ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AUDIÊNCIA PRÉVIA
CONTRADITÓRIO
ADEQUAÇÃO FORMAL
Sumário

(da exclusiva responsabilidade da Relatora – art.º 663.º, n.º 7, do CPC)
I – Tendo sido proferido saneador-sentença que julgou procedente a ação de reivindicação da fração identificada nos autos e improcedente a reconvenção, por o Tribunal a quo ter considerado não ilidida a presunção registal invocada pela Autora e inconcludente a reconvenção, não pode ser atendida a arguição de nulidade daquela decisão, por omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar [cf. art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC], em virtude de não terem sido incluídas no elenco dos factos provados as alegações de facto feitas pelo Réu-reconvinte, atinentes à aquisição originária do direito de propriedade da fração reivindicada, através da usucapião, nem apreciados os elementos probatórios que aquele apresentou na Contestação, em que se defendeu por impugnação, exceção perentória (sem a especificar) e reconvenção.
II – No Código de Processo Civil de 2013 a realização da audiência prévia é, por via de regra, obrigatória, com as ressalvas expressamente previstas nos artigos 592.º, 593.º e 597.º do CPC, admitindo “desvios” pontuais, casuisticamente determinados pelo juiz, com a prévia audição e o (indispensável) acordo das partes à dispensa da audiência prévia, ao abrigo dos deveres de gestão processual e adequação formal (artigos 6.º e 547.º do CPC).
III – Na presente ação de reivindicação de imóvel (em que o valor da causa é de 67.013,67 €), não se está perante um dos casos de não realização da audiência prévia previstos no art.º 592.º, n.º 1, nem de dispensa da audiência prévia ao abrigo do art.º 593.º, n.º 1, pelo que, à partida, uma vez que o Tribunal a quo tencionava conhecer do mérito da causa, com a prolação de saneador-sentença, pondo termo ao processo, impunha-se convocar audiência prévia, em ordem a facultar às partes a discussão nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art.º 591.º do CPC, com a subsequente prolação de saneador-sentença [cf. artigos 591.º, n.º 1, al. d), e 595.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPC].
IV – Proferido despacho pré saneador em que o Réu foi convidado a aperfeiçoar o seu articulado e as partes a pronunciarem-se sobre a adequação formal do processado, nos termos aí propostos, com dispensa da audiência prévia e a possibilidade de se pronunciarem por escrito sobre “matéria de “matéria de exceção e questões que se entendam do conhecimento oficioso, a identificar oportunamente, após o que se proferirá despacho saneador e despachos ao abrigo dos artigos 596.º e 593.º, n.º 2, alínea d), todos do Cód. Proc. Civil, sem prejuízo das faculdades previstas no n.º 3 do último dos preceitos referidos”, não podia o Tribunal a quo, ante o silêncio das partes, avançar com a imediata prolação de saneador sentença com dispensa da audiência prévia, invocando a adequação formal do processado que havia sido anunciada às partes em termos que apenas apontavam para o prosseguimento dos autos com a prolação de despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Texto Integral

Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
AA interpôs o presente recurso de apelação do saneador-sentença proferido, sem realização de audiência prévia, na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, contra si foi intentada por BB.
Os autos tiveram início em 26-05-2017, com a apresentação de Petição Inicial, em que a Autora peticionou que fosse reconhecido ser a proprietária da fração autónoma designada pela letra “Q”, correspondente ao quarto andar tardoz, para habitação, do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., Buraca, Amadora, descrito na 2.ª CRP da Amadora sob o n.º ..., com a consequente condenação do Réu a restitui-lo, bem como a abster-se da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a utilização da fração por parte da Autora.
Alegou, para tanto e em síntese, que: adquiriu a propriedade do imóvel dos autos por aquisição em processo de execução fiscal, em 23-07-2009, “encontrando-se, o referido imóvel, já legalmente registado a favor da Autora”; o Réu ocupa a fração, facto que a Autora então desconhecia, recusando-se a proceder à sua entrega, apesar de interpelado para o efeito.
A Autora juntou um documento (caderneta predial) e arrolou testemunhas.
Pessoalmente citado em 23-06-2017, o Réu apresentou Contestação (cuja notificação à autora foi elaborada em 25-09-2018), na qual requereu a suspensão da instância, invocando a pendência de causa prejudicial (o processo de reclamação do ato da venda); defendeu-se, referindo que o fazia por impugnação, bem como por reconvenção, peticionando que fosse reconhecido o seu direito de propriedade da fração, por usucapião, registando-se tal direito a seu favor, ou, subsidiariamente, reconhecido o seu direito de retenção sobre o imóvel nos termos do disposto no art.º 755.º, al. f), do CC; mais pediu a condenação da Autora no pagamento de indemnização por litigância de má fé. Além dos artigos em que suscitou a questão da suspensão da instância, alegou o seguinte:
«II - Por impugnação
5. Com os presentes autos, vem a Autora peticionar a condenação do aqui Réu a restituir-lhe o imóvel melhor descrito no art.º 1º da Douta PI,
6. Bem como o reconhecimento do seu direito de propriedade, e em consequência que o Réu se abstenha de qualquer prática que impeça ou diminua a utilização do referido imóvel por parte da A.
7. Peticiona tais factos e direitos, alegando em suma que o referido imóvel encontrava-se penhorado à ordem de um processo de execução fiscal, tendo esta arrematado e adquirido o mesmo através de leilão público no dia 23 de Julho de 2009 pelo montante de € 45.000,00. (vide art.º 2 da Douta PI)
8. Apesar de, a A. nem deste facto fazer prova pois limita-se apenas a juntar aos autos uma cópia da caderneta predial, que com o devido respeito, e que é muito, não poderá fazer prova da titularidade do direito de que se arroga.
9. Pois desde já se refere que: “As presunções registrais emergentes do art.º 7º do Código do Registo Predial (...). Apenas faz presumir que o direito existe e pertence às pessoas em cujo nome se encontra inscrito, emerge do facto inscrito e que a sua inscrição tem determinada substância - objecto e conteúdo de direitos ou ónus e encargos nele definidos (art.º 80º n.º 1 e 2 do Código do Registo Predial).” – cfr ac. Do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido a 03-12-2013, no Âmbito do processo nº 194/09.0TBPBL.C1.
10. “O possuidor goza da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada no registo anterior ao início da posse - artigo 1268º, nº 1, do Código Civil.” ...“A regra é, pois, a de que a posse implica a presunção legal da titularidade do direito, e a excepção no caso de colisão entre ela e a presunção derivada do registo de um direito anterior ao início da posse, caso em que prevalece esta última presunção.” – cfr ac. Do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido a 03-12-2013, no Âmbito do processo nº 194/09.0TBPBL.C1. (…)
11. “Por isso, nos termos da norma do artigo 350.º n.º 1 do Código Civil, compete àqueles que se arrogam proprietários, provar que o detentor não é possuidor.” – cfr ac. Do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido a 03-12-2013, no Âmbito do processo nº 194/09.0TBPBL.C1. (…)
12. Ora a posse do R. é muito anterior ao registo, pelo que nunca conseguirá a A. provar que o R. não é possuidor.
13. Continuando, nesta sequência, alega a Autora falsamente que desconhecia até à data da aquisição, ou seja, até à data de 23 de Julho de 2009, que o referido imóvel se encontrava a ser ocupado pelo Réu.
14. O que é falso, e desde já se impugna para os devidos efeitos legais, devendo para já a aqui A. ser condenada por litigância de má-fé, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 5420 do CPC, pedido esse e respectiva fundamentação que adiante se explanará.
15. Mais alega que só após contacto com o R. é que teve conhecimento destes factos, sendo certo que não foi o R. contactado pela A. para qualquer efeito!
16. Assim como é falso o alegado pela A. no art.º 9º, quando esta alega que interpelou o A. para proceder à entrega do imóvel.
17. Tanto que é falso, que a A. não faz prova de qualquer interpelação, o que igualmente se impugna para os devidos efeitos.
18. Ora nem nunca a A. contactou com o R., assim como nunca o interpelou, seja de que forma fosse para resolver esta situação.
19. Assim, como não foi igualmente o R. contactado ou interpelado pelo filho da A., pelo que vai igualmente impugnado neste sentido o alegado pela A.
20. Por outro lado, não tem o R. outra alternativa se não impugnar o alegado no art.º 11 da Douta PI!
21. O aqui R. reside na fracção objecto de discussão dos presentes autos em data anterior à celebração do contrato promessa, conforme adiante se provará.
22. É verdade que em tempos, o aqui R. foi contactado pela sua vizinha do andar de baixo
23. E foi contactado porque a mesma lhe comunicou que haveria um problema na sua fracção por infiltrações provocadas pela fracção do aqui R.
24. O que originou de imediato a rápida intervenção do R. tendo este solicitado a um seu amigo, Sr. CC - que exerce as funções de canalizador - para proceder à sua imediata reparação.
25. O que foi feito, não tendo por este motivo nem por mais nenhum voltado a ser contactado por esta ou por qualquer outro vizinho.
26. Assim como, nunca o R. foi confrontado ou recebeu qualquer visita da A., conforme esta alega na sua petição inicial.
27. Assim como é falso o alegado pela A. nos artºs 12 a 14º da Douta PI, o que vai igualmente impugnado para os devidos efeitos legais.
28. Pelo que dúvidas não restam que deverão improceder os pedidos e alegações formuladas pela A.,
Vejamos o que de facto aconteceu:
30. No dia 8 de Março de 1985, foi constituída sob forma de natureza jurídica de cooperativa, a Habitanova dois mil – cooperativa de habitação económica de venda nova CRL, conforme Doc 1 que se junta.
31. À data da sua constituição, o aqui Réu exercia as funções de presidente do conselho fiscal. (Doc. 1)
32. Esta cooperativa tinha por objecto social a “construção ou aquisição de fogos para a habitação; angariar empréstimos para a prossecução dos seus fins; promover iniciativas, nos domínios social, cultural, material e de qualidade de vida.” (Doc. 1)
33. Nesta senda, no dia 29 de Janeiro de 2002, o aqui R. celebrou com aquela cooperativa, um contrato de promessa de compra e venda cujo o objecto do negócio era a aquisição por parte do R. do imóvel melhor descrito nos autos, conforme contrato promessa que se junta sob o Doc. 2.
34. Ora da analise deste contrato resulta que as partes acordaram, em suma, o seguinte:
a) Que a ali vendedora (cooperativa) prometeu vender ao R. ou a qualquer familiar deste o respectivo imóvel, livre de qualquer ónus ou encargo
b) Que à data da celebração desse contrato, o Réu e a sua família já habitavam a fracção
c) Que acordaram o preço de € 68.672,75
d) Acordaram que a escritura definitiva seria efectuada quando a instituição de crédito o determinar.
e) Acordaram que os custos com as alterações na fracção foram suportados pelo promitente comprador, e que esses pagamentos seriam considerados como sinal e princípio de pagamento.
35. E quanto à al. e) do art.º anterior, que tem correspondência com as clausulas terceira e décima do contrato prometido, desembolsou o R. a quantia de €35.545,30, valor este que devem ser considerados como sinal e principio de pagamento, cfr fatura e recibos emitidos a 29 de Abril de 2002 que se juntam sob o Doc. 3.
36. O R. veio ainda a representar desde essa data a Cooperativa em Assembleias de condomínios, conforme expressamente previsto no contrato promessa aqui junto sob Doc. 2 e a declaração emitida a seu favor que ora se junta sob o Doc. 4.
37. O R. já residia no imóvel antes da data da celebração do respectivo contrato de promessa,
38. E reside neste imóvel com a sua família, constituindo este a casa de morada de família há já mais de 16 anos, sendo prova disso:
39. O facto de o imóvel constituir o domicílio fiscal do Réu há já largos anos, conforme certidão fiscal que se protesta juntar para os devidos efeitos legais,
40. Ressaltando ainda à vista o facto de o R. ali residir efectivamente o tempo todo, sendo ali que faz as suas refeições, e a vida do seu agregado familiar, conforme comprovativos de despesas de bens e serviços que se protestam juntar.
41. O Réu sempre confiou nos órgãos da cooperativa, motivo pelo qual nunca tomou outras alternativas ou comportamentos para salvaguardar ainda mais a sua posição de promitente comprador pois,
42. O problema aqui reside na falta de celebração escritura prometida de compra e venda do imóvel
43. Problema este que se deveu apenas à falta de emissão das licenças de habitação por parte dos serviços municipais competentes!
44. O que impossibilitou o agendamento da aludida escritura!
45. Assim, e por esta razão, nunca qualquer órgão representativo da cooperativa, lhe comunicou a hora ou local da respectiva escritura de compra e venda, conforme se encontrava previsto na clausula sexta do contrato promessa.
46. Pois esta - a data da celebração da escritura de compra e venda - ficou sempre dependente da emissão da licença de utilização por parte da camara municipal
47. O que até à presente data não aconteceu!
48. Mas na verdade, nunca o R. imaginou encontrar-se na situação que se encontra a esta data!
49. E só muito mais tarde, isto é volvidos mais de 6 anos da celebração do contrato de promessa, é que começaram os problemas:
50. Em data que ora não sabe precisar, o R. teve conhecimento por terceiros que a aqui A. (pessoa que nunca viu e que apenas a identifica pelo seu nome) havia adquirido a referida fracção através de compra/ venda por proposta em carta fechada no âmbito do processo fiscal nº 31402006010085, o qual correu termos no 2º serviço de finanças de Amadora, em 25 de Março de 2008.
51. Por essa razão, mais tarde o R. deu entrada nesse processo de um requerimento a requerer a suspensão da execução, tendo sido tal requerimento objecto de indeferimento, o que levou ao R. a intentar acção administrativa especial para anulação do acto administrativo, correndo esse processo os seus termos no TAF de Sintra sob o nº 478/08.4BESNT.
52. E no âmbito desse processo, foi proferida a respectiva Sentença a 5 de Novembro de 2008, tendo sido julgado procedente o pedido de anulação da venda do imóvel nos autos, cfr. Sentença que se protesta juntar.
53. Assim, foi a primeira venda declarada nula, não produzindo este acto qualquer efeito,
54. Importa desde já referir que a A. apresentou proposta de aquisição no âmbito daquele processo, tendo o imóvel primeiramente lhe sido adjudicado, e posteriormente declarada nula a venda.
55. Pelo que é falso o alegado pela aqui A. nos artºs 4º e ss da PI. E claro é que a aqui A. litiga de má-fé.
57. Pois, a aqui A., após apresentação da 1ª proposta e da adjudicação do imóvel em execução fiscal em Novembro de 2008, ao ter conhecimento de tais factos, isto é que o referido imóvel não possuía licença de habitação veio naqueles autos de execução fiscal apresentar reclamação do ato da venda, primeiro com o fundamento de que o imóvel não possui licença de habitação (Doc. 5)
58. Mas também por ter conhecimento nessa data que a cooperativa e o aqui R. haviam celebrado contrato promessa de compra e venda do imóvel, juntando para o efeito cópia do referido contrato e ainda que o Réu lá residia desde pelo menos a celebração do referido contrato promessa! (Doc. 5)
59. Termos em que, deverá a aqui A. ser condenada no pagamento de uma indeminização fixada por este tribunal por litigância de má-fé, pois foi a própria que deu conhecimento da celebração do contrato no processo fiscal e que o junta, tentando agora fazer crer a este Tribunal que desconhecia os termos do contrato!
60. Mas, mais tarde, foi ordenada novamente à ordem do referido processo de execução fiscal, a venda do referido imóvel.
61. E uma vez mais, a aqui A. apresentou nova proposta de aquisição, tendo sido este adquirido por adjudicação à aqui A.
62. Por gozar de direito de retenção sobre a coisa, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 754º do CC, e por não terem sido respeitados os formalismos legais da venda judicial, veio o R. apresentar nova reclamação do ato da venda (Doc.6)
63. Reclamação essa que deu origem ao processo de reclamação de actos do órgão de execução fiscal que corre termos na 2ª unidade orgânica do TAF de Sintra sob o nº 1069/12.0BESNT.
64. Mas até à presente data não foi proferida a respectiva sentença, conforme certidão do estado do processo que se protesta juntar.
65. Se a venda for decretada nula conforme requerido pelo aqui Réu, e tal como já anteriormente viu decretado, a procedência desta acção ficará prejudicada pois a A. não terá qualquer direito sobre o imóvel em discussão.
66. Existindo assim, de forma clara e inequívoca, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 92º do CPC questão prejudicial, termos em que a presente decisão ser considerada suspensa até que o Tribunal competente se pronuncie.
67. Entretanto, no dia 11 de Outubro de 2010 foi proferida no Âmbito do processo nº 1079/08.2TYLSB que corre termos no Juízo de Comércio do Tribunal judicial da comarca de lisboa, sentença de declaração de insolvência da cooperativa Habitanova 2000.
68. A essa data o aqui R. já não exercia qualquer função na cooperativa.
69. Importa aqui desde já referir que, é verdade que o contrato promessa de compra e venda cujo objecto era a venda do imóvel melhor descrito nestes autos nunca chegou a ser registado, e isto porque:
70. À data da sua celebração o R. exercia as funções de presidente de conselho fiscal,
71. Pelo que tinha toda a confiança nos órgãos representantes da cooperativa,
72. Razão pela qual o contrato de promessa de compra e venda não foi registado
73. E os anos foram passado, nunca tendo o aqui Réu sequer previsto acontecer o que infelizmente veio a suceder: a insolvência da cooperativa e a falta de emissão da licença para promover a escritura de compra e venda
74. Termos em que, dúvidas não restam quanto ao facto de os pedidos formulados pela aqui R. deverem improceder
75. Devendo para o efeito este tribunal considerar que o contrato celebrado entre o aqui Réu e a insolvente é, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 830º do CC, eficaz não tendo a escritura de compra e venda sido realizada por falta de emissão da respectiva licença, sem a qual a escritura prometida não se poderia realizar!
III- Pedido Reconvencional
76. Conforme resulta do supra exposto, o R. e a sua família detêm a posse sobre o imóvel, dispondo dele como se deles se tratasse, desde pelo menos o ano de 2000, sendo que a própria A. assume e confessa saber dessa posse que dura para a mesma desde o ano de 2002 no doc. 5 agora junto.
77. Nos termos do disposto no art.º 1258º e ss do CC, a posse é um poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.
78. A posse é integrada por dois elementos: o corpus e o animus.
79. O corpus da posse é um elemento material, que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade desse exercício, enquanto que o animus da posse é um elemento intelectual ou volitivo, que consiste na intenção de exercer sobre a coisa como seu titular o direito real correspondente àquele domínio de facto.
80. Duvidas não existem que o aqui R e a sua familia detém a posse sobre este bem imóvel há já mais de 16 anos,
81. Resultando igualmente claro do supra descrito, que a posse exercida sobre este bem imóvel pelo aqui R. é pública e pacifica, conforme alude o disposto nos artºs. 1260º e ss do CC.
82. A usucapião é uma forma de aquisição do direito de propriedade assente na posse de tal direito, mantida por certo lapso de tempo, conforme se extrai do disposto no art.º 1287.º do CC.
83. Alem disso a posse do aqui R. é titulada, pois foi outorgado um contrato promessa de compra e venda
84. Termos em que, face ao tempo em que perdura a posse, e ao facto de esta posse ser titulada, pública e pacifica, nos termos e para os efeitos no disposto do art.º 1296º do CC tem o R. o direito de adquirir a plena propriedade por usucapião.
85. Caso assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se admite, deverá sempre ser reconhecido que ao Ré lhe é reconhecido, nos termos do art.º 755º al. f) do CC, o direito de retenção sobre o imóvel sub judice.»
O Réu juntou então documentos (designadamente, o doc. 2, documento particular intitulado “contrato promessa de compra e venda”, assinado pelas partes) e arrolou testemunhas.
Em 21-12-2018, a Autora, notificada para o efeito, juntou cópia da descrição predial e inscrições quanto à aludida fração.
Em 06-02-2019, foi proferido despacho que determinou o registo da reconvenção e, salientando não ter a Autora apresentado Réplica, lhe concedeu o prazo de 10 dias para “responder exclusivamente ao pedido de suspensão da instância com invocação de causa prejudicial e ao pedido de condenação como litigante de má fé formulados pelo Réu”.
A Autora pronunciou-se em 25-02-2019 no sentido do indeferimento da requerida suspensão da instância, bem como do pedido de condenação como litigante de má fé.
Em 19-03-2019 foi junta aos autos certidão da 2.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora, comprovativa, no que à fração em apreço concerne, das seguintes inscrições:
- mediante ap. 1866 de 2009/09/14, da aquisição a favor de BB, por adjudicação em processo de execução fiscal;
- mediante ap. 2803 de 2019/02/20, da ação (a reconvenção dos autos) deduzida por AA contra BB.
Em 23-05-2019, foi determinada a suspensão da instância com fundamento na pendência de causa prejudicial – a reclamação do ato da venda apresentada em processo de execução fiscal convolada em incidente de anulação da venda processado nos autos de insolvência da Habitanova Dois Mil, CRL.
A 30-01-2024, foi junta aos autos a certidão da sentença (e do acórdão transitado em julgado que a confirmou proferido no proc. n.º 1079/08.2TYLSB-P.L1), pela qual foi julgada improcedente a aludida reclamação e negado provimento ao pedido de anulação do ato de venda de 23-07-2009 ocorrido no âmbito do referido processo de execução fiscal.
Em 13-06-2024, as partes foram notificadas para se pronunciarem sobre a existência de caso julgado.
Em 26-09-2024, foi proferido despacho que admitiu a reconvenção, referindo-se designadamente que “o R. apresentou contestação (…), na qual, entre o demais, defendem-se por excepção, arguindo a aquisição, por usucapião, do prédio em apreço, e deduz pedido reconvencional, solicitando que seja declarada aquela aquisição. (…) o R. invoca matéria da aquisição originária em sede de contestação com o objectivo de obstar, paralisar, impedir a procedência do peticionado pela A.. Donde, dúvidas não permanecem quanto ao facto de se encontrar preenchida a parte final da alínea a) do mesmo n.º 2, na medida em que é a mesma factualidade arguida para sustentar a defesa por excepção e o pedido reconvencional.”
Nesse despacho, o Tribunal de 1.ª instância decidiu ainda convidar o Réu-reconvinte a aperfeiçoar a Contestação, o que fundamentou designadamente nos seguintes termos:
“Da leitura da contestação/petição reconvencional, resulta com clareza que a defesa/demanda do R. funda-se na actuação há mais de dezasseis anos sobre a fracção autónoma dos autos como se seu proprietário fossem, e nessa convicção, ou seja, ao abrigo dos artigos 1287º, 1294.º, 1251.º, 1252º e 1253º, este último a contrario, todos do Cód. Civil.
Contudo, afigura-se que não cumpriu integralmente o ónus de alegação que sobre si impendia porquanto a factualidade naquela sede vertida não é suficiente – a ser apurada em sede de instrução dos presentes autos – para fazer operar a estatuição da norma supra referida. E assim se entende em virtude de em 38.º, 40.º e 76.º da peça processual em apreço, alegar que a referida fracção constitui a casa de morada da sua família, onde reside, razão pela qual tem a posse da mesma ao abrigo do artigo 1251.º do Cód. Civil.
Acontece que as afirmações identificadas não passam da formulação conclusiva de situações de facto, já que somente após a descrição concreta das circunstâncias em que o R. ocupou e ocupa a fracção dos autos, nomeadamente se ali dorme, faz refeições, recebe amigos, juntamente com as pessoas que compõem o seu agregado familiar, identificando cada uma delas, entre o demais que factualize essa utilização, é que é possível concluir por constituir o imóvel dos autos a residência da família do R./reconvinte
Na verdade, como escreve Paula Costa e Silva1: “ ..., as afirmações conclusivas não são factos, são juízos extraídos de factos.” E não assumindo a qualidade de “facto”, obviamente que a sua alegação não cumpre o ónus previsto no preceito em referência.
Afigura-se, concluindo, que a factualidade que sustenta parcialmente a tutela judicial em causa não é suficiente – a ser apurada em sede de instrução dos presentes autos – para fazer operar a estatuição das normas aplicáveis, razão pela qual a petição inicial apresenta insuficiências que necessitam de ser supridas.
Por outro lado, ao longo da sua peça, o R./reconvinte invoca amiudadamente ter actuado o direito de retenção previsto no artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do Cód. Civil, do que pode derivar nunca ter possuído nos termos do direito de propriedade; até porque ao longo da sua peça processual, não se vislumbra alegada qualquer factualidade de cuja demonstração se pudesse concluir por ter o demandado oposto a sua posse ao proprietário do prédio, invertendo assim o respectivo título nos termos e para os efeitos dos artigos 1263.º, alínea d) e 1265.º, ambos do Cód. Civil.
Donde, é manifesta a insuficiência da factualidade invocada pelo R./Reconvinte para a procedência da sua defesa e, consequentemente, do seu pedido reconvencional.
Pelo exposto, convido o R./Reconvinte a suprir a insuficiente da factualidade na qual respalda a sua defesa e pedido reconvencional, através da articulação de factos dos quais se poderá extrair a conclusão de que adquiriu a posse do prédio dos autos nos termos acima consignados.”
Mais foi determinado, nesse despacho, que as partes se pronunciassem sobre a adequação formal do processado, nos termos aí propostos, com dispensa da audiência prévia e a possibilidade de se pronunciarem por escrito sobre “matéria de exceção e questões que se entendam do conhecimento oficioso, a identificar oportunamente, após o que se proferirá despacho saneador e despachos ao abrigo dos artigos 596.º e 593.º, n.º 2, alínea d), todos do Cód. Proc. Civil, sem prejuízo das faculdades previstas no n.º 3 do último dos preceitos referidos”.
Notificadas as partes, nada vieram dizer.
De seguida, em 28-11-2024, foi proferido o Saneador-sentença recorrido, sem realização de audiência prévia, dispensada nos seguintes termos:
“Face ao silêncio das partes, adequo formalmente o processado nos termos propostos no despacho precedente, atendendo a que não há que garantir o exercício do contraditório.
Atendendo à adequação formal do processado acima determinada, não sendo de assegurar o exercício do contraditório, passo a proferir:” (seguindo-se o “Despacho saneador” e a “Sentença”).
Nessa decisão foi fixado o valor da causa (em 67.013,67 €) e, além do saneamento “tabelar”, referiu-se designadamente que (omitimos a nota de rodapé):
“Nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 595.º do Cód. Proc. Civil, no despacho saneador apreciar-se-á, total ou parcialmente, do mérito da causa sempre que o estado do processo o permita, por se revelar desnecessária a produção de prova.
Sucede que a presente já se encontra em condições de ser julgada atenta a sua manifesta inconcludência da defesa e pedido reconvencional deduzidos pelo R..
Na verdade, foi o A. convidado a alegar factualidade cuja demonstração pudesse sustentar o juízo de ser possuidor, tendo oposto essa posse ao titular do direito de propriedade sobre o prédio revindicado – cfr. despacho de fls. 96 verso e 97. No entanto, o demandante persistiu em não invocar os concretos factos, tendo-se omitido conduta processual na sequência do convite mencionado.
Ora, como escreve Lebre de Freitas, se ante a insuficiência ou imprecisão dos articulados se se tiver optado pelo convite ao aperfeiçoamento no despacho pré-saneador – como foi a situação em apreço, vd. o já mencionado despacho de fls. 96 verso e 97 – e a parte não tiver correspondido ao convite, deve entender-se precludida a possibilidade de o fazer posteriormente – permanecendo assim e sem possibilidade de correcção, a insuficiência de que se dava nota no despacho em referência, com a consequente inconcludência da defesa e do pedido reconvencional nela fundamentado.”
O segmento decisório tem o seguinte teor:
“Pelo exposto, julgo o pedido deduzido por acção integralmente procedente e, consequentemente:
a) Declaro que o direito de propriedade sobre a fracção autónoma melhor identificado nos autos inscreve-se na esfera jurídica da A./Reconvinda;
b) Condeno o R./Reconvinte a restitui-la, desocupada, portanto, livre de quaisquer pessoas e bens.
Absolvo a A./Reconvinda do pedido reconvencional contra si deduzido.
Custas da responsabilidade do R., sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam – cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil.”
É com esta decisão que o Réu-reconvinte não se conforma, tendo interposto o presente recurso de apelação, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
a) O presente recurso tem como objeto o despacho saneador e a Douta Sentença que apreciou e decidiu sobre o mérito da causa.
b) A Douta Sentença recorrida incorreu em erro na apreciação da matéria de facto, ao desconsiderar os elementos probatórios apresentados pelo Recorrente.
c) E incorreu igualmente em erro na aplicação do direito, ao fundamentar a procedência da acção na presunção constante registo predial, art.º 7º do CRP, em detrimento da aquisição originária por usucapião, nos termos dos artigos 1287.º e seguintes do Código Civil.
d) Com efeito, andou mal o Tribunal a quo ao julgar totalmente procedente a acção, omitindo assim a fase da instrução do processo em virtude de não ter havido lugar à audição das testemunhas arroladas pelo Recorrente em sede de audiência de discussão e julgamento.
e) Posto o que, terminando a suspensão da instância por causa prejudicial impunha-se o agendamento de audiência prévia ou sendo a mesma dispensada designar-se data para audição de testemunhas, tendo o Tribunal a quo violado o disposto nos art.º 591º e ss do CPC.
f) Com efeito, a Douta Sentença considerou erradamente ser desnecessária a produção de prova, por considerar manifesta a inconcludência da defesa e do pedido reconvencional deduzidos pelo Recorrente.
g) O que não se compreende atendendo à prova junta e requerida, bem como aos factos alegados nos art.º 12º, 21º, 30 a 49º, 51º a 54º, 57º a 63º, 69º a 73º, 76º, 77º e 80º da Contestação, do qual resulta a factualidade que a posse é anterior à promoção do registo pela Recorrida e também que por os factos alegados permitirem concluir pelo impedimento, modificação e extinção da pretensão da Recorrida e consubstanciam a aquisição do direito de propriedade do Recorrente por usucapião
h) Pelo que, em face do que vem dito, não podia a Douto Tribunal a quo ter proferido imediatamente sentença antes de ouvir a prova arrolada pelo Recorrente, pois a decisão sobre quem de facto era titular do direito de propriedade dependia da conjugação de todos os meios de prova, nomeadamente do testemunhal.
i) E mesmo que assim não se considerasse o Recorrente estava ainda em tempo de juntar mais elementos probatórios que pudessem influir na causa, nomeadamente documentos ou arrolar outras testemunhas.
j) Do Douto Despacho e da Douta Sentença recorrida, resulta que o Tribunal a quo considerou que o Recorrente não invocou os factos concretos que pudesse sustentar o juízo de ser possuidor, pelo que a decisão recorrida assentou unicamente e de forma errada na presunção de registo que nos dá o art.º 7º do CRP.
k) Ora o rol de testemunhas apresentado pelo Recorrente tinha por objetivo demonstrar que este exerce a posse sobre o imóvel em causa nos autos, levando assim o Tribunal a quo a concluir pela improcedência da acção e pela procedência do pedido reconvencional, pelo que constituía a sua audição um meio de prova essencial para a sua defesa, tendo o Douto Tribunal a quo violado de igual forma o principio do contraditório previsto no art.º 3º do CPC.
l) Tendo em conta o exposto supra, resulta clara a nulidade processual da sentença recorrida, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, dado que a omissão da inquirição das testemunhas arroladas influiu na boa decisão da causa, por visar provar matéria que não foi dada por provada, resultando ademais, e nessa exata medida, numa inadmissível lesão do direito do Recorrente à produção de prova constitucionalmente consagrado nos artigos 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da CRP e dos artigos 411º e 413º do CPC.
m) Nesta sequência sublinhe-se que, o Douto Tribunal a quo não fundamentou devidamente a desnecessidade da prova testemunhal, não sabendo o Recorrente quais as concretas razões de tal decisão, principalmente na medida em que a maioria dos factos por si alegados na contestação e reconvenção não foram dados por provados, o que, só por si, implicará a revogação da sentença recorrida.
n) Pelo que a Douta Sentença recorrida incorreu em omissão de pronuncia prevista no art.º 615º nº 1 al. b) do CPC, constituindo-se como se disse na nulidade nos termos do disposto no art.º 195º do CPC em virtude de tal omissão influir no exame ou decisão da causa.
o) Em consequência não podemos deixar de invocar a nulidade constante do disposto no art.º 615º nº 1 al. d) do CPC, porquanto a falta de produção de prova requerida inviabilizou a apreciação completa dos factos relevantes para a decisão, conduzindo a uma decisão injusta e que não reflete a realidade dos factos.
p) Violou a Douta Sentença recorrida os art.º 411º e 413º do CPC em virtude de daqueles preceitos legais, resultar que incumbia ao Juiz do Tribunal a quo realizar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, aqui se refletindo na audição das testemunhas arroladas pelo Recorrente e tomar em consideração todas as provas produzidas.
q) A decisão proferida pelo Tribunal a quo desconsiderou totalmente os factos alegados, a prova documental junta e sobretudo a prova testemunhal requerida, dispensando a fase de instrução da qual resultou a violação dos princípios do contraditório, da defesa, da descoberta da verdade material, do inquisitório e o direito à produção de prova nos termos do artigo 3º nº3, 5º e dos art.º 411º, 413º, 436º e 498º do todos do CPC.
r) Errou igualmente o Douto Tribunal a quo quanto ao julgamento da matéria de facto, tendo considerado como provada a seguinte factualidade:
1. Encontra-se descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora, freguesia da Buraca, sob o número ..., a fracção autónoma “Q”, correspondente ao quarto andar tardoz, para habitação, do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., Buraca, Amadora;
2. Pela Ap. 1866 de 2009/09/14, à descrição referida em 1., encontra-se registada aquisição do direito de propriedade sobre a fracção em causa a favor da A., por adjudicação em processo de execução fiscal;
3. O R. ocupa a fracção dos autos, recusando-se a entregá-la à A.
s) Conforme se disse, a decisão que recaiu sobre os presentes autos assentou erradamente na presunção do art.º 7º do CRP.
t) Acontece que, o registo predial apenas goza de uma presunção relativa de propriedade (artigo 7.º do Código do Registo Predial), que pode ser ilidida por prova em contrário por dele não se poder extrair efeitos constitutivos.
u) Assim, o registo predial não faz prova plena dos factos por aquela alegada, antes se encontrando submetidos à livre apreciação da prova podendo ser contraditados pelo R através da sua contestação e da prova que juntou e requereu.
v) O Tribunal a quo não se pronunciou sobre os factos alegados nem sobre a prova documental junta pelo Recorrente e que sustentam a sua posse, não se tendo pronunciado nomeadamente pela validade e efeitos do contrato promessa de compra e venda e comprovativos do sinal pago, os quais são anteriores ao registo de aquisição da Recorrida, incorrendo a douta sentença em omissão de pronuncia conforme alude a al. d) do número 1 do art.º 615º do CPC.
w) O Tribunal a quo deveria assim ter dado como provado:
-Que a cooperativa 2000 construiu o prédio urbano descrito nos autos na qual insere a fracção objeto destes autos.;
-Que nessa qualidade a referida cooperativa em 29 de Janeiro de 2002 celebrou com o Recorrente, um contrato de promessa de compra e venda cujo o objecto do negócio era a aquisição por parte do R. do imóvel melhor descrito nos autos;
- Que acordaram o preço de € 68.672,75, sendo a escritura definitiva seria efectuada quando a instituição de crédito o determinar.
- Que o Recorrente pagou a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de €35.545,30, tendo sido emitida as competentes faturas e recibos em 29 de Abril de 2002.
- Que o Recorrente à data da celebração do contrato já residia na fracção.
- Que o Recorrente detêm a posse do imóvel de forma continuada e pacifica, centrando-se nela o núcleo da sua vida familiar, ali residindo, tomando refeições, pernoitando, recebendo correspondência, constituindo aquela a sua casa de morada de família.
- Que pela ap 1866 de 14/09/2009 foi registada a aquisição da fracção a favor da Recorrida.
- Que a Recorrida nunca interpelou o Recorrente para desocupar o imóvel.
- Que o Recorrente age como proprietário exercendo a posse há mais de 20 anos, devendo assim ser declarada que a propriedade do imóvel se insere na esfera patrimonial do Recorrente, que a adquiriu por aquisição.
x) O Tribunal a quo desconsiderou a usucapião como forma originária de aquisição da propriedade, que prevalece sobre o registo predial da Recorrida e centrou a sua posição na presunção da propriedade a favor da Recorrida unicamente com base no art.º 7º do CRP.
y) Com efeito, o Recorrente alegou todos os factos essenciais para prova da posse da fracção, o qual alegou em suma, ali residir pelo menos há 17 anos, constituindo aquela a casa de morada de família, onde faz as suas refeições e centra toda a atividade familiar, onde dorme, recebe correspondência e que se comporta como proprietário sendo essa qualidade reconhecida pelos seus vizinhos, atendendo o alegado em 22 a 25 da contestação (reparação das infiltrações).
z) Pelo que alegou e provou a posse da fração que ocorreu de forma pacífica, pública e ininterrupta, com a intenção de exercê-la como proprietário titular, reunindo, portanto, os requisitos da usucapião previstos nos artigos 1287.º e seguintes do Código Civil
aa) Por outro lado, de acordo com o art.º 1269 do CC, a presunção da titularidade do direito significa que quem tem a posse tem o direito correspondente, o direito de propriedade.
bb) O tribunal a quo desconsiderou por completo o facto de o Recorrente ter celebrado o referido contrato promessa e ter pago um sinal para a aquisição da propriedade, não se tendo pronunciado pelos mesmos, omitindo-os, incorrendo assim a Douta Sentença em nulidade por omissão de pronuncia.
cc) Assim, verificando-se existir nos autos um caso de concurso de presunções sobre o registo e a posse, o mesmo só podia mostrar-se resolvido pelo disposto no citado art.º 1268º, nº 1 CC: “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao da posse”.
dd) Nesta colisão de presunções prevalece a mais antiga que é a do Recorrente, e mesmo que assim não se entendesse, em caso de igualdade na antiguidade, prevalece a posse, cfr se extrai do aresto jurisprudencial proferido no processo 966/06 do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que supra se transcreveu.
ee) Pelo que o Tribunal a quo decidiu de forma contraria, violando também o disposto nos art.ºs 1268º, 1269 e 1287º do CC e art.º 7º do CRP, em virtude de a posse do Recorrente ser mais antiga do que a data de registo de aquisição da Recorrida, prevalecendo a presunção da posse do Recorrido que é titulada por contrato promessa de compra e venda para o qual foi pago sinal como princípio de pagamento pela aquisição do imóvel.
ff) Reiterando-se assim que se mostra necessária e essencial à boa descoberta da verdade a audição das testemunhas, por forma a obtermos um verdadeiro julgamento da matéria de facto e a sua subsunção ao direito aplicado.
gg) Pelo que, deveria o Douto Tribunal a quo designar data para audiência de discussão e julgamento, ouvindo toda a prova e conjugando-a com a já junta aos autos e então assim proferir decisão de mérito nos autos.
Terminou o Apelante requerendo que o recurso seja considerado procedente por provado, e o despacho saneador e a sentença revogados, determinando-se em consequência a realização da audiência prévia ou da audiência de discussão e julgamento, produzindo-se a prova requerida, seguindo-se os seus termos até final. Caso assim não se entenda, requer que seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra em que se reconheça que o Apelante é possuidor, conferindo-lhe o direito de adquirir a fração por usucapião e, em consequência, declare a extinção do registo predial a favor da Autora.
Não foi apresentada alegação de resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se a decisão é nula nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por o Tribunal a quo não se ter pronunciado sobre os factos alegados pelo Réu na Contestação (designadamente os vertidos na conclusão w), nem sobre a prova documental que juntou;
2.ª) Se o Tribunal a quo deveria ter designado data para audiência prévia ou para audiência de julgamento (facultando ao Réu a produção da prova testemunhal que requereu e da prova que ainda poderia vir a requerer), e qual a consequência de não o ter feito - nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, do CPC ou nulidade da sentença nos termos do art.º 615.º, n.º 1, als. b) ou d), do CPC;
3.ª) Se deve ser modificada a decisão da matéria de facto, designadamente dando como provados os factos descritos na conclusão w);
4.ª) Se é o Réu-reconvinte - e não a Autora-reconvinda - o titular do direito de propriedade sobre a fração identificada nos autos, por estarem verificados os pressupostos da usucapião que aquele invocou.
Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto a factos/meios de prova
Da sentença recorrida consta um breve relatório, em que se referiu que o Réu, na sua Contestação, “não impugna a factualidade que sustenta o pedido, nem validamente excepcionou/alegou qualquer factualidade que detivesse a virtualidade de impedir, modificar ou extinguir a pretensão judicialmente accionada, ou de sustentar a aquisição originária que invoca para fundar a tutela reconvencional que deduziu”.
Na decisão recorrida, (apenas) foram considerados provados com interesse para a decisão da causa os seguintes factos:
1. Encontra-se descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora, freguesia da Buraca, sob o número ..., a fração autónoma “Q”, correspondente ao quarto andar tardoz, para habitação, do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., Buraca, Amadora.
2. Pela Ap. 1866 de 2009/09/14, à descrição referida em 1., encontra-se registada aquisição do direito de propriedade sobre a fração em causa a favor da Autora, por adjudicação em processo de execução fiscal.
3. O Réu ocupa a fração dos autos, recusando-se a entregá-la à Autora.
Após elencar estes factos, os quais, conforme se infere da respetiva “fundamentação” (com referências à prova documental e por confissão) foram tidos por plenamente provados, o Tribunal recorrido teceu as seguintes considerações de direito (omitimos as notas de rodapé; sublinhado nosso):
“Resulta da leitura da petição inicial que pela presente a A. solicita o reconhecimento da titularidade do direito de real de propriedade que se inscreve na sua esfera jurídica e cujo objecto (mediato) é fracção autónoma identificada na decisão de facto.
Não restam quaisquer dúvidas, não se impondo aprofundar argumentação quanto a tal, que os pedidos deduzidos subsumem-se inteiramente à previsão normativa do artigo 1311.º do Cód. Civil, configurando a presente como acção de reivindicação. Isto dado que nas acções de reivindicação cumulam-se dois pedidos: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro, incumbindo ao autor alegar e demonstrar os factos dos quais resulte a existência do direito real de gozo que invoca, por via, inclusivamente, da individualização do objecto do mesmo, da realidade física sobre o qual incide, nos exactos termos do n.º 1 do artigo 342.º do Cód. Civil.
Descendo ao caso sub judicio, no que respeita à pronuntiatio, não se pode deixar de atentar na factualidade probatoriamente adquirida nos autos e da qual resulta encontrar-se inscrita registalmente a aquisição da propriedade a favor da A. cujo objecto é a fracção autónoma revindicada; razão pela qual, nos termos do artigo 7.º do Cód. Reg. Predial, deve-se presumir não só a existência da referida fracção, mas também a titularidade do direito de propriedade do demandante.
Encontram-se, pelo exposto, reunidos os pressupostos de que depende a pronuntiatio.
No entanto, para aferir do bem fundado da presente demanda, há ainda que verificar se se encontra demonstrado ter o R. em seu poder a fracção autónoma pois, como escreve José Alberto C. Vieira, Se o autor faz prova de que é titular do direito real de gozo invocado na acção e de que o réu tem a coisa em seu poder – seja possuidor seja detentor, o que para o efeito é irrelevante – o réu apenas pode evitar a procedência da acção provando ser titular de um direito (real, pessoal ou outra) que legitime a posse ou detenção da coisa e obste, assim, à entrega da coisa ao reivindicante.
Acontece que ficou cabalmente demonstrado que o demandado efectivamente a ocupa, com carácter de exclusividade – ou seja, obstando a que outrem o faça. É, assim, definitivo que tem em seu poder a fracção, sendo certo que não constam dos autos quaisquer factos dos quais ressumasse a legitimidade de tal ocupação, porque realizada ao abrigo de qualquer direito nos termos acima sumariamente consignados.
Não pode, assim, deixar de proceder o pedido em apreciação, com a consequente improcedência do pedido reconvencional.”
O Réu-Apelante, nos artigos 39.º a 49.º da sua alegação [conclusões r) a w)], defende, em síntese, que: mal andou o Tribunal a quo quando considerou provado que a Autora é proprietária da fração em causa, baseando-se exclusivamente no registo predial; isto porque o Réu alegou e provou a posse da fração por mais de 17 anos, de forma pacífica, pública e ininterrupta, com a intenção de exercê-la como proprietário titular, reunindo os requisitos da usucapião previstos nos artigos 1287.º e ss. do CC; por via da omissão da fase da instrução, o Tribunal a quo não valorou devidamente os elementos probatórios apresentados, como testemunhos e documentos que demonstram o título que legitima a posse continuada do Réu sobre o bem; o Tribunal a quo desconsiderou por completo os factos alegados pelo Réu, designadamente o facto de ter celebrado o referido contrato promessa e ter pago um sinal para a aquisição da propriedade, não se tendo pronunciado pelos mesmos, omitindo-os, incorrendo assim a Sentença em nulidade por omissão de pronúncia.
Apreciando.
Nos termos da alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de normativo legal que deve ser conjugado com o disposto no n.º 2 do art.º 608.º do CPC, nos termos do qual “(O) juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
De salientar que o conceito de “questões” que o juiz deve resolver na sentença, a que alude aquele normativo legal, se relaciona com a definição do âmbito do caso julgado, não abrangendo os meros raciocínios, argumentos, razões, considerações ou fundamentos - mormente alegações de factos e meios de prova - produzidos pelas partes em defesa das suas pretensões. Aliás, a lei é muita clara, prevendo que quando a decisão da matéria de facto seja deficiente, obscura ou contraditória sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando se mostre indispensável a sua ampliação quanto a determinados factos ou quando não esteja tal decisão devidamente fundamentada sobre factos essenciais para o julgamento da causa, não é caso para arguição da nulidade da sentença, antes para a impugnação da decisão da matéria de facto e sua modificação, que até pode ser oficiosamente determinada em certas situações, nos termos previstos nos artigos 640.º e 662.º do CPC.
Na jurisprudência, a este respeito, veja-se, por exemplo, o acórdão do STJ de 10-01-2012, no proc. n.º 515/07.0TBAGD.C1.S1, bem como o acórdão do STJ de 10-12-2020, no proc. n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), referindo-se no sumário deste último precisamente que: “A nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do estatuído naquele nº 2, do artigo 608.º, do CPC, apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as «questões» pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes”.
Na doutrina, destacamos os ensinamentos de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 737: “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art.º 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado (ver o n.º 2 da anotação ao art.º 608).” E na anotação ao art.º 608.º, págs. 712-713, clarificam os mesmos autores que na sentença o juiz deverá responder aos pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte, a todos devendo sucessivamente considerar, a menos que a apreciação de um esteja prejudicada; o mesmo fará relativamente às várias causas de pedir invocadas, bem como quanto às exceções perentórias que tenham sido deduzidas pelo réu ou pelo autor reconvindo (sem prejuízo da possível inutilidade), acrescentando que resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 5-3) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.”
Atentando no saneador-sentença recorrido, que julgou a ação procedente e a reconvenção improcedente, constata-se que contém a decisão da matéria de facto, incluindo o elenco dos factos provados e a respetiva “fundamentação”, bem como a fundamentação de direito, em que se apreciou do pedido e da causa de pedir da ação e, de forma muito sucinta, do pedido reconvencional e da respetiva causa de pedir, em termos que nos parecem configurar um juízo de manifesta improcedência (inconcludência), ao entender - resta saber se bem - que “a presente já se encontra em condições de ser julgada atenta a sua manifesta inconcludência da defesa e pedido reconvencional deduzidos pelo R.” e que não foi “validamente” excecionada ou alegada qualquer factualidade com a virtualidade de impedir, modificar ou extinguir a pretensão judicialmente acionada, ou de sustentar a aquisição originária que invoca para fundar a tutela reconvencional que deduziu, e ainda que “não constam dos autos quaisquer factos dos quais ressumasse a legitimidade de tal ocupação, porque realizada ao abrigo de qualquer direito nos termos acima sumariamente consignados”.
Assim, e tendo em atenção o sentido que a expressão “questões que devesse apreciar” tem no art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, não abrangendo o enunciado de factos indicado pelo Apelante, parece-nos que não se verifica a invocada causa de nulidade. Uma eventual incompletude da decisão da matéria de facto poderá consubstanciar um erro de julgamento de facto, a apreciar nos termos previstos no art.º 662.º do CPC, mas não determinará seguramente a nulidade da sentença.
Pelo exposto, improcedem as conclusões da alegação de recurso em apreço atinentes à arguição de nulidade da sentença.
Da dispensa da audiência prévia e da instrução
O Tribunal a quo entendeu que se justificava proferir de imediato saneador-sentença, o que justificou referindo o seguinte:
“Face ao silêncio das partes, adequo formalmente o processado nos termos propostos no despacho precedente, atendendo a que não há que garantir o exercício do contraditório.
Atendendo à adequação formal do processado acima determinada, não sendo de assegurar o exercício do contraditório, passo a proferir:”
Mais teceu as seguintes considerações:
“Julgamento da causa:
Nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 595.º do Cód. Proc. Civil, no despacho saneador apreciar-se-á, total ou parcialmente, do mérito da causa sempre que o estado do processo o permita, por se revelar desnecessária a produção de prova.
Sucede que a presente já se encontra em condições de ser julgada atenta a sua manifesta inconcludência da defesa e pedido reconvencional deduzidos pelo R..
Na verdade, foi o A. convidado a alegar factualidade cuja demonstração pudesse sustentar o juízo de ser possuidor, tendo oposto essa posse ao titular do direito de propriedade sobre o prédio revindicado – cfr. despacho de fls. 96 verso e 97. No entanto, o demandante persistiu em não invocar os concretos factos, tendo-se omitido conduta processual na sequência do convite mencionado.
Ora, como escreve Lebre de Freitas1 [In A Acção Declarativa Comum à Luz do Código Processo Civil de 2013, 3.ª Edição, página 173], se ante a insuficiência ou imprecisão dos articulados se se tiver optado pelo convite ao aperfeiçoamento no despacho pré-saneador – como foi a situação em apreço, vd. o já mencionado despacho de fls. 96 verso e 97 – e a parte não tiver correspondido ao convite, deve entender-se precludida a possibilidade de o fazer posteriormente – permanecendo assim e sem possibilidade de correcção, a insuficiência de que se dava nota no despacho em referência, com a consequente inconcludência da defesa e do pedido reconvencional nela fundamentado.”
Apreciando.
Nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação (cf. art.º 597.º do CPC e art.º 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26-08), como é o caso, importa ter presente o disposto nos artigos 592.º e 593.º, ambos do CPC.
Estabelece o n.º 1 deste último artigo (atinente à “Dispensa da audiência prévia”) que “(N)as ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º”. De referir que não tem cabimento interpretar este art.º 593.º, n.º 1, no sentido da possibilidade de dispensa da audiência prévia quando se destinar a proferir despacho saneador que conheça do mérito da causa, com o argumento de que o art.º 593.º, n.º 1, do CPC, ao referir-se ao fim indicado na alínea d) do n.º 1 do 591.º abrange a previsão da alínea b) do art.º 595.º, n.º 1, atinente ao despacho saneador (parece-nos mesmo que tal será uma inaceitável interpretação ab-rogante).
Por sua vez, o n.º 1 do art.º 592.º (com a epígrafe “Não realização da audiência prévia”) preceitua que a audiência prévia não se realiza: a) Nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º; b) Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados. De salientar que a possibilidade de já ter existido contraditório a respeito de exceção dilatória [a que se refere a al. b) do n.º 1 do art.º 592.º, ou até de exceção perentória], não se harmoniza facilmente com o disposto no art.º 584.º do mesmo Código atinente à função da réplica, nem com a falta de previsão de um articulado de tréplica, nos moldes previstos no anterior Código de Processo Civil. Assim, o contraditório tem lugar nos termos do art.º 3.º, n.º 4, que “(À)s exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final”. Porém, na prática quotidiana dos nossos tribunais vem sendo contrariada esta limitação, por via do recurso aos deveres de gestão processual e adequação formal expressamente consagrados nos artigos 6.º e 547.º do CPC. A este respeito, veja-se José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo civil Anotado”, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 607, criticando a jurisprudência segundo a qual, quando seja apresentada réplica fora dos casos previstos no art.º 584.º, não pode ser-lhe atribuído o efeito de antecipar a resposta admitida pelo art.º 3.º, n.º 4, pelo que deve ser eliminada do processo eletrónico.
Nos presentes autos, a Autora não chegou a exercer o contraditório a respeito da matéria da exceção perentória, mas teve oportunidade de o fazer, face ao despacho de 26-09-2024, não importando, por ora, apreciar da consequência dessa falta de pronúncia.
Pretendendo o Tribunal a quo conhecer do mérito da causa nos termos em que o fez, com a prolação do saneador-sentença recorrido, é evidente que não se estava perante um dos casos de não realização da audiência prévia previstos no referido art.º 592.º, n.º 1, nem de dispensa da audiência prévia ao abrigo do citado art.º 593.º, n.º 1, pelo que, à partida, se impunha que tivesse convocado a audiência prévia, importando saber se foi acertada a decisão de adequação formal do processado que a dispensou.
Não se pode olvidar a importância que o legislador do novo Código de Processo Civil pretendeu conferir à audiência prévia, como um dos instrumentos de promoção de uma nova cultura judiciária, envolvendo todos os participantes no processo, conforme resulta bem patente da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII (PL 521/2012, de 2012-11-22) que está na génese da Lei n.º 41/2013, de 26-06, que aprovou aquele Código, designadamente das seguintes passagens (sublinhado nosso):
O novo figurino da audiência prévia, designação ora dada à audiência a realizar após a fase dos articulados, assente decisivamente num princípio de oralidade e concentração dos debates, pressupondo a intervenção ativa de todos os intervenientes na lide, com vista a obter uma delimitação daquilo que é verdadeiramente essencial para a sua plena compreensão e justa resolução, conjugado com a regra da inadiabilidade e com a programação da audiência final, é suscetível de potenciar esse resultado desejável.
(…) No que respeita à tramitação da ação declarativa, as alterações introduzidas visam assegurar a concentração processual, em termos de a lide, cumprida a fase dos articulados, se desenvolver em torno de duas audiências: a audiência prévia e a audiência final.
Há um manifesto investimento na audiência prévia, entendida como meio essencial para operar o princípio da cooperação, do contraditório e da oralidade. Tem-se presente que a audiência preliminar, instituída em 1995/1996, ficou aquém do que era esperado, mas há também a convicção de que, além da inusitada resistência de muitos profissionais forenses, certos aspectos da regulamentação processual acabaram, eles próprios, por dificultar a efetiva implantação desta audiência no quotidiano forense.
(…) A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.”
Sobre esta problemática, pronunciam-se também Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, na obra citada, pág. 641, afirmando que “Quando se julgue habilitado a conhecer imediatamente do mérito da causa, mediante resposta total ou parcial ao pedido (ou pedidos) nela deduzido (art.º 595-1-b), o juiz deve convocar a audiência prévia para esse fim. (…) o juiz não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência prévia, entre as partes, salvo quando os factos relevantes controvertidos só possam ser provados por documento e este não seja apresentado, sem justificação, apesar do convite feito no despacho pré saneador (ver o n.º 10 da anotação ao art.º 590), ou em caso de revelia inoperante por força do art.º 568º-d, quer o documento necessário à prova dos factos seja apresentado, quer não, pelo autor, o prazo para tanto fixado pelo juiz (art.º 592-1-a)”. Acrescentando, na obra citada, pág. 650, em anotação ao art.º 593.º: “os casos em que a dispensa da audiência prévia é permitida só parcialmente coincidem com aqueles em que se admitia a dispensa da audiência preliminar: a dispensa pressupõe agora que a audiência prévia se destinasse apenas ao proferimento de despacho saneador (dantes, a audiência preliminar não podia sequer ser convocada com este fim exclusivo), à adequação formal ou gestão processual (dantes, esta finalidade era quanto muito, complementar das da audiência preliminar), ou ao proferimento do despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (único aspeto em que existe alguma coincidência com o código anterior, já que neste se admitia a dispensa da audiência preliminar quando esta se destinasse à fixação da base instrutória.
Fora destes casos, o juiz não pode dispensar a audiência prévia, nomeadamente quando se verifiquem os requisitos da alínea b) ou da 2.ª parte da alínea c) do art.º 591-1. (…)
Mesmo quando a questão tenha sido debatida nos articulados, a decisão de dispensa deve ser precedida da consulta das partes, ao abrigo do art.º 3-3, “assim se garantindo, não apenas o comtraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa” (ac. do TRP de 12.11.15 Filipe Caroço, www.dgsi.pt, proc. 4507/13). No mesmo sentido: acs. do TRL de 13.11.14 (Ana Azeredo Coelho), www.dgsi.pt, proc. 673/03, de 5.5.15 (Cristina Coelho), www.dgsi.pt, proc. 1386/13, e do TRP de 24.9.15 (Judite Pires), www.dgsi.pt, proc. 128/14, decretando nulidade, respetivamente por não convocação da audiência prévia para discussão do mérito da causa, apreciado no despacho saneador, e por não convocação da audiência prévia para discussão de exceção perentória, julgada procedente no despacho saneador. Também no mesmo sentido, mas admitindo (“quando muito”) que, por adequação formal, após audição das partes, o juiz possa dispensar a audiência prévia, com fundamento em que a matéria em causa já fora suficientemente debatida nos articulados (restrição esta muito duvidosa), veja-se o ac. do TRL de 9.10.14 (Jorge Manuel Leitão Leal) www.dgsi.pt, proc. 2164/12, e, no mesmo sentido, o ac. do TRE de 30.6.16 (Mário Serrano), www.dgsi.pt, proc. 309/15. No mesmo sentido da nossa anotação: Rui Pinto, Notas cit., n.ºs 3 e 4 da anotação ao artigo 595 (também crítico em face da possibilidade da adequação formal admitida pelo citado ac. do TRL de 9.10.14).
Maior margem de discricionariedade resulta do art.º 597 para as ações de valor não superior a metade da alçada de Relação”.
Serve esta citação também para evidenciar que a jurisprudência não tem sido pacífica a respeito da obrigatoriedade da audiência prévia, não faltando quem defenda, por exemplo, a desnecessidade de tal diligência quando a sua finalidade fosse a discussão prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 591.º do CPC e a prolação de despacho saneador que conheça do mérito da causa, apreciando uma exceção perentória, nos termos conjugados dos artigos 591.º, n.º 1, al. d), e 595.º, n.º 1, al. b), ambos do CPC, desde que o contraditório a respeito da matéria da exceção já tivesse sido cumprido – neste sentido, veja-se, por exemplo, o acórdão da Relação de Lisboa de 11-10-2018, no proc. n.º 166/17.0T8AND.L1-6 (disponível em www.dgsi.pt).
A jurisprudência maioritária, que acompanhamos, vem convergindo no sentido de reconhecer que, no atual Código de Processo Civil, se consagrou, como regra, a obrigatoriedade da realização da audiência prévia, com as ressalvas expressamente previstas nos artigos 592.º, 593.º e 597.º do CPC, admitindo apenas “desvios” pontuais, casuisticamente determinados pelo juiz, com a prévia audição e o (indispensável) acordo das partes à dispensa da audiência prévia, ao abrigo dos deveres de gestão processual e adequação formal (artigos 6.º e 547.º do CPC). Neste sentido, a título meramente exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 09-10-2014, no proc. n.º 2164/12.1TVLSB.L1-2 e ainda, da mesma Relação, o acórdão de 05-05-2015, no proc. n.º 1386/13.2TBALQ.L1-7, e o acórdão de 08-02-2018, no proc. n.º 3054-17.7T8LSB-A.L1-6 (todos disponíveis em www.dgsi.pt), bem como o acórdão de 11-12-2019, proferido no proc. n.º 98964/18.2YIPRT, relatado pelo ora 2.º Desembargador Adjunto e em que foi Adjunta a ora Relatora (disponível em https://outrosacordaostrp.com), com diversas referências à doutrina e jurisprudência sobre esta problemática e cujo sumário tem o seguinte teor:
“I – Nas acções de valor superior a metade da alçada da Relação, quando o juiz tencionar conhecer, de imediato, do mérito da causa, a audiência prévia não pode ser dispensada (arts. 593/1, a contrario, e 591/1-b, ambos do CPC), sob pena de nulidade (art.º 195/1 do CPC), contra a qual, se a dispensa estiver a coberto de um despacho judicial, se deve reagir com um recurso.
II – Ao abrigo do poder de adequação processual (arts. 6 e 547 do CPC), pode-se aceitar, no entanto, essa dispensa, desde que, pelo menos, ouvidas as partes, estas a aceitem ou não se oponham a ela.
III – Aquela nulidade não fica sanada pelo facto de o contraditório ter sido observado por escrito, pois que a audiência prévia pressupõe a oralidade.”
Com efeito, fazendo uma interpretação teleológica e sistemática de todos os citados preceitos legais, concedemos que a regra da obrigatoriedade da realização da audiência prévia, aplicável numa “normal” tramitação dos autos, poderá ainda - fora dos casos expressamente previstos na lei (cf. artigos 592.º, 593.º e 597.º do CPC) - ser afastada, ao abrigo dos deveres de gestão processual e adequação formal (artigos 6.º e 547.º do CPC), desde que as especificidades da causa assim o justifiquem, por não se mostrar necessária face aos fins a que se destinaria, e contanto que, além do indispensável contraditório sobre as questões de direito ou de facto a apreciar no saneador-sentença, as partes se possam previamente pronunciar sobre a conveniência de uma diferente tramitação processual, manifestando a sua concordância de forma expressa ou tácita (pela não oposição) à dispensa da audiência prévia.
Sendo este o quadro legal em que nos movemos, compreende-se que, sendo proferido, à margem do mesmo, um saneador-sentença, com dispensa de realização da audiência prévia, se verifica uma nulidade processual, atenta a omissão de um ato que a lei impõe (cf. art.º 195.º do CPC), constituindo o recurso daquela decisão de mérito o meio próprio para reagir contra tal nulidade, porquanto coberta por uma decisão judicial/despacho que ordenou, autorizou ou sancionou (ainda que só de modo implícito) o respetivo ato ou omissão. Nesta linha de pensamento, veja-se a lição de Manuel de Andrade, lembrando a “doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se” (in “Noções elementares de Processo Civil”, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 183). Não estando a nulidade a coberto de decisão judicial (despacho), a mesma deve ser arguida, mediante reclamação, nos termos e prazo do art.º 199.º do CPC.
Sem olvidar ainda que, como explica Miguel Teixeira de Sousa [no seu Post de 21-12-2015 (Jurisprudência 250), in https://blogippc.blogspot.com/], além da nulidade processual (cf. art.º 195.º, n.º 1, CPC), sempre que o juiz, do mesmo passo, conhecer do mérito da causa no despacho saneador “o que é nulo não é apenas o processo, mas o saneador-sentença que se pronunciou sobre uma questão de que, sem a audição prévia das partes, não podia conhecer (cf. art.º 615.º, n.º 1, al. d), CPC); a nulidade do processo só se verifica atendendo ao conteúdo do despacho saneador (ou seja, é o conteúdo deste despacho que revela a nulidade processual) e o despacho não seria nulo se tivesse outro conteúdo, isto é, se não tivesse conhecido do mérito da causa (o que mostra que a nulidade não tem apenas a ver com a omissão de um acto, mas também com o conteúdo do despacho).”
Ademais, quando o saneador-sentença seja acompanhado de uma decisão expressa de dispensa da audiência prévia, verificar-se-á igualmente um erro de julgamento na aplicação dos citados preceitos legais.
Nos presentes autos, como vimos, não se estava perante um caso de “não realização da audiência prévia”, nos termos do art.º 592.º, n.º 1, al. b); considerando o Tribunal a quo que se impunha conhecer de imediato do mérito da causa, não podia dispensar a audiência prévia ao abrigo do art.º 593.º, n.º 1, já que a mesma não se destinaria apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do art.º 591.º; pelo contrário, a audiência destinar-se-ia a facultar às partes a discussão nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art.º 591.º do CPC, e à prolação de saneador-sentença que iria determinar a extinção da instância, pondo termo à causa (sem prejuízo da possibilidade de ser proferido por escrito) - cf. artigos 277.º, al. a), 591.º, n.º 1, al. d), e 595.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPC; logo, a sua realização era legalmente obrigatória, parecendo-nos inaceitável justificar a dispensa da mesma com a “adequação formal do processado acima determinada”, já que a possibilidade de adequação do processado avançada pelo Tribunal recorrido, no despacho de 26-09-2024, foi apenas no sentido de as partes se pronunciarem, por escrito, sobre “matéria de exceção e questões que se entendam do conhecimento oficioso, a identificar oportunamente, após o que se proferirá despacho saneador e despachos ao abrigo dos artigos 596.º e 593.º, n.º 2, alínea d), todos do Cód. Proc. Civil, sem prejuízo das faculdades previstas no n.º 3 do último dos preceitos referidos”. Não foi então afirmado que, na hipótese de o Réu-reconvinte não corresponder ao convite ao aperfeiçoamento, o Tribunal ponderava já (e apenas) proferir - sem necessidade de mais provas, nem convocar a audiência prévia - despacho saneador nos termos do art.º 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, apreciando todos os pedidos deduzidos pelas partes.
Portanto, no despacho em que as partes foram convidadas a pronunciar-se sobre a adequação do processado, não lhes foi dado a entender que essa adequação poderia igualmente conduzir à prolação de decisão de mérito que iria colocar fim ao processo, sem prévia realização da audiência prévia; pelo contrário, dada a obrigatoriedade legal dessa diligência e sendo expressamente mencionado que seria proferido “despacho saneador e despachos ao abrigo dos artigos 596.º e 593.º, n.º 2, alínea d), todos do Cód. Proc. Civil, sem prejuízo das faculdades previstas no n.º 3 do último dos preceitos referidos”, era de concluir que se seguiria, na eventualidade de o Réu-reconvinte não corresponder ao convite ao aperfeiçoamento, um juízo de ponderação sobre se o estado dos autos já permitia uma tomada de posição segura a respeito do mérito da causa, em conformidade com o disposto no art.º 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, nos termos do qual o despacho saneador se destina a “(C)onhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória”, sendo, na afirmativa, convocada audiência prévia, nos termos do art.º 591.º, n.º 1, al. b), do CPC.
A este respeito, destacamos a explicação de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no seu “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, págs. 659-661 (sublinhado nosso): “O juiz conhece do mérito da causa no despacho saneador, total ou parcialmente, quando para tal, isto é, para dar resposta ao pedido ou à parte do pedido correspondente, não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo.
Tal pode acontecer por inconcludência do pedido (…), procedência ou improcedência de exceção perentória (…) e procedência ou improcedência do pedido. (…)
Esse conhecimento só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa (…)”.
Sobre o funcionamento deste critério, lembramos as palavras de Paulo Ramos de Faria, “Relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito”, na Julgar Online, outubro de 2019, pág. 52, quando refere que:
“ 4.3. Julgamento do recurso do saneador-sentença. (…)
A existência de outras soluções plausíveis, continuando controvertida a factualidade que as sustenta, não tem uma utilidade operativa autónoma, não constituindo um critério suficiente de procedência do recurso. O fundamento decisivo da cassação é a adoção errada − ou prematura, no caso de viciação da alegação − pelo tribunal a quo de um certo enquadramento jurídico sobre o mérito da causa – quando não seja a existência de uma mera falha na conclusão de estarem assentes os factos essenciais, à luz da abordagem de direto correta já adotada, ou na deteção da relevância de factos controvertidos, sempre de acordo com esta abordagem. Este erro obriga à instrução da causa (salvo se o enquadramento adotado pelo tribunal ad quem também assentar em factos assentes) ou, no caso de insuficiência ou imprecisão dos elementos de facto alegados, à formulação de um convite ao aperfeiçoamento da articulação”.
De entre as considerações desenvolvidas por este autor, citamos ainda, pelo seu interesse, as seguintes passagens: “A desnecessidade de mais provas para o imediato conhecimento do pedido não equivale a ausência de controvérsia sobre a questão de facto apresentada pelo autor. Pode esta subsistir e, não obstante, ser possível o conhecimento do mérito da causa. Assim ocorrerá, desde logo, nos casos em que deve ser formulado um juízo de manifesta inviabilidade da ação. Este juízo pode evoluir e reforçar-se entre a apreciação liminar e a fase do saneamento processual, levando à decisão de improcedência nesta ocasião. (…)
Desnecessidade de mais provas também não significa suficiência das já apreciadas para a formação da convicção do julgador (na prova livremente apreciada). Ainda que o juiz já esteja convencido sobre a realidade de um facto controvertido – designadamente, com base na prova produzida antecipadamente −, tem, por regra quase sem exceção, de dar à parte que ficaria vencida na “questão de facto” a decidir a oportunidade de produzir a prova por si oportunamente oferecida, e de, assim, alterar aquela convicção inicial, sob pena de, não o fazendo, com a sua decisão violar o princípio do contraditório, o princípio da igualdade de armas e o direito a um processo equitativo. (págs. 9-10)
Nos presentes autos, estamos perante uma ação de reivindicação, que se trata, como é sabido, de uma ação real, em que a causa de pedir é o ato ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade de que o autor se arroga titular (cf. art.º 581.º, n.º 4, do CPC), a que acresce a ocupação abusiva do prédio pelo demandado, cabendo ao autor alegar e demonstrar tais factos (art.º 342.º, n.º 1, do CC).
A Autora invocou a presunção fundada no registo predial consagrada no art.º 7.º do Código do Registo Predial, cuja aplicação à situação sub judice não foi prejudicada, antes pelo contrário, pelo caso julgado material do acórdão que confirmou a sentença que decidiu a questão da nulidade da venda da fração à Autora no processo de execução fiscal.
Na sua alegação recursória, o Réu-Apelante defende que deveria ter sido realizada audiência prévia ou, pelo menos, audiência de julgamento, para nesta serem produzidas outras provas, de modo a serem dados como provados os factos que alegou, atinentes à aquisição por usucapião da fração em apreço nos autos. Não tendo Réu-reconvinte correspondido ao convite ao aperfeiçoamento do seu articulado (no caso, contestação/reconvenção), compreende-se que o Tribunal a quo tenha considerado que aquele já não o poderia fazer. Com efeito, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no seu “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 642 (em que citam Montalvão Machado e Paulo Pimenta), referem que, quando o juiz tiver optado por convidar as partes ao completamento dos articulados deficientes no despacho pré saneador (e não na audiência prévia), e a parte não tiver correspondido ao convite, “deve entender-se precludida a possibilidade de o fazer na audiência prévia.”
Aliás, parece-nos que tal será também uma consequência normal do princípio da limitação dos atos consagrado no art.º 130.º do CPC: se o juiz já convidou a parte ao aperfeiçoamento do articulado e esta não aproveitou, é legítimo considerar que a audiência prévia não poderá servir para esse fim, sendo inútil convocá-la para o mesmo (o que não significa que seja inútil convocá-la para outros fins). Note-se, no entanto, que isto pressupõe que o convite ao aperfeiçoamento seja claro e exaustivo quanto às concretas deficiências do articulado e às possíveis consequências para a pretensão da parte, não podendo um tal efeito preclusivo (por a parte não corresponder ao convite ao aperfeiçoamento do articulado), operar sem mais, com a imediata prolação de saneador sentença (que conheça do mérito da pretensão baseada nessa causa de pedir) quando as partes nem sequer foram advertidas a esse respeito, tendo, ao invés, no despacho pré saneador sido sugerido que os autos prosseguiriam para a fase da instrução, no que pode ser entendido como um sinal de que a circunstância de a parte não corresponder ao convite para aperfeiçoamento não teria como consequência o conhecimento imediato do mérito da causa no saneador, antes se abriria a porta à possibilidade de virem ainda a ser considerados factos complementares ou concretizadores [porventura nos termos dos artigos 591.º, n.º 1, al. c), e 5.º, n.º 2, al. b), do CPC].
Por isso, parece-nos inevitável concluir que errou o Tribunal a quo ao avançar para o conhecimento do mérito da causa no saneador-sentença, sem realização da audiência prévia, a qual, no caso concreto, não podia ser dispensada, e se deverá realizar, para a finalidade prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 591.º do CPC, sem prejuízo de poder igualmente servir para outras finalidades, mormente a da alínea a).
Procedem, pois, em parte, as conclusões da alegação de recurso, com a revogação da decisão recorrida, ficando prejudicado o conhecimento das outras questões objeto do presente recurso.
Quanto às custas do recurso, não nos parece, considerando o critério da causalidade, que à Autora-Apelada possa ser imputada a circunstância de o Tribunal a quo ter prematuramente conhecido do mérito da causa no saneador; assim, afigura-se mais apropriado que seja o Apelante, Réu-reconvinte, por retirar proveito da procedência parcial do recurso, o responsável pelas custas do recurso, sendo certo que já pagou a taxa de justiça e inexistem outras custas; obviamente, quanto às custas da ação, a final se decidirá.
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se, em substituição da mesma, que seja convocada a audiência prévia, destinada, pelo menos, à finalidade prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 591.º do CPC.
O Réu-Apelante é o responsável pelo pagamento das custas do presente recurso, já se mostrando paga a taxa de justiça e inexistindo outras custas (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
D.N.

Lisboa, 05-06-2025
Laurinda Gemas
Arlindo Crua
Pedro Martins