I. É requisito substancial de admissibilidade deste recurso extraordinário assentarem acórdão recorrido e acórdão fundamento, de modo expresso, em opostas soluções de direito, partindo de idênticas situações de facto.
II. No acórdão recorrido, a impressão palmar do recorrente colhida no lado interior da soleira/parapeito da janela da cozinha da residência da ofendida, conjugada com a altura deste, permitiu ao tribunal inferir que ali se introduzira através da janela, enquanto no acórdão fundamento, a impressão palmar do respectivo arguido colhida na janela da cozinha da residência do ofendido, conjugada com as circunstâncias de ser desconhecida a localização da impressão - do lado interior ou exterior da janela -, de ser desconhecido o tempo que mediou entre a prática do facto e a colheita do vestígio, e de ser desconhecido se a janela comunicava com a via pública, conduziu o tribunal a uma dúvida que considerou insanável e à aplicação do pro reo, o que significa que o recorrente colocou a oposição de decisões em sede de matéria de facto portanto, em sede do raciocínio lógico-dedutivo seguido nos arestos em confronto, relativamente à factualidade provada de cada um.
III. O recurso de fixação de jurisprudência visa alcançar uma interpretação uniforme da lei e uniformizar a jurisprudência e não, corrigir supostos erros de julgamento, matéria esta reservada aos recursos ordinários.
I. RELATÓRIO
O arguido AA, com os demais sinais nos autos, vem, nos termos e para os efeitos dos arts. 437º e seguintes, do C. Processo Penal, interpor recurso extraordinário de fixação de jurisprudência para o Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de Novembro de 2024 (acórdão recorrido), proferido no processo nº 213/22.4PRPRT.P1, por entender que o mesmo, no domínio da mesma legislação, se encontra em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Outubro de 2020, proferido no processo nº 458/11.2PBBRR.L1 (acórdão fundamento), consultável em www.dgsi.pt, alegando, em síntese:
- No acórdão fundamento foi entendido que a impressão digital palmar é indício que, conjugado com outros indícios, pode suportar decisão condenatória por prova indirecta, mas apenas se o local onde o vestígio lofoscópico tiver sido encontrado não for inequívoco quanto à revelação de que o arguido esteve no interior do local de onde foram retirados os objectos furtados;
- No acórdão recorrido foi entendido que a impressão digital ou palmar encontrada na soleira de janela da cozinha que se encontrava aberta e virada para a rua, de uma casa de rés-do-chão, tem o sentido inequívoco da sua [do recorrente] autoria do crime de furto, sendo, por si mesma, suficiente para suportar a condenação, por ser prova directa da introdução ilegítima e indirecta da subtracção de valores;
- Os acórdãos recorrido e fundamento foram proferidos no âmbito da mesma legislação, e adoptaram soluções opostas na resolução da mesma questão de direito, directamente conexionada com os arts. 125º e 127º do C. Processo Penal e 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, qual seja, a de saber qual a relevância para a fundamentação de uma decisão condenatória criminal, enquanto único meio de prova, de impressão digital ou palmar se o local onde o vestígio lofoscópico tiver sido encontrado não for inequívoco quanto à revelação de que o arguido esteve no interior do local de onde foram retirados os objectos furtados;
- Com efeito, apesar da similitude das situações concretas, relativamente à aplicação da mesma norma processual penal, a mesma questão fundamental de direito foi decidida em sentidos logicamente opostos;
- Os acórdãos recorrido e fundamento não eram já susceptíveis de recurso ordinário e ambos transitaram em julgado.
Conclui pedindo que seja reconhecida a existência de oposição de julgados entre acórdão recorrido e acórdão fundamento, e consequente admissibilidade do recurso extraordinário.
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Foi cumprido o disposto no art. 439º, nº 1, do C. Processo Penal, tendo respondido o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação do Porto, alegando, sem síntese:
- O recurso não reúne os pressupostos formais legalmente previstos, sendo, por isso, inadmissível;
- Com efeito, sendo seu fundamento a oposição de julgados face a uma mesma questão de direito, conforme art. 437º, nºs 1 e 2, do C. Processo Penal, in casu, o recorrente não leva ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça uma questão de direito mas uma questão de facto, tendo por objecto o juízo formado sobre a matéria de facto provada e não provada, face à valoração de um determinado meio de prova, concretamente, a valoração de impressões palmares ou digitais;
- Esta valoração foi feita à luz dos contornos de cada caso, e que não são coincidentes nem similares, pois no acórdão recorrido os vestígios lofoscópicos encontravam-se no rebordo interior do parapeito da janela, enquanto no acórdão fundamento a impressão palmar encontrava-se numa janela, sem que se saiba se do lado de dentro ou do lado de fora do vidro, e se a janela dava ou não para a via pública;
- Se questão de direito existisse, sempre assentaria em situações de facto diversas, falecendo o requisito da oposição de julgados.
Conclui pela rejeição do recurso por não se verificar a oposição de julgados.
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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na vista a que alude o nº 1 do art. 440º do C. Processo Penal, emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de estarem verificados os pressupostos formais do recurso, e no sentido da não verificação do imprescindível pressuposto substancial da da oposição de julgados, pois muito embora o recorrente invoque, de forma imprecisa, os arts. 125º e 127º, do C. Processo Penal e 32º, nº 2, da Lei Fundamental, o que efectivamente pretende não é que o Supremo Tribunal de Justiça fixe a interpretação de uma norma jurídica que foi interpretada e aplicada diversamente no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, mas que se pronuncie sobre a diferente valoração probatória feita nos dois acórdãos, quanto aos vestígios lofoscópicos recolhidos nos locais onde os respectivos crimes foram praticados, sendo certo que, também a matéria de facto apurada em ambos os arestos não é coincidente, em aspectos fundamentais, quanto à localização de tais vestígios, e concluiu pela rejeição do recurso, nos termos do art. 441º, nº 1, primeira parte, do C. Processo Penal, pela não verificação da oposição de julgados.
O recorrente respondeu ao parecer, alegando, em síntese:
- O recurso em causa pressupõe a demonstração de uma contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão relativamente a alguma questão de direito essencial para cada um dos acórdãos, sendo a questão a apreciar a de saber se o art. 127º do C. Processo Penal permite a prova directa da presença do agente do crime em local acessível do exterior que inequivocamente revele a sua introdução no referido local, conforme sustentado no acórdão recorrido, ou se, diferentemente, não permite a prova directa da presença do agente, no mesmo circunstancialismo, sob pena de violação da presunção de inocência, conforme sustentado no acórdão fundamento;
- O art. 437º, do C. Processo Penal não exige a identidade da situação de facto, mas a apreciação da mesma questão de direito, resovida de forma diversa;
- Os acórdãos tiveram por objecto o mesmo crime, furto qualificado com introdução em habitação, e em ambos, a única prova da presença do respectivo agente – vestígios lofoscópicos – não se encontrava em local inacessível do exterior.
E conclui pela admissibilidade do recurso.
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Foi realizado o exame preliminar referido no nº 1 do art. 440º, do C. Processo Penal.
Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência, nos termos do nº 4 do mesmo artigo.
Cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Âmbito do recurso
A questão objecto do recurso, tal como é configurada pelo recorrente AA é a de saber se existe oposição de julgados entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido relativamente à valoração de vestígios lofoscópicos – digitais e/ou palmares – como prova da presença no interior de habitação, do autor de crime de furto.
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Da verificação dos requisitos do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência
1. O recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, regulado nos arts. 437º a 448º, do C. Processo Penal, pode configurar três distintas espécies: o recurso de fixação de jurisprudência em sentido próprio; o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada; e, o recurso no interesse da unidade do direito.
O caso dos autos integra a primeira espécie, pelo que, só dela cuidaremos.
O recurso de fixação de jurisprudência em sentido próprio radica na necessidade de compatibilizar a independência e liberdade do juiz na interpretação da norma, por definição, geral e abstracta, ao caso concreto, e a diversidade de interpretações da mesma, de forma a impedir que situações semelhantes obtenham diferentes soluções de direito, com a consequente afirmação da segurança jurídica e da igualdade perante a lei, enquanto requisitos do princípio de Estado de direito democrático (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Janeiro de 2025, processo nº 170/23.0GAOFR.C1-A.S1, in www.dgsi.pt).
Visa, em suma, alcançar uma interpretação uniforme da lei e, portanto, uniformizar a jurisprudência.
2. O recurso de fixação de jurisprudência em sentido próprio está regulado nos arts. 437º e 438º, do C. Processo Penal.
Sob a epígrafe «Fundamento do recurso» dispõe o primeiro destes artigos:
1 – Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.
2 – É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.
5 – O recurso previsto nos nºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.
Por sua vez, dispõe o art. 438º, com a epígrafe «Interposição e efeito»:
1 – O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
2 – No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.
3 – O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.
Das normas transcritas retiram-se, como é entendimento pacífico, os requisitos formais e substanciais deste recurso (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2ª Edição revista, 2016, Almedina, págs. 1438 e seguintes, Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo V, 2024, Almedina, págs. 415 e seguintes e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2020, processo nº 6755/17.6T9LSB.L1-A.S1, in www.dgsi.pt). Assim:
São requisitos formais de admissibilidade:
i) A legitimidade do recorrente – pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente, pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público; e o interesse em agir, sendo recorrente o arguido, o assistente ou a parte civil;
ii) A tempestividade – deve ser interposto no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;
iii) A identificação no recurso do acórdão fundamento, com junção de cópia do mesmo ou a indicação do lugar da sua publicação;
iv) O trânsito em julgado do acórdão recorrido e do acórdão fundamento;
v) A justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.
São requisitos substanciais de admissibilidade:
i) A existência de julgamentos da mesma questão de direito por dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, por dois acórdãos de tribunal de relação ou por um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e por um acórdão de tribunal de relação;
ii) Assentarem os acórdãos em confronto, de modo expresso, e não meramente tácito ou implícito, em opostas soluções de direito, partindo de idêntica situação de facto; a oposição deve verificar-se entre duas decisões e não, entre uma decisão e os fundamentos de outra;
iii) Terem sido os acórdãos em confronto proferidos no domínio da mesma legislação, portanto, quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
Note-se que a admissibilidade deste recurso extraordinário requer a verificação cumulativa e contemporânea da sua interposição de todos os requisitos referidos, sendo a falta de qualquer deles insusceptível de ser suprida posteriormente, sem prejuízo de ser completado o suporte documental necessário.
Note-se, por último, que tendo o recurso de fixação de jurisprudência natureza excepcional, a interpretação das normas que o disciplinam deve ser feita de acordo com esta sua natureza, assim se evitando que se transforme num recurso ordinário (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 201 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Abril de 2017, processo nº 175/14.1GTBRG.G1-A.S1, in www.dgsi.pt).
3. Vejamos se, in casu, estão ou não verificados os enunciados requisitos.
a. Relativamente aos requisitos formais de admissibilidade, não se duvida da sua verificação.
Com efeito, o recorrente, enquanto arguido, tem legitimidade e interesse em agir (art. 437º, nº 5 do C. Processo Penal).
O acórdão recorrido foi proferido 7 de Novembro de 2024, foi notificado por via electrónica ao Ilustre Defensor do arguido em 8 de Novembro de 2024, e ao Ministério Público, na mesma data, por termo electrónico, tendo transitado em julgado em 21 de Novembro de 2024 pelo que, tendo o recurso dado entrada a 23 de Dezembro de 2024 portanto, antes de decorridos trinta dias sobre aquele trânsito, é o mesmo tempestivo (art. 438º, nº 1, do C. Processo Penal).
- O recorrente identificou o acórdão fundamento – acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Outubro de 2020, proferido no processo nº 458/11.2PBBRR.L1, e indicou o lugar onde o mesmo se encontra publicado, em www.dgsi.pt (art. 438º, nº 2, do C. Processo Penal);
- Acórdão recorrido e acórdão fundamento mostram-se transitados em julgado – em 21 de Novembro de 2024 e 11 de Novembro de 2020, respectivamente;
- O recorrente justificou a oposição de julgados que, no seu entendimento, causa o conflito de jurisprudência a dirimir (art. 438º, nº 2, do C. Processo Penal).
b. Relativamente aos requisitos materiais de admissibilidade, o mesmo não acontece, como se passa a demonstrar.
Como dissemos, estão em causa, um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, o acórdão recorrido, proferido em 7 de Novembro de 2024, no processo nº 213/22.4PRPRT.P1, transitado em julgado em 21 de Novembro de 2024, e um o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o acórdão fundamento, proferido em 7 de Outubro de 2020, no processo nº 458/11.2PBBRR.L1, transitado em julgado em 11 de Novembro de 2020.
Nem o acórdão recorrido [que confirmou a condenação imposta ao recorrente pela 1ª instância, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão, pela prática de crime de furto qualificado], nem o acórdão fundamento [que absolveu o respectivo arguido da prática do crime de furto qualificado sancionado, pela 1ª instância, com a pena de 2 anos e 6 meses de prisão], eram susceptíveis de recurso ordinário, atento o disposto no art. 400º, nº 1, d) e e), do C. Processo Penal.
O acórdão recorrido e acórdão fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação, pois os arts. 125º e 127º, do C. Processo Penal, invocados pelo recorrente, mantém-se inalterados.
Atentemos agora na afirmada existência de oposição de julgados, portanto, na questão de saber se os acórdãos em confronto assentam, de modo expresso, em opostas soluções de direito, partindo de idênticas situações de facto.
Resulta do acórdão recorrido:
i) Ter sido considerado provado pela 1ª instância que:
- O arguido, no dia 7 de Março de 2022, pelas 2h, introduziu-se na residência da ofendida BB, situada na Rua de ..., no ..., subindo, para tanto, à janela da cozinha, deixando na face interior da soleira da mesma janela a sua impressão palmar, e do interior da residência retirou e fez seus diversos objectos, no valor de € 780 e a chave de uma viatura Citroen C3, que se encontrava estacionado à porta da residência, no valor de € 10000, do qual também se apoderou, conduzindo-o para local desconhecido, sabendo que tais bens não lhe pertenciam, que actuava contra a vontade e sem o consentimento da dona, e que a sua conduta era proibida e punida por lei;
ii) Ter a 1ª instância firmado a sua convicção, além do depoimento da ofendida, que de nada se apercebeu, por estar a dormir, no que segue:
“(…).
Por sua vez, a presença do arguido, sem qualquer outra justificação que não a prática dos factos assentes, é revelado pelo teor do relatório de exame pericial a vestígios lofoscópicos de fls. 32 a 36, de onde resulta que a impressão palmar do arguido foi recolhida na face interior da soleira da janela da cozinha, (vide o relatório de recolha e a reportagem fotográfica a fl. 15 a 18, dando a noção da altura a janela, virada para a rua de ..., e que integra a cozinha do apartamento da ofendida, por onde se deu a introdução, foto 1 e 2, o interior da cozinha da residência da ofendida e onde os vestígios lofoscópicos e palmares foram recolhidos, fotos 3 a 6, localizados na face interna da soleira da janela, infirmando qualquer possibilidade de o arguido se ter debruçado por curiosidade, o que aliás não foi avançado pelo arguido, atenta a altura da janela a partir do chão e a localização dos vestígios). Como se constata do relatório do exame pericial, (cuja valoração é feita em obediência ao artigo 163º, do C:P:P.) os vestígios lofoscópicos, foram recolhidos na face interna da soleira da janela da residência constante a fls. 32 e segs., tendo sido verificado um vestígio correspondente á palma da mão direita do arguido, (pois o arguido está resenhado) daí se extraindo quem foi a pessoa que naquele dia e horas entrou na casa da ofendida. De facto, o arguido não é conhecido da ofendida e nunca teve entrada naquela casa, que justificasse a presença da sua impressão palmar a qual não se confunde com a de qualquer outra pessoa, (conforme consta do exame pericial) já que, e como se revela demonstrado, cientificamente os desenhos formados pelas cristas palmares das faces palmares das mãos, são perenes, imutáveis e infinitamente diversiformes, isto é, todos são distintos entre si, permanecem invariáveis na mesma pessoa, não podendo modificar-se voluntariamente. E o encontrado na parede interior da soleira da janela da casa da ofendida permite ao abrigo do artigo 12º, nº 3, da Lei 67/2017, de 19.08, que se considere confirmação e identificação positiva a que resulte de duas amostras que estabeleça. A existência de 12 pontos caraterísticos comuns, sem nenhuma divergência como é o caso, permitindo concluir ser do arguido, e assim afirmar a autoria deste dos factos assentes, para o qual este não avança qualquer explicação adequada a suscitar qualquer dúvida.
O arguido que no inicio exerceu o seu direito ao silêncio, revogou tal direito, após a audição da ofendida, adiantando não recordar os factos, mas cuja prática não exclui em virtude de naquele período temporal fazer o consumo de várias drogas, designadamente sintéticas e LSD.
Ora, em face da postura do arguido em audiência de discussão e julgamento, não se poderá extrair qualquer assunção de responsabilidade perante os factos, sendo de concluir que o arguido não contribuiu para a formação da convicção do Tribunal Coletivo, no entanto, conjugando toda a prova, produzida e renovada em audiência de discussão e julgamento resulta provada a consciência da ilicitude dos factos praticados, pelo arguido, como assentes, pois daqueles factos objetivos permite-se inferir, de acordo com as induções e deduções resultantes das regras da experiência comum, que à concretização dos mesmos presidiu uma vontade livre, deliberada e consciente de os querer praticar, sabendo que os artigos/objetos não lhe pertenciam e que agia, contra a vontade da sua dona-entrando por uma janela e saindo da residência da ofendida e da rua ao volante da viatura daquela e ainda com os demais artigos, da ofendida, que fez seus, por ali se ter deslocada a fim de fazer seus tudo o que ali encontrasse (assim ainda em obediência à resolução inicial de se assenhoreando-se de tudo que encontrasse designadamente o veículo automóvel), e que a conduta empreendida era proibida e punida por lei, o que resulta de uma presunção natural no que aos factos subjetivos respeita porquanto a prova dos factos objetivos permitem inferir aqueloutros, atenta a prova produzida.
(…)”;
iii) Relativamente à dissensão do recorrente relativamente à valoração da impressão palmar feita pela 1ª instância, a Relação do Porto pronunciou-se nos seguintes termos:
“(…).
Quanto às concretas divergências enfatizadas pelo recorrente situadas na ausência de outro elemento de ponderação para além da impressão palmar, a qual poderia ser compatível com outra situação que não a introdução na habitação e furto, face à discussão que se suscita nos presentes autos em apreciação, já havíamos ponderado num outro processo nº1164/18.2T9OVR.P1, por nós relatado neste Tribunal da Relação datado de 29/04/2020 publicado no ITIJ, que “quando se discute a autoria de um furto em estabelecimento comercial, deve pesar-se a importância da localização de uma impressão digital encontrada em determinado local do estabelecimento, importando saber se foi colhida nas superfícies do arrombamento, ou no equipamento que foi manipulado para subtracção de valores; e sobre a eventual relação vivencial do arguido com o estabelecimento. Esse conjunto de inferências intensificará, ou não, o grau de probabilidade.”.
Verifica-se que o arguido deixou vestígios lofoscópicos no local, nomeadamente, no acesso à residência, concretamente no lado interior da soleira da janela da cozinha. Este sinal de identificação do arguido, a par de ser insofismável sobre a sua presença no local, coloca o arguido no furto cometido, e como tal, este aspeto da prova, constitui meio de prova direto no ato de introdução na habitação, superando a categoria de indício (mais do que indícios necessários que, segundo MALATESTA, são os de maior valor probatório que revelam certamente uma dada causa, com um valor probatório superior aos meros graus de verossimilhança [estes de baixo relevo de probabilidade verificável pela experimentação numa relação de causa efeito] in “A LÓGICA DAS PROVAS EM MATÉRIA CRIMINAL, p.223, Trad.Brasileira, 1960).
Com efeito, a existência de vestígios lofoscópicos no lado interior da soleira da janela da cozinha, mais concretamente no rebordo interior do parapeito interior ultrapassa ato de mera curiosidade ou de indagação promovido do exterior. Considerando a altura do parapeito da janela que, mesmo a partir da soleira da porta de entrada (sita ao lado), em diagonal e com pouco apoio, lhe daria pelo peito, e a contar do chão do canteiro ainda seria mais inacessível pela maior altura, são acertados os considerandos do Tribunal “A Quo” quando referiu “(…) a presença do arguido, sem qualquer outra justificação que não a prática dos factos assentes, é revelado pelo teor do relatório de exame pericial a vestígios lofoscópicos de fls. 32 a 36, de onde resulta que a impressão palmar do arguido foi recolhida na face interior da soleira da janela da cozinha, (vide o relatório de recolha e a reportagem fotográfica a fl. 15 a 18, dando a noção da altura a janela, virada para a rua de ..., e que integra a cozinha do apartamento da ofendida, por onde se deu a introdução, foto 1 e 2, o interior da cozinha da residência da ofendida e onde os vestígios lofoscópicos e palmares foram recolhidos, fotos 3 a 6, localizados na face interna da soleira da janela, infirmando qualquer possibilidade de o arguido se ter debruçado por curiosidade, o que aliás não foi avançado pelo arguido, atenta a altura da janela a partir do chão e a localização dos vestígios)”. Ou seja, a colocação palmar do arguido (e não meramente digital), no lado interior da janela da cozinha, considerando a altura desta, essa colocação corporiza já o apoio do corpo para o movimento de introdução do arguido pela janela, e assim no apartamento, o qual para acontecer exigiria um impulso do corpo que permitisse escalar.
As impressões palmares colhidas no referido local constituem o corpo do delito e por isso prova directa da introdução ilegítima; e prova indireta sobre a subtração de bens valores (com grau de probabilidade muito elevado). Conclui-se que prova dos autos com esta natureza, como pretende o arguido, não é totalmente indireta ou presuntiva, diversamente, constitui prova direta da introdução na fração e, como se referiu, indireta dos atos de subtração.
Com efeito, convocando-se mais uma vez o Ac.Rel.P de 29/04/2020 aí se refere “Portanto, só serão ponderáveis as hipóteses em que os seus elementos assumam um contexto ontológico com proximidade espácio-temporal e relacional com os factos, onde a conexão que fixa o grau de probabilidade necessariamente será de cariz normativo.”. Neste critério aferidor, o furto sucedeu por escalamento através da janela da cozinha, com insulto à residência da ofendida, subtraindo-lhe os bens e saindo depois da residência, deixando a porta aberta, cujas chaves estavam colocadas do lado interior, pois a testemunha ofendida relatou que após acordar, viu a casa revolvida “constatando que tinham acedido à casa pela janela da cozinha, que se encontrava aberta e saído pela porta da rua que tinha chave por dento, a qual foi deixada aberta”. Ora, neste acontecimento, face à colocação das impressões palmares do arguido no parapeito interior, contrariamente ao sugerido pelo arguido, face à altura do parapeito da janela, que era elevada, a sua transposição implicava elevar e impulsionar o corpo com apoio no parapeito (o qual ocorre no lado interior com a palma da mão). Por contraposição a esta hipótese, inexiste qualquer outra hipótese plausível que concorra em alternativa, porquanto, não existe qualquer elemento no processo que ligue o arguido à aludida residência (seja porque a ofendida não conhece o arguido, nem o mesmo foi admitido na residência para quaisquer trabalhos ou motivo), razão porque a referida localização da impressão palmar no lugar onde ocorre a introdução, tem um sentido inequívoco da autoria do arguido no cometimento do crime de furto de que estava acusado, fundando a certeza probatória, a qual não é minorada por qualquer parâmetro de dúvida atendível. Designadamente, a existência de outras impressões digitais que não sejam do arguido, no interior da habitação, em nada ensombra a referida certeza probatória, porquanto, das impressões digitais existentes, e que tenham legibilidade, não faltarão registos digitais das pessoas que vivem, frequentam ou frequentaram a habitação.
O Tribunal convenceu-se que o mesmo cometeu os factos que lhe são imputados (a introdução e a subtracção dos bens), porque a prova produzida isso traduz inequivocamente. Não existiu nenhum outro elemento que infirmasse o comportamento do arguido (evidenciado nos autos). Concorda o Tribunal de recurso com o juízo de prova que foi realizado pelo Tribunal a quo, não existindo qualquer erro manifesto, ditado em qualquer desconformidade na formulação lógica ou pelas regras da experiência comum, que imponham alteração de convicção.
Não vislumbramos que haja sido formulado qualquer juízo destituído de razoabilidade e que contrarie os ditames da experiência comum, devendo deste modo improceder a impugnação movida à decisão a matéria de facto.
(…)”.
Resulta do acórdão fundamento:
i) Ter sido considerado provado pela 1ª instância que:
- No dia 2 de maio de 2011, pelas 6h50, o arguido dirigiu-se à residência do ofendido, situada noa Rua …, no ..., introduziu-se no seu interior através da janela de acesso à cozinha, e de lá retirou, levando-os consigo e fazendo-os seus, diversos objectos no valor de cerca de € 1045, sabendo que lhe não pertenciam, que actuava contra a vontade do dono e que a sua conduta era proibida e punida por lei;
ii) Ter a 1ª instância firmado a sua convicção, além do mais, no que segue:
“(…).
No que diz respeito à autoria dos factos o tribunal atendeu ao relatório de inspecção lofoscópica e ao relatório pericial dos quais resultou a identificação de uma impressão digital do arguido recolhida na janela da residência furtada, concatenados com o depoimento de RS_____ que relatou ao tribunal, de forma coerente e contextualizada, ter visto o individuo (que o surpreendeu a dormir) a fugir pela janela da cozinha, sendo que entende que também terá sido por aí que terá entrado.
Ora, inexistindo qualquer explicação plausível para a existência de uma impressão digital do arguido na referida residência, sendo que o próprio referiu desconhecer a morada em questão, forçoso foi concluir que a mesma terá lá sido deixada aquando a prática dos factos.
Cumpre ainda salientar que, muito embora a testemunha não tenho logrado identificar o individuo, recordou que o mesmo era de raça negra, o que coincide com o aspecto físico do arguido, pelo que tudo concatenado o tribunal não teve dúvidas em face da citada prova em concluir que terá sido o mesmo a praticar os factos imputados.
Relativamente aos concretos bens furtados e respectivos valores, para além da prova documental, mostrou-se igualmente relevante o depoimento de RS_____ que confirmou o teor da mesma.
Quanto à existência de uma outra pessoa que teria agido em comunhão de esforços com o arguido, entende o tribunal que nenhuma prova foi feita nesse sentido, pois a testemunha acima referida viu uma única pessoa, sendo que não obstante ter sido recolhida uma impressão palmar, não pertencente ao arguido, não foi a mesma identificada, inexistindo certeza que pertencesse a alguém que tivesse estado com o arguido nessa madrugada - ponto a).
(…)”;
iii) Relativamente à valoração da impressão palmar feita pela 1ª instância, a Relação de Lisboa pronunciou-se nos seguintes termos:
“(…).
Do teor literal da motivação da decisão de facto, não resta a menor dúvida de que o Tribunal alicerçou a sua convicção para dar como provados os factos integradores do crime de furto qualificado pelo qual o arguido recorrente vinha acusado, exclusivamente, na existência de uma impressão palmar numa das janelas da residência de onde foram retirados os objectos furtados que, depois de sujeita a exame pericial, veio a constatar-se ser de uma das mãos do arguido.
Pese embora as impressões digitais ou palmares sejam dotadas de características – universais, permanentes, singulares ou inconfundíveis, indestrutíveis e mensuráveis (cfr. Pinto da Costa, Impressões Digitais: contribuição para o seu estudo médico-legal, Porto, 1972, págs. 387 e 385) – que permitem, perante a sua detecção num determinado local ou objecto, determinar a identidade da pessoa a quem pertencem esses vestígios lofoscópicos e concluir, através de prova directa, que essa pessoa teve contacto directo com esse objecto ou esteve, nesse local, já não consentem, por si só ou isoladamente consideradas, a extracção de qualquer conclusão sobre a autoria ou outro grau de participação dessa pessoa, no facto criminoso.
Com efeito, pese embora o seu valor de prova pericial com a especial eficácia probatória pré-estabelecida no art.º 163º do CPP, o juízo científico que fica subtraído à livre convicção do julgador é circunscrito à demonstração desse contacto com bens ou objectos usados na prática do crime ou deste resultantes, bem como à demonstração da presença dessa pessoa no local onde o crime foi cometido, conforme o local onde os vestígios lofoscópicos hajam sido encontrados.
«A importância e transcendência da dactiloscopia radica na circunstância de as impressões digitais serem universais, permanentes, singulares ou inconfundíveis, indestrutíveis e mensuráveis.
Em função daquelas características das impressões digitais, o valor probatório da perícia dactiloscópica deve ser encarado numa tripla perspectiva:
a) A aparição de uma impressão digital de uma pessoa faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada aquela impressão;
b) Se a impressão digital faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada aquela impressão ou que aquela pessoa esteve no local onde ela foi colhida, já não faz prova directa da participação do sujeito no facto criminoso (até porque aquele contacto com a coisa pode ser posterior à prática do crime ou meramente ocasional).
c) Embora não faça prova directa da participação do sujeito no facto criminoso, a impressão digital pode ser encarada como um indício que, conjugado com outros indícios, pode fundamentar uma decisão condenatória» (Ac. da Relação de Guimarães de 25.01.2010, proc. 300/04.0GBBCL.G2. No mesmo sentido, v.g., Ac. da Relação do Porto de 23.01.2013, proc.720/11.4PJPRT.P1; Acs. da Relação de Guimarães de 11.11.2019, proc. 492/16.6PABCL.G1, da Relação de Évora de 3.12.2013, proc. 297/06.2GAGLG.E1 e de 10.04.2018 proc. 29/12.6GDSTC.E2; da Relação de Lisboa de 21.05.2020, proc. 339/14.8 PGLRS.L1-9, in http://www.dgsi.pt e Tiago Caiado Milheiro, Breve Excurso Pela Prova Penal na Jurisprudência Nacional in Revista Julgar, nº 18, págs. 49 e 50).
Portanto, de duas uma:
Ou existem outros meios de prova ou indícios que, correlacionados com as conclusões do juízo científico de análise comparativa dos vestígios lofoscópicos, permitem, através de um raciocínio lógico, coerente e fundamentado em critérios de razoabilidade, probabilidade e regras de experiência comum, retirar o facto desconhecido – o de que foi a pessoa a quem pertencem as impressões digitais ou palmares a autora dos factos integradores do crime – a partir do facto conhecido – o de que essa pessoa esteve naquele local ou em contacto físico directo com determinados objectos – tal como é permitido pelos arts. 349º e 351º do Código Civil e 125º do Código de Processo Penal, para além de qualquer dúvida razoável.
Ou esses indícios ou outros factos base não existem e, nesse caso, o juízo de inferência lógica próprio da prova indirecta por presunções judiciais não poderá ser feito, pela simples razão de que, sem esses factos complementares, não pode estabelecer-se uma correlação directa e segura, claramente perceptível, sem saltos lógicos, conjecturas ou permissas indemonstráveis, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que se adquire através da mesma presunção. E, sendo assim, por efeito do princípio in dubio pro reo, os factos integradores do crime não podem ser considerados provados e o arguido terá de ser absolvido.
O artigo 127º do Código de Processo Penal permite o recurso a presunções judiciais, é compatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32º nº 2 da Constituição, e ainda com o dever de fundamentar as decisões judiciais, imposto pelo artigo 205º nº 1 da Constituição (Ac. Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, e Ac. do TC nº 521/2018 de 17 Out. 2018, Processo 321/2018 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20180521.html).
Tal como as presunções judiciais são meios de prova, também o princípio in dúbio pro reo, corolário do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, contemplado no art.º 32º nº 2 da Constituição, é um princípio de prova.
Ambos são mecanismos de resolução dos estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime.
O primeiro pressupõe que a dúvida se mantenha insanável, depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas e resolve a dúvida cominando-lhe como consequência a consideração dos factos como não provados e a consequente absolvição do arguido.
A segunda, através da inferência lógico-dedutiva, a partir de indícios ou factos circunstanciais ou colaterais ao objecto do processo resolve essa dúvida contra o arguido, superando a aplicação do in dúbio pro reo, pois permite afirmar um facto desconhecido a partir de um facto conhecido, para além de qualquer dúvida razoável.
Assim, a concatenação entre os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo e o da admissibilidade da prova indirecta, através de presunções judiciais em Direito Penal, implica que as dúvidas acerca da demonstração de determinados factos, sejam resolvidas em benefício do arguido, conduzindo à sua absolvição, mas a questão da existência da dúvida e consequente aplicação deste princípio só pode colocar-se depois de esgotado todo o iter probatório, ou seja, quando o non liquet persiste, mesmo depois de analisadas todas as provas directas e de concluído todo o esforço lógico-dedutivo inerente ao apuramento dos factos através de presunções judiciais.
Na sua formulação constante do art.º 32º nº 2 da Constituição da República, o princípio da presunção de inocência surge articulado com o princípio in dúbio pro reo, na medida em que, quando aplicado à apreciação da matéria de facto, impõe a absolvição, quando haja dúvida acerca da culpabilidade do arguido (esta culpabilidade, na acepção de facto criminalmente punível, abrangendo, pois, todos os elementos constitutivos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, circunstâncias agravantes e excludentes da ilicitude e da culpa).
A dúvida relevante para a aplicação do princípio in dubio pro reo terá de ser a que corresponde a «um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva» (Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novíssimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615), mas desde que seja positiva e racional, que ilida a certeza contrária, enfim, que seja uma dúvida impeditiva da convicção do tribunal.
O in dubio pro reo tem a sua oportunidade de aplicação circunscrita à ocorrência de factos incertos e não é mais do que o resultado da aplicação do princípio da presunção de inocência à actividade judicial de valoração da prova e de resolução de dúvidas dela emergentes quanto à verificação dos factos que integram o objecto do processo.
No caso vertente, o local onde foi encontrada a impressão palmar do arguido, uma janela da cozinha da residência associada à explicação dada por ele, ou seja, a de que aqui vinha com regularidade a fim de visitar a família que foi para Inglaterra em Junho ou Julho de 2011, não consente a não ser à custa de um grande salto de raciocínio no desconhecido, concluir, para além de qualquer dúvida razoável, que foi o arguido o autor do furto dos objectos.
Para mais, quando, segundo o teor literal da própria motivação da decisão de facto, exarada na sentença recorrida, o Tribunal estabeleceu que a entrada na residência furtada ocorreu através dessa janela com base num juízo meramente especulativo de uma testemunha, RS_____ que viu um indivíduo a sair através dessa janela e a partir dessa circunstância, passou a achar que também foi por aí que entrou («no que diz respeito à autoria dos factos o tribunal atendeu ao relatório de inspecção lofoscópica e ao relatório pericial dos quais resultou a identificação de uma impressão digital do arguido recolhida na janela da residência furtada, concatenados com o depoimento de RS_____ que relatou ao tribunal, de forma coerente e contextualizada, ter visto o individuo (que o surpreendeu a dormir) a fugir pela janela da cozinha, sendo que entende que também terá sido por aí que terá entrado»).
E, mesmo que inexistisse qualquer explicação plausível (que não é o caso), para a existência de uma impressão digital do arguido na referida residência, contrariamente ao que se diz na decisão recorrida, não pode concluir-se que a mesma terá lá sido deixada aquando a prática dos factos, porque a única prova que aquela impressão palmar é apta a produzir é a de que existiu um contacto físico entre o arguido e essa janela, mas nada esclarece nem quando, nem como é que esse contacto se verificou. Para mais que do texto da motivação nem sequer consta que a recolha de vestígios lofoscópicos tenha sido feita imediatamente à notícia da ocorrência do furto.
Acresce que a circunstância de a impressão palmar do arguido ter sido detectada numa janela acerca da qual nem sequer se sabe se tem comunicação directa com a via pública, mais do que ajudar a esclarecer quem possa ter sido o autor do furto, só adensa a dúvida.
É que, se assim for, sempre se poderá dizer que tal vestígio poderia ter sido ali deixado pelo arguido, ao passar naquela rua, sem isso signifique que foi ele quem entrou abusivamente na residência da testemunha RS_____.
Por outro lado, tendo sido detectada na janela a impressão palmar do arguido, sem que se saiba se do lado de dentro ou do lado de fora do vidro, nem sequer se pode concluir que o arguido tenha entrado na casa de habitação de RS_____, sendo certo que se essa entrada tivesse mesmo ocorrido, seria de esperar que mais vestígios digitais ou palmares do mesmo arguido tivessem sido encontrados noutros locais, já no interior da mesma residência e não há notícia de que assim tenha sido.
Do mesmo modo, é manifestamente insuficiente, logo, arbitrário concluir que porque «muito embora a testemunha (RS_____) não tenho logrado identificar o indivíduo, recordou que o mesmo era de raça negra, o que coincide com o aspecto físico do arguido», foi o arguido o autor destes factos, porque além da constatação de que o arguido e a pessoa que praticou o crime de furto são ambos de raça negra, não é pela circunstância de duas pessoas serem da mesma raça que têm o mesmo aspecto físico, pois que a similitude de aspecto físico afere-se por características como a cor do cabelo, do olhos, a altura a compleição física, etc.
Em resultado do que fica exposto, atentas as circunstâncias em que os factos tiveram lugar, é forçoso concluir, à luz das regras da experiência comum e da normalidade das coisas, que não pode ser não é excluída a possibilidade de o vestígio palmar encontrado na janela da cozinha da residência furtada e correspondente à impressão lofoscópica do arguido ser proveniente de um contacto ocasional totalmente desconectado com os factos integradores do crime de furto.
(…)
Consequentemente, ao abrigo do disposto no art.º 431º al. a) do CPP, determina-se a alteração da matéria de facto provada e não provada fixada pela decisão recorrida, de molde a que passem a constar da matéria não provada os factos descritos nos pontos 1 a 4 da matéria provada, no sentido de que não resultou provado que tenha sido o arguido o autor dos factos integradores do crime de furto.
Ou seja, a matéria de facto passa a ser a seguinte:
1. No dia 2 de Maio de 2011, pelas 6 horas 50 minutos pessoa cuja identidade não foi possível apurar dirigiu-se à residência de RJ____ sita na Rua …, ..., com o intuito de aí entrar e se apropriar dos bens que viesse a encontrar.
2. Aí chegado, essa pessoa desconhecida logrou introduzir-se no interior da referida residência através da janela de acesso à cozinha, retirou e levou consigo
- um telemóvel, Vodafone no valor de 71, 90 euros;
- um computador portátil, marca Toshiba, no valor de 974,00 euros;
- uma carteira com documentos; (…)
(…)”.
O que deixámos dito evidencia, sempre com ressalva do respeito devido por diversa opinião, o equívoco em que incorreu o recorrente.
Com efeito, o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência é um recurso normativo que visa definir a melhor interpretação de uma norma e que tem uma eficácia expansiva extraprocessual, embora com um efeito consequencial directo no processo onde foi interposto (e naqueles outros suspensos ao abrigo do art. 441º/2, cf. art. 445º/1) “rompendo” o caso julgado (Tiago Caiado Milheiro, op. cit., págs. 426-427).
O que há que resolver no recurso é a oposição de julgamentos relativamente à mesma questão de direito, mas o conceito nem sempre é fácil de precisar.
José Alberto dos Reis (citado por Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 213) entendia existir oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas, integrando no conceito a oposição expressa e a oposição implícita, e a oposição entre decisão e fundamentos.
Para Simas Santos e Leal Henriques, é essencial saber se para a resolução do caso concreto os tribunais, em dois acórdãos diferentes, chegaram a soluções antagónicas sobre a mesma questão fundamental de direito, pressupondo a expressão legal soluções opostas que nos dois acórdãos seja idêntica a situação de facto, que em ambos exista expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos (op. cit. e nota 2), no mesmo sentido caminhando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (acórdãos de 19 de Fevereiro de 2025, processo nº 1399/18.8T9PBL-A.S1, de 29 de Janeiro de 2025, supra identificado, de 29 de Maio de 2024, processo nº 2589/18.9T9BRG.G2-A.S1, de 9 de Março de 2023, processo nº 1831/12.4TXLSB-V.C1-A e de 12 de Janeiro de 2023, processo nº 11/20.0GAMRA.E1-A.S1, todos in www.dgsi.pt).
Dito isto.
Existem, efectivamente, semelhanças entre as situações de facto que integraram o objecto do acórdão recorrido e o objecto do acórdão fundamento.
Com efeito, em ambas está em causa a prática pelo respectivo agente, de um crime de furto qualificado por escalamento em que a introdução nas respectivas residências foi feita pela janela da cozinha [o acórdão fundamento alterou a decisão de facto, não considerando provada a autoria do respectivo arguido, passando o agente a ser pessoa de identidade não apurada], tendo o agente de cada um dos crimes deixado na janela da cozinha da residência assaltada uma impressão palmar, meio de prova este essencial, em ambos os casos, para suportar a decisão tomada pelas Relações, confirmatória da decisão condenatória da 1ª instância, pela Relação do Porto, revogatória da decisão condenatória da 1ª instância, pela Relação de Lisboa.
Acontece que – não tendo a ofendida do acórdão recorrido identificado o recorrente como autor do furto qualificado, porque não o viu no interior da residência e não o conhece, e não tendo o ofendido do acórdão fundamento identificado o respectivo arguido como o assaltante que ainda viu a sair da residência pela janela da cozinha – a localização das impressões palmares em cada uma das janelas foi aspecto fundamental para a formação da convicção de cada colectivo.
Nos termos do acórdão recorrido, como resulta do que acima se transcreveu, quer a 1ª instância, quer Relação, conjugando a circunstância de a impressão palmar da mão direita do recorrente se encontrava aposta no lado interior da soleira da janela portanto, na parte interior do elemento de cantaria que reveste a parte inferior do seu vão, vulgo, parapeito, com a circunstância de este parapeito, na posição mais favorável – a partir da soleira da porta, em diagonal e com pouco apoio – dava pelo peito ao recorrente, logicamente inferiram que este, para aceder ao interior da cozinha pela janela, teve que elevar e impulsionar o corpo com apoio das mãos no parapeito, daí se encontra o vestígio palmar na parte interior do mesmo.
Diferentemente, no acórdão fundamento, a Relação de Lisboa, conjugando a circunstância de a impressão palmar do respectivo arguido se encontrar na janela da cozinha da residência assaltada, com a circunstância de não se referir na decisão da 1ª instância em que momento, relativamente à prática do furto, foram recolhidos os vestígios lofoscópicos, com a circunstância de não se saber se a questionada janela tinha comunicação com a via pública, com a circunstância de não se saber se a impressão palmar se encontrava do lado de dentro ou do lado de fora da janela, e com a circunstância de não haver notícia de que outros vestígios lofoscópicos pertencentes ao arguido tenham sido colhidos em outros locais do interior da residência, formou a convicção de não poder ultrapassar a dúvida que considerou razoável, quanto à autoria deste, e por aplicação do pro reo, modificou a decisão da matéria de facto da 1ª instância.
Vale isto dizer que o recorrente coloca a questão da oposição de decisões em sede de matéria de facto portanto, em sede do raciocínio lógico-dedutivo seguido nos arestos em confronto, relativamente à factualidade provada de cada um.
É certo que o recorrente, no requerimento de interposição do recurso, relativamente à oposição de julgados, afirma que acórdão recorrido e acórdão fundamento adoptaram soluções opostas na resolução da mesma questão de direito, directamente conexionada com os arts. 125º e 127º do C. Processo Penal.
Sucede que, como é manifesto, os acórdãos em confronto não interpretaram nem aplicaram o art. 125º do C. Processo Penal, em sentidos divergentes, desde logo, porque em nenhum deles foi questionada a legalidade da prova pericial consubstanciada nos relatórios dos vestígios lofoscópicos, nem da admissibilidade da prova indirecta ou por presunção.
O mesmo se diga relativamente à interpretação e aplicação do art. 127º do C. Processo Penal, que não foi, sequer, objecto de análise em qualquer dos acórdãos.
Na verdade, o que aconteceu foi que, as apontadas diferenças nas concretas circunstâncias de facto que acompanharam a prova pericial objectivada nas impressões palmares do recorrente, no acórdão recorrido, e nas impressões palmares do arguido do acórdão fundamento, determinaram distintas decisões de facto.
Porém, o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, conforme dito já, visa alcançar uma interpretação uniforme da lei e uniformizar a jurisprudência e não, corrigir supostos erros de julgamento, matéria esta reservada aos recursos ordinários.
4. Em conclusão, não estando verificada a imprescindível identidade das situações de facto e das questões de direito no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, que constituem requisito material de admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência, deve o mesmo ser rejeitado, nos termos do disposto no art. 441º, nº 1, do C. Processo Penal, pela inexistência de oposição de julgados.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em julgar não verificada a oposição de julgados e, em consequência, nos termos do disposto no art. 441º, nº 1 do C. Processo Penal, rejeitam o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência interposto pelo arguido AA.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça, em 3 UC (arts. 513º, nºs 1 e 3 e 514º do C. Processo Penal), a que acresce, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 420º, nº 3, 441, nº 1 e 448º, todos do C. Processo Penal, a condenação no pagamento da quantia de 4 UC.
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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).
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Lisboa, 28 de Maio de 2025
Vasques Osório (Relator)
Jorge Gonçalves (1º Adjunto)
Ernesto Nascimento (2º Adjunto)