das 16 horas e 30 minutos (…)”. No mais o Tribunal a quo continua a insistir ao longo da parte inicial da sentença que o «(…) mero lapso na indicação da hora (…)» não acarreta qualquer nulidade de prova, ainda que não dê qualquer justificação para essa afirmação. Aliás, o Tribunal a quo, no ponto 2.3. Motivação da decisão de facto, refere «Sem prejuízo, importa notar que não há qualquer dúvida de que o Arguido conduziu ciclomotor com uma taxa de álcool superior à legalmente fixada para efeitos criminais (1,2 g/l), pelo que a defesa relativa ao lapso da hora indicada na colheita sanguínea é inócua e despicienda para produzir os efeitos que o Arguido pretende, ou seja, a sua absolvição, quando é claro e patente que o mesmo cometeu um crime (crime para o qual não é primário).» – o destaque é nosso. Ora, aquificamos nadúvida se a convicção que o Tribunal a quo tem que esse mero lapso na indicação da hora – como o caracteriza – não acarreta qualquer nulidade, não é pelo facto de, como bem enfatiza o Tribunal, o arguido não ser primário na prática deste crime.
15ª - É neste ponto que reside o busílis da questão, pois não se ignora que a informação constante no Relatório final do exame pericial nº ...3.1 do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (a fls 11), e o documento de análise para a quantificaçãoda taxadeálcool nosangue daGNR(s/ndefolha–junto a fls.12)–referem de forma inequívoca que a hora da colheita da amostra de sangue foi realizada às 15:30 horas;
16ª - Não restam quaisquer dúvidas que o relatório final do exame pericial nº ...3.1, realizado através da colheita ao sangue em virtude da incapacidade do arguido em realizar o exame de sopro, parte do pressuposto – errado – que a referida colheita se realizou às 15:30 horas, em virtude de no documento de análise para a quantificação da taxa de álcool no sangue da GNR (s/n de folha – junto a fls. 12), e cujo duplicado foi enviado para o INML, constar na hora de colheita as mesmas 15:30 horas;
17ª - O exame pericial ao sangue trata-se da única prova dotada de idoneidade para comprovar qual a TAS – se é que se verificava – com que o arguido conduzia o veículo, uma vez que os talões de registo quantitativo não foram válidos;
18ª - Não se vislumbra nem o Tribunal a quo esclarece, com a certeza e segurança necessárias que o caso impõe, dispensando o “salto de fé” dado, quais os motivos para, de forma tão categórica, afirmar em relação a tal prova pericial que «(…) o que está em causa diz respeito a mero lapso na indicação da hora a que foi realizada a colheita ao sangue (…). O Tribunal a quo não tem qualquer suporte que possa esclarecer se a indicação de tal hora – 15:30 horas – em tal documento, enviado pela GNR juntamente com a colheita da amostra de sanguerecolhida, eque serviu de suporte para a realização da perícia médico-legal, é ou não determinante. Se, por exemplo, do mesmo constasse a uma outra hora (17:30 horas como a referida pela testemunha e militar autuante), o resultado seria ou não o mesmo.
19ª - O que não há dúvidas é que do relatório final da perícia realizada, consta a menção expressa, não só ao Local de colheita – Centro Hospitalar Tondela-Viseu, como a Data e hora de colheita (dia-mês-ano) 15-02-2023 às 15 horas 30 minutos. – cfr. RELATÓRIO FINAL do exame pericial laboratorial nº ...3.1 do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses do INML, a fls. 11. Mais, veja-se que em tal documento consta ainda a Data e hora de recepção (dia-mês-ano) 17-02-2023 às 14 horas 50 minutos. Ora, o Tribunal não fundamentou, da forma que o deveria fazer, se tal era ou não relevante, apenas concluindo no sentido que tal “lapso” não influi no resultado da prova obtida;
20ª – E, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 151º do CPP “A prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.”, conhecimentos e aptidões que o Tribunal a quo, no caso em concreto, não dispõe, não se podendo substituir ao INML, única entidade capacitada para realizar o referido exame pericial e determinar se essa informação constante no documento que acompanhou a amostra e serviu de base à aposição da informação que consta no relatório como sendo ahora da colheita da amostra de sangue é relevante ou susceptível de alterar ou não o resultado da perícia;
21ª – Discordamos da posição do Tribunal pois, se assim fosse, não haveria o cuidado na existência de campos precisos em tal relatório pericial como: Local de colheita; Data e hora de colheita; Data e hora de recepção;
22ª -Acresceque é pordemais consabidoque a realização de tais exames periciais, ainda mais com recurso a vestígios biológicos, in casu sangue, em que são usadas amostras recolhidas, reagentes e equipamentos de elevada precisão, obedece a um rigoroso e complexo conjunto de procedimentos de forma a que seja escrupulosamente cumprida a cadeia da custódia de sangue de forma a que não haja qualquer cumprimento defeituoso dos referidos procedimentos e que possam por em causa a fidedignidade do resultado do exame;
23ª - Como pode o Tribunal afirmar com um grau de certeza absoluta que a indicação da hora da colheita da amostra de sangue influi ou não no resultado da perícia médico-legal? Melhor dizendo, como pode o Tribunal assegurar que o facto de no documento de análise para a quantificação da taxa de álcool no sangue da GNR (s/n de folha – junto a fls. 12) constar que a hora da colheita da amostra de sangue foi realizada às 15:30 horas e que serviu de suporte à informação constante no relatório final do exame pericial, não é relevante ou não tem a virtualidade de alterar o resultado da perícia, considerando que, na verdade, essa mesma colheita da amostra de sangue foi realizada mais de duas horas após a hora aí indicada? A resposta é óbvia e evidentemente que NÃO!
24ª - O Direito do Penal é o Direito do FACTO, não das presunções ou suposições. Aliás, a única presunção admissível é o princípio de presunção de inocência do arguido (artigo 32º, nº 2daConstituiçãoda RepúblicaPortuguesa). Tal princípionão temreflexos apenas num ou outro instituto processual, mas há de projectar-se no processo penal em geral;
25ª - Ora, atendendo à prova produzida em sede de Julgamento, não podiam ter sido dados como provados os factos 4 e 5, já que são por demais evidentes os erros na prova pericial, e no que leva à conclusão da mesma. O Tribunal faz assim, de forma a fundamentar a sua decisão da matéria de facto, uma incorrecta apreciação dessa mesma prova pericial, nomeadamente admitindo-a quando a mesma está “ferida de morte”.
26ª – Por outro lado, a Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Abril, nos artigos 3º a 10º, que fixa o modo como se deve proceder à recolha, acondicionamento e expedição das amostras biológicas destinadas às análises laboratoriais, bem como os procedimentos a aplicar na realização das análises para deteção do estado de influenciado por álcool. Não só quanto à imprescindibilidade da manutenção da cadeia de custódia do sangue, de forma a que não haja dúvida de que o sangue examinado com vista à averiguação e quantificação da taxa de álcool é o sangue que foi extraído à pessoa a que posteriormente serão imputados os resultados do exame, mas também que as informações constantes em relação a tal recolha estejam correctas;
27ª – Mais, do artigo 9º da referida portaria [902-B/2007, de 13 de Abril], consta a seguinte redação:
9.º O médico que promover a colheita deve:
a) Preencher, correcta e completamente, o impresso do modelo do anexo i;
b) Entregar ao agente de autoridade que requisitou o exame o original preenchido, contendo a sua vinheta de identificação profissional;
28ª - No entanto, não obstante o erro já evidenciado no preenchimento no modelo do anexo i relativamente à hora da colheita (onde é referido 15:30 horas) – nos autos sob documento de análise para a quantificação da taxa de álcool no sangue da GNR (s/n de folha – junto a fls. 12) – também no mesmo é possível ver a vinheta aposta do médico e da qual consta a identificação Dr. CC;
29ª - Contudo e ao verificar a informação constante no ofício do Centro Hospitalar Viseu-Tondela, Epe, datado de 17.04.2024, com a refª Citius 6522404, relativamente ao episódio de urgência [nº ...87] de 15.02.2023 para proceder à recolha da amostra de sangue ao arguido, consta nos itens a seguinte fita do tempo:
i. Data de admissão 15-Fev-2023;
ii. Queixa: Triagem – Outro: Realização de colheita de sangue Para GNR DD / 17:19h 15-Fev.2023;
iii. Triagem (…) Notas: Realização de colheita de sangue para GNR DD / 17:20h 15-Fev-2023;
iv. História da doença actual: Colheita de sangue para doseamento de alcoolémia EE (Estomatologista) / 18:27h 15-Fev-2023;
v. Transferência de responsabilidade médica
Para: EE / Estomatologia Recpção: 18:27h 15-Fev.2023
vi. Evolução do episódio
Notas do enfermeiro 15-Fev-2023 17:39 h
Realizei a colheita de sangue para o IML, ficou no cofre DD / 17:39h 15-Fev-2023
vii. Alta
(…) EE (Estomatologia) / 18:28h 15-Fev-2023
30ª - Conclui-se assim, do teor do supramencionado episódio de urgência hospitalar [nº ...87] de 15.02.2023 e da conjugação do ponto 1 dos factos provados da sentença (que refere que a fiscalização rodoviária se realizou pelas 16:30 minutos), que a
informação constante no relatório final do exame pericial nº ...3.1, realizado através da colheita ao sangue, não corresponde à verdade, uma vez que parte do princípio – errado – que a referida colheita se realizou às 15:30 horas (o que é impossível), uma vez que no documento de análisepara a quantificação da taxa de álcool no sangue da GNR (s/n de folha – junto a fls. 12), e cujo duplicado foi enviado para o INML, consta na hora de colheita as mesmas 15:30 horas;
31ª - Pelo que não podia o Tribunal a quo valorar como valorou e para efeito de prova o relatório pericial uma vez que o exame pericial efectuado é realizado partindo de uma premissa errada (que a colheita foi efectuada às 15:30 horas). Tratando-se por isso esse mesmo relatório final pericial de uma prova proibida/nula e por isso inadmissível, nulidade que desde já se invoca para os devidos efeitos legais;
32ª - Mas mais, refira-se ainda e a título complementar que no modelo do anexo i relativamente à hora da colheita (onde é referido 15:30 horas) – nos autos sob documento de análise para a quantificação da taxa de álcool no sangue da GNR (s/n de folha – junto a fls. 12) – consta uma vinheta aposta com a identificação do médico Dr. CC que, analisando o teor do episódio de urgência [nº ...87] de 15.02.2023NÃOéomédico quepromoveua colheita, aliásemnenhum item doepisódio de urgência hospitalar surge na fita do tempo o nome deste médico [Dr. CC], sendo que, ao invés, o que resulta da análise do referido documento do episódio de urgência, o médico identificado surge como sendo o EE (Estomatologista);
33ª - Verificando-se também neste aspecto particular (mais) uma nulidade/prova proibida, pois verifica-se uma clara violação do disposto no artigo 9º, al. a) e b) da Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Abril, uma vez que a vinheta da identificação do médico [Dr. CC] e que consta no modelo do anexo i, relativamente à hora da colheita (onde é referido 15:30 horas) – nos autos sob documento de análise para a quantificação da taxa de álcool no sangue da GNR (s/n de folha – junto a fls. 12), NÃO corresponde ao médico que promoveu a colheita e que, como bem se vê na fita do tempo do relatório de urgência hospitalar nº ...87 é o Dr. EE (Estomatologista);
34ª - Pelo que, por tudo o que já foi exposto, os factos constantes nos pontos 4. e 5. da Sentença ora recorrida devem ser considerados como NÃO PROVADOS, face a inexistência de prova (idónea) que permita imputar ao arguido a prática de tal crime, sendo que, por não se encontrarem preenchidos os elementos subjectivos e objectivos do tipo de ilícito em análise, deverá ser dado provimento ao recurso, absolvendo o arguido do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º n.º 1 e 69.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal;
Sem prescindir, e quanto à determinação da medida da pena,
35ª - Mas ainda que assim não fosse e por mera hipótese académica o presente recurso não tivesse provimento, não se ignora que do Certificado de Registo Criminal do arguido apenas consta um único averbamento, nunca tendo o mesmo sequer beneficiado do instituto da suspensão provisória do processo – cfr. CERTIFICADO DE REGISTO CRIMINAL e BASE DE DADOS DA SUSPENSÃO PROVISÓRIA DE PROCESSOS CRIMES, respectivamente, a fls. 30v e 31 (CRC)e 29 (SPP);
36ª - E mau grado do exame pericial – JÁ IMPUGNADO EM SEDE DE CONTESTAÇÃO E NO PRESENTE RECURSO (no ponto “1”) – constar uma TAS de 1,52 g/l, com uma margem de erro admissível de 0,20 g/l – cfr. Relatório do exame pericial laboratorial nº ...3.1 do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, fls 11. Tal significa que ao arguido, deduzido o erro máximo admissível de 0,20 g/L, teria sido confirmada (caso não se tratasse de uma prova nula) uma TAS de apenas 1,32 g/l;
37ª - E, apesar de se tratar de uma TAS superior a 1,2 g/l, não se ignora ainda assim que, não obstante a nulidade já invocada, o valor da taxa excedente e que determinou a instauração de procedimento criminal, se trata de meros 0,12 g/l;
38ª -Não sepodeignorar queoarguido estáperfeitamenteinseridosocial, profissional e familiarmente como de resto resulta do ponto 11 a 16 dos Factos provados da Sentença e cujo teor se dá aqui por reproduzido. Sendo que, a escolha das penas a aplicar obedece ao disposto nos artigos 40.º e 70.º do Código Penal, devendo tomar-se em consideração a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial, circunstâncias associadas à reinserção social dos arguidos, à prevenção da prática de futuros crimes e à protecção de bens jurídicos;
39ª - O Tribunal a quo faz assim, de forma a fundamentar a sua decisão e dos pressupostos para a aplicação da pena de multa de 90 (noventa) diase napena acessória de proibição de conduzirveículos com motor pelo período de 6 (seis) meses, um excesso na determinação da medida concreta da pena, e, caso não fosse dado provimento ao presente recurso com os fundamentos no ponto “I”, ter-se-ia de dar provimento ao presente recurso neste ponto concreto quanto à determinação a medida da pena, reduzindo assim a pena principal para, no máximo, 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), assim bem como reduzido o período da sanção complementar de proibição de conduzir veículos com motor, que não deveria ser superior a 4 (quatro) meses considerando a TAS registada de apenas 1,32 g/l;
Concluindo,
40ª - No entender do recorrente o Tribunal a quo ao condenar o arguido, com os fundamentos que melhor constam da Sentença ora recorrida violou o disposto nos artigos: 9º, al. a) e b) da Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Abril; artigos, 40º nº 1 e 2; 47º; 70º; 71º nº 1 e nº 2; 69º nº 1 alínea a); 292º nº 1, todos do Código Penal e 410º nº 2 al. a) e c) do Código de Processo Penal; artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa e consequentemente o princípio do in dubio pro reo;
41ª - Assim, face ao já exposto, e porque o Relatório final do exame pericial nº ...3.1 do InstitutoNacional de Medicina Legal e CiênciasForenses(afls 11), prova nula/proibida, seria o único meio de prova idóneo para determinar se o arguido conduzia ou não o veículo em estado de embriaguez, devem os factos constantes nos pontos 4. e 5. da sentença ora recorrida ser considerados como NÃO PROVADOS, face a inexistência de prova (idónea) que permita imputar ao arguido a prática de tal crime, sendo que, por não se encontrarem preenchidos os elementos subjectivos e objectivos do tipo de ilícito em análise, deverá ser dado provimento ao recurso, absolvendo o arguido do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º n.º 1 e 69.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal.
Ou, quando assim não se entendesse,
42ª - Deveria ser dado provimento ao presente recurso neste ponto concreto, quanto à determinação a medida da pena, reduzindo assim a pena principal para, no máximo, 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), assim bem como reduzido o período da sanção complementar de proibição de conduzir veículos com motor, que não deveria ser superiora 4 (quatro) mesesconsiderando a TAS registada de apenas1,32 g/l;
Termos em que se requer a Vossas Excelências
a) face ao já exposto, deverá ser dado provimento ao recurso, absolvendo o arguido do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º n.º 1 e 69.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal, uma vez que o Relatório final do exame pericial nº ...3.1 do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (a fls 11), prova que é nula/proibida, seria o único meio de prova idóneo para determinar se o arguido conduzia ou não o veículo em estado de embriaguez, devendo por isso os factos constantes nos pontos 4. e 5. da sentença ora recorrida ser considerados como NÃO PROVADOS, face a inexistência de prova (idónea) que permita imputar ao arguido a prática de tal crime, sendo que, por não se encontrarem preenchidos os elementos subjectivos e objectivos do tipo de ilícito em análise;
Ou, quando assim não se entendesse,
b) Deveria ser dado provimento ao presente recurso neste ponto concreto, quanto à determinação a medida da pena, reduzindo assim a pena principal para, no máximo, 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), assim bem como reduzido o período da sanção complementar de proibição de conduzir veículos com motor, que não deveria ser superior a 4 (quatro) meses considerando a TAS registada de apenas 1,32 g/l».
3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso não merece provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância.
4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso.
5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, após resposta do arguido, foram colhidos os vistos, tendo os autos ido à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (Cf. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Assim, balizados pelos termos das conclusões[2] formuladas em sede de recurso, as questões a resolver consistem no seguinte:
· Existe algum uso de prova proibida que tenha inquinado o processo?
· Os factos nºs 4 e 5 deverão ser dados como não provados?
· Foi violado o princípio do in dubio pro reo?
· As penas – principal e acessória – foram excessivas?
2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1. São os seguintes os FACTOS PROVADOS em 1ª instância (transcrição[3])
«1. No dia 15 de fevereiro de 2023, cerca das 16 horas e 30 minutos, o Arguido AA conduzia o ciclomotor com a matrícula ..-GM-.., pela Rua ..., em ..., quando foi intercetado pelos guardas da G.N.R. que no local procediam à realização de fiscalização rodoviária.
2. O Arguido ao ser submetido ao teste de álcool, por ar expirado, em aparelho quantitativo, após várias tentativas, não conseguiu realizar o referido teste.
3. De seguida, o arguido foi conduzido ao Centro Hospitalar Tondela – Viseu, onde foi realizada colheita sanguínea para análise laboratorial para quantificação da taxa de álcool no sangue.
4. O exame laboratorial confirmou que o arguido conduzia o veículo em causa na via pública, com pelo menos uma TAS de 1,32 g/l, depois de deduzida a margem de erro de + ou – 0,20 g/l.
5. O Arguido AA, agindo de forma livre, consciente e deliberada, conduziu o ciclomotor na via pública, bem sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que lhe poderia determinar, como determinou, uma TAS superior a 1,2 g/l e que por isso não lhe era lícito conduzir, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.
Mais se provou que:
7[4]. O Arguido tem problemas de saúde e encontra-se desempregado.
8. Aufere mensalmente o rendimento social de inserção no valor aproximado de 270,00 EUR (duzentos e setenta euros).
9. Tem como despesas mensais fixas a conta da luz, no valor entre 70,00 EUR (setenta euros) a 80,00 EUR (oitenta euros).
10. Vive em casa própria, juntamente com o seu cônjuge e os seus dois filhos, FF e GG, já ambos maiores de idade e trabalhadores.
11. É proprietário do ciclomotor que conduziu.
12. Ao nível de habilitações literárias, o Arguido concluiu a 4.ª classe.
13. O Arguido tem antecedentes criminais, tendo sido condenado:
a) por sentença datada de 27/04/2022, transitada em julgado em 27/05/2022, no âmbito do Processo Sumário nº 136/22...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo de Competência Genérica de Tondela, pela prática em 13/04/2022 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º nº 1 do Código Penal, na pena principal de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00 EUR (cinco euros), o que perfaz o total de 300,00 EUR (trezentos euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses.
2.2. Inexistindo factos NÃO PROVADOS, motivou-se assim a decisão de facto o tribunal recorrido (transcrição):
«O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, bem como das declarações do Arguido, prova esta que foi concatenada entre si e apreciada ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, plasmada no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
No caso concreto, embora o Arguido não tenha prestado declarações acerca dos factos constantes da acusação pública, o Tribunal valorou as declarações da testemunha BB, que de forma isenta, serena e clara, relatou que fiscalizou o ciclomotor conduzido pelo aqui Arguido, tendo-o identificado, bem como os procedimentos adotados quer nos testes de álcool por ar expirado, quer na análise sanguínea posteriormente realizada.
Com efeito, em face das questões suscitadas pela defesa relativamente às horas em que tudo sucedeu, confrontada a testemunha BB, militar da G.N.R., a mesma explicou que no Posto Territorial ainda possuía os talões emitidos pelo aparelho quantitativo (cujo resultado não foi possível obter), talões esses que foram juntos em sede de audiência de julgamento (cfr. ref.ª CITIUS n.º 95381422).
Desses talões resulta que o teste ao álcool por aparelho quantitativo foi realizado às 16h59m e às 17h04m. Por outro lado, a própria testemunha, inquirida novamente, relatou que naquele dia entrou ao serviço pelas 16 horas, pelo que a interceção terá ocorrido por volta das 16h30m. Nunca tal poderia ter ocorrido pelas 14h50m, conforme constava da acusação pública, que nesta parte seguiu a informação que constava erradamente do auto de notícia.
Outrossim, é procedimento comum que primeiro é efetuado o teste ao álcool por ar expirado em aparelho qualitativo e, acusando uma T.A.S. positiva e criminalmente relevante, realiza-se o mesmo teste, mas em aparelho quantitativo posteriormente (após realização daqueles e conforme consta do auto de notícia e foi explicado pela testemunha inquirida - vide ainda artigo 1.º n.º 1, 2 e 3 da Lei n.º 18/2007, de 17/05).
Deste modo ficam explicitados os diversos momentos e horários, desde a entrada ao serviço do militar da G.N.R., interceção do condutor Arguido, até à realização do teste ao álcool por ar expirado (quer no aparelho qualitativo, quer no aparelho quantitativo) e por colheita sanguínea.
Sem prejuízo, importa notar que não há qualquer dúvida de que o Arguido conduziu ciclomotor com uma taxa de álcool superior à legalmente fixada para efeitos criminais (1,2 g/l), pelo que a defesa relativa ao lapso da hora indicada na colheita sanguínea é inócua e despicienda para produzir os efeitos que o Arguido pretende, ou seja, a sua absolvição, quando é claro e patente que o mesmo cometeu um crime (crime para o qual não é primário).
O depoimento desta testemunha é ainda corroborado pela extensa prova documental que consta do processo, bem como dos documentos juntos em sede de audiência de julgamento, donde resulta que houve apenas um mero lapso na indicação da hora que o Arguido foi submetido ao referido exame laboratorial, bem como na hora em que houve lugar a interceção do Arguido para efeitos de fiscalização rodoviária, conforme supra se analisou.
No mais, o Tribunal não tem dúvidas quanto aos demais factos, em particular atinentes ao elemento subjetivo, os quais resultam do modo de atuar do Arguido, da concreta taxa que acusou, bem como da condenação anterior por crime idêntico.
Quanto às condições socioeconómicas do Arguido, o Tribunal estribou-se nos esclarecimentos prestados pelo próprio, relativamente aos quais não se vislumbram razões para neles não fazer fé.
Finalmente, o Tribunal teve ainda em conta o Certificado de Registo Criminal do Arguido constante dos autos».
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1. O arguido volta a recorrer de direito, embora peça a não prova dos factos nºs 4 e 5, invocando vícios de decisão de facto.
3.2. Começa, de facto, por arguir uma nulidade de PROVA, de novo.
Anulámos a 1ª sentença de Tondela por termos vislumbrado algum mistério relativamente à forma como o tribunal chegou a esta condenação, sem cuidar de argumentar, de facto e de direito, relativamente à questão controversa da possível existência de prova proibida.
Foi entretanto proferida a presente 2ª sentença onde, a nosso ver, o tribunal respondeu suficientemente aos nossos comandos e sugestões (a questão da identificação do médico que procedeu ao teste acaba por ser de pouca relevância, não eivando os autos de qualquer nulidade, como a seguir se verá).
Inexiste, pois, agora, qualquer nulidade de sentença por falta de exame crítico da prova produzida.
Que dizer, então, da questão prévia levantada pela defesa?
Defende ela:
«Face ao já exposto, deverá ser dado provimento ao recurso, absolvendo o arguido do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º n.º 1 e 69.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal, uma vez que o Relatório final do exame pericial nº ...3.1 do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (a fls 11), prova que é nula/proibida, seria o único meio de prova idóneo para determinar se o arguido conduzia ou não o veículo em estado de embriaguez, devendo por isso os factos constantes nos pontos 4. e 5. da sentença ora recorrida ser considerados como NÃO PROVADOS, face a inexistência de prova (idónea) que permita imputar ao arguido a prática de tal crime, sendo que, por não se encontrarem preenchidos os elementos subjectivos e objectivos do tipo de ilícito em análise».
Tudo parte, afinal, de um lapso de escrita, agora explicado pelo tribunal, na questão da hora da colheita de sangue no IML (fls 11) – aí se deixa escrito que a amostra chegou para análise pelas 15h30, o que estaria em concordância com os horários apostos no auto de notícia (intercepção policial do arguido pelas 14h50 e condução do arguido ao Hospital de Tondela pelas 15h30).
Contudo, a fls 11-A, já surge a hora de 17h04 como a da realização do teste de ar expirado e, inexplicavelmente, as 15h30 como a hora da colheita de sangue, o que é impossível (primeiro fez-se o teste de ar expirado que deu «sopro insuficiente» e só depois houve colheita hospitalar de sangue, e nunca o contrário, como é bem de ver).
Note-se que a fls 12 surge de novo a hora de 17h15 como sendo a hora da admissão do arguido no Hospital para tal feitura de colheita de sangue.
O tribunal isso mesmo detectou e fez uma alteração não substancial de factos no dia da audiência – acta de fls 78-85 -, apondo como verdadeira hora da intercepção policial do arguido condutor, não o horário escrito na acusação (14h50), mas a nova hora das 16h30.
E explicou esta alteração só agora nesta nova sentença (o bold é nosso):
«No caso concreto, embora o Arguido não tenha prestado declarações acerca dos factos constantes da acusação pública, o Tribunal valorou as declarações da testemunha BB, que de forma isenta, serena e clara, relatou que fiscalizou o ciclomotor conduzido pelo aqui Arguido, tendo-o identificado, bem como os procedimentos adotados quer nos testes de álcool por ar expirado, quer na análise sanguínea posteriormente realizada.
Com efeito, em face das questões suscitadas pela defesa relativamente às horas em que tudo sucedeu, confrontada a testemunha BB, militar da G.N.R., a mesma explicou que no Posto Territorial ainda possuía os talões emitidos pelo aparelho quantitativo (cujo resultado não foi possível obter), talões esses que foram juntos em sede de audiência de julgamento (cfr. ref.ª CITIUS n.º 95381422).
Desses talões resulta que o teste ao álcool por aparelho quantitativo foi realizado às 16h59m e às 17h04m. Por outro lado, a própria testemunha, inquirida novamente, relatou que naquele dia entrou ao serviço pelas 16 horas, pelo que a interceção terá ocorrido por volta das 16h30m. Nunca tal poderia ter ocorrido pelas 14h50m, conforme constava da acusação pública, que nesta parte seguiu a informação que constava erradamente do auto de notícia.
Outrossim, é procedimento comum que primeiro é efetuado o teste ao álcool por ar expirado em aparelho qualitativo e, acusando uma T.A.S. positiva e criminalmente relevante, realiza-se o mesmo teste, mas em aparelho quantitativo posteriormente (após realização daqueles e conforme consta do auto de notícia e foi explicado pela testemunha inquirida - vide ainda artigo 1.º n.º 1, 2 e 3 da Lei n.º 18/2007, de 17/05).
Deste modo ficam explicitados os diversos momentos e horários, desde a entrada ao serviço do militar da G.N.R., interceção do condutor Arguido, até à realização do teste ao álcool por ar expirado (quer no aparelho qualitativo, quer no aparelho quantitativo) e por colheita sanguínea»
A hora da entrada no Hospital surge depois inequívoca a fls 69 (17h15), tendo sido feita a colheita de sangue pelas 17h39.
E depois foram juntos em julgamento os documentos de fls 76-77 onde fica clara a hora da intercepção policial (16h30), pois as tentativas de teste quantitativo foram feitas pelas 16h55, 16h59 e 17h04, logo, muito depois da errada hora aposta na acusação.
Portanto, ficou esclarecida esta discrepância do auto de notícia que influenciou o MP na formulação da acusação, discrepância também existente no documento de fls 11, com certeza influenciada pela leitura do auto policial.
Se assim é, não vemos como desconsiderar o valor de alcoolemia detectado no IML e constante de fls 11, não tendo qualquer eventual desconformidade nos documentos exarados (cfr. nome da pessoa exacta que fez a colheita de sangue, acreditando-se que essa colheita tenha sido feita por um enfermeiro, como resulta aliás de fls 69-v, estando aí colocados nomes de médicos para aferição de «problemas na colheita» e nada mais) influenciado o tribunal no sentido de lhe criar dúvida que pudesse justificar a absolvição do arguido.
Inexiste, pois, qualquer nulidade da prova pericial pois a prova não está inquinada, resultando inequívoco que ao arguido, na condução que fez até ser interceptado pela GNR, foi detectada taxa de alcoolemia acima dos 1,20 g/l.
Sabemos que a prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez apenas pode ser provada através de prova pericial, mais propriamente, um teste quantitativo -, pois apenas desse modo se obtém, com a clareza e certeza necessárias, o valor real da taxa de álcool no sangue do condutor e agente infractor.
Não ignoramos que:
No âmbito do artigo 126º do CPP, relativo aos métodos proibidos de prova, há que distinguir entre os procedimentos que são considerados absolutamente proibidos (n.ºs 1 e 2), interditos em qualquer circunstância, mesmo mediante consentimento do visado, e os que são relativamente proibidos, posto que se consente a sua admissão ou por via dos casos previstos na lei, onde se estabelecem as condições em que é permitido o constrangimento do direito, ou por via do consentimento do titular do mesmo (n.º 3), só nos demais casos sendo totalmente proscritos.
A nulidade resultante de uma proibição de prova, absoluta ou relativa, não se confunde com o sistema de nulidades insanáveis e sanáveis a que aludem os artigos 118º a 122º do CPP, constituindo, antes, um regime autónomo de sancionamento cujo resultado, uma vez verificada a inerente violação dos direitos e liberdades fundamentais afectados, é a não utilização do meio de prova ou de obtenção de prova trazido ao processo por meio de expedientes ou recursos não permitidos, como se nunca tivesse existido.
O arguido fala em prova proibida.
Ouçamos João Matos-Cruz Praia em artigo publicado na JULGAR online 4[5]:
«A finalidade do processo penal não é a descoberta da verdade a qualquer custo, mas a sua prossecução através dos meios processualmente admissíveis à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da Constituição da República Portuguesa/CRP), ainda que isso possa conduzir, e muitas vezes por certo conduz, à impossibilidade de acesso à intitulada verdade “material” ou histórica. É hoje unânime entre os Autores a asserção de que “não é nenhum princípio da ordenação processual que a verdade tenha de ser investigada a todo o preço” e também que “o objetivo do esclarecimento e punição dos crimes é, seguramente, do mais elevado significado; mas ele não pode representar sempre, nem sob todas as circunstâncias, o interesse prevalecente do Estado”: o “Estado tem de revelar alguma superioridade ética: não pode combater o crime, por mais grave que ele seja, cometendo, ele próprio, outros crimes”.
Como decorrência desta conceção, o artigo 32.º da CRP (“Garantias de processo criminal”), no seu n.º 8, prescreve que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”, mandamento constitucional que é, por sua vez, replicado no art. 126.º do CPP.
Nos termos do art. 126.º-1 do CPP (correspondente ao artigo 32.º-8/1.ª parte da CRP), “São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas” (o n.º 2 do preceito faz uma indicação exemplificativa de provas ofensivas dessa integridade física ou moral, mesmo que com consentimento do visado). São as chamadas “proibições absolutas”, em relação às quais não há nenhuma possibilidade de cedência.
Por sua vez, de acordo com o art. 126.º-3 do CPP (correspondente ao art. 32.º8/2.ª parte da CRP), “Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular”. São as denominadas “proibições relativas” – justificadas pela necessidade de dotar a justiça penal de instrumentos que lhe permitam a maior eficácia possível porquanto essa justiça é, afinal, ela própria, um elemento primordial da ideia de Estado de Direito –, admitindo-se que, sob certas condições, possa haver interferência (que então deixará de ser abusiva) na esfera de alguns direitos fundamentais: neste campo é, pois, concebível uma ingerência nos direitos da pessoa se a lei a previr ou o respetivo titular nela consentir.
As proibições de prova estão, assim, directamente ligadas à salvaguarda dos direitos fundamentais e representam uma barreira ao apuramento dos factos.
No caso, o tribunal não lançou mão de qualquer prova que caiba no artigo 126º do CPP, sendo absolutamente legal e lícita (em processo criminal, as nulidades de prova referem-se a provas obtidas de forma ilegal ou por meios que violam garantias constitucionais, como tortura, coacção ou abusiva intromissão na vida privada, sabendo nós que essas provas são nulas e não podem ser utilizadas em tribunal).
Como bem afere o Tribunal:
«Em sede de contestação, o Arguido invoca a nulidade da prova pericial, por não retratar a realidade e ter como base factos que não são verdadeiros, nomeadamente a questão relativa à hora em que foi realizada a colheita de sangue, o que obsta a que a referida prova pericial seja válida.
Cumpre apreciar e decidir.
Ora, conforme infra se mostrará, para cuja fundamentação se remete por economia de meios, o que está em causa diz respeito a mero lapso na indicação da hora a que foi realizada a colheita ao sangue para apurar a TAS respetiva. E, nesta matéria, esse mero lapso não provoca, como é evidente, qualquer nulidade de prova, nem essa consequência vem prevista em qualquer norma legal.
Na verdade, as nulidades de prova dependem de previsão legal expressa (artigo 125.º do CPP) ou deverão contender com aquilo que é o núcleo essencial dos direitos de personalidade do Arguido (artigo 32.º n.º 8 da CRP), o que não sucede. A prova por colheita sanguínea é legal e admissível (artigos 1.º n.º 3, 4.º e seguintes da Lei n.º 18/2007, de 17/05), cujo mero lapso na indicação da hora não acarreta qualquer nulidade de prova.
Por conseguinte, indefere-se a requerida nulidade».
Nada mais temos a acrescentar, sendo absolutamente inequívoco a inexistência de prova proibida que inquine os autos.
Mais: o artigo 5º da Lei nº 18/2007, de 17 de Maio, dispõe que “a colheita de sangue é efectuada, no mais curto prazo possível, após o acto de fiscalização ou a ocorrência do acidente».
E nos autos o prazo decorrente entre os primeiros testes feitos perante a GNR e a colheita hospitalar não foi assim tão dilatado que nos faça duvidar da fiabilidade do resultado obtido.
3.3. SOBRE OS FACTOS
Se assim é, não vemos forma de alterar qualquer factualidade dada como provada.
A defesa fala em vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP, as da alínea a) e c).
É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto sob dois prismas:
• o da impugnação ampla, se tiver sido suscitada;
• e dos vícios do nº 2 do artigo 410º do CPP.
Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, nº 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.
Olhando para os vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP, e defendendo nós que o seu conhecimento por esta Relação é de conhecimento oficioso, diremos apenas que não vislumbramos sombra de qualquer um deles na estrutura interna do sentenciado.
Lembra-se aqui que, em qualquer das hipóteses do nº 2 do artigo 410º, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410º do CPP.
Por esse crivo passa a sentença com distinção.
E não temos sequer de considerar que foi violado o princípio do in dubio pro reo.
Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».
O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
Não ficou o Tribunal de Tondela em estado de dúvida.
E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
Por tal razão, não faz sentido fazer aqui valer e funcionar o princípio constitucional in dubio pro reo.
Mantém-se a matéria de facto dada como provada, assim.
3.4. SOBRE A PENA PRINCIPAL
3.4.1. Perante a perfectibilização do tipo legal em causa, nos seus elementos objectivos e subjectivos (cfr., a este propósito, o artigo 14º, do Código Penal, doravante, CP) e a dimensão eventualmente dolosa do comportamento do agente, assente que, in casu, a negligência não é punível), há que passar à operação da determinação da ESCOLHA (pois o tipo legal coloca uma alternativa entre prisão e multa) e MEDIDA da pena a aplicar ao agente do crime.
No nosso caso, a moldura abstracta da pena do crime em apreço é a de prisão de 1 mês até um ano ou a de multa de 10 a 120 dias.
O tribunal a quo escolheu a multa em detrimento da prisão e fixou aquela em 90 dias, à taxa diária de € 5.
Pretende a defesa que ela seja fixada nos 60 dias e nunca mais do que isso.
3.4.2. A determinação da pena envolve diversos tipos de operações.
O julgador, perante um tipo legal que prevê, em alternativa, como penas principais, as penas de prisão ou multa, deve ter em conta o disposto no artigo 70º do CP que consagra o princípio da preferência pela pena não privativa da liberdade, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Tais finalidades, nos termos do artigo 40º do mesmo diploma, reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente da sociedade (prevenção especial).
Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina, em seguida, a medida concreta da pena que vai aplicar, para depois escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida.
Assim, o tribunal, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa, deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa.
Neste momento do procedimento de determinação da pena, o único critério a atender é o da prevenção.
O artigo 70º opera, precisamente, como regra de escolha da pena principal, nos casos em que se prevê pena de prisão ou multa.
Porém, a escolha da pena principal de prisão em detrimento da multa não significa que desde logo se opte pela execução ou cumprimento da pena privativa da liberdade, pois entretanto haverá que ponderar a aplicação das penas de substituição que apenas são aplicáveis depois de escolhida a pena de prisão e de concretamente determinado, nos termos do artigo 71º, o seu quantum.
Já o assinalámos: da escolha da pena principal de prisão, no caso de moldura abstracta que contempla prisão ou multa, não decorre, necessariamente, que a pena privativa da liberdade tenha de ser cumprida.
O que pode acontecer é que o tribunal, atento o preceituado no artigo 70º, opte pela prisão como pena principal, por entender que a multa não satisfaz de forma adequada e suficiente todas as finalidades da punição, mas que, num segundo momento, uma vez fixada a prisão em certa medida, entenda dever proceder à sua substituição, por tal lhe ser legalmente imposto se a execução da prisão não for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes (cfr. artigo 43º), ou porque, face às penas de substituição legalmente previstas, acaba por concluir que uma dessas penas satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 364).
Depois de escolhida a pena a aplicar, há que determinar a sua medida.
O artigo 71º, nº 1, do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve encontrar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.
A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística.
Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena.
A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, sendo antes uma discricionariedade juridicamente vinculada.
O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do Direito e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, e na feliz fórmula de Simas Santos, «mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, atos cognitivos e puras valorações».
Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena.
De facto, a determinação da pena envolve diversos tipos de operações:
· a)- determinação da medida abstracta da pena (olhando para o tipo legal de crime em causa);
· b)- escolha, no caso de molduras compósitas alternativas de prisão ou multa, da pena principal, nos termos do artigo 70º, do CP;
· c)- fixação do quantum da pena principal dentro da moldura respectiva, com base nos critérios do artigo 71º, do CP;
· d)- ponderação da aplicação de uma pena de substituição;
· e)- fixação, finalmente, desta pena (sua medida concreta).
3.4.3. Ora, no caso vertente optou-se à luz do artigo 70º do CP, e bem, por uma pena de multa, cuja medida foi fixada em 90 dias.
E tal se fez levando em conta o seguinte:
«Contra o Arguido importa acentuar o dolo com que atuou, enquanto elemento subjetivo do ilícito.
O grau de culpa é elevado, pois já foi condenado pela prática em 2022 do mesmo crime, não obstante a concreta taxa de álcool no sangue ser baixa, pois pouco acima do limiar entre a distinção entre contraordenação e crime.
A favor do Arguido é possível afirmar a sua integração familiar e social».
Portanto, sopesando todos estes factores, entendeu-se que ainda não é chegada a altura de optar por uma pena privativa da liberdade, nisto se concordando com a sentença recorrida.
O arguido acha que a pena de multa foi excessiva.
Entendemos que não (a opção pela multa já foi, em si, e ela mesmo, uma benesse considerável, de forma a que podemos concluir que a próxima prevaricação, se a houver, já terá fatalmente de pisar o terreno da pena privativa de liberdade).
Procedendo à ponderação dos factos praticados, das necessidades de prevenção e repressão deste tipo de comportamento estradal, e considerando a necessidade de emenda cívica do condutor em causa nestes autos, já com um antecedente criminal muito recente (de 2022), julgamos adequado e proporcional condenar o arguido na pena máxima de multa, mercê de todas as circunstâncias agravantes atrás mencionadas que esmagam a sua boa integração familiar e social, as únicas circunstâncias atenuantes (note-se que a anterior condenação ficou pelos 60 dias, sendo absolutamente incompreensível a defesa feita da aplicação de 60 dias agora).
A taxa de álcool no sangue é, de facto, pouco elevada – mas prevaricar 2ª vez com a prática da mesma ilicitude não pode ser por nós esquecido.
Impõe-se considerar as estatísticas terríveis de sinistralidade rodoviária, onde a condução sob a influência do álcool tem papel de relevo.
São, portanto, elevadíssimas as necessidades de prevenção geral que no caso se fazem sentir.
Improcede, assim, o recurso neste segmento, validando-se a pena de multa fixada em 90 dias, à taxa diária – justa – de cinco euros.
3.5. SOBRE A PENA ACESSÓRIA
Além da escolha da pena de multa, foi ainda o arguido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 meses.
O arguido defende a sua condenação em medida nunca superior a 4 meses.
Estamos perante uma verdadeira pena: conquanto seja uma sanção dependente da aplicação da pena principal (como a própria denominação indica), não resulta directa e imediatamente da cominação desta, no sentido de que não é seu efeito automático, o que, aliás, constitui imposição constitucional, decorrente do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, que estabelece, tal qual o faz o n.º 1 do artigo 65.º do CP, que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, constituindo antes uma sanção autónoma.
A pena acessória de proibição de conduzir, para muitos, é bem mais gravosa que a pena principal (evidentemente, quando esta é não privativa da liberdade), sendo certo que a defesa passa aqui, necessariamente, pela alegação e prova de factos de natureza pessoal, factos da maior importância para a determinação concreta da medida daquela, os quais só podem ser dados a conhecer pelo arguido ao tribunal se o mesmo for prevenido de que a condenação no crime de que é acusado implica, também, a condenação na pena acessória (e daí o sentenciado, em termos de fixação de jurisprudência, no AFJ do STJ n.º 7/2008, de 25/6/2008 - «Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do CPP, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º deste último diploma legal».
Qualquer sentença não deve deixar de atender às circunstâncias que, não fazendo parte do crime, depõem a favor do agente - designadamente as circunstâncias do facto, grau de culpa e ilicitude, antecedentes criminais e situação pessoal, profissional e familiar do arguido -, devendo-o fazer, como é de direito, na operação de graduação concreta daquela sanção.
Admitindo que a faculdade de conduzir veículos automóveis é um direito civil, é certo que a perda desse direito é uma medida que o juiz aplica e gradua dentro dos limites mínimo e máximo previstos, em função das circunstâncias do caso concreto e da culpa do agente, segundo os critérios do artigo 71º do CP.
A circunstância de ter sempre de ser aplicada essa medida, ainda que pelo mínimo da medida legal da pena, desde que seja aplicada a pena principal de prisão ou multa, não implica, ainda assim, neste caso, colisão com a proibição de automaticidade.
A adequação da proibição de conduzir a este tipo de ilícitos revela que a medida dessa proibição se configura como uma parte de uma pena compósita, como se de uma pena principal associada à pena de prisão se tratasse, em relação à qual valem os mesmos critérios de graduação previstos para esta ultima (com efeito, a aplicação da proibição de conduzir fundamenta-se, tal como a aplicação da pena de prisão ou multa, na prova da prática do facto típico e ilícito e da respectiva culpa, sem necessidade de se provarem quaisquer factos adicionais, surgindo como adequada e proporcional tal sanção, atenta a natureza da infracção, com a inerente perigosidade decorrente dessa conduta).
Como opinam Jorge Miranda e Rui Medeiros, in CRP anotada, Tomo I, CE, p. 338, «parece-nos que não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito” que atinja esses direitos, que fique violado um princípio constitucional, desde que seja SEMPRE respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstracto como em concreto, através da determinação, por moldura legal, do tempo de privação do direito ou, então, através da previsão de uma cláusula de salvaguarda por “manifesta desproporção”».
Ora:
A proibição de conduzir veículos motorizados como pena acessória que é, tal como a pena principal, deve ser determinada de acordo com o disposto no artigo 71º do CP.
O artigo 71º, n.º 1 do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena (leia-se, então, também medida da pena acessória) deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O n.º 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor e contra ele.
A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística.
Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena.
Seguem-se aqui os mesmos comandos que se expuseram para a fixação da pena principal.
Diremos ainda mais - à pena acessória cabe uma «função preventiva adjuvante da pena principal (...) que se não esgota na intimidação da generalidade mas se dirige (…) à perigosidade do delinquente» – Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, p. 96.
Considerando que a pena acessória visa prevenir a perigosidade mas constitui também uma censura adicional pelo facto praticado pelo arguido - cfr., Figueiredo Dias, Acta n.º 8 da Comissão de Revisão do Código Penal, in Actas e Projecto da Comissão de Revisão do Código Penal, Editora Rei dos Livros, pág. 75 -, verifica-se que, não obstante a pena acessória ter, face à pena principal, uma função mais restrita - função preventiva -, a determinação da sua medida é ainda feita por recurso aos critérios gerais constantes do artigo 71° do Código Penal - cfr. neste sentido Ac. da R.C. de 18/12/96, in CJ, Ano XXI, t. V, p. 62 e ss. e Ac. da R.P. de 20/9/95, in CJ, Ano XX, t. IV, p. 229 e ss.
Discorda o arguido da pena acessória que lhe foi aplicada.
Defende ele que 4 meses seria mais adequado.
De facto, o crime em questão é também punível com a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor, a fixar entre três meses e três anos, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do CP.
Esta pena acessória tem, além do mais, um carácter dissuasor, com vista a evitar que os condutores conduzam de forma imprevidente e desatenta.
No caso em apreço, são elevadas as exigências de prevenção geral, pois subjacente ao preceito em apreciação visa-se o combate à sinistralidade rodoviária provocado pelo álcool ingerido pelo condutor demasiado confiante em si próprio e pouco atento às vicissitudes do trânsito que se desenrola perante os seus olhos, numa atitude que deve cada vez ser mais de prevenção e defensiva, o levam ao desastre.
Face à factualidade considerada provada nos autos, encontram-se, no caso vertente, integralmente reunidos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido da pena acessória da proibição de conduzir veículos a motor por um período de três meses a três anos.
Importa, agora, determinar a medida da pena acessória, que será fixada dentro da moldura penal abstracta – com um mínimo de três meses e um máximo de três anos – de acordo com a culpa e as exigências de prevenção (geral e especial), bem como a todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido (cf. artigo 71º do CP), fazendo-se, por isso, o mesmo raciocínio que se faz para graduar a pena principal.
Sabemos que o arguido se mostra familiar, social e profissionalmente integrado.
Aplicar-se agora ao arguido – mesmo perante uma TAS não muito elevada - a solicitada pena acessória de 4 meses, depois de um antecedente criminal em que lhe foram aplicados tais 4 meses de pena acessória, afigura-se-nos, desde logo, injustificadamente “benevolente” pois estaríamos a tocar quase no mínimo da moldura (algo inconcebível quando estamos a falar de alguém que tem antecedentes a este nível).
Diga-se que a actual letra do artigo 69º do CP foi introduzida pela Lei n.º 77/2001 de 13/7 – esta iniciativa legislativa agravou, de modo significativo, a pena abstracta da mencionada pena acessória, alterando-a, no seu limite mínimo, de 1 mês para 3 meses e, no seu limite máximo de 1 ano para 3 anos.
Deste modo, tal agravação derivou de uma inequívoca opção político-criminal que reconhece – sabia e pragmaticamente - que as finalidades da punição, atenta a reconhecida pouca eficácia da pena de multa, se conseguem, neste tipo de delito rodoviário, essencialmente, através da aplicação da pena acessória de proibição de condução, sendo essa a parte que invariavelmente mais toca no âmago do prevaricador.
Assim, a pena acessória fixada pela 1.ª instância (6 meses) é minimamente adequada, em termos toleráveis, ao caso vertente.
O juiz não é um computador e ainda bem, diga-se.
Tudo depende de vários factores que deverão ser sopesados.
Não vale agora invocar que se precisa da carta para trabalhar.
Desta forma, não será de esperar – esse o nosso desejo - que volte de delinquir pois já sabe a falta que lhe faz a carta.
Esta pena exerce uma função de emenda cívica e, por isso, é justificada, ao contrário do que defende o recorrente.
A condução de veículo automóvel na via pública, com capacidades intelectuais diminuídas, nomeadamente a nível de atenção, rapidez de reflexos e coordenação motora, por o agente estar influenciado por elevados níveis de álcool ingerido, constitui um elevado risco para a sociedade, cuja segurança urge proteger através da aplicação de adequada pena acessória para evitar a reincidência neste crime rodoviário.
Assim, ponderadas as circunstâncias atinentes à culpa e às necessidades de prevenção, bem como os elevados índices de sinistralidade no nosso País, provocados justamente por condutores imprevidentes e etilizados, considera-se – minimamente, note-se - justa e proporcional – de pouco relevando a sua confissão, num caso de flagrante delito, restando-lhe uma muito reduzida margem de manobra para, não confessando, defender alguma peregrina tese de que a factualidade narrada no auto de notícia era falsa – a imposição ao arguido da proibição de conduzir veículos a motor por um período de 6 MESES, só podendo IMPROCEDER este recurso.
De facto, em lado algum esta decisão viola os princípios da adequação e proporcionalidade, transversais ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal.
Assim sendo, só pode manifestamente improceder este recurso, dada a existência de antecedentes criminais no âmbito de crimes rodoviários, já tendo o arguido sido anteriormente condenado em pena acessória de proibição de condução, o que revela que a dita condenação não surtiu o efeito dissuasor desejado, cogitando-se ainda que a falta que uma carta de condução faz a um arguido condutor não é critério para baixar a pena aplicada.
3.6. Em síntese conclusiva, improcede a totalidade do recurso, decidindo-se pela manutenção de todo o sentenciado.
Após trânsito, e devolvidos os autos à 1ª instância, recomenda-se que se dê DE NOVO cumprimento ao disposto no Acórdão do STJ nº 2/2013 (AUJ), de 8/1/2013, segundo o qual: «Em caso de condenação (…) e aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir prevista no art. 69º, nº 1, al. a) – ou outra alínea -, do CP, a obrigação de entrega do título de condução derivada da lei (art. 69º, nº 3 do CP e art. 500º, nº 2 do CPP), deverá ser reforçada, na sentença, com a ordem do juiz para entrega do título, no prazo legal previsto, sob a cominação de, não o fazendo, o condenado cometer o crime de desobediência do art. 348º, nº 1, al. b), do CP».
III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa], sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que possa vir a gozar.
Relator: Paulo Guerra
Adjunto: Sara Reis Marques
Adjunto: Sandra Ferreira