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DEVEDOR SOLIDÁRIO
INIBIÇÃO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
VACINA
DEFEITOS
PROTEÇÃO
FACTOS NOVOS
Sumário
I – A inibição de proceder judicialmente contra um devedor solidário depois de ter demandado judicialmente um outro, salvo razão atendível, inibição prevista no art.º 519/1 do CC, é uma inibição temporária e corresponde a uma excepção dilatória conducente a uma absolvição da instância, não a uma excepção peremptória que deva levar à absolvição do pedido, mesmo que com um caso julgado de alcance reduzido nos termos do art.º 621 do CPC, nem uma inexigibilidade temporária que devesse levar à condenação nos termos do art.º 610/1 do CPC. II – É manifesta a improcedência da pretensão dos autores - que deve levar à aplicação do art.º 278/3 do CPC em vez da absolvição da instância -, quando aqueles pretendem exercer o direito a uma indemnização objectiva por danos causados por defeitos de um produto (uma vacina) – art.º 1/1 do DL 383/89, de 06/11 -, mas se limitam a dizer que se verificou uma falência vacinal, sendo esta a constatação de uma situação normal em que uma vacina não protege todos que a tomaram da doença causada pela bactéria contra a qual foi desenvolvida. III – Não podem ser alegados factos novos num recurso.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados
A 09/09/2019, S [= autora] e filho, V [= autor], este menor, representado por S, sua mãe, intentaram uma acção comum contraG-Lda.,pedindo que esta fosse condenada a:
a\ informar no processo, suportado documentalmente, as medidas que tomou em relação à situação de falência vacinal do 2.º autor e qual o estado da averiguação que fez quanto a esse mesmo evento e medidas que tomou, e vai tomar quanto à situação actual e futura do 2.º autor;
b\ proceder ao imediato acompanhamento clínico do 2.º autor, com feitura de todos os exames médicos necessários com vista ao apuramento da causa e natureza da falência vacinal;
c\ pagar, a título de danos morais, à 1.ª autora, de 50.000€ e ao 2.º autor de 75.000€, com juros de mora sobre as importâncias em dívida, calculados à taxa legal e devidos desde a citação até integral pagamento. Para o efeito, alegaram, em síntese, que: o autor tomou duas doses de vacina de prevenção contra a meningite B; apesar disso, cerca de um ano depois, contraiu a meningite B; verificou-se pois a falência vacinal; a ré, enquanto produtora da vacina, é responsável por tais danos, nos termos do DL 383/89, de 06/11, por ter colocado no mercado um produto defeituoso.
A acção foi proposta pelos autores invocando apoio judiciário apenas para a autora; no pedido, a autora refere que o agregado familiar dela é apenas composto por si e pelo filho e diz estar desempregada. Na PI identifica-se como socióloga, divorciada, residente na Praceta S, Amadora. Na PI, indica como testemunha P, empresário, residente na Praceta S, ou seja, na mesma morada. No corpo da PI vê-se que esta testemunha é o pai do autor. A autora não refere o estado de civil desta testemunha. O autor, menor, está apenas representado pela sua mãe, autora. No assento de nascimento do autor consta a autora como mãe, divorciada, e a testemunha como pai, solteiro, ambos declarantes. A ré contestou, entre o mais excepcionando(i) a incapacidade judiciária do autor, porquanto não está representado por ambos os progenitores, mas apenas pela mãe/autora; (ii) a sua ilegitimidade passiva, uma vez que, como se antevê da petição inicial, os autores terão pretendido demandar a produtora da vacina mas acabaram por demandar apenas a distribuidora da mesma em Portugal – que constitui uma sociedade distinta -, deixando fora da acção a produtora da mesma, assinalando que no folheto informativo da vacina aparece obrigatoriamente indicado quem é o produtor da mesma; e (iii) a inibição dos autores de procederem judicialmente contra ela, porquanto, como referem no artigo 81º da PI, propuseram acção contra o Hospital L de Lisboa e a médica pediatra desse hospital, no dia anterior a esta, com o mesmo pedido, c, de indemnização, pelos mesmos danos; existindo várias pessoas potencialmente responsáveis pela mesma obrigação, a sua responsabilidade é solidária: artigos 6/1 do DL 383/89 para a responsabilidade do produtor, 497/1 do Código Civil para a responsabilidade por factos ilícitos e 507/1 do CC para a responsabilidade pelo risco; nada impedia os autores de demandar conjuntamente todos os responsáveis; mas tendo exigido judicialmente o cumprimento da obrigação de indemnizar a um dos co-responsáveis solidários dessa obrigação – tal como conformada pelos autores – então os credores não mais a podem exigir aos outros co-responsáveis, em virtude do disposto no artigo 519/1 do CC, pelo que a ré deverá ser absolvida do pedido, nos termos do artigo 576/3 do Código de Processo Civil; também impugna, para além do mais a nível do Direito, dizendo que os autores confessam que “ainda não sabem o que sucedeu, quais são as causas da falência vacinal, se houve algum problema/defeito/anomalia com aquele lote na naquele lote da vacina, se há algum factor pessoal que tenha contribuído para a falência da vacina, se houve erro no doseamento ou na aplicação da vacina, etc., etc., etc.”; ou, dito de outro modo, os autores não concretizam nem densificam sequer, como é seu ónus, que a vacina concretamente administrada ao autor era defeituosa; não resulta dos autos qualquer demonstração de facto relativamente à existência de defeito na vacina, ao que acresce que a alegação de uma situação de “falência vacinal” não corresponde, inteiramente, à possibilidade de verificação de defeito, pois é um conceito mais amplo, cujo significado excede não apenas a qualidade do produto como a própria esfera de actuação do seu produtor; acresce que, segundo a Organização Mundial de Saúde, a circunstância de uma vacina não ser 100% eficaz contra antígenos incluídos integra a definição de falência vacinal e não de defeito. Por requerimentos apresentados em 11/03/2020, os autores responderam às excepções deduzidas pela ré; quanto à da inibição dizem que nas duas acções tratam-se de pedidos diferentes, de indemnizações diferentes, por causas diversas: naquela pedem-se os danos a mais sofridos por força da negligência médica e nesta estão em causa os danos sofridos por causa da falência da vacina e do incumprimento dos deveres de informação e de cuidado por parte da ré; quanto à da ilegitimidade da ré dizem que vão deduzir incidente de intervenção principal provocada em requerimento autónomo, o que fizeram relativamente à produtora da vacina G-S.r.l., onde dizem que a ré original é, independentemente da intervenção ou não da produtora, parte legítima nos autos (o que desenvolvem); mas, continuam, entendem que como parte deve ter intervenção nos autos a produtora agora dado a conhecer pela ré [por razões de clareza, mantém-se, neste acórdão, a expressão ré apenas para a ré original e interveniente para a segunda, apesar desta também ser ré].
Na sequência de “promoção” pela ré, os autores foram notificados para juntarem aos autos documento comprovativo da regulação das responsabilidades parentais, tendo vindo “informar que não existe documento de regulação das responsabilidades parentais”; na sequência de nova “promoção” da ré, a autora foi notificada para esclarecer se o menor vive com ambos os progenitores, tendo os autores vindo informar que o menor vive com ambos os pais. Veio então a ré dizer, entre o mais, que cabendo o exercício das responsabilidades parentais a ambos os pais, deverá o menor estar nos autos representado por ambos os pais (cf. artigo 16.º, n.ºs 1 e 2 do CPC); estando representado apenas pela sua mãe, carece de capacidade judiciária, “concluindo-se, como na contestação, pela verificação de uma excepção dilatória por ausência de um dos pressupostos processuais necessários ao conhecimento do mérito da acção, e caso a referida incapacidade venha a ser suprida, com o consequente prosseguimento dos autos, deverá ser dado conhecimento à Segurança Social, tendo em vista a rectificação do pedido de apoio judiciário formulado pela autora em 18/07/2019, fazendo incluir na composição do respectivo agregado familiar o pai do menor. Os autores vieram dizer que “como se vê do quadro 3 do formulário do apoio jurídico, referente à composição e situação económica do agregado familiar, aí se estatui expressamente que o requerente “Indique todas as pessoas que vivem em economia comum…”. A autora preencheu o formulário de acordo com as indicações recebidas pela Segurança Social após ter informado que o pai do autor não vive consigo em economia comum – e que, assim, não deve constar do mesmo. Nada há, portanto, a rectificar no pedido de apoio judiciário formulado pela autora.”
Na sequência do despacho proferido em 13/04/2021, o pai do autor menor, juntou em 10/05/2021, declaração por si subscrita em que ratificou o processado, e procuração a favor do advogado subscritor da PI.
Por despacho proferido em 10/11/2021, foi admitida a intervenção principal provocada de G-S.r.l., do lado passivo, considerando-se que “quer por força de uma preterição de litisconsórcio por solidariedade da obrigação, quer por força de uma eventual dúvida quanto ao titular da relação material controvertida, a sua intervenção é admissível nos presentes autos por forma a assegurar a presença de todos os titulares de interesses relevantes face ao teor do pedido formulado,” tendo sido determinada a sua citação.
Citada a 18/03/2022, a G-S.r.l., apresentou contestação em 27/06/2022, excepcionando, entre o mais, (i) estarem os autores inibidos de a accionarem, pelas mesmas razões já referidas pela ré e (ii) a prescrição (3 anos: art.º 11 do DL 383/89), do direito dos autores contra si, visto que só foi citada em 2022 e os autores têm conhecimento do seu direito desde 03/10/2016 (sendo que a indicação do fabricante do medicamento é uma das indicações obrigatórias que deverá constar do folheto informativo, como constava, conforme decorre do artigo 106/3-h(vii) do DL 176/2006, de 30/08 [Estatuto do Medicamento]; a nível de Direito, impugna também a falta de indicação de qualquer defeito da vacina; pediu a condenação dos autores como litigantes de má fé no pagamento de multa e indemnização.
Os autores responderam a 08/07/2022 à acusação de litigância de má fé, negando-a; e em 04/11/2022 às excepções, do mesmo modo como o tinham feito relativamente às deduzidas pela ré original e impugnando os factos respectivos quanto à da prescrição. No despacho saneador de 05/12/2024, depois de várias partidas em falso a 02/02/2023, 14/04/2023, 21/06/2023, 25/02/2024 e 15/05/2024, julgaram-se sanadas: a excepção dilatória da incapacidade judiciária do autor pela ratificação do processado apresentada pelo pai do autor (cf. declaração junta em 10/05/2021); e a da ilegitimidade passiva, com o chamamento da interveniente; julgou-se procedente a excepção peremptória inominada de inibição dos autores de procederem judicialmente contra as rés, absolvendo-as dos pedidos; considerou-se prejudicado, entre o mais, o conhecimento da excepção da prescrição; e julgou-se não existente a má fé dos autores. A procedência da excepção da inibição tem a seguinte fundamentação, seguindo muito de perto o que tinha sido alegado pela ré e pela interveniente, incluindo as referências da jurisprudência, que se transcreve, evitando-se apenas algumas duplicações e com correcção de alguns erros de escrita manifestos:
Se compararmos as petições iniciais apresentadas neste (entrado às 13h de 09/09/2019) e no processo 17956/19.2T8LSB (entrado às 11h53 a 09/09/2019), verificamos que os artigos 49 a 66 e 69 a 80 da PI dos presentes autos correspondem aos artigos 47 a 84 da PI apresentada pelos autores na acção 17956, cuja cópia encontra-se junta aos presentes autos a fls. 557 a 584, 2º volume, com o requerimento de 02/05/2023.
O pedido, deduzido em ambas as acções, é idêntico e o conteúdo das petições iniciais é, quase na sua totalidade, coincidente.
A título exemplificativo, considere-se o artigo 64 da PI da acção 17956 em que os autores referem, no que respeita aos danos, “por causa do incumprimento dos réus o autor teve que ser sujeito a coma induzido e que suportar os tratamentos e exames documentalmente atestados pelos documentos do HDE e o artigo 60 da PI dos presentes autos em que os autores, na sequência de referências à responsabilidade da ré e interveniente “pelos danos decorrentes dessa falência vacinal” (art.º 58 da PI) e pelos “incumprimentos dos seus deveres” (art.º 59 da PI), concretiza esses danos referindo que “o autor teve que ser sujeito a coma induzido e que suportar os tratamentos e exames documentalmente atestados pelos documentos do HDE.”
Resulta da leitura de ambas as PI que os danos invocados pelos autores em ambas as acções, cujo ressarcimento é peticionado, são os mesmos. Trata-se dos danos resultantes do facto de o autor ter contraído a doença meningocóccica invasiva causada pelo grupo B e das consequências e prejuízos daí advenientes para os autores.
Estabelece o art.º 6/1 do DL 383/89, sob a epígrafe Responsabilidade Solidária: Se várias pessoas forem responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade. O mesmo prevê o art.º 497/1 do CC para a responsabilidade por factos ilícitos. E o art.º 507/1 do CC, para a responsabilidade pelo risco.
Quanto à solidariedade entre os devedores, estabelece o art.º 519/1 do CC, sob a epígrafe “Direitos do credor”: “O credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação, ou parte dela, proporcional ou não à quota do interpelado; mas, se exigir judicialmente a um deles a totalidade ou parte da prestação, fica inibido de proceder judicialmente contra os outros pelo que ao primeiro tenha exigido, salvo se houver razão atendível, como a insolvência ou risco de insolvência do demandado, ou dificuldade, por outra causa, em obter dele a prestação.”
A respeito desta matéria, veja-se o ac. do TRP de 21/02/2018, proc. 1245/05.2TBMCN.P1: […] V – Quando várias pessoas são responsáveis pelos danos, cria-se uma situação de solidariedade passiva – art.º 497 CC. […] VIII - O art.º 519/1 do CC estabelece verdadeira impossibilidade ex lege de proceder judicialmente contra o devedor solidariamente responsável e objecto da demanda intentada em segundo lugar, na inexistência de alegação referente à potencial insolvência da entidade ou entidades antes demandadas ou de qualquer outra comprovada dificuldade em obter delas a prestação.
No mesmo sentido, atente-se no ac. do STJ de 24/06/2014, proc. 36/99.2TBLMG-E.P2.S1: III: Tendo o lesado exigido judicialmente a um dos devedores solidários a totalidade ou parte da prestação devida e posto termo à demanda com celebração de transacção em que o demandado fica exonerado do pagamento de parte do peticionado, fica o mesmo inibido de proceder judicialmente contra os demais devedores pelo que àquele tenha exigido.
Resulta dos preceitos legais enunciados e dos acórdãos citados que o credor não pode demandar os devedores solidários em acções diversas, no sentido de que ou demanda todos os devedores solidários numa mesma acção ou, caso opte por demandar apenas um devedor solidário, não pode demandar os outros devedores solidários no âmbito de outra acção judicial.
Do confronto entre as PI de ambas as acções verifica-se que a causa de um mesmo dano é atribuída na acção 17956 ao Hospital L e à médica pediatra e nesta à ré e interveniente.
Os autores instauraram ambas as acções considerando que os réus de ambas as acções são devedores de uma mesma obrigação, ou seja, o ressarcimento dos danos morais que consideram ter sofrido em consequência dos acontecimentos do dia 18/09/2016, em que o autor contraiu doença meningocóccica invasiva causada pelo grupo B.
Existindo várias pessoas potencialmente responsáveis pela mesma obrigação, a sua responsabilidade é solidária, em conformidade com os já citados artigos 6/1 do DL 383/89, 497/1 e 507/1 do CC.
Tal regime não é afastado pela circunstância de os factos que dão origem à obrigação de indemnizar de cada um dos responsáveis serem distintos.
É irrelevante a diferença quanto às causas que obrigam os diversos responsáveis à obrigação de indemnizar os mesmos danos – danos não patrimoniais decorrentes do sofrimento dos autores com a situação vivida pelo autor – para a existência da solidariedade.
Ou seja, para efeito de responsabilidade solidária, é indiferente que os danos sejam devidos a alegada negligência médica e/ou a alegada falência da vacina e o alegado incumprimento da G e da G VACCINES.
O acontecimento material e naturalístico é uno.
Não existem “danos a mais sofridos por força da negligência médica” e “danos sofridos por causa da falência vacinal” (art.º 84 da PI desta acção), existem, só e apenas, tal como a acção se encontra configurada pelos autores, danos que, no caso, são danos não patrimoniais em resultado da infecção meningocóccica do autor.
Nada impedia os autores de demandar conjuntamente o Hospital L, a médica, a G-Lda e a G-S.r.l. e, dessa forma, procurar o reconhecimento, por um lado, do seu direito à indemnização e, por outro lado, da responsabilidade de cada uma destas entidades.
Não o tendo feito e tendo demandado separadamente os que entendem serem responsáveis civis pelos danos sofridos, a ré e a interveniente terão que ser absolvidas do pedido por força da procedência da excepção inominada invocada, nos termos do art.º 576/3 do CPC. Os autores interpuseram recurso deste saneador-sentença – para que seja anulado e ordenada a sanação do vício mediante a consignação dos factos provados, nos termos do artigo 662/2-c do CPC, ou para que seja revogada e substituída por outra que julgue improcedente a excepção de inibição dos autores procederem contra as rés – alegando, em síntese, que:
A sentença é nula porque dela não constam dos factos provados apesar de ter decidido de mérito (art.º 615/1-b do CPC).
As indemnizações pedidas em cada uma das acções são diferentes e independentes, são cumuláveis; o valor total da indemnização pedida às aqui rés e aos réus da outra acção é de 250.000€ (= 125.000€ + 125.000€). Os danos não são os mesmos: nesta acção estão em causa os danos decorrentes da falência vacinal, o facto de o autor ter contraído a doença meningocóccica invasiva causada pelo grupo B, enquanto a outra incide sobre os danos decorrentes da assistência médica no Hospital L. O art.º 519/1 do CC dispõe que o credor pode exigir de qualquer dos devedores parte da prestação; foi isso que fizeram os autores – na acção 17956/19 exigiram ao Hospital L e à médica a parte da prestação correspondente aos danos por eles causado, e neste processo pedem às rés a parte da prestação referente aos danos causados por eles.
A sentença não aborda, analisa, sequer faz meras referências, aos outros dois pedidos dos autores. E sem que a excepção deduzida pelas rés invoque factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor quanto a esses pedidos, a sentença também os julga improcedentes.
No processo 17956/19 foi proferida sentença em 10/05/2022. Essa sentença foi absolutória sendo que os autores aceitaram essa decisão e dela não interpuseram recurso. A ré e a interveniente contra-alegaram dizendo, em síntese, que:
O saneador-sentença apenas tinha de especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”; para julgar procedente a excepção de inibição o tribunal a quo apenas precisou de contrapor duas petições iniciais de dois processos diferentes (nada mais) e especificou que foi esta contraposição que o levou a decidir no sentido da procedência da excepção peremptória que levou à absolvição.
No dia anterior ao desta acção, os autores, contra outros réus, noutra acção, exigiram o cumprimento da mesma obrigação de indemnizar pelos mesmos danos: independentemente das causas, trata-se sempre dos danos resultantes do facto de o autor ter contraído a doença meningocóccica invasiva causada pelo grupo B e das consequências e prejuízos daí advenientes para os autores; pelo que está verificada a situação que os inibia de propor depois esta acção: art.º 519/1 do CC. Tudo como disse a sentença, no essencial dizendo o que as rés já tinham dito.
Os “demais pedidos” têm uma natureza probatória, para além de não terem qualquer utilidade quando desligados do pedido indemnizatório no contexto da acção em que se insere; prova disto é, em particular, a circunstância de, quanto a estes “pedidos”, os autores não terem articulado, na petição inicial, quaisquer factos geradores de efeitos jurídicos. De outro modo: esses pedidos não surgem como consequência lógica de uma causa de pedir composta por factos alegados pelos autores.
No despacho de admissão do recurso, de 17/02/2025, o tribunal recorrido, “prevenindo entendimento diverso e admitindo a existência da invocada nulidade” aditou os seguintes factos provados:
1\ Os autores instauraram acção contra o Hospital L e médica pediatra (em 09/09/2019, às 11h53), correspondente ao processo 17956/19 […]
2\ A presente acção 13760/19 foi instaurada em 09/09/2019, às 13h.
3\ O pedido deduzido em ambas as acções pelos autores é idêntico e o conteúdo das petições iniciais é, quase na sua totalidade, coincidente, conforme PI deduzida no processo 17956/19, cuja cópia foi junta a fls. 557 a 584, 2.º volume, com o requerimento de 02/05/2023, cujo teor dá-se aqui por integralmente reproduzido, e petição inicial dos presentes autos.
4\ Os danos invocados pelos autores em ambas as acções, cujo ressarcimento é peticionado, são os mesmos: trata-se dos danos resultantes do facto de o autor ter contraído a doença meningocóccica invasiva causada pelo grupo B e das consequências e prejuízos daí advenientes para os Autores.
5\ A causa do mesmo dano é atribuída numa acção ao Hospital L e à médica pediatra e na presente acção é atribuída às aqui ré e interveniente.
Factos não provados: inexistem.
Fundamentação de facto: atendeu-se à análise comparativa das PI nos dois processos. Se compararmos as petições iniciais apresentadas neste e naquele processo verificamos que os artigos 49 a 66 e 69 a 80 da PI dos presentes autos, correspondem aos artigos 47 a 84 da PI da PI apresentada pelos autores no processo 17956/19 e que o pedido deduzido em ambas as acções é idêntico e o conteúdo das petições iniciais é, quase na sua totalidade, coincidente.
A título exemplificativo, considere-se o artigo 64 da PI daquela acção, em que os autores referem, no que respeita aos danos, “por causa do incumprimento dos réus o autor teve que ser sujeito a coma induzido e que suportar os tratamentos e exames documentalmente atestados pelos documentos do HDE, o artigo 60 da pi desta acção em que os autores, na sequência de referências à responsabilidade das aqui ré e interveniente “pelos danos decorrentes dessa falência vacinal” (art.º 58 da pi) e pelos “incumprimentos dos seus deveres” (art.º 59 da pi), concretiza esses danos referindo que “o autor teve que ser sujeito a coma induzido e que suportar os tratamentos e exames documentalmente atestados pelos documentos do HDE.
Resulta da leitura de ambas as petições iniciais que os danos invocados pelos autores em ambas as acções, cujo ressarcimento é peticionado, são os mesmos. Trata-se dos danos resultantes do facto de o autor ter contraído a doença meningocóccica invasiva causada pelo grupo B e das consequências e prejuízos daí advenientes para os autores. Vieram então os autores “alargar o âmbito do recurso, na parte em que, suprindo a nulidade alegada, enuncia agora a matéria de facto provada” dizendo, em síntese, que:
Os factos dados como provados sob 3, 4 e 5 são factos valorativos ou conclusivos, traduzindo resposta antecipada à questão de direito, pelo que devem ser eliminados.
Tais factos são, por outro lado, parciais, porque sem qualquer explicação acolherem a integralidade das afirmações das rés e desprezam ostensivamente tudo o que foi alegado pelos autores nos artigos 81 a 84 da PI e na resposta à excepção. As rés respondem, em síntese, que:
Os autores não pretendem alargar o âmbito do recurso, mas antes invocar um novo vício do despacho de admissão do recurso que, a existir, já existia no saneador-sentença, dado que a matéria de facto objecto deste invocado novo vício já dele constava, ipsis, verbis; assim sendo, do que se trata é de um novo recurso que é manifestamente intempestivo e, por isso, inadmissível.
Os pontos de facto atacados não são conclusões e valorações parciais ou antecipatórias da questão de direito: o tribunal a quo constatou – de facto – que foram apresentadas duas PI em processos distintos e constatou, também, que essas PI tinham determinado conteúdo, não necessitando, para o efeito, de interpretar ou aplicar qualquer norma jurídica, de emitir qualquer juízo de valor, ou de percorrer um trilho de premissas para chegar a uma conclusão.
* Questões que importa decidir: se se verificam as nulidades arguidas e, no caso positivo, consequências a tirar; se o complemento do recurso não era admissível; se não se verifica a excepção de inibição julgada verificada pelo tribunal ou se esta não tem as consequências decretadas e, nesse caso, consequências a tirar disso.
* Apreciação:
O preenchimento da previsão da inibição legal em causa (art.º 519/1 do CC) depende da alegação e demonstração de que os autores estão a exigir, nas duas acções, toda a prestação, ou seja, a mesma prestação, de todos os devedores, no caso, de todos os responsáveis.
A demonstração de que, nas duas acções, se está perante a mesma prestação e de que por ela estão a ser demandados vários responsáveis, depende da comparação entre aquilo que consta das PI de uma e outra acção.
Aquilo que consta de uma e de outra acção são factos processuais, pelo que a decisão da excepção depende de factos que se têm de dar como provados.
Sendo factos processuais, demonstra-se a sua verificação através da referência às respectivas peças processuais e, por isso, pode acontecer que a simples descrição deles nos relatórios dos despachos ou sentenças que decidam excepções seja suficiente para o efeito, pelo que será um preciosismo estar a fazê-los constar de uma parte daqueles despachos ou sentenças dedicadas aos factos provados que se abra para o efeito.
Tanto mais que, sendo factos processuais, plenamente provados pelas próprias peças processuais donde eles constam, são sempre utilizáveis pelas partes ou pelos tribunais de recurso, desde que sejam invocados.
E, por outro lado, porque, como as partes têm tendência para escrever peças processuais extensíssimas, estar a reproduzir todos aqueles factos processuais tornam dificilmente legível e inteligível os respectivos despachos e sentenças.
Daí que aja a tendência para, relativamente aos factos processuais, se remeter simplesmente para o que consta dos relatórios dos despachos e das sentenças.
Mas se os relatórios não contêm a descrição suficiente das peças processuais para dar a conhecer de forma completa os factos processuais que permitam a decisão das questões a resolver, então eles têm que ser feitos constar dos factos provados.
Ora, factos são factos, não são conclusões sobre factos que ainda não constam dos despachos ou sentenças.
Para se saber se se está a exigir a mesma prestação de todos os responsáveis por ela em duas acções diferentes, nos factos provados têm de constar todos os artigos das PI, ou uma síntese deles muito completa e clara, que permitam concluir que a prestação é a mesma e que os demandados são responsáveis por ela. Os factos provados não podem ser a conclusão dessa comparação, sem dar a conhecer aquilo que foi o objecto da comparação.
Ora, por um lado, é notório que no saneador-sentença não constavam, fosse em que lado fosse, os factos suficientes para se poder saber se o resultado da comparação de que o saneador-sentença dava conta estava certo ou errado, nem uma síntese deles suficiente e, por isso, podia-se dizer que, realmente, se verificava a nulidade dele, por total ausência da fundamentação de facto (art.º 615/1b do CPC).
E, por outro, é notório que no despacho posterior, de suprimento de nulidade, não se supriu nada; o despacho limitou-se a converter em factos provados as conclusões a que tinha chegado… com base em factos que não constavam do saneador-sentença.
Pelo que os factos 3, 4 e 5 devem ser eliminados, mantendo-se os factos 1 e 2.
Assim sendo, continua a verificar-se a nulidade da sentença, porque não constam dos factos provados nenhuns dos factos que permitissem tirar as conclusões que o saneador-sentença tira e nas quais baseia a decisão da excepção da inibição.
Em suma, os autores têm razão nas nulidades arguidas, sendo que a segunda não constava do saneador-sentença, pelo que foi legítimo o complemento do recurso subsequente ao despacho que decidiu a primeira arguição.
As nulidades têm de ser supridas por este TRL (art.º 665/1 do CPC), o que se passa a fazer, pois que a questão está mais do que discutida.
* Aditam-se aos factos provados 1 e 2 que vêm do despacho de deferimento de nulidade, os seguintes:
Nesta acção, os autores escreviam, na parte que interessa às questões que o recurso coloca e, na medida do possível, com simplificações, que (a seguir aos números dos artigos desta PI, colocam-se, em parenteses, os números dos artigos da PI da acção 17956/19 que vão até ao artigo 84 e que são coincidentes ou quase com os daquela):
2 (= 2) Na noite de 17 para 18/09/2016, então com sete anos de idade, o autor […]
3 (= 3) Por volta das 3h, acordou com uma dor muito forte no pé direito, uma pequena mancha vermelha que aparecera, mal disposto e com muitos tremores.
[…]
5 (= 5) Porque não melhorava, os pais levaram o autor às Urgências do Hospital L.
6 (= 7+18) com mais actos médicos e mais respostas dos autores)\ Chegados a esse Hospital e inserida a triagem às 10h34, o autor foi observado e depois mandado para o domicílio com recomendação de repouso e tomada de Ben-u-ron e Brufen
7 (= 20) Porém, em casa a situação do autor piorava a cada instante […]
8 (= 21) Face ao agravamento do estado, os pais dirigiram-se novamente ao Hospital L, onde foi inserida a triagem às 17h36.
9 (= 22) Logo à entrada do Hospital o autor desfaleceu nos braços da mãe, de imediato acudiu uma Enfermeira que o levou para o gabinete e chamou a médica pediatra, tendo começado a ser feitas análises.
10 (= 24) Passados alguns minutos dirigiu-se a eles a médica pediatra e disse-lhes que a situação era muito, muito grave, não era uma virose e tinha sérias suspeitas que fosse uma meningite, que iria ser feita de imediato uma pulsão lombar mas que se preparassem para o pior diagnóstico.
11\ (≈ 26) Passados cerca de 20 minutos da feitura da pulsão lombar a médica pediatra voltou a dirigir-se-lhes, disse que ainda não tinha o resultado disponível, mas tinha a certeza que era meningite, o autor estava já a ser medicado para essa doença e tinha que ser transferido para o HDE – Cuidados Intensivos – e que vinha já a caminho a ambulância.
[…]
13 (= 32) Logo que chegaram a esse Hospital, pelas 18h30, os pais dirigiram-se ao Serviço de Cuidados Intensivos, quase de imediato dirigiu-se-lhes o médico responsável, Dr. JN, que lhes confirmou a gravidade da situação […]
14 (= 33) Passada cerca de uma hora voltou a dirigir-se-lhes, disse que se confirmava a meningite, que era da pior estirpe – meningite B – o que iria agora fazer era induzir o coma […]
15 (= 34) Mais informou que os órgãos estavam a começar a parar devido à septicemia, os rins pararam e o coração estava quase a parar pois estava com um valor médio de tensão arterial de 3.
16 (= 10) Sucede, porém, que, por prescrição da sua Pediatra, […], ao autor tinha sido ministrada a vacina para a meningite B, […], nas duas doses prescritas […]
18\ Houve, assim, uma situação de falência vacinal […] – atestada, aliás, pelos dois documentos que se juntam.
19 (≈ 39) No HDE foi comunicado aos pais do autor que, pela via institucional, ia o próprio Hospital desenvolver perante o Laboratório e demais entidades os trâmites normais tendentes à investigação e tratamento da situação – e que, portanto, não desenvolvessem eles qualquer procedimento junto dos Delegados de Saúde, da Escola e do Laboratório.
20\ Efectivamente, após identificação dos lotes vacinais foi feita notificação (para além do Infarmed) à G, fabricante da vacina.
21\ Quanto à Escola, foram, pelas entidades competentes, tomados os procedimentos normais pelos Delegados de Saúde e demais serviços competentes, bem como em relação aos colegas do autor e demais pessoas que com ele privaram.
22\ Contudo, por parte da ré – enquanto proprietária do Laboratório G Portugal – houve uma inércia total, já que nem sequer se dirigiu aos autores com vista a análise, apuramento, investigação e acompanhamento da situação e tomada das medidas convenientes/necessárias.
23\ A autora fez em Novembro de 2016 – passados dois meses, portanto – um contacto telefónico com a ré, identificou a situação, a chamada foi direccionada para a pessoa competente (cuja identificação não lhe foi dada), expôs o assunto com todo o detalhe possível, disseram-lhe ter sido tomada a devida nota e que o próprio Laboratório a ia contactar. Em Outubro e Novembro de 2017 fez novo contacto telefónico com a ré, falou com Dr.ª MR (Responsável de Informação Clínica), realçou as necessidades imperiosas de pela ré [sic - TRL], voltou a ser-lhe dito que o Laboratório a iria contactar.
24\ O que não fez.
25\ Em 01/06/2017, os pais do autor enviaram à ré a carta que se anexa, cujo teor para todos os efeitos aqui se dá por reproduzido. Doc. 7.
26\ Nessa carta, em síntese, afirmam que: 1 - têm o direito de saber e perguntam o que se passou neste caso, o que é que em concreto falhou que levou à falência vacinal; 2 – têm o direito de saber e perguntam o que é que foi, é e será feito para apurar o sucedido e respectivas causas, e acompanhamento da situação; 3 – têm o direito de saber e perguntam que medidas foram e serão tomadas para que a situação seja insusceptível de repetição; 4 – têm o direito de saber e perguntam se já houve casos similares, para a partir deles analisarem o sucedido. 5 – perante o próprio filho sentem o dever de não permitir que a situação – que tanto o fez sofrer e quase lhe causava a morte – seja esquecida e tratada como se nenhuma importância tivesse; 6 – quer os sérios riscos corridos pelo autor – dito pelos médicos, ele esteve à beira da morte –, quer a necessidade do seu acompanhamento permanente para prevenir e evitar agravamento e/ou novas doenças derivadas bem como outras situações graves futuras, exigem o sério apuramento do que se passou; 7 – Perguntam o que é que é feito para acautelar a saúde actual e futura do seu filho, o que requer a investigação séria e responsável com vista ao seu acompanhamento face à susceptibilidade de repetição da situação e para determinação dos cuidados a ter e eventual medicação a tomar; 8 – Em suma, reclamam o direito de que tudo seja feito para apuramento do sucedido e respectivas causas, com vista a garantir a saúde do autor mas também no sentido de em geral evitar repetições da situação.
27\ Em carta de 07/07/2017, também aqui dada por reproduzida, a ré informa que em conformidade com os procedimentos legais de fármaco-vigilância o caso foi registado e acompanhado junto do médico que segue o autor desde a sua notificação inicial e, após dizer que não existe nenhuma vacina que possa garantir 100% de sucesso na prevenção da doença, mais informa que continua a rever este caso de forma a confirmar as suas particularidades do ponto de vista clínico. Doc. 8.
28\ Por carta de 17/07/2017, aqui dada por reproduzida, os pais manifestam incredibilidade pela resposta abstracta, genérica e meramente formal recebida, e 1 – Acentuam que pretendem respostas às situações reais que o autor, seu filho, viveu (e eles próprios também) bem como à sua situação actual e às dúvidas e incertezas, clínicas e médicas, dessa mesma situação e projecção no futuro do seu filho; 2 – Solicitam informação sobre o significado, em termos de acções desenvolvidas e a desenvolver, das afirmações constantes daquela missiva “... este caso foi registado e acompanhado junto do médico que segue o autor desde a sua notificação inicial” e “... informamos que continuamos a rever este caso de forma a confirmar as suas particularidades do ponto de vista clínico”; 3 – Pretendem saber qual o papel que eles próprios, pais do autor, devem ter nas acções desenvolvidas e a desenvolver no âmbito do sucedido e de prevenção futura. Doc. 9.
29\ Em carta de 30/11/2017 a ré informa que continua a acompanhar a situação com toda a atenção e seriedade e em conformidade com todos os procedimentos legais de fármaco-vigilância, que a investigação está a decorrer por uma entidade externa, o Instituto Nacional de Saúde Pública Doutor Ricardo Jorge, com a qual a G tem colaborado de forma proactiva, que não foram autorizados a partilhar qualquer informação sobre os resultados sem o consentimento desse Instituto, e disponibilizam as seguintes informações alegadamente já autorizados a partilhar: O estudo genómico (primeira fase da investigação) já foi concluído e o seu relatório enviado à Direcção Geral de Saúde; A segunda fase da investigação será concluída no laboratório de referência para a Neisseria meningitidis no Instituto Carlos III, em Madrid (Espanha). Neste laboratório serão investigados os antigénios bacterianos indutores da resposta imunológica em indivíduos vacinados, pela avaliação in vitro do comportamento dos anticorpos bactericidas séricos na presença de uma cultura bacteriana. Os resultados desta investigação (segunda fase da investigação) serão igualmente partilhados com a Direcção Geral da Saúde. Mais informa não dispor então de mais informações relativas aos resultados da investigação e que irão informá-los sobre qualquer nova informação que possa vir a receber no devido tempo. Doc. 10.
30\ Datada de 11/04/2018 os autores remetem à ré uma carta, que se dá por reproduzida, a reiterar as anteriores, a salientar que as respostas recebidas se resumem “a prometer elementos e informações que nunca mais chegam” e voltam a solicitar os elementos e informações já requeridos. Doc. 11.
31\ Em 27/04/2018, a ré envia uma carta em que no 1.º§ repete exactamente o que já dissera, no 2.º reitera que a avaliação continua em curso e que a informação será enviada à Direcção Geral da Saúde e ao seu pediatra, no 3.º recomenda que entrem em contacto com o pediatra que notificou o caso à G, [e] no 4.º [faz] uma afirmação de princípio do seu comprometimento com a segurança dos doentes e a eficácia dos seus produtos. Doc. 12.
[…]
33\ Em 16/07/2018, os pais enviam à ré nova carta, que se dá por reproduzida, acentuando já estarem decorridos praticamente dois anos e continuam sem saber o que se passou com o autor, seu filho, o que falhou e porque falhou, qual o seu estado de saúde actual e perspectivas futuras, qual o acompanhamento em termos de saúde, o que esteve na origem da falha da vacina, como pensa a ré reagir em termos de responsabilidades pelas consequências, danos e prejuízos causados/sofridos. Doc. 13.
34\ Em 05/12/2018, começando por lamentar terem de recorrer a essa via face à ausência de respostas concretas, os pais enviam, com conhecimento à Administração em Portugal, uma carta à Administração da ré em Londres, que aqui a expor a situação, juntando a correspondência essencial trocada, e a requerer as respostas às questões concretas colocadas que em Portugal apenas mereceram afirmações genéricas e evasivas em vez de respostas concretas.
35\ A ré não enviou aos pais do autor qualquer comunicação e resposta após a carta de 27/04/2018 referida no artigo 31º, bem como a administração de Londres não deu qualquer resposta à documentação referida no Artigo anterior.
36\ Em suma: A – Ao autor foi, por prescrição da sua Pediatra, ministrada a vacina para a meningite B, a vacina B, nas duas doses prescritas, a primeira em 28 de Agosto e a segunda em 28 de Outubro de 2015; B – Em 17/18 de Set/2016 ao autor foi diagnosticada meningite B; C – Houve, assim, uma situação de falência vacinal; D – Devidamente notificada pelo HDE a ré e mesmo após o envio de diversas cartas pelos pais do autor a ré não deu resposta às questões por eles colocadas, nada fez junto deles e do seu filho para apurar da sua saúde (incluindo consequências futuras) e das causas da falência vacinal, nada fez em termos de acompanhamento da situação e de assunção de responsabilidade.
37\ Por força dessa absoluta inércia os autores ainda não sabem o que sucedeu, quais são as causas da falência vacinal, se houve algum problema/defeito/anomalia naquele lote da vacina, se há algum factor pessoal que tenha contribuído para a falência da vacina, se houve erro no doseamento ou na aplicação da vacina, etc., etc., etc..
38\ A ré violou clara e grosseiramente as suas obrigações de informação, responsabilização e acompanhamento, bem como os deveres de cuidado e de informação que se lhe impõe em relação a um produto que produz e põe no mercado – num sector tão vital na vida humana como a área da saúde.
39\ Por outro lado, pôs a ré no mercado produto defeituoso – entendendo tal conceito no sentido de que no caso “ ... não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em conta todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação” – n.º 1 do art.º 4 do DL 383/89, de 06/11, que transpõe a Directiva nº 85/374/CEE, do Conselho.
40\ Ao demitir-se do dever de, em responsabilização plena, analisar tecnicamente a situação, estudar e pesquisar tão profundamente quanto exigível cada caso concreto de falência vacinal de modo a conhecer a respectiva natureza e origem, a ré viola os deveres elementares que se lhe impõem enquanto Laboratório a quem é atribuída credenciação para produzir um produto tão essencial à sociedade e tão melindroso como uma vacina.
41\ E ao alhear-se em absoluto do estado de saúde, presente e futuro, do autor a ré viola também os deveres mais elementares de cuidado, protecção e acompanhamento que essa sua natureza de Laboratório produtor da vacina lhe impõe.
[…]
43 (= 41) À entrada na UCIP do HDE apresentava-se “...consciente e colaborante, com períodos de sonolência e discurso pouco coerente e imperecível. Para além das petéquias apresenta ainda conjuntivite com hemorragia conjuntival bilateral, uma sufusão no dorso do pé direito, hepatomegalia dolorosa 4 cm abaixo do RCD e Kernig positivo. Com sinais vitais: FC 140 bpm, MAP 50 mmHg, TRC 4s” e “...na admissão, foi sedado com Midazolan e Ketamine para colocação de CVC (CVC triplo lúmen veia subclávia direita) e entubado em VCPR”. Mesmo doc. 6.
44 (=42) Foi a seguinte a evolução do internamento na UCIP: Do ponto de vista infeccioso cumpriu terapêutica com Ceftriaxone, durante oito dias. Por persistência da febre e lesão cutânea no dorso do pé direito, iniciou Flucloxacilina a 26/9/2016. A hemocultura inicial (H. L) isolou Neisseria meningitidis grupo B, com posterior confirmação no INSA do serotipo ST 41-44. Por apresentar picos febris mantidos (máx 38,5) repetiu ecocardiograma no dia 26/9 para exclusão de vegetações cardíacas. Relativamente à parte respiratória, manteve ventilação mecânica invasiva desde a admissão até D5 de internamento e desde então apresenta-se estável em respiração espontânea, sem necessidade de O2 suplementar. A radiografia de tórax à admissão sem alterações de relevo, que se manteve na radiografia de controlo pós extubação. Última radiografia de tórax de 26/9/2016 com hipotransparência em “toalha” da metade inferior do hemitórax esquerdo, sem opacificação completa da base. Do ponto de vista hemodinâmico/hidroelectrolítico/metabólico/renal, durante o internamento iniciou em D1 perfusão de Dopamina (máx 0,3mcg/kg/min) que suspendeu respectivamente em D4 e D3 de internamento. Diurese mantida, sem alterações na função renal e ionograma. Sob o ponto de vista neurológico manteve sedoanalgesia com midazolam (máx. 5 mcg/kg/min) e alfentanil (máx 5 mcg/kg/h), suspendendo em D5 de internamento. Por suspeita de lentificação psico-motora, fez EEG no dia 26/9 que revela “Electrogénese de base regularmente estruturada para o grupo etário. Raras ondas abruptas isoladas sobre as regiões rollândias, sem nítido carácter epileptiforme”. Fez ainda TC-CE nesse mesmo dia sem alterações aparentes. Foi observado pela Neurologia, que após realização do exame neurológico e análise da TC-CE e EEG conclui que “do ponto de vista neurológico não parece ter havido compromisso neurológico da sua sepsies bacteriana”. Iniciou dieta oral em D5 com tolerância. Mesmo doc. 6.
45 (= 43) No dia 22/09/2016 os médicos decidiram tirar a sedação ao autor, bem como todos os suportes de vida inerentes à situação de coma induzido em que permaneceu desde o dia 18 (cinco dias).
46 (= 44) Comunicaram então os médicos aos pais que essa seria uma altura muito difícil para todos, não se sabendo se o autor iria acordar e, se isso sucedesse, em que condições ficaria – podiam esperar tudo ou nada.
47 (= 45) Questionada pela autora sobre o que significava “tudo” uma das Pediatras que acompanhou o filho durante o quinto dia de internamento concretizou que pode significar nunca mais conseguir respirar sozinho, comer, falar, andar, raciocinar, ler, fazer simples operações aritméticas, mesmo mexer qualquer um dos membros.
48 (= 46) “Tudo” iria depender dos danos cerebrais provocados pela bactéria, que ninguém sabia naquele momento quais eram.
49 (= 47) Foram dias de enorme angústia, grande pavor, e profundo sofrimento para os pais, quatro longos e muito dolorosos dias.
50 (= 48) Na sexta-feira e sábado, dias 23 e 24/09/2016, o autor abriu os olhos em esforço e depois paulatinamente começou a falar devagarinho e aos poucos, foi conhecendo todas as pessoas, começou a fazer um discurso coerente.
51 (= 49) No dia seguinte, Domingo, já se sentou no sofá do quarto e jogou um jogo na sua consola.
52 (= 50) Foram efectuados vários exames ao autor – TAC crânio-encefálico, ecocardiogramas, ecografias à zona abdominal, RX ao tórax, análises clínicas (vide documentos juntos) – foi consultado por vários especialistas, revelando um pequeno derrame nos pulmões.
53 (= 51) Ainda muito frágil, mas a melhorar de dia para dia o autor foi transferido para a Enfermaria no dia 26/09/2016, onde permaneceu em recuperação algum tempo.
54 (= 52) Teve alta hospitalar no dia 03/10/2016 – nessa altura ainda apresentava sinais de uma virose (possivelmente contraída na enfermaria do serviço de infecciologia), a mancha do pé estava ulcerosa (causa de febre, inferior a 38 graus), pelo que foi com guia de tratamento para mudança do penso de três em três dias.
55 (= 53) Manteve acompanhamento pediátrico, pela sua Pediatra particular, até 21 de Outubro de 2016, altura em que teve alta e voltou para a escola.
56 (= 54) A médica responsável pela alta ao autor no HDE, Dr.ª MB, afirmou que ele tem que estar sujeito a acompanhamento médico, para o resto da vida, e fazer regularmente exames de observação da doença.
57 (= 55) Respondendo a pergunta dos pais, recomendou-lhes que não vivessem a pensar no reaparecimento da doença, mas se um dia “sentirem que o V já não é o V” vão de imediato para o Hospital.
58\ Conforme decorre do exposto, a meningite que vitimou o autor foi originada por falência da vacina B que lhe fora ministrada nas doses prescritas e a ré, enquanto Laboratório produtor da vacina, é responsável pelos danos causados decorrentes dessa falência vacinal.
59\ E é também responsável, conforme também já invocado, por força do incumprimento dos seus deveres nos termos já alegados em particular nos artigos 38 a 41.
60\ O autor teve que ser sujeito a coma induzido e que suportar os tratamentos e exames documentalmente atestados pelos documentos do HDE.
61 (= 65) O autor correu sério risco de vida, inclusive no próprio Hospital L, e esteve entre a vida e a morte no HDE.
62 (= 66) Correu também o sério risco de, caso sobrevivesse, nunca mais conseguir respirar sozinho, comer, falar, andar, raciocinar, ler, fazer simples operações aritméticas, mesmo mexer qualquer um dos membros.
63 (= 67) Apesar da sua idade, o autor apercebeu-se da gravidade da situação e do risco de vida que correu, viveu momentos de pânico e de grande angústia.
64 (= 68) Sofreu imensas dores físicas.
65 (= 69) Sofreu muito, física e psicologicamente, pensando que ia morrer, que perdia os pais, nunca mais via os seus amigos – isso disse repetidamente aos pais e família nos momentos mais difíceis.
66\ A situação de falência vacinal causou-lhe dores e sofrimento, logo danos.
67 (= 73) A obrigação da reparação de um dano constitui o devedor na obrigação de reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
68 (= 74) E cabe ao tribunal, sopesando todos os elementos relevantes – em particular a gravidade do dano, a culpabilidade do responsável, a situação económica de lesante e lesado, as demais circunstâncias do caso – arbitrar em cada caso a indemnização adequada a cada situação.
69 (= 75) Conforme alegado, os pais do autor viveram pessoalmente todo o drama do seu filho.
70 (= 76) Acompanharam-no sempre no Hospital L, em casa e no HDE, falaram com os Médicos e Enfermeiros, estiveram com ele desde os momentos mais dramáticos à recuperação.
71 (= 77) Aperceberam-se a todo o momento e tomaram consciência de que o seu filho corria sério risco de vida, que a possibilidade de ele morrer era muito séria.
72 (= 78) Ouviram da boca dos médicos que conheciam a situação dizer-lhes que se preparassem para tudo, desde a morte à sobrevivência em situação de nunca mais conseguir respirar sozinho, comer, falar, andar, raciocinar, ler, fazer simples operações aritméticas, mesmo mexer qualquer um dos membros.
73 (= 79) Têm a consciência, pelo que lhes foi dito pelos próprios médicos, que o seu filho corre o risco permanente do reaparecimento da doença – se um dia “sentirem que o V já não é o V” vão de imediato para o Hospital, palavras que ouviram porque lhes foram dirigidas.
74 (= 80) Desde aí, até ao presente e por certo no futuro infinito, viveram, vivem e viverão sempre no terror de isso acontecer a todo o instante.
75 (= 81) Ainda hoje acordam cerca de dez vezes por noite e vão à cama do filho ver se ele está a respirar, com a agravante de desconhecerem quais os sintomas a que devem estar atentos.
76\ Quando se dirigiram à ré no sentido de saber o que aconteceu com o seu filho, com vista a zelar pela saúde dele próprio e a contribuir para (dentro do possível) evitar situações da mesma natureza com o próprio e de outras pessoas, depararam com a já invocada situação de absoluto alheamento, mesmo desprezo.
77\ Sentem-se muito tristes, amargurados e revoltados pela total falta de sensibilidade da ré em situações tão graves – num sector tão vital, repete-se, como a saúde.
78 (=82) Tudo isso lhes causou e causa grande angústia, permanente ansiedade, grande pavor, pânico mesmo, enorme sofrimento.
79 (=83) Neste longo período de quase três anos já decorrido os pais do autor. necessitam, quer para fazer face à situação quer para preparação da vivência futura, de apoio psicológico – o que ainda não conseguiram por impossibilidades económicas.
80 (= 84) No caso dos autos, tendo em atenção a factualidade alegada e os danos sofridos, bem como a sua extensão no futuro, o grau de culpabilidade, a situação económica da ré e dos autores (o autor ainda é menor), têm-se por adequados os montantes indemnizatórios de € 75.000 para o autor e de € 50.000 para a autora.
81\ Os autores interpuseram também uma acção contra o Hospital L e a Médica Pediatra desse Hospital que atendeu o autor.
82\ Trata-se, contudo, nessa acção e nesta de pedidos de indemnização diferentes e por causas diferentes – enquanto aquela se funda em negligência médica nesta a génese é o incumprimento a responsabilidade da ré nos termos alegados.
83\ Trata-se, portanto, de indemnizações diferentes e, portanto, cumuláveis.
84\ Com efeito, naquela estão em causa os danos a mais sofridos por força da negligência médica invocada, enquanto nesta estão em causa os danos sofridos por causa da falência da vacina. Na outra petição inicial os autores escreveram a mais ou diferente do que o que constava desta o seguinte:
Na sequência de 6\ acrescentaram:
7/ Chegados ao Hospital L e inserida a triagem às 10,34 horas, o autor foi observado clinicamente pela 2ª ré, que fez diversas vezes a observação do pé direito e observação da resistência do pescoço dobrando-o para a frente. Doc. 3.
8/ Nessa observação questionou se o autor tinha caído ou alguém o tinha pisado – ao que o próprio respondeu que tinha jogado à bola na sexta-feira e um colega o tinha pisado, mas acrescentaram os pais que o V não se tinha queixado de nada, nem na Sexta-Feira nem no Sábado, e que tinha feito a sua vida normalmente sem qualquer transtorno.
9/ Perguntou se ao autor tinha sido ministrada a vacina da meningite, em particular a última vacina para a meningite B – tendo os pais respondido afirmativamente, em duas doses em Agosto e Outubro de 2015.
[…]
12/ Na anamnese da observação a 2.ª ré escreveu “História um pouco incongruente de queda com traumatismo do MS direito e pé direito há 2 dias. Apenas hoje referiu dor localizada ao dorso do pé, com equimose local e ligeiro edema e impotência funcional parcial” (referido doc. 3).
13/ Nessa mesma observação foi medida a temperatura, com resultado 39.1, foram feitas ao autor análises ao sangue e um RX ao pé direito e escreve-se em observações: “Sem exantemas. Sem sinais meníngeos”, “hematoma no dorso pé direito, com dor ao toque e impotência funcional parcial por dor. Mobilização passiva do pé e tibiotársica dolorosas. Sem evidentes sinais de artrite, restantes articulações livres” (mesmo doc. 3).
14/ Como diagnóstico provisório escreve-se: “GEA a iniciar + lesão traumática do pé?” e como diagnósticos finais “febre causal X – GEA?. Traumatismo pé. Sem evidência clínica ou laboratorial de artrite” (mesmo doc. 3).
15/ E como Conclusão/Observação refere-se “Explico sinais de alarme; rever se presentes ou persiste febre em 48-72 h, repouso relativo + gelo + analgesia/antipirético + hidratação. Domicílio”. Mesmo doc. 3.
16/ Após os resultados dos exames a 2.ª ré chamou os pais do autor, estando ele entretanto a tomar um soro devido às náuseas e aos vómitos, e disse-lhes que após ver esses resultados a mancha do pé deveria ser uma luxação pela ocorrência durante o jogo de Sexta-Feira e, uma vez que as análises estavam boas, os vómitos, os tremores e a febre deviam-se a uma virose.
17/ A mãe acentuou que o filho continuava com muitas dores e que a mancha do pé, já então de tom completamente negro, continuava a aumentar.
18/ Dizendo que isso poderia ser a evolução normal, na sequência do referido no artigo 16º, a 2.ª ré deu a alta com recomendação de irem para casa, repousar e aguardar dois dias, e se a febre não baixasse dos 39 graus voltassem então ao Hospital, mais recomendando que fossem ministrando ao filho Ben-u-ron e Brufen, de 8 em 8 horas, bem como gelo no pé.
Em relação a 9\ acrescentaram:
23/ Apreensivos por nada lhes ser dito, os pais do autor tentaram saber o que se estava a passar, tendo-lhes a 2.ª ré dito para aguardarem um pouco que já viria falar com eles.
Em relação a 10\ acrescentaram:
25/ Entretanto, o autor continuava a delirar e a dizer coisas sem sentido a par de outras próprias de um discurso com alguma coerência.
Em relação a 11\ acrescentaram:
27/ Perante o desespero dos pais mais lhes disse que compreendia como se sentiam, mas que o filho por certo ia ser recebido e tratado pelos melhores médicos.
Na sequência escrevem:
29/ No exame objectivo ainda no Hospital L consta, nomeadamente “...Palidez cutânea e labial, lábios secos. Hiperventila. Febre 39,4ºC. ..Petéquias no tronco anterior, região púbica e MI. Sem sufusão hemorrágica. Sem sinais meníngeos...” (referido doc. 5).
30/ Consta, na parte Diagnóstico(s) Provisórios(s) “# Meningococemia?” (mesmo doc. 5).
31/ Consta na parte Conclusão/Observação “...Ex citoquímico e bacteriológico do LCR. Fica 1 tubo seco congelado no H. L? Contactar para posteriores estudos. Contactei UCIP para transferência. Contactei TIP? para transporte. Esclarecimento aos pais. Internamento noutro Hospital” (mesmo doc. 5).
Depois de 15\ acrescentaram:
35/ Realçou que foi decisivo o facto de não terem esperado mais tempo para levar o filho ao Hospital, já que a espera de mais uma hora seria suficiente para que, muito provavelmente, o filho tivesse morrido mesmo em casa – vieram na chamada hora de ouro, disse.
36/ Pelas 21h30 comunicou aos pais que o seu filho estava em coma induzido, apesar de algumas incoerências no discurso esteve consciente até ao momento da sedação, afirmou esperança na sobrevivência por se tratar de uma criança saudável e forte.
37/ E voltou a afirmar que foi decisivo o facto de se terem dirigido ao Hospital quando o fizeram e a acentuar que foram na hora de ouro.
38/ Reafirmou a gravidade da situação e disse não poder prever o que sucederia a partir daí e que seria também imprevisível como ficaria a sua saúde caso se salvasse.
[…]
Na sequência de 57\ escrevem:
56/ Conforme decorre do exposto, entre os autores e o 1º réu foi celebrado um contrato de prestação de serviços médicos, contrato esse que foi executado pela 2.ª ré sob as ordens e direcção do 1.º réu, pelo que são ambos solidariamente responsáveis pelos danos causados.
57/ Por força desse contrato os réus, o primeiro enquanto instituição prestadora de serviços médicos e a segunda como médica executora dos actos respectivos, obrigaram-se a fazê-lo no escrupuloso cumprimento dos conhecimentos técnicos disponíveis e das leges artis.
58/ A 2.ª ré incumpriu de modo claro e manifesto essas suas obrigações na consulta/observação que fez ao autor quando ele se deslocou ao Hospital 1.º réu na manhã do dia 18/09/2016,
59/ Actuou com manifesta negligência – com isso praticando acto ilícito, culposo e adequado a causar os danos que causou.
60/ E fê-lo em duas vertentes, ambas de gravidade máxima: a) No diagnóstico que fez sobre os sintomas de doença que ele apresentava (vide artigos 12º a 18º e documento aí referido); b) Na decisão de o enviar para o domicílio com indicação de aguardar dois dias e, se a febre não baixasse dos 39 graus, então voltassem ao Hospital (vide artigos 15º a 18º e mesmo documento aí referido).
61/ Com efeito, perante em particular os “sinais” de febre alta, da mancha no pé, dos vómitos, de mialgias, não é verdadeira a observação “sem exantemas” e é pelo menos superficial, ligeira e injustificável a observação “sem sinais meníngeos”.
62/ Por outro lado, é em absoluto inadequada a recomendação para aguardar dois dias e então, se a febre não baixasse dos 39 graus, voltar ao Hospital.
63/ Se os pais assim tivessem feito, disseram-no os médicos do Hospital da Estefânia, tinham perdido o seu filho – recorreram ao hospital na hora de ouro.
Em relação a 60\ acrescentam:
64/ Por causa do incumprimento dos réus o autor teve que ser sujeito a coma induzido e que suportar os tratamentos e exames documentalmente atestados pelos documentos do HDE.
Em relação a 66\ altera a expressão ‘a situação’ para a expressão ‘a hipótese’ e acrescenta a parte sublinhada => 70/ A hipótese de falência vacinal – por causa e em circunstâncias ainda não apuradas por quem já o devia ter feito – tinha forçosamente que ser equacionada pelos réus.
Na sequência escrevem:
71/ Mas o procedimento dos réus, em manifesta violação pela 2.ª ré dos deveres de zelo, diligência e vigilância a que estava obrigada aquando da primeira deslocação do autor ao Hospital L,
72/ causou-lhe dores e sofrimento, logo danos, em muito maior grau do que se tivesse agido em respeito pelas suas obrigações e, com isso, diagnosticado a doença ou pelo menos mantido em permanente observância no Hospital L o autor.
Em relação ao pedido formulado é o mesmo de (c) destes, mas com referência aos dois réus daqueles autos de que pedem a condenação solidária.
* Transcritas agora, com simplificações, as duas petições iniciais das duas acções, pode-se dizer que as rés e o saneador sentença tinham razão em dizer que:
O pedido (c) deduzido nesta acção é idêntico ao da 17956/19.
A prestação em causa é também idêntica: é a indemnização dos danos alegadamente sofridos pelo autor (e sua mãe) na sequência do facto de o autor ter contraído a meningite, ter ido duas vezes a hospitais (na 2.ª vez a dois hospitais), ter estado internado por alguns dias num deles a partir da segunda ida e ter sido sujeito a tratamentos médicos, tudo com as inerentes dores e desgosto para ambos e de o autor ficar sujeito a recaídas na doença e com o receio inerente.
Vejam-se as possíveis diferenças:
Os factos que os autores alegam nesta acção e que não alegam na acção 17956 são os que constam dos artigos 20 a 35 e 37, que nada têm a ver com danos; e os factos dos artigos 76 e 77 que são a descrição de sentimentos relacionados com o comportamento da ré posterior aos factos por não reagir como os autores queriam que reagissem; não têm a ver com os danos causados pela falência vacinal e não tem qualquer relevo como danos não patrimoniais; o que consta dos artigos 18, 38 a 41, 58, 59 e 66 são conclusões ou considerações tecidas sobre factos; o que consta dos artigos 81 a 84 são informações e considerações de direito.
Os factos que os autores alegam na acção 17956 e não alegam nesta são: os dos artigos 7/ a 18/ que são o desenvolvimento da descrição de actos médicos praticados durante a 1.ª ida ao hospital; não têm autonomia como danos, porque o que aconteceu ao autor durante os actos médicos e que possam ser vistos, na perspectiva dos autores, como danos, estão englobados nos danos pedidos nesta acção. O mesmo se diga dos que constam dos artigos 23/, 25/, 27/, 29/ a 31/ e 35/ a 38/ com referência ao que os autores alegam relativamente à segunda ida ao HL e depois ao HDE. O que consta dos artigos 56/ a 64/, 66/ e 70/ a 72/ são conclusões ou considerações de direito.
Portanto, como se antecipou, concorda-se com a conclusão a que chegou o saneador-sentença de que o pedido indemnizatório (o c) desta acção que é igual ao da outra acção, isto é, diz respeito aos mesmos danos que estão em causa nessa outra acção. Os autores não identificam nenhuns outros danos que tenham sofrido em consequência da actuação do Hospital e da médica que não tenham sido objecto de pedido nesta acção. Identificam outros comportamentos, não outros danos.
A afirmação, feita pelos autores, de que os pedidos são cumuláveis é apenas a confirmação da situação em que realmente estão: de que estão a pedir duas indemnizações a pessoas diferentes pelos mesmos danos, o que daria lugar a uma dupla indemnização ou seja, a um enriquecimento injustificado.
E o facto de os autores apontarem duas causas diferentes para os danos não quer dizer, por um lado, que elas realmente existam, nem quer dizer que, existindo, tal situação lhes desse o direito a uma dupla indemnização.
*
Pedindo os autores a indemnização total dos mesmos danos a pessoas diferentes, a situação cai no âmbito do art.º 519/1 do CC.
A norma fala numa inibição e do que ela diz logo a seguir como ressalva indicia-se que não se está perante uma inibição definitiva ou perda do direito.
Veja-se o que é que se tem dito sobre a norma:
Acórdão do STJ de 13/01/1977, publicado no BMJ n.º 263, páginas 265 e seguintes = 066354 da base de dados da DGSI mas só o sumário:
III - Se o credor demandar simultaneamente, em acções distintas, o subscritor da[…] livrança e o aceitante da letra, o pedido formulado em segundo lugar torna-se temporariamente inexigível, nos termos do artigo 519/1 do CC. Tal inexigibilidade, porém, não impede que se conheça da existência da obrigação (artigo 662/1 do CPC).
Ac. do STJ de 05/12/1985, BMJ 352, páginas 389 a 395 (com anotação a remeter para o acórdão anterior) = 073219 na DGSI mas aqui só o sumário:
III - Se o credor, em vez de demandar na mesma acção todos os condevedores solidários para obter delas a integralidade da prestação, vier demandar apenas um deles, fica inibido de proceder judicialmente contra os outros, salvo se houver razão atendível relacionada com, maior ou menor, dificuldade em obter a prestação daquele que primeiramente demandou.
IV - Por extensão do dispositivo do n.º 1 do artigo 519 do CC, ao serem intentadas acções distintas contra devedores solidários diferentes pelo mesmo crédito, o autor torna temporariamente inexigível aquele crédito que haja sido objecto de demanda intentada em segundo lugar.
V - Em caso de as acções terem sido simultâneas, tem de entender-se que a obrigação resultante da condenação proferida em segundo lugar só se torna exigível nos precisos termos do n.º 1 do artigo 519 do CC, devendo entender-se como simultâneas duas acções intentadas no mesmo dia, independentemente da anterioridade do número de registo de uma em relação a outra.
VI - Tendo-se conformado o réu com a condenação que lhe foi imposta na 1.ª Instância e não tendo dela interposto recurso sequer subordinado, não podia a Relação passar a julgar a acção improcedente e absolvê-lo do pedido.
VII - Não tendo havido recurso da condenação propriamente dita, mas apenas da restrição relativa a inexigibilidade temporária em recurso interposto pela autora, os efeitos do julgado na parte não recorrida tornaram-se firmes.
Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 9.ª edição, Almedina, 1998, páginas 793-794:
“Se [o credor] interpelar apenas um ou alguns deles, e o fizer extrajudicialmente, não fica por isso impedido de interpelar a seguir os outros, quer judicial quer extrajudicialmente, para haver o que não conseguiu obter dos primeiros. Se, porém, o pedido foi feito por via judicial, o credor já não goza, compreensivelmente, da mesma liberdade de acção, para evitar que ‘tendo incomodado com a acção ou execução um dos devedores vá depois, sem razão admissível, proceder contra os outros (Vaz Serra, obra citada, pág. 99) O Código de 1867 (art.º 753.°) ia mesmo ao ponto, quer na hipótese de interpelação judicial, quer no caso de interpelação extrajudicial, de só admitir a possibilidade de o credor, depois de ter exigido de um dos devedores a totalidade ou parte da prestação devida, se dirigir aos restantes obrigados, quando aquele se mostrasse insolvente.
O Código vigente, além de limitar expressamente a restrição ao caso da interpelação judicial, alarga um pouco mais a possibilidade de procedimento judicial contra os condevedores do demandado, admitindo-o não só no caso de insolvência deste, mas também quando haja risco de insolvência ou dificuldade, proveniente de outra causa, em obter dele a prestação. Assim, se o credor tiver demandado apenas um dos devedores e tiver obtido contra ele sentença de condenação, terá em princípio de seguir com a respectiva execução, antes de poder dirigir-se aos outros condevedores; poderá, todavia, interpelar ou demandar estes, pelo que tiver exigido ao primeiro, se houver entretanto insolvência ou risco de insolvência do condenado, ou se a execução contra ele se mostrar, por qualquer razão, particularmente onerosa ou morosa para o credor, de resultado duvidoso, etc.”
Isto na linha de Vaz Serra:
“Se o credor exigir judicialmente a um dos devedores a prestação, não pode, em princípio, demandar os outros devedores solidários, pois a lei quer evitar que ele, tendo incomodado com a acção ou execução um dos devedores, vá depois, sem razão admissível, proceder contra os outros (RLJ, 110.º-379).” [através de CC anotado de Abílio Neto, 9.ª edição, 1995, Ediforum, pág. 418]
Ac. do TRL de 25/01/2000, 0066707 => BMJ 493, pág. 410:
Ao serem intentadas simultaneamente acções distintas contra devedores solidários diferentes pelo mesmo crédito, tendo sido proferida sentença condenatória numa delas continuando pendente a outra, o cumprimento da sentença condenatória que nesta segunda acção vier a ser proferida só se tornará exigível nos casos indicados na parte final do nº 1 do art.º 519 do CC, em interpretação extensível desta norma.
Ac. do TRC de 20/03/2001, CJ.2001, Tomo II, páginas 24-26 (não está publicado na DGSI):
O credor que intentou execução hipotecária contra os mutuários não pode, na sua pendência, de acordo com o disposto no art.º 519/1 do CC, proceder judicialmente contra os fiadores e principais pagadores, sem invocar razão atendível (o acórdão, no texto, pág. 26, explicita que se trata de uma excepção dilatória inominada de direito material, tal como tinha dito a decisão da 1.ª instância, que tinha absolvido o réu da instância; este acórdão tem um voto de vencido: entende que o autor não podia intentar logo execução contra o fiador, porque o autor não tinha, quando requereu a execução, título contra ele, ao contrário do que acontecia contra o outro, pelo que no caso não se verificaria todo o circunstancialismo do art.º 519/1 do CC mas que isso não impedia que se conhecesse da obrigação na acção declarativa: art.º 662/1 do CPC).
Ac. do STJ 05/04/2016, proc. 5267/15.7T8SNT-A.L1.S1:
II - Verificando-se a situação económica difícil ou de insolvência iminente previstas no art.º 1.º, n.º 2, do CIRE, ocorre a “razão atendível” salvaguardada na parte final do art.º 519/1 do CC.
Margarida Lima do Rego, no final do 1.º § da anotação ao art.º 519 do CC anotado, pág. 719, Almedina/CEDIS, vol. I, 2.ª edição, 2019:
“Demandando o credor judicialmente um segundo devedor solidário, este pode invocar em sua defesa as excepções de litispendência ou caso julgado, consoante da primeira acção ainda esteja pendente ou a sentença já tenha transitado em julgado, pedindo a sua absolvição da instância (artigos 577/i e 580 a 582 do CPC e ainda, por interpretação extensiva, 522 [do CC].”
Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, tomo I, 2009, Almedina, pág. 722, nota 2478, que escapou às rés que o citaram:
“O que não é possível é intentar duas acções separadas (isto é, sem ser em litisconsórcio), contra devedores solidários, pedindo, a cada um deles, a totalidade do crédito; quando tal se faça, o crédito demandado em segundo lugar fica temporariamente inexigível: STJ 05/12/1985, BMJ 352, páginas 389-395 (393). […].”
O mesmo autor, no CC Comentado, II, Das obrigações em geral, Almedina/CIDP, 2021, pág. 508:
“Este esquema [do art.º 519/1 do CC] funciona se forem intentadas acções distintas contra condevedores solidários: decidida favoravelmente uma primeira acção, o cumprimento da condenação que surja na segunda só se torna exigível se ocorrer a tal razão atendível” [remete para o ac. do TRL de 2000].
*
Como se viu, a sentença recorrida invoca dois acórdãos que teriam decidido pela absolvição do pedido.
O acórdão do STJ de 2014 diz, no seu texto, que “não ocorreu, no caso, qualquer razão ou dificuldade atendível para a não obtenção da sociedade da prestação a que a mesma estava obrigada perante a [credora], antes tendo sido esta a abdicar, no âmbito da transacção efectuada e por sua livre concessão, da reclamação do pagamento, por parte de tal sociedade”, do que agora estava a pedir. Portanto, tratava-se, segundo o STJ, da abdicação ou renúncia do crédito frente a um dos devedores solidários. Por isso, não incluiu no valor da indemnização esse crédito.
Ora, a extinção do crédito (relativamente a um dos devedores, sem qualquer reserva do direito contra os outros) reflecte-se em todos os devedores e não só perante um deles. Pelo que, a questão não tem a ver com o art.º 519/1 do CC mas sim com a natureza da obrigação solidária (artigos 512, 514 e 523 do CC).
Quanto ao acórdão do TRP de 21/02/2018, proc. 1245/05.2TBMCN.P1, ele diz: VIII - O art.º 519/1 do CC estabelece verdadeira impossibilidade ex lege de proceder judicialmente contra o devedor solidariamente responsável e objecto da demanda intentada em segundo lugar, na inexistência de alegação referente à potencial insolvência da entidade ou entidades antes demandadas ou de qualquer outra comprovada dificuldade em obter delas a prestação.
Portanto, o acórdão admite que, alegando-se uma razão atendível, a acção podia prosseguir, o que implica que, apesar de ter absolvido do pedido, entendia que o direito não tinha deixado de existir.
Aliás, o acórdão do TRP ainda tem um ponto do sumário que diz o seguinte: X – Se a acção prosseguisse para a eventual condenação das Rés, tendo já sido demandada (e condenada), pelo montante de idêntica obrigação solidária, uma entidade terceira, o juízo a fazer compreenderia o reconhecimento de um direito dependente da futura insolvência da entidade inicialmente demandada ou da impossibilidade de dela obter a satisfação da dívida solidária, volvendo-se numa condenação condicional, vedada pelo disposto no art.º 621 CPC.
O que de novo revela que, apesar de ter absolvido do pedido, o ac. do TRP entendeu que do que se tratava era de um impossibilidade, temporária, da procedibilidade quanto a um dos devedores solidários, depois de se ter obtido uma condenação de um outro devedor solidário, mas só enquanto não se verificasse a razão atendível.
As rés invocavam ainda o ac. do TRG de 27/10/2016, proc. 190/07.1TCGMR. Do ponto 4 do sumário deste acórdão resulta que se entendeu que tendo a autora uma sentença condenatória de um 4.º réu relativamente a uma indemnização por danos não patrimoniais não pode, noutra acção, pedir a condenação do 2.º réu numa indemnização pelos mesmos danos, devendo este ser absolvido do pedido. Mas no ponto 5 acrescenta-se: apenas se poderia prosseguir com esta acção e produzir nova condenação de um dos devedores solidários caso se demonstrasse – nos presentes autos – a existência de uma razão atendível, conforme previsto no citado art.º 519/1 do CC, ou seja: a insolvência ou risco de insolvência do demandado, ou dificuldade, por outra causa, em obter dele a prestação.
Ou seja, de novo, embora se conclua pela absolvição do pedido, entendeu-se que, se tivesse sido alegada uma razão atendível, a acção poderia ter prosseguido, o que tem de implicar que se entenda que o direito não se tinha extinguido.
Assim, embora haja dois acórdãos, um do TRP e outro do TRG, a concluíram pela absolvição do pedido, vê-se que para eles o direito não deixou de existir e passa a ser passível de ser exercido se e quando houver uma razão atendível, pressupondo, como é evidente, que ele ainda não se extinguiu por qualquer outra razão.
*
Verifica-se, assim, que há três posições na jurisprudência: uma primeira, inicial, que colocou a questão em termos de inexigibilidade temporária que, apesar de verificados os respectivos pressupostos, permite o conhecimento do direito do credor e a condenação nos termos do art.º 610/1 do CPC; uma outra subsequente, que fala numa excepção dilatória de inibição de proceder contra o devedor, que, verificando-se, conduz à absolvição da instância (art.º 576/2 do CPC); uma terceira que coloca a questão em termos de excepção peremptória conducente à absolvição do pedido (art.º 576/3 do CPC), mas com possibilidade de, quando se alegar e provar a razão atendível, ou seja, uma condição legal, o direito voltar a poder ser exercido (art.º 621 do CPC).
*
Posto isto.
O art.º 519/1 do CC trata de uma inibição ao exercício judicial de um direito. Trata-se de uma norma de protecção dos devedores, evitando-lhes o incómodo de se estarem a defender. Como, de qualquer modo, terão de alegar que lhe está a ser exigido aquilo que já foi exigido judicialmente de um outro devedor, sendo ambos, nos termos que resultam das duas acções, devedores solidários, algo terão que fazer. Mas, não pode estar em causa o mesmo tipo de defesa que nas situações normais, senão a norma não teria razão de ser. Isto é, perante a norma em causa, não seria compreensível que lhes fosse exigível que ainda tivessem que produzir prova contra a existência do direito do credor. Assim, a defesa deles é uma defesa processual e não uma defesa material relativa ao direito exercido. Trata-se, por isso, de uma excepção dilatória e não uma excepção peremptória de direito material com efeitos dilatórios, como, por exemplo, a excepção de não cumprimento do contrato (art.º 428 do CC). Neste último caso, o tribunal deverá dizer: o credor provou a existência do seu direito, mas, provada excepção do não cumprimento do contrato, o réu devedor não terá de cumprir a obrigação enquanto o credor não cumprir aquilo em que está em falta. No primeiro caso o tribunal poderá dizer: tenha ou não o credor o direito que diz ter, para já não o poderá exercer, porque, nos termos alegados nas duas acções, a lei o impede de o fazer, salvo se tivesse alegado uma razão atendível o que não fez. Pelo que a sua procedência levará à absolvição da instância (art.º 576/2 do CPC) e não à absolvição do pedido (art.º 576/3 do CPC).
Pode, por tudo isto, acontecer que venha a ser proferida uma segunda sentença condenatória de um devedor solidário apesar de já ter havido uma anterior contra outro devedor solidário, como está pressuposto pelo que dizem Antunes Varela e Menezes Cordeiro, com as consequências por eles referidas, mas isso não pode levar a entender que o tribunal, com conhecimento de causa, deva estar a deixar produzir prova sobre a existência do direito do credor apesar da norma do art.º 519/1 do CC dizer que o credor está inibido de proceder judicialmente contra o devedor. Pelo que não se aceita que o tribunal tenha de conhecer do direito do credor autor e de pronunciar-se sobre ele nos termos do art.º 610/1 do CPC. Até porque a inexigibilidade que está em causa no artigo 610/1 do CPC não tem a ver com a inibição do direito de proceder contra o devedor. Ou seja, o ac. do TRP tem razão em dizer que a primeira corrente corresponde à defesa de uma condenação judicial condicional, que a jurisprudência portuguesa não tem admitido.
Também não se aceita que esteja em causa o conhecimento do direito do autor para depois se dizer que a pretensão do autor deve improceder apenas porque ainda não se alegou nem se verificou a razão atendível do art.º 519/1 do CC; tal pressuporia a produção de prova e de contraprova sobre a existência do direito que a lei, nessa mesma norma, quis evitar.
Pelo que a melhor solução é a do ac. do TRC de 2001 e a de Margarida Lima do Rego (excepção dilatória – embora se entenda que não há necessidade de a excepção ser formalizado como litispendência), sendo que as posições citadas de Vaz Serra (cujos trabalhos preparatórios do CC não se teve possibilidade de consultar), Antunes Varela e Menezes Cordeiro não contradizem tal solução (embora os termos utilizados por Menezes Cordeiro apontem no sentido da corrente jurisprudencial inicial, isto é, da inexigibilidade temporária, a permitir uma condenação restritiva/condicional).
Note-se, de qualquer modo, como já se viu, que a solução da absolvição do pedido não tem a gravidade que parece ter: o caso julgado, neste tipo de absolvições, tem alcance reduzido por força do art.º 621 do CPC, tal como lembra o ac. do TRP de 2018 com a referência que faz a tal artigo.
*
Em suma, entende-se que as rés deviam ter sido absolvidas da instância e não do pedido, por estarem verificados os pressupostos da excepção dilatória da inibição, temporária, de os autores procederem judicialmente contra as rés prevista do art.º 519/1 do CPC.
Valendo a excepção nesta acção com aplicação analógica do art.º 582 do CPC para se chegar à conclusão de que ela foi a acção posterior, já que a primeira acção foi intentada no mesmo dia mas antes desta tendo em conta a hora de entrada das petições (não no dia anterior, ao contrário do que dizem a ré e a interveniente).
* Quanto aos outros dois pedidos: os pedidos (a) e (b) tinham como seu pressuposto que os autores tinham direito a obter das rés as informações e comportamentos em causa, por o autor ter sido vítima de um defeito de um produto fornecido por um fabricante. Estando inibidos, temporariamente, de proceder contra o fabricante, por força do art.º 519/1 do CC, ou seja, de, entre o mais, discutir a existência desse direito contra o fabricante, não podem também, logicamente, estar a discutir outros direitos que estavam dependentes da existência desse.
A ausência de qualquer fundamentação para a absolvição destes pedidos, implica a nulidade da sentença nesta parte, que seria também suprida por este TRL com a fundamentação que antecede.
* Facto novo/superveniente
Entretanto, no recurso os autores alegaram que a outra acção foi já julgada improcedente e que eles não interpuseram recurso contra ela. Não juntaram, no entanto, prova do trânsito em julgado, embora tenham junto cópia da sentença em causa.
As rés, nas alegações, não disseram uma palavra que fosse a esse propósito (embora, na contestação, a interveniente tenha junto cópia da PI apresentada na outra acção, o que indica claramente que ela – cujos advogados são os mesmos dos da ré - tem facilidade de acesso ao que se passa nessa acção).
O facto alegado é um facto novo e que só por si seria uma evidente razão atendível para que esta acção pudesse agora prosseguir, já que, face a ele, os autores já não podem obter a indemnização dos réus da outra acção.
Mas, como se disse, os autores não juntaram prova do trânsito em julgado e o simples facto de a ré e a interveniente não se terem pronunciado sobre o facto e documento respectivo, sem terem obrigação de o fazer – nada na lei prevê a hipótese de as partes alegarem e impugnaram factos novos no recurso – não é suficiente para dar o facto como provado.
Para além disso, aquela sentença tem a data de Maio de 2022 e o recurso agora em apreciação foi interposto em Janeiro de 2025 e os autores nada alegaram no sentido de não puderem ter invocado aquele facto muito antes, nem de não puderem ter junto antes tal documento, nem qualquer outra justificação para só o terem feito agora.
Por último, os factos não se alegam num recurso. É certo que há doutrina que admite essa possibilidade, mas sem razão, como decorre do que antecede e é melhor explicado por Lebre de Freitas / Ribeiro Mendes / Isabel Alexandre, no CPC anotado, vol. 3.º, 3.ª edição, 2022, Almedina, págs. 142-143: “A função do recurso (reponderação e não reexame da decisão recorrida […]) não se coaduna com a permissão de nele serem alegados factos novos. O limite do art.º 611/1 (“encerramento da discussão” em 1.ª instância, como confirma o art.º 729/-g) é intransponível, a não ser em recurso de revisão (arts. 696/-c, 700/1 e 701/1-b).” E lembram, a seguir, que “tratando-se de facto constitutivo de excepção peremptória, a oposição por embargos a uma eventual execução, permite, melhor que a instância de recurso ordinário, fazê-lo valer, quanto a questão possa ser litigiosa”.
É certo que, a seguir, os autores citados ainda dizem: “Tratando-se, porém, de mero facto extintivo, como o pagamento da obrigação, o princípio da economia processual é invocável, ao menos de jure condendo, no sentido de poder ser invocado em recurso de apelação, mantendo efeito no processo quando a contraparte, notificada, não impugne o documento que o prova.”
Ora, esta abertura diz respeito ao direito a constituir, não ao direito vigente.
Seja como for, por tudo o que já consta acima, não há qualquer razão para atender agora àquele facto, nem ao documento respectivo.
Para além disso, o documento não é admissível, tendo de ser desentranhado e os autores condenados na multa correspondente prevista nos artigos 443/1 do CPC e 27/1 do RCP.
* Da manifesta improcedência da pretensão dos autores
O tribunal recorrido ao absolver as rés do pedido, ficou dispensado de conhecer das restantes questões que o processo levantava.
No entanto, como se viu acima, a decisão recorrida seria de alterar para uma absolvição da instância em vez do pedido, pelo que, neste caso este TRL encontra-se na situação de pelo menos ter de ponderar se, no caso, em vez da absolvição da instância, não se justificaria a absolvição do pedido, por força do que consta do art.º 278/3 do CPC ( […] não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da excepção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.), em substituição do tribunal recorrido já que dos autos consta tudo o necessário para o efeito (art.º 665/2 do CPC).
O que se diz porque há algo que salta imediatamente à vista, que é a manifesta improcedência da pretensão dos autores (o que seria motivo suficiente para o indeferimento liminar da petição inicial – art.º 590/1 do CPC -, indeferimento liminar que não está por natureza sujeito a contraditório: art.º 3/3 do CPC, e para a decisão imediata do mérito da causa nos termos do art.º 595/1b do CPC: Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado”, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 659: “O juiz conhece do mérito da causa no despacho saneador, total ou parcialmente, quando para tal, isto é, para dar resposta ao pedido ou à parte do pedido correspondente, não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo. […] Tal pode acontecer por inconcludência do pedido […]; sobre esta, por exemplo, A acção declarativa comum, de Lebre de Freitas, 5.ª edição, 2023, Gestlegal, páginas 219-220).
A manifesta improcedência resulta de não puder haver dúvidas de que os factos constitutivos do direito não estão sequer alegados nem podiam ter sido alegados porque os autores não têm nenhuma razão para considerar a vacina com defeito para além daquela que deram e que não é razão suficiente para o efeito (falência vacinal) e portanto não se podem vir a provar.
É que os autores estão a pôr em causa, nesta acção, a responsabilidade civil objectiva do produtor (art.º 1.º do DL 383/89) de uma vacina, o que pressupõe a existência de um defeito nessa vacina (O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação). Ora os autores não dizem uma palavra que seja no sentido de a vacina ter qualquer defeito.
Com efeito, os autores apenas alegam uma falência vacinal que pressupõem implicitamente equivaler a um defeito da vacina (como decorre do que dizem, por exemplo, nos artigos 18 e 36 da PI), o que não é manifestamente o caso, pois que a falência vacinal quer dizer apenas, no que ao caso interessa, que a vacina não impediu a propagação da doença no organismo do autor. No entanto, nenhuma vacina tem pretensão de ter a capacidade de evitar, em todos os casos, relativamente a todas as pessoas, a evolução da doença causada pela bactéria contra a qual é desenvolvida.
Não quer isto dizer, evidentemente, que nenhuma vacina possa ter defeitos de fabrico. Está-se apenas a dizer que a falência vacinal não é, só por si, um desses defeitos já que se limita a constatar uma situação que é da própria natureza da vacina.
Pelo que intentar uma acção alegando apenas a falência vacinal não corresponde a alegar qualquer defeito de fabrico.
Também não corresponde à alegação de qualquer facto, o que os autores dizem no art.º 39 da PI - aparentemente em síntese do que teriam dito para trás, mas não disseram -, onde reproduzem expressamente e ipsis verbis o que consta do art.º 4/1 do DL 383/89 “ ...não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em conta todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação.” Até porque do que antecede resulta precisamente o contrário: Ninguém pode legitimamente esperar que uma vacina ofereça a garantia de que a doença causada pela bactéria contra a qual foi desenvolvida não evoluirá na pessoa vacinada.
Sendo manifesta a improcedência daquela pretensão, também é manifesto que os outros dois pedidos formulados pelos autores não podiam proceder porque estavam dependentes da existência do direito que era objecto da pretensão (c).
*
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se a decisão de absolvição dos pedidos, embora com fundamento diverso daquele que esteve na base da decisão recorrida.
Custas do recurso, quer da taxa de justiça não paga ainda, quer das custas de parte das rés, pelo autor, que não beneficia de apoio judiciário (o facto de a autora ter apoio judiciário, como autora, não quer dizer que o autor, parte nesta acção, também o tenha; a autora, enquanto representante do autor, não é parte no processo, quem é parte é o autor).
Os autores vão condenados em 1 UC de multa pela apresentação inadmissível do documento com o recurso, documento que deverá ser desentranhado (artigos 443/1 do CPC e 27/1 do RCP).
Lisboa, 05/06/2025
Pedro Martins
Rute Sobral
Paulo Fernandes da Silva