APELAÇÃO
JUNÇÃO
DOCUMENTOS
TÍTULO EXECUTIVO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
ENTREGA DE QUANTIA
Sumário

(art.º 663.º n.º 7 do CPC)
1. Não deve ser admitida a junção de documentos com o recurso, quando os mesmos se apresentam como irrelevantes para a decisão da questão controvertida, não se integrando na previsão do art.º 651.º n.º 1 do CPC, que só excecionalmente admite a apresentação de documentos nesta sede, quando estão em causa documentos cuja junção não foi possível em momento anterior ou que se tornaram necessários em virtude do julgamento em 1ª instância.
2. Como decorre do disposto nos art.º 6.º n.º 2 e art.º 726.º n.º 4 do CPC, ao constatar que o documento junto como título executivo está incompleto, é irregular ou insuficiente, o juiz deve convidar a parte a sanar tal irregularidade, se estiver em causa uma falta suscetível de ser sanada, tendo a jurisprudência vindo a consolidar-se no sentido de que só a falta de título executivo justifica o indeferimento liminar da execução, devendo ser proferido despacho de aperfeiçoamento quando se está perante um título insuficiente, em razão de omissão que pode ser suprida.
3. A expectativa do credor determina que continuem a ser admissíveis os títulos executivos constituídos por documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou prestação de facto, ao abrigo do art.º 46.º al. c) do anterior CPC e emitidos na vigência de tal norma, não obstante não se integrarem agora no elenco dos títulos executivos previstos no art.º 703.º do CPC.
4. Este entendimento é sufragado pelo Tribunal Constitucional que no seu Acórdão n.º 408/2015 de 23 de Setembro de 2015, veio declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma que aplica o art.º 703.º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do art.º 46.º n.º 1 al. c) do CPC anterior, por violação do princípio da confiança.
5. Quando do documento dado à execução, relativo a contrato de crédito ao consumo, resulta que quando da sua assinatura não foi disponibilizada qualquer quantia em benefício da Executada, nem tão pouco a Exequente o alega no requerimento executivo, considera-se que tal documento não constitui título executivo bastante, nos termos do art.º 46.º al. c) do anterior CPC, não sendo caso de convite ao aperfeiçoamento para a junção de documentos comprovativos de factos essenciais à perfeição do contrato de mútuo, que tem a natureza de contrato real que se completa com a entrega da coisa.

Texto Integral

Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
Vem a sociedade Prime Credit Sarl 3 intentar a presente execução sumária contra AA, alegando o seguinte:
“1 -A Credibom – Instituição Financeira de Crédito, S.A em 17/10/2007, por alteração ao pacto social, mudou-se a firma social de Credibom – Instituição Financeira de Crédito, S.A. para Banco Credibom, S.A.
2- Por Contrato de Cessão de Créditos assinado no dia 18 de Maio de 2012, em Lisboa, o Banco Credibom, S.A., cedeu à sociedade Prime Credit 3, S.Á.R.L., ora Requerente, os créditos que detinha sobre a ora Requerida, incluindo capital, juros, indemnizações e quaisquer outras obrigações pecuniárias, conforme Documento N.º 1 e N.º 2 que ora se junta.
3. Cessão essa notificada à Requerida nos termos do artigo 583.º, n.º 1 do Código Civil, conforme Documento N.º 3.
4. A Cedente primária, no âmbito da sua actividade, celebrou com a ora Requerida, o contrato, ao qual foi atribuído o n.º ...232, conforme Documento N.º 4.
5. O referido contrato, tinha como objecto, um mútuo.
6. Ora, apesar de devidamente interpelada para regularizar a dívida em que incorreu, pelo não pagamento do montante total em incumprimento, a ora Requerida não efectuou, até à presente data, qualquer pagamento. Nem prestou qualquer justificação, situação que motivou a resolução do contrato, conforme Documento N.º 5.
7 – Assim e face ao incumprimento verificado, o capital ora indicado corresponde ao valor em divida à data da resolução, tal como os juros peticionados correspondem ao cálculo desde a data do incumprimento até à presente data, à taxa legal de 4%.
8– Nos termos da alínea d) do nº1 do artigo 703º do CPC, são exequíveis os documentos a que por disposição especial seja atribuída força executória, como é o caso do presente contrato de mútuo.
9 - Quanto à validade do presente contrato, enquanto título executivo, sempre se dirá que:
a) O contrato de financiamento n.º ...232 constitui título executivo nos termos do artigo 46.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil de 1961, disposição vigente à data da celebração do presente contrato
b) o contrato deverá ser admitido como título executivo à presente data conforme Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015, de 23-09-2015, que declarou com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil, e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição)”
Junta como título executivo o documento particular datado de 23.05.2002, denominado Crédito Pessoal, identificando a proposta de contrato realizada e o contrato de crédito com o n.º ...232, no valor de € 649,02 acompanhado das Condições Gerais, tendo o ponto 1 das cláusulas gerais o seguinte teor:



A execução prosseguiu termos com a tentativa do Agente de Execução realizar a penhora de bens da executada, sem sucesso.
Foi proferida decisão a 30.11.2023 que rejeitou liminarmente a execução, concluindo que “o documento particular dado à execução não se encontra dotado de exequibilidade, por ser patente à mera inspeção a inexistência de factos constitutivos da obrigação exequenda”, considerando não ser caso de recurso à prova complementar a que alude o art.º 804.º do CPC.
É com esta decisão que a Exequente não se conforma e dela vem interpor recurso pedindo a sua revogação e “em sua substituição determinar a baixa do processo à primeira instância, para que aí se dê cumprimento ao poder-dever de convidar o ora apelante a aperfeiçoar o requerimento executivo com a produção de prova complementar, em particular, mediante a junção dos extratos bancários pelo Novo Banco, conforme impõem o artigo 726.º, n.º 4 e 5 do CPC”, apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que se reproduzem:
A. A Sentença recorrida não teve em consideração a imposição legal de convite ao aperfeiçoamento do requerimento executivo, dado que estamos perante um título executivo complexo.
B. A Prime Credit alegou com o requerimento executivo os factos constitutivos da relação material controvertida e juntou documentação comprovativa dos mesmos, porém, na medida em que o título fica suficiente com a disponibilização efetiva do valor mutuado, torna-se necessário produzir prova complementar;
C. A opção forçada pela manifesta falta ou insuficiência do título não poderá nunca derrubar os princípios legais da economia processual e do aproveitamento dos atos - suprimento do que seja suprível, a sanação do que ainda seja sanável! E ainda não desrespeitar o princípio do contraditório.
D. Defende a ora apelante que o tribunal a quo omitiu, deste modo, sem qualquer tipo de justificação séria ou fundamentação legal adequada, a prática de um ato processual tido por essencial para o prosseguimento da execução e que era obrigado a adotar.
E. O tribunal a quo, ao aperceber-se de uma deficiência de alegação fáctica que só pode ser suprida mediante prova complementar (documental), por estar em causa um título executivo complexo, e ao omitir o despacho de convite ao aperfeiçoamento, para, logo de seguida, rejeitar a execução, a pretexto de tal deficiência, o mesmo viola a lei, na medida em que omite a prolação de um despacho que a lei impõe.
F. Sendo a nulidade invocada como seu fundamento, pode e deve ser conhecida em recurso, pois é a própria sentença que fica viciada e deve ser anulada. Só assim se assegura o respeito pelo dever de cooperação que vincula o juiz da causa e se dá concretização à garantia de uma tutela jurisdicional efetiva, à prevalência das decisões de mérito sobre as decisões formais (princípio pro actione).
G. Por remissão do art.º 852.ºCPC aplica-se aos recursos as normas reguladoras do processo declarativo, pelo que, aplicar-se-ão com as necessárias adaptações e considerando que estamos perante um indeferimento liminar o art.º 651.º e 425.º do CPC, considerando que há a “necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância. Ora, a presente sentença sem recurso a qualquer pedido de aperfeiçoamento por parte do Tribunal a quo, não tendo existido qualquer questão suscitada sobre o titulo executivo antes desta sentença, pelo que se requer a V.Exas que admitam esses documentos, designadamente os documentos pessoais que deram origem ao credito e, a factura de entrega dos bens pela entidade vendedora à mutuante.
O tribunal a quo proferiu despacho a admitir o recurso, pronunciando-se sobre a nulidade suscitada, concluindo não haver no caso lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento porquanto o documento particular dado à execução não ser dotado de exequibilidade, por dele não constarem os factos constitutivos da obrigação exequenda.
A Executada foi citada editalmente para os termos da ação e do recurso e nada veio dizer.
II. Questão Prévia
- da junção de documentos com o recurso
Vem a Recorrente com as alegações de recurso juntar aos autos três documentos, afirmando haver necessidade dos mesmos em razão do julgamento proferido em 1ª instância, que correspondem à cópia do BI, cartão de identificação fiscal e identificação de uma conta bancária da Requerida na CGD e uma nota de entrega da empresa Mundialcasa, com a identificação da Requerida.
A junção de documentos ao processo pela parte não é livre, pelo contrário, é devidamente regulamentada pelo legislador, o que acontece também em sede de recurso, estando previstas nos art.º 425.º e 651.º do CPC as situações em que a mesma pode ser admitida nesta específica fase processual.
O art.º 425.º do CPC estabelece: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”
Regendo sobre os documentos e pareceres que podem ser juntos ao processo já na fase do recurso, integrado no capítulo referente à Apelação, dispõe o art.º 651.º do CPC no seu n.º 1: “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o art.º 425.º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.” O n.º 2 deste artigo prevê a possibilidade das partes juntarem pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão.
No caso, e com referência aos documentos que agora juntou, a Recorrente não veio invocar qualquer impossibilidade da sua junção em momento anterior, e esta, manifestamente, não decorre dos documentos em questão.
A Recorrente fundamenta a apresentação dos documentos com o recurso, na previsão da parte final do n.º 1 do art.º 651.º do CPC – em virtude do julgamento proferido pelo tribunal de 1ª instância.
Importa ter em consideração que esta norma que permite à parte juntar documentos com as suas alegações de recurso, visa acautelar situações excecionais, como dela expressamente consta.
A junção de documentos motivada pela decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância, apenas se justifica se a parte tiver sido surpreendida naquela decisão com um novo elemento de facto ou direito invocado pelo tribunal, com o qual não pudesse contar, não podendo servir para que a mesma venha fazer uso de documentos para prova de factos já alegados que já podia e devia ter junto ao processo anteriormente, designadamente no momento processual próprio. A ser assim, teria de concluir-se não existir qualquer limitação temporal na apresentação dos documentos probatórios pela parte, o que seguramente não foi o pretendido pelo legislador.
Sobre a necessidade de junção de novos documentos pela parte em sede de recurso, motivada pelo julgamento proferido pelo tribunal de 1ª instância, diz-nos com toda a pertinência o Acórdão do TRP de 29-05-2014, no proc. 254/05.6TBVLP.P1 in www.dgsi.pt , na sequência do que tem sido o entendimento da jurisprudência a este propósito: “O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes da decisão ser proferida. Assim a junção de documentos às alegações da apelação da sentença só poderá ter lugar se a decisão de 1ª instância criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes não contavam.”
Também neste sentido se pronunciou o Acórdão do STJ de 26-09-2012 no proc. 174/08.2TTVFX.L1.S1 in www.dgsi.pt em cujo sumário se lê: “I- A possibilidade de junção de documentos com a alegação de recurso de apelação, não se tratando de documento ou facto superveniente, só existe para aqueles casos em que a necessidade de tal junção foi criada, pela primeira vez, pela sentença da primeira instância. II- A decisão de 1ª instância pode criar, pela primeira vez, tal necessidade quando se tenha baseado em meio probatório não oferecido pelas partes, ou quando se tenha fundado em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes, justificadamente, não contavam. III- Só nestas circunstâncias a junção do documento com as alegações da apelação se pode legitimar à luz do disposto no art.º 693-B do CPC.”
Ainda a este propósito, diz-nos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 185: “A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.
Com os documentos em questão, a R. pretende agora fazer prova da existência da constituição da obrigação de pagamento da Executada, com referência ao contrato de crédito que consta do documento que apresentou como título executivo e que o tribunal de 1ª instância considerou insuficiente para que pudesse ser qualificado dessa forma, afirmando que o documento dado à execução não é dotado de exequibilidade, por não conter os factos constitutivos da obrigação exequenda.
Não obstante o título executivo possa ser complexo, os documentos ora apresentados não correspondem a factos alegados pela Exequente no seu requerimento inicial, nem tão pouco atestam a constituição da obrigação de pagamento da Executada, dependente da prova da entrega da quantia acordada, não se apresentando complementares daquele contrato de crédito apresentado à execução, suscetíveis de lhe conferir exequibilidade.
Tais documentos são por isso irrelevantes, por não comprovarem a efetiva concessão do crédito à Executada, pelo que não estamos perante a previsão do art.º 651.º n.º 1 do CPC, que excecionalmente admite a apresentação de documentos em sede de recurso apenas quando estão em causa documentos cuja junção não foi possível em momento anterior, ou documentos que se tornaram necessários em virtude do julgamento em 1ª instância.
Pelo exposto, atenta a sua inutilidade para a decisão da questão controvertida, não se admite a junção dos documentos apresentados pela Recorrente.
III. Questões a decidir
É apenas uma a questão a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine:
- da insuficiência do título executivo impor ao tribunal um convite ao aperfeiçoamento.
IV. Fundamentos de Facto
Os factos apurados com interesse para a decisão do presente recurso são os que constam do relatório elaborado.
V. Razões de Direito
- da insuficiência do título executivo impor ao tribunal um convite ao aperfeiçoamento
Alega a Recorrente que apresentou à execução um documento particular que representa um contrato de crédito celebrado com a Executada, à luz do art.º 46.º n.º 1 al. c) do CPC vigente à data, dele constando o valor total do crédito concedido - €649,02 - pelo que o tribunal de 1ª instância estava obrigado a dar-lhe a possibilidade de aperfeiçoar do título executivo de modo a sanar a sua insuficiência, fazendo prova do financiamento ocorrido, antes de julgar extinta a execução por falta de título, como é previsto no art.º 726.º n.º 4 e no art.º 6.º n.º 2 do CPC.
A sentença sob recurso considerou que o documento particular apresentado à execução não se encontra dotado de exequibilidade, por dele não constarem os factos constitutivos da obrigação exequenda, entendendo que o título não pode ser complementado e assim não haver lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento.
Verifica-se que a controvérsia não está em saber se, em abstrato, o juiz pode/deve convidar o Exequente a aperfeiçoar o título executivo insuficiente, por necessidade de prova complementar, nos termos previstos no art.º 6.º n.º 2 e 726.º n.º 4 do CPC, o que o tribunal a quo admite, mas antes, em concreto, saber se estamos perante uma situação de falta de título executivo ou se se verifica apenas a insuficiência do título, suscetível de ser colmatada por prova complementar.
A ação executiva tem por finalidade a realização coativa da prestação que ao credor é devida e tem por base um título executivo pelo qual se determinam o fim e os limites da execução, como estabelece o art.º 10.º n.º 5 do CPC e era igualmente previsto no art.º 45.º do anterior CPC.
Na ação executiva não está em causa a definição de um qualquer direito do Exequente, mas apenas a obtenção coerciva de uma prestação titulada num documento a que a lei atribui as características necessárias para constituir título executivo.
Não há ação executiva sem título. Quando o exequente pretende dar início à ação executiva não lhe basta invocar a existência de um título, sendo necessária a sua apresentação no processo.
Diz-nos Lebre de Freitas, in. A Acção Executiva depois da Reforma, pág. 70: “O título executivo é um documento que constitui o meio legal de demonstração da existência do direito da exequente ou que estabelece, de forma ilidível, a existência daquele direito.
É o art.º 703.º do CPC que vem enunciar de forma taxativa as espécies de títulos executivos, prevendo ainda no seu n.º 1 al. d) que por disposição especial seja atribuída força executiva a outros documentos. Aí são considerados título executivo além das sentenças condenatórias (al. a)) e dos títulos de crédito (al. c)), os documentos exarados ou autenticados por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação (al. b)).
O art.º 703.º do CPC procede ao elenco dos títulos executivos dispondo sobre os documentos que podem servir de base à execução, sendo que o princípio da taxatividade dos títulos executivos determina que o seu elenco não é suscetível de ser ampliado, por via de interpretação extensiva ou de analogia – neste sentido vd. Rui Pinto, in A Ação Executiva, pág. 145.
Compreende-se esta opção do legislador, em razão da natureza e finalidade do processo executivo, ficando nas suas mãos a definição dos casos em que se está perante um documento que se reveste da certeza mínima necessária para constituir um título executivo, já que dessa forma vai ser viabilizada a agressão do património do Executado, o que exige cautelas ou garantias mínimas.
Dizem-nos a este respeito Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, pág. 78 ss: “A lei considera como ponto de interesse público que não se recorra às medidas coactivas próprias do processo executivo contra o património do executado sem um mínimo de garantia (prova) sobre a existência do direito do exequente”.
O art.º 6.º n.º 2 do CPC prevê: “O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância, ou quando a sanação dependa de ato que deve ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”.
Como também decorre do disposto no art.º 726.º n.º 4 do CPC, ao constatar que o documento junto como título executivo está incompleto, é irregular ou insuficiente, o juiz deve convidar a parte a sanar tal irregularidade, se estiver em causa uma falta suscetível de ser sanada.
A jurisprudência tem vindo a consolidar-se no sentido de que só a falta de título executivo justifica o indeferimento liminar da execução, devendo ser proferido despacho de aperfeiçoamento quando se está perante um título incompleto, ou insuficiente, em razão de omissão que pode ser suprida. Neste sentido e apenas a título de exemplo, pronunciaram-se o Acórdão do TRL de 09-09-2021 no proc. 20315/19, bem como o recente Acórdão do TRL de 25-03-2025 no proc. 20434/22.9T8LSB-A.L1 ambos in www.dgsi.pt , concluindo-se neste último: “Perante a omissão da junção, com o requerimento executivo, de um documento necessário à constituição de um título executivo complexo, cabia ao tribunal proferir despacho de aperfeiçoamento nos termos do 726º, nº4, do Código de Processo Civil. A doutrina e jurisprudência acima mencionadas são confluentes nessa solução, a qual corresponde à melhor interpretação do Artigo 726º, nº4, do Código de Processo Civil.”
O legislador optou por consagrar expressamente a possibilidade de, até em momento posterior ao despacho liminar poderem ser apreciadas e decididas as questões suscetíveis de poderem determinar o indeferimento liminar da execução ou o convite à parte para suprir o vício, estabelecendo apenas como limite temporal o da transmissão dos bens penhorados, para proteção da boa fé dos terceiros adquirentes.
A irregularidade do título, pode assim ser suprida por intervenção oficiosa do tribunal, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, nos termos do art.º 734.º n.º 1 do CPC.
O documento dado à execução constitui um contrato de crédito ao consumo impondo-se saber se:
i. Como entendeu o tribunal a quo, o mesmo é insuscetível de valer como título executivo, por dele não resultar a constituição da obrigação da Executada restituir qualquer quantia mutuada, por a sua disponibilidade ter ficado condicionada à receção e conferência da documentação exigida, não resultando do próprio contrato a sua verificação; ou se
ii. Como defende a Exequente é apenas um documento por si só insuficiente para valer como título executivo, sendo admitida a prova complementar da disponibilidade do crédito à Executada.
O título executivo apresentado à execução é um contrato de crédito ao consumo, celebrado em 23.05.2002, numa altura em que o Código de Processo Civil em vigor, na versão do DL 329-A/95 de 12 de dezembro, admitia no seu art.º 46.º al. c) que servissem de base à execução os documentos particulares assinados pelo devedor, o que o atual Código de Processo Civil deixou de prever.
O novo Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013 de 26 de junho, veio introduzir alterações significativas no âmbito da ação executiva procedendo, designadamente, à redução do elenco dos títulos executivos, como decorre dos art.º 703.º a 708.º.
O art.º 703.º do atual CPC corresponde, ainda que com alterações ao art.º 46.º do anterior CPC que também dispunha sobre as espécies de títulos executivos. Este art.º 46.º na redação do DL 226/2008 de 20 de Novembro, permitia na sua al. c) que viessem a servir de base à execução os “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou prestação de facto.
Com a alteração do Código de Processo Civil, foi entendimento do legislador que os documentos particulares a que aludia a referida al. c) por um lado, não ofereciam uma grande segurança e por outro lado, ficavam sujeitos com uma grande frequência à dedução de embargos à execução com os mais diversos fundamentos, tendo por isso optado por retirar tais documentos do elenco dos títulos executivos, que atualmente se apresenta mais restrito.
Não obstante esta alteração legislativa, há que ressalvar a circunstância de poderem estar em causa documentos apresentados à execução emitidos antes da entrada em vigor do novo CPC, caso em que a salvaguarda das expectativas dos credores determina que se continue a ter em conta a previsão do art.º 46.º do anterior CPC e como válidos os títulos executivos apresentados ao abrigo de tal previsão, não obstante não se integrarem agora no elenco dos títulos executivos previstos no art.º 703.º do CPC.
Este entendimento é sufragado pelo Tribunal Constitucional que no seu Acórdão n.º 408/2015 de 23 de Setembro de 2015, veio declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma que aplica o art.º 703.º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do art.º 46.º n.º 1 al. c) do CPC anterior, por violação do princípio da confiança.
Nos termos desta norma, para que o documento particular possa valer como título executivo é necessário que importe a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável.
O título importa a constituição de uma obrigação, quando o documento incorpora o negócio jurídico que está na origem da obrigação exequenda, admitindo também o art.º 46.º n.º 1 al. c) que possa valer como título executivo o documento que revele não a constituição, mas o reconhecimento de uma obrigação, assim representando uma confissão de dívida.
O legislador admite em alguns casos, concretamente os que se integram na previsão do art.º 804.º do CPC que alguns elementos constitutivos da obrigação exequenda possam não constar do documento que serve de título executivo, mas de outro documento ou com força executiva própria ou emitido em conformidade com o documento apresentado como título executivo, considerando que tal constitui garantia de segurança suficiente para o devedor.
Com toda a propriedade diz-nos Lopes do Rego in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, pág. 83: “O princípio da auto-suficiência do título executivo obriga a alguma cautela e ponderação na análise de quais os documentos particulares, assinados pelo devedor, que são susceptíveis de preencher os requisitos da al. c) do n.º 1 do preceito -parecendo indispensável que- devendo a constituição ou reconhecimento da dívida exequenda resultar directamente do título, tal documento -podendo ser complexo- não pode resultar de uma aleatória conjugação de diversos documentos particulares.”
Não se desconhece a jurisprudência que resulta dos Acórdãos citados pela Recorrente nas suas alegações, que vão no sentido de admitir o convite ao aperfeiçoamento, quando se esteja perante um título executivo complexo, registando-se, no entanto, que nenhum dos acórdãos por ela indicados se refere a um contrato de crédito ao consumo, com as características daquele que aqui é apresentado à execução.
Diz-nos o Acórdão do TRP de 09-03-2023 no proc. 21416/21.3T8PRT-A.P1 por referência a um contrato de abertura de crédito em conta corrente: “A jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a admitir, para efeitos de formação do título executivo, documentos complementares ao contrato constante de documento particular. Nesse caso, entende-se que o título executivo é complexo ou compósito, porque está corporizado num acervo documental em que a complementaridade entre dois ou mais documentos se articula e complementa numa relação lógica, evidenciada no facto de, regra geral, cada um deles só por si não ter força executiva e a sua ausência fazer indubitavelmente soçobrar a do outro, mas juntos assegurarem eficácia a todo o complexo documental como título executivo.”
O Acórdão do STJ de 13-05-2021 no proc. 15465/16.0T8LSB-A.L1.S1 in www.dgsi.pt também se reporta a um contrato de abertura de crédito em conta corrente, aí se referindo: “Em rigor, afigura-se estar em causa não a constituição de uma obrigação futura (em relação ao contrato) mas antes uma prestação futura para conclusão de negócio (sobre a distinção, cfr. Manuel Tomé Gomes, Apontamentos sobre Ação Executiva, policopiado, 2018, pág. 52).”
Já o Acórdão do STJ de 10-04-2018 no proc. 18853/12.8YYLSB-A.L1.S2 in www.dgsi.pt salienta precisamente as diferenças entre um contrato de financiamento bancário, na modalidade de abertura de crédito em conta corrente e o contrato de mútuo, aí se afirmando: “Pode definir-se como o contrato pelo qual um banco se obriga a ter à disposição da outra parte (creditado) uma quantia pecuniária; que esta tem direito a utilizar nos termos aí definidos, por certo período de tempo ou por tempo indeterminado. Decorre desta noção que se trata de um contrato consensual por oposição a contrato real quoad constitutionem: “fica perfeito com o acordo entre as partes, sem necessidade de qualquer entrega monetária, ao contrário do que sucede com o mútuo clássico.”.
O contrato de crédito ao consumo tem especificidades próprias, exigindo para a sua concretização ou perfeição a disponibilidade da quantia mutuada, que é um elemento essencial da sua constituição.
Neste sentido já se pronunciou sobre situação idêntica o Acórdão do TRC de 01-12-2015 no proc. n.º 325/12.2TBTBU.C1 in www.dgsi.pt referindo o seguinte: “(…) o acordo de vontades no que toca aos elementos integradores de um contrato de mútuo, ainda que inclua o valor a mutuar e os termos e condições em que se irá processar a sua restituição, é insuficiente para a conclusão do contrato de mútuo e para a constituição da obrigação que dele emerge para o mutuário (de restituição da quantia mutuada), exigindo-se ainda a efectiva entrega da quantia mutuada ao mutuário. Com efeito, caracterizando os contratos reais, diz Inocêncio Galvão Telles, que “…são aqueles para cuja validade se exige, além dos requisitos comuns a todos os contratos, outro que consiste na transferência da posse – na datio rei. Sem essa transferência o contrato não está constituído: não é válido e, portanto, não produz efeitos”, acrescentando mais adiante que “na definição legal destes contratos, mais ou menos nitidamente, transluz a ideia constante de que é necessária à sua válida formação a transferência da posse, de um contraente para outro, do objecto respectivo”. De facto – diz o citado autor – impõe-se ao mutuário a obrigação de restituir mas não se impõe à outra parte a obrigação de entregar, como teria que acontecer se o contrato se formasse antes e independentemente da entrega e, portanto, se a entrega da quantia mutuada não se dá no cumprimento de uma obrigação que a lei não consigna como efeito do contrato, ela operará necessariamente como requisito de validade ou eficácia do acordo celebrado. Assim, porque a obrigação a cargo do mutuário só existe se e quando a coisa mutuada lhe for entregue e porque a obrigação de entrega a cargo do mutuante não está definida na lei como obrigação decorrente do contrato, ter-se-á que concluir que o contrato de mútuo apenas se considera concluído com a entrega da coisa ao mutuário e que a obrigação de restituição a cargo deste apenas se constitui no momento em que a coisa lhe for entregue, sendo, para tanto, insuficiente o acordo de vontades relativamente aos elementos integradores do negócio.”.
Avaliando o documento apresentado como título executivo e conforme resulta do próprio clausulado do contrato, o elemento essencial que corresponde à entrega da quantia mutuada não integra tal documento, nem tão pouco foi alegado no requerimento executivo que ocorreu a par do mesmo, afigurando-se que por essa razão não pode valer como tal.
Pelo contrário o que resulta documento em causa é que a entrega do dinheiro não se realizou quando da sua assinatura pelas partes e estaria dependente de procedimentos que ali não são aprazados, nem tão pouco a Exequente alegou que ocorreram. O documento em questão não é suscetível de incorporar o negócio jurídico que está na origem da obrigação exequenda, na medida em que ali não é atestada a disponibilização de qualquer quantia, elemento constitutivo do contrato de mútuo, não revelando em consequência a constituição da obrigação da Executada a qualquer pagamento.
Tem-se assim como acertado o entendimento expresso na sentença sob recurso, quando refere: “Note-se que nos termos da cláusula 1.ª a disponibilização do montante a mutuar estava dependente de uma condição - entrega da documentação exigida pelo banco - que não se sabe se se verificou ou não. E note-se que não estamos aqui perante uma condição de exigibilidade, suprível mediante prova complementar nos termos do antes citado art.º 804.º, porquanto, de tal condição, como se vê dos termos da referida cláusula, dependia a própria conclusão do contrato, ou seja, a constituição da obrigação exequenda [Diferente seria se estivéssemos perante eventual contrato de abertura de crédito -este de natureza pessoal-, caso em que a obrigação de restituição, estando dependente da disponibilização da quantia mutuada, nasce da celebração do contrato mas não é constitutiva dele. Por assim ser, ainda que não constasse do título a realização, pelo exequente, da sua obrigação de entrega/disponibilização da quantia reclamada, consubstanciando a falta de um pressuposto específico da obrigação exequenda, no caso a liquidez, poderia tal omissão ser suprida com recurso a prova complementar, nos termos do art.º 804.º, desde que, obviamente, não implicasse a valorização de elementos que extravasassem do próprio título]. Sublinha-se que não se está a afirmar que a executada não seja devedora da quantia reclamada; antes o que se reitera é que o documento particular dado à execução não se encontra dotado de exequibilidade, por ser patente à mera inspeção a inexistência de factos constitutivos da obrigação exequenda.”
Uma vez que do documento dado à execução, relativo a contrato de crédito ao consumo, não resulta que a quantia em questão foi disponibilizada em benefício da Executada, nem tão pouco a Exequente o alega no requerimento executivo, considera-se que tal documento não constitui título executivo bastante, nos termos do art.º 46.º al. c) do anterior CPC.
O caso não justifica por isso o convite ao aperfeiçoamento para a junção de documentos, por o facto essencial à perfeição do mútuo que é a entrega da quantia pecuniária mutuada, ser elemento constitutivo do contrato de mútuo, que tem a natureza de contrato real que se completa com a entrega da coisa, elemento que não consta do título apresentado e não foi sequer alegado no requerimento executivo, não integrando tal documento a constituição de uma obrigação de pagamento para a Executada.
Não merece censura a decisão recorrida que indeferiu liminarmente a execução com fundamento na falta de título, que assim se mantém.
V. Decisão:
Em face do exposto julga-se improcedente o presente recurso interposto pela Exequente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente que ficou vencida - art.º 527.º n.º 1 e n.º 2 do CPC.
Notifique.
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Lisboa, 5 de junho de 2025
Inês Moura
Laurinda Gemas
Rute Sobral