ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
FURTO QUALIFICADO PARA FURTO SIMPLES
ÂMBITO DO ARTIGO 358º
N.º 3 DO CPP
Sumário

I - Quando a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de uma infração que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, e quando o crime acusado inclui já os elementos do crime da condenação, a alteração da qualificação jurídica não carece de ser comunicada ao arguido, nos termos do art. 358º Código de Processo Penal, dado que a finalidade para a qual a norma do artigo 358º, n.º 3 do CPP foi criada – garantia de defesa técnica – está naturalmente assegurada pela relação jurídica de concurso aparente entre o crime acusado e o ‘provado’ e o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar.
II - A alteração da qualificação jurídica – de furto qualificado para furto simples - sendo irrelevante em termos de afetação do direito de defesa do arguido não se encontra abrangida pelo âmbito do artigo 358º, n.º 3 do CPP, nem viola as garantias de defesa consagradas no artigo 32º, n.º 1 e 5, da CRP, designadamente o princípio do contraditório.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


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I – Relatório:

- » No âmbito dos presentes autos, foi proferido acórdão datado de 28/1/2025, nos termos do qual foi decidido absolver o arguido AA da prática, em autoria material, de um crime de furto qualificado p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea d), com referência ao artigo 202.º, alínea e), todos do Código Penal, de que vinha acusado e condená-lo  pela prática de 1 crime de furto, p, e p. pelo art. 203º, nº 1, e 204º, nº 2, al. e) e nº 4, do C.Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (efectiva).

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-» Inconformado com tal decisão, veio arguido interpor recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
I- “ O presente recurso tem por objeto a matéria de direito do acórdão proferido pelo Tribunal Coletivo que condenou o Arguido por um crime de furto simples p, e p. pelo art. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, al. e) e no 4,doC.Penal,na  pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (efectiva).
II- O Arguido ora Recorrente vinha acusado, como autor material, na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea d), com referência ao artigo 202.º, alínea e), todos do C.Penal.
III-  O Tribunal  a quo acaba  por condenar o arguido por um crime de furto simples, rectius, desqualificado p. e p. pelo art .203.º, n.º 1,e 204.º, n.º 2, al. e) e n.º 4, do C. Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (efectiva).
IV- Salvo melhor entendimento, tal consubstancia uma alteração da qualificação jurídica, nos termos do  Disposto no artigo 358.º, n.º 3 do CPP.
V- Pelo que, ao alterar a qualificação jurídica dos factos, o Tribunal a quo sempre deveria ter dado ao arguido a possibilidade de exercer o seu contraditório em sede de audiência de discussão e julgamento, nos termos e para os efeitos do artigo 358.º, n.º 3 do CPP.
VI- Face ao supra exposto, o Acórdão proferido padece de nulidade, por violação do princípio do contraditório e das garantias de defesa, nos termos do artigo 120.º, número 2, alínea d) do CPP e ainda artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e ,em consequência Ser revogado o acórdão proferido a 28-01-2025 e remetidos os autos ao Tribunal a quo, a fim de ser assegurado o cumprimento do número 3 do artigo 358.º do CPP.”

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- » O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal,  subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito suspensivo.

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-» O Ministério Público apresentou resposta, pugnando no sentido de “não se dar provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.”

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-» Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer, aderindo à motivação e conclusões apresentadas em 1ª instância e concluindo pela improcedência do recurso.

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-» Notificado em conformidade com o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o arguido nada disse.

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-» Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II – questões a decidir:

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, págs. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.º, n.º 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»).

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – o acórdão proferido nos autos – é a seguinte a questão a examinar e decidir (além das que são de conhecimento oficioso):

- nulidade do acórdão, por não ter sido cumprido o direito ao contraditório e por violação das garantias de defesa, nos termos do disposto no art.º  120º n.º 2 al. D) do CPP e no art.º 32 da CRP.


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III – Transcrição dos segmentos da decisão recorrida relevantes para apreciação do recurso interposto. 

Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:

“2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

2.1 MATÉRIA DE FACTO PROVADA:

- Da acusação:

1. No dia 13 de dezembro de 2021, no período compreendido entre as 05h10 e as 12h20, o arguido AA dirigiu-se à residência de BB (doravante BB), localizada na Rua ..., em ..., com a intenção de fazer seus bens e valores que ali encontrasse.

2. Uma vez chegado à residência de BB, o arguido AA dirigiu-se até à porta principal, que se encontrava devidamente fechada e, munido com um objeto de características não concretamente apuradas, forçou a mencionada porta, conseguindo abrir a mesma.

3. No interior da residência, o arguido deslocou-se a uma divisão designada como “arrumos”, onde se encontrava um cofre de aproximadamente trezentos (300) quilos, o qual se encontrava preso com uma armação em ferro na parte superior.

4. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA cortou, de modo não concretamente apurado, a armação de ferro que existia na parte de cima do cofre e forçou a outra armação de ferro que se encontrava na parte de baixo do referido cofre.

5. Todavia, por não ter logrado a sua abertura, o arguido não conseguiu aceder aos objetos que se encontrariam no interior do cofre.

6. Ainda no interior da residência, o arguido AA deslocou-se a um dos quartos e retirou do roupeiro existente no mesmo, sem autorização dos seus legítimos proprietários, brincos, perfumes, pulseiras e relógios, de características e valores que não foi possível apurar.

7. O arguido deslocou-se a outro quarto e retirou da cómoda existente no mesmo, objectos de características e valores não apurados, sem autorização dos seus legítimos proprietários:

8. Em seguida, o arguido AA de forma não concretamente apurada, levou os referidos objetos consigo, fazendo-os seus.

9. Na mesma ocasião, de forma não concretamente apurada, o arguido partiu uma janela de sacada que dá acesso à varanda do primeiro andar.

10. O arguido AA sabia que os objetos descritos, que fez seus, não lhe pertenciam e que, ao atuar como descrito, agia contra a vontade dos seus legítimos proprietários.

11. AA sabia que a residência identificada não lhe pertencia, que não tinha autorização para entrar no referido espaço e que ao forçar a porta de entrada e ao entrar pela mesma, atuava contra a vontade e sem consentimento do seu proprietário.

12. No entanto, o arguido AA quis forçar a entrada, entrar e permanecer na referida residência, para retirar objetos que lá se encontravam, sem a autorização e vontade dos seus legítimos proprietários, o que conseguiu.

13. O arguido AA sabia que os bens que se encontravam no interior do cofre não lhe pertenciam, que não se encontrava autorizado a aceder ao interior do cofre, e ainda assim, quis agir da forma descrita, com o intuito de fazer seus os bens que se encontravam no referido cofre e de causar ao seu proprietário os correspondentes prejuízos, o que apenas não se concretizou, por motivos alheios à sua vontade.

14. O arguido AA sabia que os objetos descritos não lhe pertenciam, os quais fez seus, assim como sabia que, ao atuar como descrito, atuava contra a vontade dos seus legítimos proprietários.

15. Mais sabia que não estava autorizado a entrar na residência de BB, de forma não concretamente apurada pela porta de entrada, e de retirar os bens que lá se encontrassem, assim como sabia que, ao atuar dessa forma, fazia-o contra a vontade dos seus legítimos proprietários.

16. Ao partir a janela da sacada e ao provocar estragos na porta da entrada, o arguido causou ao ofendido um prejuízo de €1.500,00 (mil e quinhentos euros).

17. O arguido sabia que com este comportamento estragava, como estragou, um bem que não lhe pertencia e que atuava contra a vontade do respetivo proprietário, o que quis.

18. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.

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 - Da declaração de perda das vantagens da atividade criminosa

Dão-se por reproduzidos os factos da acusação, acima dados como assentes.

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- Da discussão da causa e dos autos, com relevo para a decisão de mérito

1- C.r.c. do arguido e respectivos averbamentos:

1- Pela prática, a 09-10-2005, de um crime de injúria, pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 2€ - proc. 696/05...., do então 2º Juízo Criminal de Matosinhos – pena já declarada extinta.

2- Pela prática, a 06.09.2005, de um crime de condução sem habilitação legal, pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 2€ - proc. 4106/05...., do então Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto – pena já declarada extinta.

3- Pela prática, de um crime de furto qualificado, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de tráfico de menor gravidade, pena de 3 anos e 3 meses de prisão efectiva - proc. 860/06...., do então 3º Juízo Criminal de Matosinhos – pena já declarada extinta.

4- Pela prática, a 10-06-2006, de um crime de injúria agravada e de um crime de ofensa á integridade física qualificada tentada, pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa, à taxa diária de 2€ - proc. 548/06...., do então 1º Juízo Criminal de Matosinhos – pena já declarada extinta.

5- Pela prática, a 03-05-2007, de um crime de injúria agravada e de um crime de resistência e coação sobre funcionário, pena de 2 meses de prisão, substituída por 60 dias de multa, à taxa diária de 2,50 € - proc. 366/07...., do então 3º Juízo Criminal de Matosinhos – pena já declarada extinta.

6- Pela prática, a 25-11-2005, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de furto qualificado, pena de 3 anos de prisão - proc. 547/05...., do então 1º Juízo Criminal da Póvoa do Varzim.

7- Cúmulo jurídico, no âmbito do proc. 510/05...., do então 3º Juízo Criminal de Matosinhos (abrangendo as condenações referidas em 4, 5 e 6) – pena única de 5 anos de prisão efectiva.

8- Pela prática de um crime de tráfico (de menor gravidade), pena de 3 meses de prisão efectiva - proc. 3205/09...., do então 2º Juízo Criminal de Matosinhos – pena já declarada extinta.

9- Pela prática, a 27-08-2006, de 2 crimes de furto qualificado, pena de 4 anos e 8 meses de prisão - proc. 971/05...., do então Tribunal Judicial da Maia, 2ª Secção.

10- Pela prática, a 01-01-2007, de 1 crime de furto qualificado, pena de 2 anos e 6 meses de prisão - proc. 841/06...., da então 3ª Vara Criminal do Porto.

11- Cúmulo jurídico, no âmbito do anteriormente referido, proc. 841/06...., da então 3ª Vara Criminal do Porto (abrangendo as condenações referidas em 3, 4, 5, 6, 7 e 9) – pena única de 7 anos e 3 meses de prisão.

12- Pela prática, a 05-11-2014, de um crime de condução sem habilitação legal, pena de 7 meses de prisão, suspensa por 1 ano - proc. 1374/14...., do Juízo Local Criminal da Maia, J2

13- Pela prática, a 28.02.2014, de um crime de tráfico (de menor gravidade), pena de 2 anos de prisão efectiva - proc. 19/14...., do Juízo Local Criminal da Matosinhos, J3.

14- Cúmulo jurídico, no âmbito do anteriormente referido em 12, cúmulo com o proc. referido em 13 – pena única de 2 anos e 3 meses de prisão – pena já extinta.

15- Pela prática, a 16.01.2015, de um crime de corrupção activa, pena de 2 anos de prisão efectiva - proc. 3110/13...., do Juízo Central Criminal do Porto, J10.

16- Pela prática, a 13.01.2014, de um crime de falsificação, pena de 12 meses de prisão efectiva - proc. 1/14...., do Juízo Local Criminal da Matosinhos, J2 – pena já extinta.

17- Pela prática, a 06.09.2015, de um crime de detenção de arma proibida e crime de coacção, pena de 5 meses de prisão efectiva - proc. 1066/15...., do Juízo Local Criminal da Matosinhos, J1 – pena já extinta.

18- Pela prática, a 17.12.2015, de um crime de detenção de arma proibida, pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa, com regime de prova - proc. 3836/15...., do Juízo Central Criminal de Vila do Conde, J3 – pena já extinta.

19- Pela prática, ano de 2021, de um crime de roubo tentado, furto qualificado, detenção de arma proibida, sequestro, furto qualificado e falsificação, pena de 8 anos de prisão (acórdão transitado em julgado a 10.01.2024) - proc. 1339/21...., do Juízo Central Criminal de Aveiro, J2.

20- Pela prática, a 25.12.2018, de um crime de injúria agravada, pena de 3 meses de prisão efectiva - proc. 2615/19...., do Juízo Local Criminal da Matosinhos, J1 – pena já extinta.

21- Cúmulo jurídico, pela prática ano de 2021, crime de furto qualificado, sequestro, detenção de arma proibida, roubo na forma tentada, falsificação, furto qualificado e injúria, pena única de 8 anos de prisão (acórdão transitado em julgado a 25.09.2024) - proc. 885/24...., do Juízo Central Criminal de Vila do Conde, J3.

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2- Percurso de vida/condições pessoais:

1- AA, natural de ..., é o terceiro de cinco irmãos.

2- A dinâmica familiar é referenciada como disfuncional, decorrente da toxicodependência do pai e pelas sequelas daí derivadas, como precaridade económica, conflitualidade conjugal, com ausência quase completa da supervisão educativa estruturada sobre os filhos menores.

3- O seu percurso escolar foi marcado pelo desinteresse, absentismo e desajustamento comportamental, tendo AA abandonado a escola após a conclusão do 2º ano do ciclo do Ensino Básico.

4- O arguido terá sido alvo de acompanhamento médico na especialidade de Pedopsiquiatria, por curto período de tempo, no início da idade escolar.

5- Este enquadramento associado ao consumo de substâncias psicoativas determinaram a intervenção do sistema tutelar educativo, vindo AA a cumprir medida de internamento de 16 meses, aos 14/15 anos.

6- O sistema tutelar educativo foi substituído, no decurso dos anos, pelo sistema judicial penal tendo cumprido sucessivamente uma pena única de 7 anos e 3 meses de prisão, em cúmulo jurídico, entre 14/10/2006 e 19/03/2013, pela prática de crimes de condução sem habilitação legal, furto qualificado, tráfico de estupefacientes de menor gravidade, ofensa á integridade física qualificada e recetação.

7- Em reclusão, AA evidenciou claras dificuldades no tocante à interiorização de normas e regras, com consequências disciplinares e, também na aquisição de competências escolares e laborais, apenas atenuadas a partir de 2010.

8- Foi concedida liberdade condicional aos 5/6 da pena, em 19/03/2013 a qual veio a ser revogada em 4/04/2016, pelo cometimento de novos crimes.

9- No decurso do acompanhamento da liberdade condicional por parte destes serviços da DGRSP, AA revelou dificuldades de adesão aos objetivos delineados, não apresentando atitude de empenho na obtenção de qualificação profissional e desinvestimento na total desvinculação dos hábitos aditivos.

10- Em 15/12/2017 apresentou-se voluntariamente no EP de Santa Cruz do Bispo a fim de cumprir pena de 71 dias de prisão subsidiária e outras condenações em pena de prisão efetiva pela prática de crimes de tipologia diversa.

11- Foi, entretanto, transferido para o EP de Paços de Ferreira, saindo em 15/01/2021, após cumprimento integral da pena de prisão a que foi condenado.

12- Em meio livre, estabeleceu ligação afetiva com CC, ex-companheira, da qual tem dois descendentes, de 18 e 10 anos de idade, respetivamente, relacionamento que veio a revelar-se disfuncional ao longo dos anos, com separações temporárias do casal, tendo a relação terminado definitivamente há cerca de 2 anos.

13- O relacionamento entre o casal é descrito pelo arguido como pautado pela adoção por parte de ambos os elementos do casal de comportamentos de ciúme e controlo emocional, com registo de agressões mútuas.

14- Em relação aos filhos do casal, o DD (18 anos) e a EE (10 ano), costumam visitá-lo ao EP.

15- Para o futuro apresenta propósitos normativos de vida, com vontade em assumir um projeto de vida organizado ao nível familiar e profissional, tendo como perspetiva de trabalho a jardinagem ou mecânica.

16- À data dos factos constantes do presente processo AA residia com a ex-companheira CC e os dois descendentes do casal, na Rua ..., em ..., juntos à casa dos pais dele.

17- O arguido não dispõe de qualquer qualificação profissional facilitadora da sua inserção laboral.

18- Mantinha convívio com pares desviantes, persistindo no consumo de substâncias psicoativas.

19- O relacionamento instável e disfuncional deu origem a instauração de Processo de Promoção pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Matosinhos e à rutura do relacionamento.

20- No meio social de residência, o arguido é identificado e associado ao seu percurso criminal e conotado com o convívio com pares desviantes, embora não se percecione sentimentos de rejeição à sua presença.

21- AA deu entrada no Estabelecimento Prisional ... a julho de 2024, preso à ordem do Processo nº 885/24...., onde foi condenado, numa pena de 8 anos, pela prática dos crimes de sequestro, injúria, furto, furto qualificado, roubo, detenção de arma proibida e falsificação ou contrafação de documentos.

22- Em relação à natureza dos factos nos presentes autos, AA apresenta capacidade crítica relativamente a ilicitude dos mesmos, identificando os eventuais danos causados a terceiros.

23- Em meio prisional, esteve inserido em um curso de Formação Profissional com equivalência ao 3º Ciclo do Ensino Básico, atualmente, encontra-se inativo, uma vez que não foi selecionado para frequentar o curso de manutenção hoteleira.

24- Não apresenta castigos neste ano.

25- O arguido beneficia do apoio e visitas dos progenitores, dos filhos e do irmão.

26- Ainda não se encontra a beneficiar de medidas de flexibilização da pena.

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2.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Da acusação:

1- O cofre referido em 3 dos factos provados continha, no seu interior, objetos em ouro e a quantia monetária de cerca de €15.000,00 (quinze mil euros).

2- O arguido AA retirou do quarto referido em 6 dos factos provados:

a. Cinco pulseiras, no valor total de €280,00 (duzentos e oitenta euros);

b. Um par de brincos, no valor de €150,00 (cento e cinquenta euros);

c. Cinco pares de brincos, no valor total de €295,00 (duzentos e noventa e cinco euros);

d. Quatro relógios, no valor total de €275,00 (duzentos e setenta e cinco euros);

e. Quatro colares, no valor total de €210,00 (duzentos e dez euros);

f. Perfumes, em número não concretamente apurado, no valor total de €110,00 (cento e dez euros).

3- O arguido AA retirou do quarto referido em 7 dos factos provados:

a. Quatro pulseiras, no valor de €295,00 (duzentos e noventa e cinco euros);

b. Três colares, no valor total de €210,00 (duzentos e dez euros);

c. Cinco pares de brincos, no valor total de €175,00 (cento e setenta e cinco euros);

d. Dois relógios, no valor total de €90,00 (noventa euros).

4. Os objetos retirados por AA totalizam o valor de €2.090,00 (dois mil e noventa euros).

5- O arguido AA sabia que os bens que se encontravam no interior do cofre possuíam um valor global muito superior a €102,00 (cento e dois euros).

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                2.3. MOTIVAÇÃO

Para formar a sua convicção acerca dos factos considerados provados, o Tribunal Colectivo atendeu a toda a prova produzida em audiência de julgamento, a cuja análise crítica e conjugada procedeu.

O arguido prestou declarações em audiência de julgamento, negando, em absoluto, os factos; referiu, aliás, que não se encontrava em Portugal, aquando da prática dos factos, que nunca veio a ..., e que quando regressou de França, por altura do Natal, a sua carrinha tinha sido alvo de furto, ficando com um vidro partido e dali levaram objectos, entre os quais uma bolsinha, um carro amarelo de mão, entre outros objectos (os encontrados no local do furto na residência onde ocorreram os factos, em ...).

O arguido negou ter alguma vez vindo a ..., ou a ...; contudo, confirmou que os objectos fotografados a fls. 6, 9, 43, 45 e 46 são seus – o carrinho, bolsa com mortalhas, chave da carrinha.

Mais referiu que participou a ocorrência do furto no automóvel mais tarde, o que fez através do seu cunhado FF e que foi acionado o seguro, facto que não foi confirmado pelas informações solicitados pelo Tribunal à Companhia Seguradora “A...”, segundo as quais “o veículo ..-LO-.. não se encontra ou encontrou garantido por apólice de seguro do grupo A...; mais informou a seguradora em causa a “inexistência de processo de sinistro com o veículo referido”.

Em suma, ficou bem patente que o “carrinho amarelo” fotografado nos autos, no qual estavam as impressões digitais do arguido, carrinho que ficou no local dos factos e que se destinaria ao transporte de algum objecto furtado mais pesado, era pertença do arguido, o que o mesmo não negou; os demais objectos, bolsa, chave, também pertenciam ao arguido; assim, o Tribunal considerou que a negação do arguido de ter estado no local do crime, bem como toda a sua exposição quanto ao ocorrido com a sua carrinha, alegando que alguém teria trazido estes objectos, careceu de qualquer credibilidade, pretendendo o arguido, apenas e só, eximir-se à sua responsabilidade.

Quanto ao modo de entrada na residência do ofendido, os estragos na porta, quer a de entrada da habitação, quer a porta por onde o arguido terá saído, pois os estragos eram de dentro para fora), demonstram bem que tal entrada na habitação se deu por meio de arrombamento.

A tentativa de retirar o cofre encontra-se, igualmente, documentada fotograficamente nos autos; parece muito claro que o arguido (e certamente mais alguém cuja identidade se desconhece) terá tentado levar o cofre, o que não foi possível, dado o peso do mesmo.

Quanto aos objectos furtados, o Tribunal não tem forma de saber ou de confirmar quantos artigos foram furtados e qual o respectivo valor, já que as informação sobre tal matéria são absolutamente genéricas, muito pouco rigorosas  até contraditórias (informação dos autos e depoimentos prestados em audiência); nestes termos, o Tribunal deu como não provado que tenham sido levados da habitação alvo de arrombamento e furto, os objectos referidos na acusação, tornando-se absolutamente inviável fazer o cálculo dos respectivos valores dos artigos mencionados, por não se saber, sequer, quantos são, qual a sua natureza e características, em suma, inexiste forma de se poder calcular o seu valor, ainda que aproximado fosse.

Note-se que da prova testemunhal produzida, pouco se pode colher, a não ser o que, manifestamente, ocorreu - a entrada forçada na residência e a ocorrência de um furto de alguns objectos, embora genericamente descritos.

GG, o ofendido, explicou que exerce a profissão de feirante e que às 2f sai por volta da 5h da manhã de sua casa, para fazer o mercado de ...; referiu que um filho lhe ligou a perguntar se deixara a varanda aberta, verificando-se que lhe assaltaram a casa.

Quanto à relação de objetos que consta de fls. 269 dos autos, refere que esta foi elaborada no Posto da GNR, depois de falar com a esposa; mas nada permite confirmar que os artigos ali mencionados foram efectivamente os que foram furtados e quais os seus valores, pois inexiste qualquer proava relativa aos mesmos, seja fotográfica, seja prova documental - como facturas de compra ou outros documentos.

Refere o ofendido que o carro de mão seria para levar o cofre, o que não conseguiram fazer, dado o peso do mesmo.

BB, vendedor ambulante e filho do ofendido mas que já não vivia com o pais, confirmou que o cofre estava preso à parede e que para transportarem o cofre teriam que ser mais pessoas, apenas 2 não o conseguiriam levar.

Quanto a bens furtados, desconhece o que foi levado, pois eram coisas da sua irmã.

HH, técnico de informática e vizinho do ofendido, esclareceu que mora “paredes meias” com o Sr. GG, que ouviu muito barulho, que bateu à porta do vizinho e que o barulho parou, pensando que fossem obras; conclui o Tribunal que tal barulho seria decorrente da acção levada a cabo de desprender (serrar) o cofre da parede.

GG, filho do ofendido e que também já não vivia com os pais disse desconhecer os valores e características de “pulseiras e relógios” que supostamente foram furtados.

Quanto ao cofre, confirmou que o mesmo tem mais de 1 metro de altura e não dá para ser movimentado por apenas 1 ou 2 pessoas; explicou que para o colocar em casa foram precisas 4 ou 5 pessoas e que foi operação muito difícil.

No seu entender o carrinho (amarelo) aguentaria com o cofre, mas não daria para descer as escadas, por ser muito peso.

II, genro do arguido e que também trabalha nas feiras, disse nunca ter visto o arguido.

Quanto a perfumes e brincos (supostamente furtados), não sabe o valor, nem o que concretamente foi furtado.

JJ, militar da GNR, elaborou o auto de notícia, confirmou que a habitação estava toda remexida, com portas danificadas; o cofre estava na posição normal, próximo da parede; em suma, tudo o que viu verteu em auto, o qual confirmou em audiência.

KK, miliatar da GNR disse ter sido solicitada a sua comparência para efectuar inspecção ocular ao local, tratando-se do um assalto a residência.

Explicou que terão entrado pela porta principal da residência, dados os evidentes sinais de arrombamento; e terão saído por “porta sacada” da sala, também com sinais de arrombamento, mas do interior para o exterior.

Quanto ao cofre de grandes dimensões, o mesmo encontrava-se numa divisão de arrumos – tinha-se colocado ferros em redor do mesmo e os ferros estavam serrados.

No local estava um carrinho de mão (de cargas) amarelo, que seria para transportar o cofre.

Como acima foi assinalado, o carrinho em questão tinha vestígios lofoscópicos pertença do arguido, o qual, de resto, assumiu que o carrinho era seu.

Em suma, os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência apenas confirmaram ter ocorrido o assalto à residência.

Tais depoimentos foram conjugados com a demais prova dos autos, a saber:

- Pericial:

a. Relatório pericial, fls. 78-85 (vestígios lofoscópicos);

- Documental:

a. Auto de Notícia de fls. 3-4;

b. Auto de apreensão de fls. 5-5/v e de fls. 7-8;

c. Folha de suporte fotográfico de fls. 6, 9 e 10;

d. Relatório tático de inspeção ocular, de fls. 15-17;

e. Relatório fotográfico, de fls. 18-26;

f. Faturas, de fls. 134-135 (documentam os estragos/prejuízos nas portas);

- Objetos:

Carrinho de mão/carga.

O Tribunal ficou plenamente convencido quer da ocorrência do furto na residência, com entrada na mesma mediante arrombamento, quer quanto ao facto de o arguido, inequivocamente, ter participado nos factos, como autor dos mesmos, dada toda a prova já referida.

No que concerne aos factos referentes às condições pessoais, económicas e sociais do arguido, nos moldes indicados nos factos considerados provados, o Tribunal Colectivo atendeu ao relatório social elaborado pela DGRSP, datado de 27.11.2024

Por fim, a demonstração dos antecedentes criminais apresentados pelo arguido resultou da análise do teor do CRC junto aos autos.

***


*
IV – Fundamentação: da nulidade do acórdão

Uma vez que o recorrente não questiona o acerto da decisão sobre a matéria de facto e respetiva qualificação jurídica e não se vislumbra que a decisão recorrida padece de um qualquer vício de conhecimento oficioso, passar-se-á de imediato à decisão da questão suscitada no recurso.

Ora, um processo penal de estrutura essencialmente acusatória, como o processo penal português (cfr art.º 32º n.º 5 da CRP), implica necessariamente uma relação de correspondência entre a acusação e a decisão final em sede de julgamento. Diz-nos a este respeito Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 3ª ed. rev. atual., Lisboa: Verbo, 1994, pág. 265, que “O processo de estrutura acusatória exsge uma correlação entre acusação e a decisão. A definição do thema decidendum na acusação é uma consequência da estrutura acusatória do processo».

E do princípio da acusação (segundo o qual é esta que define e fixa, perante o juiz, o objeto do processo) decorre logicamente um outro princípio, corolário do primeiro – o da identidade do objeto do processo, que traduz a noção de que o objeto da acusação se deve manter idêntico, desde aquela, até à sentença final.

Em decorrência desta estrutura, temos o princípio da vinculação temática, que postula que o poder de investigação do tribunal se refere ao objeto do processo que lhe e heteronomamente posto  pela acusação ou pronúncia– cfr. art.º 379 n.º 1 al. b)  do CPP,

Por outro lado, são asseguradas todas as garantias de defesa (artigo 32º, n.º 5 da CRP), nomeadamente o direito de audição e ao contraditório, bem como o direito a um processo justo e equitativo como imposto pelos artigos 20º, n.º 4 da CRP e 6º, n.º 3 da CEDH.

Escreve-se de forma esclarecedora no Ac. da RP de 05-02-2025, Processo: 829/ 23.1 PHMTS.P1, in www.dgsi.pt:

“Da conjugação do princípio do acusatório e da tutela do direito de defesa do arguido decorre a vinculação temática do tribunal do julgamento à acusação ou ao despacho de pronúncia, que definem e fixam os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado -  Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 93, 218-224; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p 144-145.

A este efeito da vinculação temática do tribunal ligam-se o princípio da identidade (o objeto do processo deve manter-se o mesmo desde que é fixado até ao trânsito em julgado da decisão), o princípio da unidade (o objeto do processo deve ser conhecido e julgado na sua totalidade) e o princípio da consunção (mesmo quando não tenha sido conhecido e julgado na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido)[3].

A vinculação temática do tribunal constitui a pedra angular de um efetivo e consistente direito de defesa do arguido que assim fica protegido contra arbitrários alargamentos da atividade cognitiva e decisória do tribunal e dá-lhe a garantia de não ser surpreendido com novos factos na audiência de julgamento, podendo aí exercer o direito de contraditar os factos que lhe são imputados na acusação”.

Sabemos no entanto que, sem prejuízo deste princípio, por razões de economia processual e no próprio interesse do arguido, a lei permite expressamente ao Juiz que este comunique aos sujeitos processuais, mesmo no decurso da audiência de julgamento, quer uma alteração não substancial (art. 358.º do C.P.P.), quer uma alteração substancial (art. 359.º do C.P.P.), quer uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (art.º 358º n.º 3 do CPP).

Como se salienta no Comentário Judiciário do PP, Tomo IV, Almedina, em anotação ao art.º 359º do CPP, “o TEDH faz decorrer do direito previsto no art.º 6º/3/a CEDH a obrigação do tribunal informar o arguido não apenas das alterações à causa da acusação mas igualmente da alteração da qualificação jurídica deles e bem assim a de conceder-lhe adequadas condições, nomeadamente temporais, para reagir ás alterações do libelo”.

Esta última situação e a sua repercussão nas garantias de defesa do arguido, é um tema recorrentemente debatido no âmbito da interpretação do artigo 358.º do atual Código de Processo Penal.

Prescreve este normativo que:

“1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”

O n.º 3 deste normativo foi introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto e veio clarificar que uma alteração da qualificação jurídica dos factos, sem que haja qualquer modificação dos factos da acusação ou da pronúncia, não está submetida ao regime do art.359.º do Código de Processo Penal, mas sim ao do art. 358.º e que o arguido tem o direito de se pronunciar sobre a mesma.

É precisamente este direito a ser ouvido que o recorrente entende que foi postergado pelo Tribunal a quo.

Sobre esta questão, da necessidade de cumprimento da comunicação em situações de alteração para crime menos grave, há uma cisão na jurisprudência.

A corrente dominante defende que, quando a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de um infração que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, a alteração da qualificação jurídica não carece de ser comunicada ao arguido, nos termos do art. 358º Código de Processo Penal, uma vez que o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar.  

Lemos precisamente no Ac. de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 7/2008, de 25-06-2008, disponível in www.dgsi.pt. a seguinte argumentação nesse sentido :

"O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender.

Ao alargar o âmbito de aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República, que impõe sejam asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido - n.º 1 do artigo 32.º consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado.

Assim e atenta a ratio do instituto, vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido - artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República - o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder-lhe prazo para preparação da defesa. Por isso, se considera que a alteração resultante da imputação de um crime simples ou "menos agravado", quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender-se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou "menos agravado", ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto e normativos pelos quais vai ser julgado.

O mesmo sucede quando a alteração resulta na imputação de um crime menos grave do que o da acusação ou da pronúncia em consequência de redução da matéria de facto na sentença, quando esta redução não constituir, obviamente, uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação.

Tal acontece, ainda, face a alteração decorrente da requalificação da participação do agente de co-autoria para autoria, bem como perante alteração resultante da requalificação da culpa do agente de dolo directo para dolo eventual.

[...]."

O STJ tem vindo a pronunciar-se neste sentido em múltiplos arestos, reiterando esta argumentação - cfr. a título de exemplo os Acórdãos de 12/9/2007, proc. n.º 07P2596,. de 07.11.2002, Proc. n.º 047407, de 14.06.2006, Proc. n.º 06P1415; AC STJ 7/2008, 02.07.17, Proc. n.º 3158/02, de 03.11.12, Proc. N.º  1216/03.

Nas Relações, tem sido também este o entendimento maioritário - cfr. por todos, o Ac. RP  de 14.03.2018, Proc. n.º 563/16.9GAALB.P1 e de  05-02-2025, Proc.º 829/23.1PHMTS.P1, o Ac. da RG de 2.11.2015, Proc.º nº 77/14ITAAVV.G1 e os Ac. da RE de 21-06-2022, Proc.º: 80/20.2PAENT.E2 e de 30/10/2013, Proc.º 440/11.0GBLSA.C1, todos in www.dgsi.pt.

Aderindo a esta argumentação, mas com uma posição mais restritiva, veio alguma jurisprudência defender que, mesmo nos casos em que a condenação representa um “minus”, a alteração da qualificação só não carecerá de ser comunicada quando se enquadrar dentro do mesmo tipo de crime.

(neste sentido, cfr. os Acs. da RC, de 22.02.2017, Proc. n.º 19/16.0GAFIG.C1 e  da RP, de 18.05.2011 Proc. n.º 143/10.2GBSTS.P1, in www.dgsi,pt)

Também o TC tomou posição sobre esta matéria, afirmando no Ac n.º 498/12, de 24 de Outubro de 2012, Proc. n.º 514/12, www.dgsi.pt, que “…só pode concluir-se, que “esta alteração, não impõe o cumprimento do art. 424º, nº 3 do CPP, pois a mesma constitui um minus, integra uma modalidade do tipo menos grave, relativamente à qualificação jurídica da pronúncia…”

Já em sentido inteiramente divergente se posiciona outra corrente jurisprudencial - minoritariamente – defendendo que o contraditório deve ser exercido sempre, quer quando a nova qualificação jurídica seja “in mellius”, quer seja “in pejus”, uma vez que o n.º 3 do art.358.º do C.P.P. não estabelece esta distinção (nesse sentido, Ac STJ de 12-5-2009, proc. n.º 33/05.0JLSB.C1.S1, da RL de 14-09-2016, Proc. 517/14.0PDFUN e  da RE, de 19.02.2013, Proc. n.º 1027/11.2PCSTB.E1, in www.dgsi.pt)

Na doutrina, é a orientação mais abrangente que tem uma defesa mais expressiva (cfr. Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal”, Almedina, 17.ª ed. pág. 815; Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado”, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, Almedina, 2014, pág. 1128, Gana Lobo, CPP Anotado, Almedina)

Encontram-se, no entanto, vozes discordantes.

Assim, Pedro Albergaria, in Comentário Judiciário do CPP, Tomo IV, Almedina, onde alerta para a possibilidade de “alguém acusado por um tipo de crime qualificado, público de sua natureza, entretanto qualificado como crime semipúblico, poder ter descurado a prova de elementos de facto que, a verificarem-se, poderiam ter levado à extinção do procedimento criminal”.

Também Paulo Pinto de Albuquerque entende que “a alteração da qualificação jurídica para incriminação menos grave pode ser igualmente danosa para a defesa ainda que o bem jurídico seja o mesmo e os factos sejam enquadrados na forma simples ou menos agravada de realização do crime.(…) Pense-se por exemplo na situação do arguido, acusado por furto qualificado que se vê, em audiência, confrontado com o enquadramento dos factos em furto simples, tendo descurado a discussão de possíveis causas de extinção do procedimento criminal, como a prescrição ou a falta de queixa, Ocorrendo a alteração da qualificação jurídica, ainda que para incriminação menos grave, a posição processual do arguido é protegida pelo dever de comunicação prévia e pela oportunidade de contraditório”.

Cientes do quadro legal e doutrinário em causa, acima sucintamente delineado, entendemos de facto que não é qualquer alteração da qualificação jurídica que terá de ser comunicada ao arguido, mas tão só aquelas que sejam relevantes do ponto de vista da sua defesa, no sentido de se imputar ilícito substancialmente diverso.

Assim, quando o crime acusado inclui já os elementos do crime da condenação, não passando este de um minus em relação àquele – como é o caso dos autos - , a comunicação da alteração da qualificação jurídica não é imposta, dado que a finalidade para a qual a norma do artigo 358º, n.º 3 do CPP foi criada – garantia de defesa técnica – está naturalmente assegurada pela relação jurídica de concurso aparente entre o crime acusado e o ‘provado’, pois a defesa técnica do primeiro implica a defesa do segundo.

In casu,  o arguido vinha acusado da prática de um crime de furto qualificado p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea d), com referência ao artigo 202.º, alínea e), todos do Código Penal, do qual foi absolvido, tendo sido condenado, por convolação jurídica, pela prática de um crime de furto, p, e p. pelo art. 203º, nº 1, e 204º, nº 2, al. e) e nº 4, do C.Penal.

O arguido teve claramente conhecimento de todos os elementos constitutivos do crime e possibilidade de os contraditar, tendo sido asseguradas todas as garantias de defesa - n.º 1 do artigo 32.º da CRP - consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado. Ao defender-se do crime qualificado, defendeu-se, necessariamente, do crime simples ou «menos agravado», ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto e normativos pelos quais vai ser julgado.

A alteração da qualificação jurídica – de furto qualificado para furto simples - sendo irrelevante em termos de afetação do direito de defesa do arguido não se encontra abrangida pelo âmbito do artigo 358º, n.º 3 do CPP, nem viola as garantias de defesa consagradas no artigo 32º, n.º 1 e 5, da CRP, designadamente o princípio do contraditório.

Vemos que no recurso interposto o recorrente invoca o art.º 120º n.º 2 al. d) para fundamentar a nulidade do Acórdão, por violação do princípio do contraditório e das garantias de defesa.

Contudo, não só não ocorreu tal violação, como supra demonstrámos, como de qualquer modo não encontraria aplicação o supra referido normativo, que se prende, com decorre da respetiva leitura, com a insuficiência do inquérito ou da instrução.


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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5ª secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo recorrente confirmando o acórdão recorrido.

Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.


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Notifique.


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Coimbra, 28-05-2025 

 (texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sara Reis Marques

 Alcina da Costa Ribeiro

 Paulo Guerra