I. As circunstâncias agravantes do crime de tráfico e outras substâncias ilícitas previstas em qualquer uma das alíneas do art. 24.º do DL n.º 15/93, de 22-01, pressupõem uma ilicitude e uma gravidade substancialmente mais elevadas do que as pressupostas pelo tipo matricial, previsto no art. 21.º do mesmo diploma legal.
II. O conceito de avultada compensação remuneratória previsto na al. c), do art. 24.º do DL n.º 15/93, de 22-01, tem de resultar das concretas circunstâncias provadas, designadamente, da quantidade e qualidade de droga envolvidas, da duração da actividade, do volume de vendas, da estrutura organizativa e logística, e da posição ocupada pelo agente nesta estrutura.
III. Tendo-se provado que a concreta actividade em que o arguido se envolveu teve por objecto a importação de 997,3 kg de cocaína, da América do Sul para a Europa, que a cocaína apreendida, nos Países Baixos, deveria ter sido recebida pelo arguido e sua co-arguida, mediante contrapartidas monetárias, para ser comercializada a terceiros, que o preço actual do quilograma de cocaína no meio criminal é de € 25 000,00, que a venda de cocaína a terceiros, no mercado europeu, é feita por valor não inferior a € 50 000,00/kg, e que o arguido e a sua co-arguida iriam lucrar o valor correspondente à introdução de cerca de uma tonelada de cocaína proveniente da América do Sul, em Portugal, o quadro a considerar revela uma importação transcontinental de uma elevada quantidade de cocaína, camuflada em procedimentos comuns do comércio internacional, onde o arguido figura como importador, pelo que, reconhecendo-se embora a diferença substancial entre o valor do estupefaciente no termo da fase da produção e o seu valor na fase do retalho e do consumo, impõem as regras da experiência e do bom senso considerar que para o arguido/importador, apesar dos ‘custos’ da importação da cocaína, a quantidade desta proporcionar-lhe-ia uma compensação de vários milhões de euros, pelo que, praticou um crime de tráfico e outras substâncias ilícitas agravado, p. e p. pelos arts. 21.º, n.º 1 e 24.º, al. c) do DL n.º 15/93, de 22-01.
IV. Sobrepondo-se as circunstâncias agravantes às circunstâncias atenuantes, sendo muito elevadas as exigências de prevenção geral e relevantes as de prevenção especial, a pena de 9 anos de prisão, decretada pelas instâncias, para sancionar o crime de tráfico agravado, situada que está nas proximidades do ponto intermédio entre o primeiro quarto e o meio da moldura penal abstracta aplicável, é também adequada e proporcional, atentas as exigências de prevenção, e seguramente suportada pela medida da culpa do arguido, não sendo, por isso, de censurar.
I. RELATÓRIO
No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, dos arguidos BB e AA, ambos com os demais sinais nos autos, imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas agravado, p. e p. pelos arts. 21º, nº 1 e 24º, c), do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-B, anexa, mais requerendo a perda ampliada de bens a favor do Estado, pelos montantes de € 180722,88 e € 165035,49, como património incongruente com os rendimentos dos arguidos AA e BB, respectivamente.
Por acórdão de 31 de Março de 2023 foram os arguidos condenados, pela prática do imputado crime, na pena de 7 anos de prisão, a arguida, e na pena de 9 anos de prisão, o arguido, mais sendo declarados perdidos a favor do Estado o valor de €165.035,49 com referência à arguida, e o valor de €180.722,88, com referência ao arguido, com a cominação de, não sendo o pagamento efectuado nos dez dias subsequentes ao trânsito do acórdão, serão considerados perdidos a favor do Estado os bens arrestados nos autos.
Inconformados com a decisão, arguida e arguidos interpuserem, autonomamente, recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 3 de Outubro de 2023, negou provimento aos recursos, confirmando o acórdão recorrido.
*
Novamente inconformado com a decisão, recorre o arguido AA para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
1. O presente Recurso tem por Objecto e circunscreve-se:
- À Nulidade da Decisão Europeia de Investigação constante dos Autos;
- Ao Não Preenchimento dos Elementos Objectivos e Subjectivos do Crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado e a violação dos Princípios da Presunção da Inocência e In Dubio Pro Reo referente à Condenação do Recorrente pelo Crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado;
- À Inconstitucionalidade da Norma constante do Artigo 127.º do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada pelo Tribunal de Relação de Lisboa no Acórdão Recorrido; e,
- Ao exacerbado quantum da Medida da Pena aplicada ao Recorrente.
2. Da Nulidade da Decisão Europeia de Investigação
2.1 No entendimento do Recorrente a Decisão Europeia de Investigação constante dos Autos e da qual o Tribunal de 1.ª Instância lançou mão para condenar o Recorrente, à semelhança do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa no Aresto ora colocado em crise, padece de Nulidade, motivo pelo qual em sede de Recurso suscitou que o Tribunal da Relação de Lisboa reapreciasse esse vício e circunstância e, consequentemente, decretasse essa mesma Invalidade, o que não veio a ocorrer.
2.2 A este respeito, cumpre aclarar aos Colendos Conselheiros que a Defesa do Recorrente em sede de Contestação para Julgamento, entre outras Invalidades do Processo, arguiu a Nulidade da Decisão Europeia de Investigação constante dos Autos invocando, desde logo, que, “Decorre dos Autos, onde inclusive surge criado um Apenso denominado DEI, que terá sido emitida, pelo Titular da Acção Penal, no decurso do Inquérito uma Decisão Europeia de Investigação com vista, entre o demais, à obtenção de informações e documentos para Prova das factualidades que acabaram a final imputadas aos Arguidos AA e BB.
Acontece que – em decorrência do que articuladamente se preceitua nos Artigos 6.º N.ºs 1 alíneas a), b), c), d) e e) e 2, 12.º N.º 2, 13 N.º 1 e 45.º N.º 1, 2, 3 e 5 da Lei N.º 88/2017 de 21 de Agosto – todo o Procedimento dessa Decisão Europeia de Investigação é susceptível de ser impugnado por, além do demais, não resultar dos Autos terem sido cumpridas as exigências formais e materiais para a emissão e execução desta Decisão Europeia de Investigação, sendo por conseguinte – ante o que se dispõe no Artigo 23.º N.ºs 1, 2 e 5 da Lei N.º 88/2017 de 21 de Agosto ex vi do que se preceitua na alínea d) do Artigo 119.º do Código de Processo Penal – Nulas todas as Provas/Documentos/Informações recolhidas e obtidas pelo Estado de Execução e remetidas ao Estado de Emissão o que ora se impugna e argui com as legais consequências daí advenientes.”
2.3 Contudo, conforme decorre do teor do Acórdão de 1.ª Instância, o Tribunal Colectivo entendeu não existir, nesta matéria, qualquer Nulidade, questão que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa veio considerar correctamente interpretada pelo Tribunal de 1.ª Instância.
2.4 Todavia, como V/Ex.ªs melhor sabem e bem refere Luís de Lemos Triunfante (in "Admissibilidade e validade da prova na Decisão Europeia de Investigação", Revista Julgar Online, abril 2018), «(…) A autoridade judiciária de emissão portuguesa deve atender que o critério de relevância probatória deve ser exatamente o mesmo que utilizaríamos caso a prova estivesse localizada em Portugal, devendo observar de forma escrupulosa o art.º 6.º da Lei n.º 88/2017. Doravante, a opção de não se recolher prova fora de Portugal não deverá ser seguida, pois tal pode consubstanciar: i) violação de princípio da legalidade da investigação; ii) preterição dos direitos dos sujeitos processuais (arguido e vítima); iii) não efetividade da prossecução penal (pode consubstanciar violação de vários normativos nacionais e internacionais).
A autoridade judiciária de execução portuguesa deverá atender aos arts. 18.º e 31.º da Lei n.º 88/2017, ou seja, deve garantir a execução da DEI, com base no princípio do reconhecimento mútuo, nas condições que seriam aplicáveis se a medida de investigação em causa tivesse sido ordenada por uma autoridade nacional. E, sem prejuízo das causas de recusa, deverá respeitar as formalidades e os procedimentos expressamente indicados pela autoridade de emissão, salvo disposição em contrário da lei nacional e desde que se respeitem os pressupostos e requisitos do direito nacional em matéria de prova no âmbito de processos nacionais semelhantes.
Respeitando estes requisitos, estamos convencidos que a DEI e a aplicação da mesma na praxis judiciária tenderá a ser profícua, navegando em águas muito mais tranquilas do que era o sistema anterior de recolha de prova, visando a diminuição dos casos em que as autoridades judiciárias portuguesas violam obrigações convencionais ou princípios de direito internacional. O TJUE, em sede de reenvio prejudicial, vai ter (como tem acontecido recentemente na área da cooperação judiciária em matéria penal) um papel fundamental a desempenhar na interpretação da DEI e das legislações nacionais e particularmente as transposições, em sede de reenvio prejudicial.
Na mesma medida, os tribunais nacionais desempenharão um papel fundamental nesta área, quando forem chamados a tomar posição sobre a aplicação da Lei nacional, mormente na admissibilidade e validade da prova recolhida com esse instrumento. De qualquer forma, caberá um papel decisivo aos Estados Membros e aos seus aplicadores, pois a admissibilidade e validade da prova na DEI continua a ser uma tarefa principal destes, procurando a desejável construção de um sistema de "checks and balances", ou seja, baseado no equilíbrio necessário entre o poder de investigação ou acusação e os direitos da defesa.»
2.5 Com efeito, a DEI (Decisão Europeia de Investigação) constante dos Autos não pode ser usada para:
- Envio e notificação de peças processuais (art.º 5.º da CE2000) – NOTIFICAÇÕES (art.º 2.º, n.º 1 da Directiva, art.º 2.º , n.º 1, 3.º, Alínea e) e 4.º n.º 3 da Lei n.º 88/2017) - CE2000, Protocolo 2001 e convenções do CoE;
- Intercâmbio espontâneo de informações (art.º 7.º da CE2000);
- Transferência de procedimentos criminais (art.º 21.º da CoE59 e da Convenção do Conselho da Europa de 1972 relativa à transferência de procedimentos);
- Restituição de objetos (art.º 8.º da CE2000 e art.º 12.º do Segundo Protocolo Adicional à CoE59) incluindo a apreensão para este fim específico;
- Intercâmbio de informações relativas a registos criminais (DQ 2009/315/JAI - ECRIS), com a exceção do art.º 13 da CoE59 que não tendo sido substituído por esta DQ, quando se refira à obtenção de registos criminais para efeitos de prova, poderá sê-lo pela Diretiva;
- Pedido de consentimento para utilizar como prova informação já recebida por canais policiais de cooperação (art.º 1.º, n.º 4 da DQ 2006/960/JAI relativa à simplificação do intercâmbio de dados e informações entre as autoridades de aplicação da Lei dos EM da UE e art. 39.º, n.º 2 da CAAS);
- Medidas de cooperação policial transfronteiriça como, por exemplo, vigilâncias e perseguições nos termos dos arts. 40.º e 41.º da CAAS (Relativamente a estas medidas, o considerando 9 do Preâmbulo da Diretiva diz, claramente, que "A presente diretiva não se deverá aplicar à vigilância transfronteiras referida na Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen");
- Medidas de congelamento e / ou confisco de instrumentos e produtos do crime. As autoridades portuguesas devem continuar a emitir as respetivas ordens de congelamento ou confisco.
2.6 Na sua interpretação a DEI legalmente só consente as medidas de:
- Transferência temporária de dados para efeitos de investigação;
- Audições por videoconferência ou conferência telefónica;
- Entregas vigiadas;
- Investigações encobertas;
- Interceção de telecomunicações;
- Informações e controlo sobre contas e operações financeiras;
- Proteção de testemunhas;
- Medidas provisórias;
2.7 Contudo, também estas deverão ser objeto de validação pelo direito português à semelhança das obtidas em território nacional.
2.8 Na verdade, para além de que o que consta das DEI's juntas aos Autos não ser admissível como prova mas tão somente como meio de obtenção de prova, tal ainda teria necessariamente que passar pela validação judiciaria interna (tal como a demais prova obtida em território nacional) o que não sucedeu neste Processo.
2.9 Em suma, por as DEI's se tratarem de instrumentos jurídicos para a obtenção de provas na EU e não prova documental (que, ademais, em parte teria que ter sido validada internamente e que não ocorreu) não poderão os factos vertidos no Acórdão Recorrido sustentados pela DEI em causa, sem mais nenhum elementos de prova que as corrobore, serem considerados provados.
2.10 Por conseguinte, é Nula a Decisão Europeia de Investigação constante dos Autos, por violação directa do preceituado, entre outros, nos Artigos 6.º N.ºs 1 alíneas a), b), c), d) e e) e 2, 12.º N.º 2, 13 N.º 1, 23.º N.ºs 1, 2, 5 e 45.º N.º 1, 2, 3 e 5 da Lei N.º 88/2017 de 21 de Agosto e não haver sido judicialmente validada no Ordenamento Jurídico Português.
2.11 Deste modo devem V/Ex.ªs, Colendos Conselheiros, declarar Nulo o Aresto Recorrido, por ter este, à semelhança do Tribunal de 1.ª Instância, lançado mão da Decisão Europeia de Investigação para suporte de grande parte dos factos que veio a dar por provados no teor dessa Decisão, e, consequentemente, reenviarem o Processo para novo Julgamento expurgado dessa possibilidade probatória.
3. O Não Preenchimento dos Elementos Objectivos e Subjectivos do Crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado e a Violação dos Princípios da Presunção da Inocência e In Dubio Pro Reo referente à Condenação do Recorrente pelo Crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado
3.1 O Recorrente AA foi condenado pela prática do Crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado previsto e punido nos Artigos 21.º N.º 1 e 24.º alínea c) do Decreto-Lei N.º 15/93 de 22 de Janeiro e tal condenação manteve-se incólume na reapreciação efectuada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
3.2 Contudo impõe-se afirmar que de tudo o que foi produzido em Julgamento em 1.ª Instância e de toda a Prova que consta dos Autos e cuja reapreciação foi efectuada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, verifica-se que não existe qualquer prova directa a ligar o Recorrente a nenhum dos factos com ressonância criminal considerados provados quer pelo Tribunal de 1.ª Instância, quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
3.3 Com efeito, nenhuma das testemunhas revelou qualquer conhecimento directo da ligação do Recorrente AA ou da sua Co-Arguida BB a nenhum dos eventos relacionados com Tráfico de Produtos Estupefacientes, não existe qualquer intercepção telefónica entre o Recorrente AA e/ou a sua Co-Arguida BB e alguém ligado a qualquer evento correlacionado com Tráfico de Produtos Estupefacientes, nada correlacionado com produto estupefaciente foi encontrado na posse do Recorrente AA, não existe qualquer fotografia ou vigilância que demonstre a ligação do Recorrente AA a qualquer situação tentada ou consumada de Tráfico de Produtos Estupefacientes nestes Autos.
3.4 Assim, verifica-se que o Tribunal da Relação de Lisboa, à semelhança daquilo que já havia efectuado o Tribunal de 1.ª Instância, mais não fez que fundar a sua convicção, quanto ao juízo probatório, em elementos de prova indirecta ou indiciária, como seja a interpretação das convicções de Testemunhas, designadamente, daquelas que defendem a investigação e de Documentos cujo real sentido e declaração vão em sentido diametralmente oposto àquele que se concluiu no teor do Acórdão Recorrido.
3.5 Todavia, para se conseguir fundamentar uma decisão de condenação com base em prova indirecta é necessário que estejam reunidos determinados requisitos.
- Em primeiro lugar, é necessário a presença de uma pluralidade de elementos;
- Em segundo lugar, importa que tais elementos sejam concordantes;
- Em terceiro lugar, importa que, tendo em conta uma observação de acordo com as regras da experiência, tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios.
3.6 Deste modo, cabe perguntar se, fazendo a conjugação de todos estes elementos, plurais e alguns até concordantes, com as regras da lógica e da experiência comum, é possível concluir, de acordo com um raciocínio lógico-dedutivo que o Recorrente AA e a sua Co-Arguida BB negociaram, intermediaram, adquiriram ou transaccionaram, planeavam transportar ou colaborar no transporte de qualquer produto estupefaciente, designadamente cocaína, com o objectivo de obter quaisquer proveitos económicos ou de outra natureza e que, para essa finalidade, colaborou ou teve a colaboração de alguém. Como é evidente, a resposta terá de ser negativa.
3.7 Não podemos deixar de ter em atenção que um indício revela, com tanto mais segurança o facto probando, quanto menos consinta a ilação de factos diferentes. Na verdade, um facto indiciário só poderá ter valor probatório quando ao mesmo não se possa atribuir senão a uma causa.
3.8 Quando esse facto pode ser atribuído a várias causas, como é o caso dos Autos, a prova de um facto que constitui uma destas causas prováveis é também somente um indício provável ou possível. Deste modo, os factos acima referidos só poderiam ter um valor probatório se pudesse excluir todas as demais possibilidades e concluir que apenas poderiam ter uma única causa - o Tráfico de Produtos Estupefacientes.
3.9 Da leitura dos factos provados, verifica-se que em alguns deles estamos perante imputações vagas e meramente conclusivas do Tribunal de 1.ª Instância e do Tribunal da Relação de Lisboa, as quais o Recorrente AA não só não pôde refutar em sede de Julgamento por não ser possível defender-se de factos que não conhece, como o próprio Tribunal da Relação de Lisboa não podia, em consequência disso mesmo, formar, nessa parte, uma convicção concreta sobre o objecto do processo que lhe foi dado julgar, para além do mais, por inexistência total de prova a esse respeito.
3.10 Assim, forçoso é concluir que não existem quaisquer Provas nos Autos ou foram produzidas em Julgamento que permitam condenar o Recorrente pelo Crime de Tráfico de Produtos Estupefacientes Agravado.
3.11 Mas ainda que assim não fosse, o que resulta dos Autos é que todo Produto Estupefaciente que surge negociado/adquirido/vendido/comprado/tentado transportar foi todo ele apreendido na Holanda, é certo que era cocaína, mas a verdade é que nem sequer resulta apurado no processo qual o grau de pureza da mesma, portanto a existir algum lucro ainda que potencial, este na verdade nunca se concretizou e ainda se tal se tivesse verificado não atingiria o patamar que alcança em outras circunstância de largas toneladas.
3.12 Efectivamente, se se considerar todo o produto estupefaciente relatado nos Autos constata-se que em termos de quantidade e qualidade o mesmo, nas circunstâncias em que surgem transaccionados, será reconduzível a uma situação de Tráfico (dito normal) previsto no recorte normativo do Artigo 21.º do Decreto-lei 15/93 de 22 de Janeiro e não no Artigo 24.º daquele Diploma.
3.13 De notar, ainda, que este crime não exige qualquer intenção lucrativa, bastando, que se prove o dolo genérico: com conhecimento por parte do agente, do facto ilícito que realiza (eis o elemento cognoscitivo ou intelectual) relacionado com a vontade de realizar esse facto (elemento volitivo) – cfr. artigo 14.º, do Código Penal.
3.14 No Acórdão de 1.ª Instância, bem assim como, no Aresto do Tribunal da Relação de Lisboa o Recorrente AA foi condenado pela agravação constante do artigo 24.º, al. c), do citado diploma legal.
3.15 Ora, tal como tem sido reconhecido pela mais alta jurisprudência do nosso país (entre outros, acórdão do STJ, de 28.09.2006, processo 06P2049, disponível em www.dgsi.pt), o carácter “avultado” da remuneração terá de ser avaliado mediante a ponderação global de diversos factores indiciários, de índole objectiva, que forneçam uma imagem aproximada, com o rigor possível, da compensação auferida ou procurada pelo agente.
3.16 Assim, a qualidade e quantidade dos estupefacientes traficados, o volume de vendas, a duração da actividade, o nível de organização da actividade e da sua logística, e ainda o grau de inserção do agente na rede clandestina, são factores que, valorados globalmente, darão uma imagem objectiva e aproximada da remuneração obtida ou tentada.
3.17 Com efeito, subsumindo o Direito aos factos que verdadeiramente resultam demonstrados nos Autos constata-se que não resultam (minimamente) preenchidos os elementos objectivos de tal Crime, porquanto o Recorrente AA não “cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver…” qualquer produto estupefaciente. Razão pela qual, só por aqui, deveria este ter sido absolvido pelo Tribunal de 1.ª Instância.
3.18 Na verdade, não resulta minimamente apurado nos Autos quem iria comungar nos lucros (se muita gente, se poucas pessoas ou se nenhuma alma) e nem sequer que lucros visavam obter, desde logo porque não se apurou por quanto foi o produto estupefaciente adquirido, ainda que se tenha demonstrado que é seguro que o Recorrente não tinha possibilidades económicas para fazer tal negócio, e quais os custos que o mesmo implicou para chegar a Portugal e por quanto e onde iria ser vendido.
3.19 Deste modo, porque as circunstâncias apuradas no decurso do Julgamento no que ao lucro (ou intenção de lucro) diz respeito não resultam minimamente determinadas nos Autos deveriam estas factualidades serem reconduzidas, não a uma situação de Tráfico de Estupefacientes Agravado (previsto e punido na alínea c do Artigo 24.º), mas sim à previsão legal do Artigo 21.º N.º 1 do Decreto-lei N.º 15/93 de 22 de Janeiro, visto que este preceito não exige para o seu preenchimento o lucro, isto é, o lucro (ou a intenção de o obter) não é elemento deste tipo criminal.
3.20 A tudo isto acresce que, em bom rigor, da Prova produzida em Julgamento no Tribunal de 1.ª Instância e em reapreciação no Tribunal da Relação de Lisboa, resulta a ausência de resposta a quesitos fundamentais à condenação do Recorrente AA por esse crime, como seja:
- Qual seria a sua função neste episódio de tráfico de produto estupefaciente?
- Que tarefas ou função lhe estavam destinadas e/ou ocupava em toda esta factualidade?
- Que lucros e/ou benefícios iria ter ou obter à contrapartida da sua participação?
- Quem lhe propôs e quando foi aceite essa participação?
3.21 A inexistência de prova para suporte da resposta a estas, primordiais, questões implica, necessariamente, que, sem necessidade de se hastear muito alto os estandartes da Presunção da Inocência e In Dubio Pro Reo, as mesmas fiquem por responder e se tenham de considerar as factualidades aí vertidas como não praticadas pelo Recorrente AA e pela sua Co-Arguida BB.
3.22 Por conseguinte, a condenação do Recorrente AA pela prática do Crime de Tráfico de Estupefaciente Agravado viola o Princípio da Presunção da Inocência – acolhido no N.º 2 do Artigo 32.º da Constituição da Republica Portuguesa, N.º 2 do Artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e N.º 1 do Artigo 48.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – e o Principio do In Dubio Pro Reo.
4. Da Inconstitucionalidade da Norma constante do Artigo 127.º do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada no Acórdão Recorrido
4.1 Decorre do Aresto Recorrido que o Tribunal da Relação de Lisboa à semelhança daquilo que o Tribunal de 1.ª Instância havia já efectuado, na apreciação da Prova que lhe foi submetida julgar, lançou mão do Princípio da Livre Apreciação da Prova plasmado no Artigo 127.º do Código de Processo Penal.
4.2 De facto este Processo e Decisões que ora se colocam em causa são de facto e na verdade, salvaguardado o devido respeito por opinião diversa, decisões sem fundamentação, fundamentações superficiais, fundamentações que assentam numa base de má e errada avaliação da prova, insuficiência da prova, fundamentação com remissão dispersa, ambígua e contraditória, ao fim e ao cabo, fundamentação assente na percepção ou impressão construída no espirito do julgador sem correspondência com elementos objectivos de prova. Prova, na verdadeira acepção do termo, nada de nada temos nestes Autos e Decisões.
4.3 Aliás considerou o Tribunal da Relação de Lisboa, no Aresto ora colocado em crise, que tal preceito foi utilizado pelo Tribunal de 1.ª Instância num sentido perfeitamente conforme à Constituição da República Portuguesa e nenhum reparo lhe merecia essa análise.
4.4 Contudo, cumpre bradar bem alto, é inconstitucional a norma do Artigo 127.º do Código de Processo Penal, na dimensão normativa com que foi aplicada na motivação do Acórdão prolatado pelo Tribunal de 1.ª Instância e pela reapreciação que quanto a ela o Tribunal da Relação de Lisboa logrou efectuar, designadamente, segundo a qual a livre convicção do julgador é suficiente para, sem prova directa, sem indicação de factos base e sem indicação de regras de experiência ou de ciência em concreto, adquirir por dedução, ou presunção natural a prova de factos em julgamento, violando, consequentemente, o Tribunal de 1.ª Instância e o Tribunal da Relação de Lisboa, com a Decisão que proferiu o Princípio da Normalidade na utilização da Prova Indirecta.
4.5 Além do mais cumpre dizer que a fundamentação que o Tribunal da Relação de Lisboa utiliza para vincar a constitucionalidade da perspectiva da utilização do referido normativo pelo Tribunal de 1.ª Instância, veja-se 3.º parágrafo de página 95 e 2.º e 3.º parágrafos de página 96 do Aresto Recorrido, é também ela refractária, além do invocado Principio da Normalidade na utilização da Prova Indirecta, daquilo que a Constituição da República Portuguesa dispõe, clara e cristalinamente, quer no N.º 2 do Artigo 32.º, quer no N.º 1 do Artigo 205.º daquele Diploma.
4.6 Dito de outra forma, a justificação que o Tribunal da Relação de Lisboa aduziu para suporte da perspectiva com que o Tribunal de 1.ª Instância utilizou o Artigo 127.º do Código de Processo Penal é também ela exuberantemente desconforme ao Texto e Princípios Constitucionais.
4.7 O Acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância e ora o Aresto do Tribunal da Relação de Lisboa afirmando fixados, por presunção natural, factos que nem estão indiciados por quaisquer factos base, nem decorrem, por raciocínio lógico, da aplicação aos factos base de quaisquer regras de experiência, importa uma dimensão materialmente inconstitucional do Artigo 127.º do Código de Processo Penal, sobretudo, como nestes Autos, quando interpretado no sentido de que a Livre Convicção do Julgador é suficiente para – sem prova directa, sem indicação de factos base e sem indicação de regras de experiência ou de ciência – adquirir por dedução, ou presunção natural a prova de factos em julgamento, sem fazer apelo ao peso específico das presunções, que devem ser «graves, precisas e concordantes”, o que implica que colidam de frente com aquilo que se dispõe no N.º 2 do Artigo 32.º e N.º 1 do Artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa.
4.8 Por conseguinte, é Inconstitucional a norma inserta no Artigo 127.º do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada no Acórdão prolatado pelo Tribunal de 1.ª Instância e por aquele que foi proferido pelo Aresto do Tribunal da Relação de Lisboa, ora colocado em crise com este Recurso, por afronta directa ao que se encontra Constitucionalmente consagrado no Texto e Princípios da Constituição da República Portuguesa, designadamente, nos Artigos 32.º N.º 1 e 205.º N.º 1 da Lei Fundamental.
5. Da Medida Concreta da Pena
5.1 O Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Douto entendimento, considerou que a Pena a aplicar ao Recorrente pela prática das factualidades que lhe foram dadas a apreciar e reapreciar deveria ser de Nove anos de Prisão.
5.2 Impõe-se afirmar, quanto a esta matéria, que o Recorrente prestou Declarações em sede de Julgamento – ainda antes da produção da Prova que suportava a querela do Ministério Público contra si – e a esse respeito assumiu de forma integral e sem quaisquer reservas os factos que havia praticado e repudiou aqueles que não lhe diziam respeito.
5.3 Neste particular avançam os Venerandos Desembargadores que (“Nenhum dos recorrentes confessou. O arguido negou e a arguida não prestou declarações, o que, ainda que não a prejudique, também não a beneficia.”) este facto só poderia ser relevado a seu favor se este confessasse “os actos delituosos” que este não praticou e repudia por completo que se lhe os imputem.
5.4 Isto é o Tribunal da Relação de Lisboa diz, preto no branco, que nesta parte a Pena que lhe foi aplicada poderia eventualmente ser reduzida se ele confessasse ter feito aquilo que não fez!
5.5 Colendos Conselheiros, não faz qualquer sentido alguém assumir uma coisa que não fez só pelo simples facto de no abstracto se vier a ser condenado a pena lhe ser reduzida!
5.6 O Tribunal e o Julgador não podem viver e alimentar as suas Decisões da Mentira e da Inverdade que lhes interessa para o texto decisório que auguram no fim de cada Processo produzir e mostrar à Sociedade!
5.7 O Cidadão que é submetido a Julgamento não pode assumir a prática de factos que não praticou no juízo de prognose de que sendo condenado, porque confessou e disse aquilo que o Juiz queria ouvir (que a Acusação é a Verdade Absoluta), lhe será atenuada a sua Pena de Prisão. Isso não é o Princípio da Descoberta da Verdade Material a funcionar é o Princípio do Dizer Aquilo que o Juiz quer ouvir!
5.8 Com efeito, as Declarações que o Recorrente proferiu em Audiência de Julgamento serviram para a Descoberta da Verdade Material e não foram, em entendimento do Recorrente (exclusivamente por atentarem contra o poder do Libelo Acusatório e do punho que o prolata), sopesadas no teor do Acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância e pelo Tribunal da Relação de Lisboa a seu favor, desde logo por não o haverem absolvido do Crime que vinha acusado.
5.9 Não o absolvendo do Crime de que injustamente se encontra condenado, para efeitos de determinação da medida da Pena que lhe virão a aplicar, tendo presente o supra exposto, relevem V/Ex.ªs, Colendos Conselheiros, que o Recorrente, conforme decorre da Prova junta aos Autos e à revelia daquilo que os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa verteram no teor do Aresto Recorrido:
- Tem 55 anos de idade;
- Não tem contra si quaisquer Processos pendentes em Portugal ou no estrangeiro;
- É uma pessoa conscienciosa e moralmente irrepreensível;
- É empreendedor e trabalhador;
- É urbano no trato e comportamento;
- É uma pessoa de imensos afectos e imbrincadas relações sociais e familiares com os seus filhos, companheira, família, amigos e comunidade;
- Tem a companheira, filhos, família, amigos e comunidade, a quem descreveu tudo o que vem sofrendo com este Processo, dispostos a acolhê-lo e a ajudá-lo em tudo o que vier a necessitar; e,
- Ainda que nos últimos tempos tenha tido uma vivência sofrida, com problemas de saúde, é um individuo familiar e socialmente integrado e que, em termos futuros, tem um projecto profissional definido e sólido.
5.10 Deste modo, pese embora a Prova produzida em Julgamento e toda aquela que se encontra entranhada nos Autos não permita consubstanciar o juízo de condenação formulado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ainda assim, atento o supra exposto, pronunciamo-nos pela aplicação de uma Pena mais reduzida ao Recorrente por conta das factualidades que V/Ex.ªs, Colendos Conselheiros, eventualmente, venham a considerar demonstradas ele ter praticado.
5.11 O Direito não é matemática nem ciência exacta, é certo, porém a Justiça impõe e a Sociedade reclama que casos idênticos, senão iguais, sejam censurados em sede de Culpa e Medida da Pena em quantuns senão iguais pelo menos aproximados.
5.12 Entre muitos outros do conhecimento dos Colendos Conselheiros, serão os casos, por exemplo, do Processo N.º 163/15.0JELSB.C1.S2, de 25.10.2017, relativo a uma Apreensão de 1.400 Kg de cocaína em que o Supremo Tribunal de Justiça aplicou uma pena de 7 anos de prisão, ou o do Processo N.º 308/10.7JELSB.L3, de 2.3.18, referente a uma Apreensão de 1.750 Kg de cocaína em que o Tribunal da Relação de Lisboa aplicou uma pena de 7 anos e 6 meses de prisão.
5.13 Diferença que faz ressaltar a gritante injustiça da(s) Pena(s) que foi aplicada pelo Tribunal de 1.ª Instância e pelo Tribunal da Relação de Lisboa ao Recorrente, porquanto este, além de haver sido condenado por factos respeitantes a uma muito menor quantidade de produto estupefaciente, julgada nos referidos Processos, viu a axiologia da sua conduta ser censurada de forma muitíssima mais grave que aqueloutros em circunstâncias exponencialmente mais Ilícitas e Culposas que a sua.
5.14 Deste modo, a ter de ser condenado, acredita-se que outra Pena, em concreto mais benévola, logo mais Justa, será a adequada a satisfazer as premissas de tutela que o caso concreto reivindica, não se frustrando a Justiça com isso, antes pelo contrário, será ela sem qualquer dúvida a sua grande vencedora!
5.15 Razão pela qual o Recorrente – não sendo por V/Ex.ªs absolvido do Crime pelo qual foi iniquamente condenado no Tribunal da Relação de Lisboa – discorda da dosimetria da Pena que lhe foi aplicada, e pugna, no essencial, por outra mais adequada aos critérios de Justiça que o caso em concreto reclama, nomeadamente, uma Pena não muito afastada do limite mínimo desse Ilícito.
Em suma, nos presentes Autos, não só ficou cabalmente provado que o Recorrente AA não praticou o Crime de Tráfico de Produtos Estupefacientes Agravado em que foi condenado, como foi criada uma clara e razoável dúvida quanto a esses factos por que vinha acusado/pronunciado e em relação à sua Culpa no mesmo, pelo que deve ser absolvido daquele.
Nestes termos, nos melhores e demais de Direito que os Colendos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça suprirão, deve o presente Recurso do Recorrente AA obter Provimento e, em consequência, ser Revista a Decisão de Direito que sobre a mesma recaiu, conhecendo-se todas as questões suscitadas, no mesmo, com as legais consequências daí advenientes.
Ou, se assim não for, alterada a Medida da Pena aplicada ao Recorrente pela prática desse Crime para quantum não muito afastado do limite mínimo estipulado para essa sanção.
Mas sempre, conhecendo-se e declarando-se as Nulidades que invoca e arguiu, bem assim, como a Inconstitucionalidade que suscita com as legais consequências daí advenientes.
Desse modo, farão V/Ex.ªs a Costumada Justiça que Vos rotula!
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O recurso foi admitido por despacho de 17 de Novembro de 2023.
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Respondeu ao recurso o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação de Lisboa, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
1.º O recorrente recorre ao STJ inconformado com a pena de 9 anos de prisão que lhe foi imposta por tráfico de estupefacientes agravado.
2.º Alega que a Relação de Lisboa validou mal uma Decisão Europeia de Investigação, que subjaz ao inquérito pelo qual seria acusado; que falecem os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal pelo qual foi condenado, nisso se violando o princípio in dúbio pro reo, que o tribunal a quo fez interpretação inconstitucional do art.º 127.º CPP e que a pena imposta é excessiva.
3.º Porém, a DEI em causa respeita os ditames da L. 88/2017 e do CPP, sendo expressão de princípios de confiança mútua que enformam a cooperação internacional em matéria penal, orientados para a aquisição e transmissão célere e expedita de meios de prova, pelo que bem andou a Relação de Lisboa ao validar a DEI.
4.º A discussão que o arguido pretende entreter junto do STJ sobre a matéria de facto, esbarra nas limitações próprias de um tribunal de revista, não sendo lícito, nesta fase, discutir a bondade da matéria de facto (excepto se algum vício resultar evidente, à luz das regras do art° 410.º CPP, o que não é o caso).
5.º Igualmente a crítica ao tribunal a quo, sobre o modo como interpretou (e deixou aplicar) o art.º 127.º CPP pretende repristinar a discussão sobre a matéria de facto, o que não é permitido por força do art.º 434.º CPP.
6.º A pena imposta, 9 anos de prisão, mostra-se adequada à culpa, que acomoda bem ingentes ditames de prevenção geral,
Pelo que deve o recurso em apreço ser indeferido e confirmando-se o acórdão recorrido in totum.
Não obstante e como de costume, a final melhor dirão V.as Exas.
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer, afirmando, i) quanto à nulidade da Decisão Europeia de Investigação [DEI], enquanto prova, ela foi emitida pelo Ministério Público, portanto, por autoridade judiciária, visando a transmissão de elementos relacionados com a apreensão nos Países Baixos, da cocaína importada pelos arguidos, não interferindo em actos da competência do juiz de instrução, não tendo a apreensão que ser validade pelo Ministério Público porque a DEI é executada com base no princípio do reconhecimento mútuo, e não exigindo a lei a sua validação pelo juiz de instrução, acrescendo que, em caso algum, estaria verificada a nulidade insanável prevista na alínea d) do art. 119º do C. Processo Penal, pois existiu inquérito e foram realizadas diligências, ii) visando o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça exclusivamente o reexame da matéria de direito, está votada ao insucesso a alegada inexistência de prova do envolvimento do arguido no crime por cuja prática foi condenado, não resultando, por outro lado, do texto do acórdão recorrido que a Relação, tendo ficado em estado de dúvida, tenha decidido contra reo, e quanto à qualificação jurídico-penal da conduta provada, considerando a quantidade de cocaína apreendida – 997,300 quilogramas –, o seu valor de mercado – superior a um milhão de euros – a intenção dos arguidos em comercializar o estupefaciente e o seu preço de venda por quilograma – € 50000 –, é evidente que o arguido pretendia obter avultada compensação com a comercialização da cocaína, pelo que preenchida se mostra a alínea c) do art. 24º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, iii) contrariamente ao afirmado pelo arguido, as instâncias não fizeram uma interpretação inconstitucional do art. 127º do C. Processo Penal, ao entenderem que a livre convicção do julgador é suficiente para afirmar a prova dos factos, sem prova directa, sem indicação de factos base e das regras da experiência comum, o que é claramente demonstrado pelos segmentos dedicados ao exame crítico da prova, onde se referem, como prova directa, a apreensão de mil pacotes de cocaína num contentor que tinha por destinatária, documentalmente provada, a sociedade comercial dos arguidos, iv) a gravidade do facto praticado e as acentuadas exigências de prevenção geral, não obstante a inserção familiar e laboral do arguido e o adequado comportamento prisional, justificam a pena de 9 anos de prisão imposta, acrescendo que a jurisprudência invocada pelo arguido assenta numa diferente realidade, não servindo, por isso, de referência, e concluiu pela improcedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
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Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
3. Factos provados
A matéria de facto provada que provém da 1ª instância é a seguinte [com excepção da factualidade relativa às condições pessoais da co-arguida]:
“(…).
[Acusação Pública]
1. Os arguidos determinaram-se a proceder à introdução de cocaína – produto de natureza estupefaciente – em território europeu [art. 1.º];
2. Para concretização desse objectivo, os arguidos em conjugação de esforços e de forma concertada, em data não concretamente apurada, mas pelo menos, desde o mês de Setembro do ano de 2019 (data da constituição da sociedade comercial "F..., Lda.” [art. 2.º];
3. Delinearam um plano em ordem a assegurar a entrada e comercialização em Portugal, dessa cocaína [art. 3.º];
4. Para tanto, utilizaram uma sociedade comercial – "F..., Lda.", da qual a arguida BB era a única sócia gerente, [art. 4.º];
5. E que o arguido AA, também geria de facto, intervindo nos negócios empresariais, estabelecendo relações com outros comerciantes e terceiros [art. 5.º];
6. O que fazia conjuntamente com a companheira, a arguida BB, sendo esta última a responsável pela assinatura de cheques, de facturas de pagamento da referida empresa [art. 6.º];
7. Os arguidos socorrendo-se da legítima e corrente actividade dessa empresa, a coberto da actividade empresarial que era declarada à Autoridade Tributária, e que consistia nas importações/exportações de mercadoria transportada em contentores por via marítima e terrestre, [art. 7.º];
8. Decidiram dissimular entre a carga legítima de produtos que eram comprados em territórios da América do Sul, e que têm que ser declarada às autoridades aduaneiras, quando se realizam as actividades comerciais de importações/exportações [art. 8.º];
9. Vários quilogramas de cocaína, conseguindo assim transportar esse produto de natureza estupefaciente, desde a América do Sul até Portugal [art. 9.º];
10. Apenas resultou provado, para em território nacional recolherem a cocaína, cedendo-a a terceiros, mediante contrapartidas monetárias [art. 10.º - parte];
11. Foi isto que sucedeu com uma das importações que fizeram por meio da empresa "F..., Lda." [art. 11.º];
12. Assim, e na concretização do planeado, os arguidos AA e BB, no dia 25/09/2019, criaram a empresa denominada "F..., Lda.", sendo única sócia gerente, a arguida BB - [art. 12.º];
13. Esta empresa estava sedeada na Rua ..., e teria como objecto social declarado à autoridade tributária, em actividade principal o comércio por grosso de frutas e de produtos hortícolas, e como actividade secundária, o comércio por grosso de cereais, sementes, legumes, azeite, óleos, bebidas alcoólicas, peixe, crustáceos, máquinas, madeiras e combustíveis [art. 13.º];
14. Utilizando esta empresa, os arguidos procederam em seu nome, à importação do contentor marítimo com a matrícula TRIU......., com carga declarada de bananas [art. 14.º];
15. Este contentor tinha como remessa de origem Guayaquil no Equador e tinha como destino final da importação, Portugal [art. 15.º];
16. No dia 07 de Fevereiro de 2020, esse contentor portador da matrícula TRIU......., quando ainda estava em trânsito para Portugal, ao chegar ao porto marítimo de Roterdão, na Holanda [art. 16.º];
17. Foi submetido a uma fiscalização realizada pelas autoridades holandesas – equipa composta por especialistas cinotécnicas da alfandega do porto de Roterdão – que no âmbito das suas competências, ao realizar a inspecção, após remover os selos do contentor e ter subsequentemente aberto a porta do mesmo [art. 17.º];
18. Detectou e apreendeu no seu interior, dissimulado por entre a carga de bananas que havia sido declarada às autoridades alfandegárias, a quantidade de 19 (dezanove) fardos e 3 (três) sacos, todos fechados [art. 18.º];
19. Dentro desses dezanove fardos e dos três sacos, repartidos pelos seus interiores, estavam acondicionados um total de 1000 (mil) pacotes de cocaína, com o peso bruto de 1186,74 kg (mil cento oitenta seis quilogramas e setenta e quatro gramas) e o peso líquido de 997,300 (novecentos e noventa e sete quilogramas e 300 gramas) [art. 19.º];
20. As autoridades holandesas, após a apreensão da cocaína, voltaram a encerrar o contentor, apondo-lhe o seu selo alfandegário, permitindo o seu envio para Portugal, país de destino final da importação [art. 20.º];
21. Em Portugal, o contentor seria entregue à empresa "F..., Lda." [art. 21.º];
22. A tal empresa pertencente à arguida BB, gerida de facto e de direito por esta e gerida de facto pelo seu companheiro o arguido AA [art. 22.º];
23. Após a apreensão da cocaína, e em ordem a evitar fiscalização das autoridades portuguesas a efectuar à empresa "F..., Lda." [art. 23.º];
24. De comum acordo, os arguidos BB e AA no dia 01.06.2020 procederam a uma alteração de sede social e nome da empresa "F..., Lda." [art. 24.º];
25. Que passou a denominar-se "R..., Lda.", com sede na residência familiar dos arguidos, sita na Rua do ... [art. 25.º];
26. Ficando, uma vez mais a arguida BB como sendo a sócia gerente da sociedade comercial "R..., Lda." - [art. 26.º];
27. O arguido AA e a arguida BB, em nome individual, no ano de 2019, efetuaram compras de motores borda fora a empresa "M..., Lda." [art. 27.º];
28. Mais concretamente, o arguido AA no período compreendido entre o mês de Abril e mês de Dezembro de 2019, fez compras desse tipo de motores, no valor de € 221.867,27 (duzentos vinte um mil, oitocentos sessenta e sete euros e vinte sete cêntimos) [art. 28.º];
29. Também a arguida BB, no mesmo período temporal comprou o mesmo tipo de motores, no valor global de € 236.339,22 (duzentos trinta seis mil, trezentos trinta e nove euros e vinte dois cêntimos) [art. 29.º];
30. Despendendo ambos os arguidos, na globalidade, o valor total de € 458.206,49 (quatrocentos cinquenta oito mil, duzentos seis euros e quarenta nove cêntimos) [art. 30.º];
31. Este tipo de motores fora de borda, são exclusivamente utilizados em embarcações de recreio semirrígidas ou pneumáticas, transformando-as em lanchas rápidas ou EAV (embarcações de alta velocidade) [art. 31.º];
32. Um tipo de embarcações, que pela potência e velocidade que facilmente alcançam através da acoplagem de vários motores potentes e alto rendimento, são utilizadas para o transporte e transbordo de produtos estupefacientes por via marítima [art. 32.º];
33. Aos arguidos e empresas a estes associados, não existem registos relacionados com a titularidade de qualquer carta de navegador de recreio, posse de embarcações marítimas, bem como não há registo dos motores estarem associados a qualquer embarcação [art. 33.º];
34. No dia 21 de Outubro de 2021, na sequência do cumprimento dos mandados de busca e apreensão, na residência familiar dos arguidos e sede da empresa "R..., Lda.", na Rua do ... [art. 35.º];
35. Foram apreendidos um total de 13 (treze) telemóveis escondidos nas gavetas da cozinha e em caixas escondidas com material diverso, bem como inúmeros cartões SIM novos ou já utilizados [art. 35.º];
36. Foi apreendido um documento referente a um impresso de contrato comercial de exportação de polpa de furta, com data de 19.02.2020, em nome da empresa "F..., Lda." e uma empresa colombiana, onde consta como representante daquela empresa autorizado o arguido AA - cfr. fls. 112- 117, Apenso IV [art. 36.º];
37. E um documento emitido pelos CTT, onde consta como segundo autorizado a movimentar a correspondência da empresa "F..., Lda.", o arguido AA - cfr. fls. 16 do Apenso IV. [art. 37.º];
38. Na conta bancária titulada pela empresa "F..., Lda.", sediada no Banco Millennium BCP, n.º .......... ............05, entre o mês de Outubro de 2019 e o mês de Março de 2020, foram depositados pelo menos, € 11.260,00 (onze mil duzentos e sessenta euros) em numerário [art. 38.º];
39. Os telemóveis utilizados pelo arguido AA, da marca IPHONE com lMEI .............48, MElD ............24 e cartão SIM da MEO com número ...........14, apreendidos na sua posse, obtido o seu consentimento, foram examinados [art. 39.º];
40. No IPHONE do arguido, foi encontrada a aplicação "SHIP INFO", que é uma base de dados de navios mercantes, fornecendo dados em tempo real de rotas, datas previstas de largada, aportagem, tripulação, posição geográfica e horários [art. 40.º];
41. No separador "My Fleet" [a minha frota], constam os nomes dos navios ... e ... [art. 41.º];
42. No telemóvel de marca Samsung, cor preta, lMEI: .............24/50, lMEI2: .............22/50, SIN: .........7R foi feita uma transferência recente de algumas imagens provenientes da aplicação WhatsApp [art. 42.º];
43. Momentos antes do início das buscas domiciliárias, os arguidos ao aperceberem-se da aproximação dos Inspectores da P.J., de imediato procederam a desinstalação da aplicação WhatsApp do telemóvel [art. 43.º];
44. Nesse telemóvel de marca Samsung, cor preta, IMEI: .............24/50, IMEI2: .............22/50, SIN: .........7R, foram também apagadas pelos arguidos, várias conversas, mensagens, imagens e ficheiros, ficando sem registo de imagens ou vídeos e apenas restando um documento em "os meus documentos" relativo a Certidão Permanente da empresa R..., Lda., NIPC .......12 [art. 44.º];
45. No que concerne a listagem de contactos, no telemóvel de marca Samsung apenas ficaram a constar o registo de 4 (quatro) números, designadamente [art. 45.º]:
-CC-.... ... ....91;
-DD...........89;
-EE ...........36;
-FF ...........08.
46. Quanto as aplicações que os arguidos não tiveram tempo de apagar/desinstalar, neste telemóvel de marca Samsung, cor preta, IMEI: .............24/50, IMEI2: .............22/50, SIN: .........7R constam as aplicações Threema - Secure and Private Messenger e a Ship Info [art. 46.º];
47. Os arguidos utilizavam estas aplicações encriptadas - WhatsApp e Threema, para estabelecer conversações relacionadas com o tráfico de droga [art. 47.º];
48. A aplicação Threema é uma aplicação sujeita a subscrição paga, que visa a anonimização dos seus utilizadores e a encriptação das conversações, com destruição de chats e mensagens de forma periódica ou por comando do utilizador [art. 48.º];
49. Relativamente ao WhatsApp, foi de imediato perceptível a ausência desta aplicação, dos telemóveis visionados, por ter sido apagada muito recentemente [art. 49.º];
50. Todavia, tal não impossibilitou a detecção de imagens que comprovam a utilização desta aplicação (transferência de ficheiros de imagens, fotografias e vídeos) [art. 50º];
51. No que respeita a aplicação Threema, os contactos que nela estavam presentes evidenciaram uma especial ligação entre si [art. 51.º];
52. Uma vez que não é necessário estabelecer um contacto telefónico ou e-mail para a criação de um perfil o mesmo é gerado automaticamente numa cadeia de caracteres, que pode ser editada para constar um nome falso ou nickname [art. 52.º];
53. Das conversações visionadas, constatou-se um cuidado na partilha de dados de informação, com oclusão dos nomes dos intervenientes, recorrendo a qualificações como "amigo", "companheiro" [art. 53.º];
54. Para além das comunicações encriptadas, o equipamento telefónico Iphone utilizado pelos arguidos foi usado para controlar o percurso de embarcações, através da aplicação Ship Info, que serve como base de dados de navios mercantes, que fornece dados em tempo real de rotas, datas previstas de largada, aportagem, tripulação, posição geográfica e horários [art. 54.º];
55. No separador "My Fleet" da aplicação Ship Info, constam os navios ... e ... [art. 55.º];
56. O navio ... é um navio graneleiro de grande porte, alvo de uma apreensão 1 de cerca de 400kg (quatrocentos quilos) de cocaína, ocorrida a 05 de Agosto de 2021 no Porto de Santos, no Brasil [art. 56.º];
57. Após sair do Porto de Santos, a embarcação teria como destino final Portugal [art. 57.º];
58. No que respeita ao navio ... trata-se de um navio porta-contentores que efectua a linha de navegação que opera entre o Porto de Setúbal e diversos portos marítimos da América do Sul, nomeadamente, Moín (Costa Rica), Turbo (Colômbia) e Puerto Limon (Costa Rica) [art. 58.º];
59. Na data em que as buscas domiciliarias foram efectuadas em 21.10.2021, o navio ... estava aportado em território nacional, no Porto de Setúbal [art. 59.º];
60. Este local - Porto de Setúbal - está expressamente mencionado no documento manuscrito que esta vertido na folha destacada da agenda da empresa "F..., Lda.", onde estão descritas as condições necessárias à execução das diversas possibilidades de se transportar o produto estupefaciente para território nacional - cfr. fls. 10 do Apenso N, ponto 11 do auto de busca e apreensão [art. 60.º];
61. A arguida BB tinha dentro da sua bolsa pessoal, um telemóvel da marca F2 e um telemóvel da marca SAMSUNG [art. 61.º];
62. Foi apreendida documentação comprovativa da realização pelos arguidos, em nome da empresa "F..., Lda.", de três importações por via aérea de pó de açaí nos dias 26/02/2020, 04/03/2020 e 05/03/2020 no valor total de 21.781,18$ (vinte e um mil, setecentos e oitenta e um dólares e dezoito centavos) equivalente a aproximadamente 18.737,18€ (dezoito mil, setecentos e trinta e sete euros e dezoito cêntimos) [art. 62];
63. Apenas resultou provado, que entre o ano de 2019 e o ano de 2020 os arguidos procederam às indicadas importações a importar/comercializar pela referida empresa [art. 63.º];
64. Apenas resultou provado, que com avultados custos e sem que existissem condições logísticas adequadas (armazéns, câmaras de frio, distribuidores e compradores) para receber as mercadorias, parte delas perecíveis e importadas em grandes quantidades [art. 64.º - parte];
65. Apenas resultou provado, que a actividade empresarial é sustentada pela fracturação junta aos autos (cfr. fis. 54-57, do Apenso IV) [art. 65.º - parte];
66. Face ao investimento financeiro imediato muito avultado que os arguidos tiveram que despender para fazer face a importação destas mercadorias [art. 66.º];
67. Foi apreendida em poder dos arguidos, documentação relacionada com a importação do contentor onde estava dissimulada a cocaína apreendida- cfr. fls. 85-89 do apenso IV [art. 67.º];
68. No decorrer da busca domiciliária foi apreendido, um manuscrito que se encontrava oculto dentro de uma agenda no quarto do filho dos arguidos - (cfr. fls. 136 do Apenso IV) [art. 68.º];
69. Nesse manuscrito são observáveis diversas referências a um Modus Operandi, denominado de rip off que visa a "introdução" ou no "emprenhamento" (termo utilizado no meio criminal e que se encontra no manuscrito apreendido aos arguidos) [art. 69.º];
70. Dos contentores marítimos na origem/pais exportador, através de mochilas que contêm produto estupefaciente [art. 70.º];
71. No decorrer do frete marítimo, tais mochilas (outro termo que se encontra no manuscrito apreendido, com referência ao peso limite de cada uma - 20 kg) [art. 71.º];
72. Ali são colocadas seladas por elementos das Organizações Criminosas [art. 72.º];
73. No manuscrito menciona-se as referências: "Turbo, Colômbia, emprenhados, Setúbal, carga seca, o selo que vem na mala tem que ser igual ao de fora, ate 250kg, 20kg por mala" (sic) [art. 73.º];
74. Bem como a referência ao valor "20%x25.000€", isto é, vinte por cento sob o valor de 25.000€, preço atual de um quilo de cocaína, no meio criminal [art. 74.º];
75. E uma das menções encontradas no documento manuscrito- "Setúbal" - e um dos portos marítimos, onde existe uma rota semanal com origem na Colômbia, no porto de Turbo [art. 75.º];
76. E por sua vez a Colômbia e o porto de Turbo, são igualmente mencionados no dito documento manuscrito [art. 76.º];
77. Os passaportes encontrados na residência dos arguidos AA e BB, situada na Rua do ..., em ..., tinham apostos vários carimbos de entradas em território da América do Sul [art. 77.º];
78. Assim, o primeiro passaporte de BB, emitido pelas autoridades brasileiras no dia 05.12.2013 e com validade ate ao dia 04.12.2018, com o número ......09, apresentava os seguintes carimbos:
Carimbos: Madrid-Barajas:
Datas: 20.12.13; 10.02.2014; 15.02.2014; 14.01.2015; 11.02.2015; 11.06.2015; 10.08.2015 - cfr. Apenso I, pags. 2-3 [art. 78.º];
79. O segundo passaporte pertencente a BB, para substituição do primeiro, emitido pelas autoridades brasileiras em 09.08.2019 e com validade ate ao dia 08.18.2029, com o número ......46, foi também por esta utilizado, tendo sido aposto um carimbo- cfr. Apenso I, pags. 3 verso-4 verso [art. 79.º];
80. Por seu lado, o primeiro passaporte pertencente a AA, emitido pelas autoridades portuguesas, em 05.01.2012, com validade ate ao dia 05.01.2017, com o número .....81 tinha aposto os seguintes conjunto de carimbos:
Carimbos: Polícia Federal Brasil:
15.01.15 (por 90 dias); 26.02.2015; 11.06.2015; 21.06.2015; 25.06.2015 (prazo 90 dias); 02.07.2015; 22.07.2015; 29.07.2015; 03.08.2015 (prazo de 10 dias); 09.08.2015- Apenso I, pags. 5-7.
Bolívia:
21.06.2015; 25.06.2015; 02.07.2015; 22.07.2015; 29.07.2015; 03.08.2015- Apenso I, pags. 5-7 [art. 80.º];
81. O segundo passaporte pertencente a AA, que substituiu primeiro passaporte, e também ele emitido pelas autoridades portuguesas em 16.05.2019 e com validade ate ao dia 16.05. 2024, com o número ......68, apresenta os seguintes carimbos:
Carimbos: Polícia Federal Brasil:
10.12.2019 (90 dias) e 23.01.2020- Apenso I, pags, 7 verso-8 [art. 81.º];
82. A quantidade de cocaína apreendida no Porto de Roterdão, tem um valor de mercado europeu superior, pelo menos, a um milhão de euros [art. 82.º];
83. Apenas resultou provado, que destinava-se a ser recolhida pelos arguidos AA e BB, mediante contrapartidas monetárias, para ser comercializada cedida a terceiros, mediante contrapartidas monetárias [art. 83.º - parte];
84. A venda a terceiros é efectuada por quantia, pelo menos não inferior a € 50.000 por quilograma, de acordo com a Tabela Anual publicada pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (anteriormente designado por I.D.T.) [art. 84];
85. Atendendo à quantidade apreendida, e ao preço a que tal produto normalmente e comercializado no mercado europeu [art. 85.º];
86. Apenas resultou provado que os arguidos iriam lucrar valor correspondente à introdução de kg 1000 (mil quilogramas) de cocaína em Portugal proveniente da América do Sul [art. 86.º - parte];
87. Visavam assim os arguidos obter elevada compensação monetária [art. 87.º];
88. Os telemóveis apreendidos eram por estes utilizados nos contactos mantidos com vista a obtenção e a entrega da cocaína [art. 88.º];
89. O veículo com a matrícula ..-EO-.. era usado pelos arguidos nas deslocações necessárias para a concretização da actividade de tráfico de estupefacientes [art. 90.º];
90. Apenas resultou provado, que os papéis manuscritos e demais documentos apreendidos na posse dos arguidos, ora se tratavam de papéis com anotações que feitas sobre a actividade descrita dos arguidos [art. 91.º];
91. Ora eram documentos a estes pertencentes, utilizados na sua actividade de tráfico de estupefaciente [art. 92.º];
92. Apenas resultou provado, que a arguida BB assumiu participou na execução do plano de importação da cocaína [art. 93.º];
93. Que foi gizado por ambos os arguidos e por estes levado a cabo [art. 94.º];
94. Pois a sua empresa "F..., Lda." [art. 95.º];
95. Da qual era a única sócia gerente e única autorizada a movimentar a conta bancária titulada por esta empresa [art. 96.º];
96. Mas que o arguido AA também geria de facto, intermediando todos os negócios a celebrar pela referida sociedade comercial [art. 97.º];
97. Ambos os arguidos actuaram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas não são por lei permitidas [art. 99.º];
98. Estavam os arguidos cientes da natureza e características estupefacientes da cocaína que transacionaram [art. 100.º];
99. Agindo em comunhão de vontades e em conjugação de esforços, representaram a possibilidade, quiseram e conseguiram adquirir, transportar e acondicionar de forma encoberta a cocaína, dentro do contentor portador da matrícula TRIU.. . .... [art. 101.º];
100. Procedendo a seu transporte por via marítima desde a América do Sul-Porto de I Guayaquil no Equador, para Portugal [art. 102.º];
101. Tendo em vista obter elevada compensação económica [art. 103.º];
102. Pois atenta a elevada quantidade de cocaína, destinava-se a ser vendida e consumida por inúmeras pessoas [art. 104.º];
(…).
[Mais se provou (condições pessoais, sociais e antecedentes criminais)]
105. Do relatório social elaborado pela DGRSP, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 370º e 1º, alínea g), do CPP, fez-se constar que:
I - Condições Sociais e Pessoais
AA nasceu em ..., fruto de um relacionamento ocasional dos progenitores, tendo sido educado pela progenitora, vivendo com esta em Angola onde a mãe trabalhava como técnica de oftalmologia no Hospital ... em Luanda. Na sequência da guerra civil em Angola, veio para Portugal passando a viver com uma das tias maternas, médica de profissão, tendo mais tarde a mãe se juntasse ao agregado, vindo a ser realojados numa casa na zona de ....
A partir dos 14/15 anos iniciou uma relação com mais proximidade com o progenitor que se veio a consolidar e com o qual refere ter mantido um relacionamento próximo e regular.
Refere que a relação com a mãe sempre foi conflituosa apesar de reconhecer que a mesma sempre tentou dar o melhor relativamente ao enquadramento familiar do arguido, admitindo que esta era uma pessoa de difícil convivência.
Em resultado desta situação, saiu de casa aos 17 anos passando a viver em casa dos pais da namorada vindo a ser pai com esta jovem idade.
Assim, apenas concluiu o 9º ano de escolaridade passando a desenvolver uma atividade laboral afim de sustentar o seu agregado do qual se veio a separar ao fim de três anos de vivência conjugal.
Após a separação viveu uns anos em casa da progenitora, vindo a adquirir habitação com ajuda do progenitor, passando a trabalhar como técnico de potências óticas numa empresa onde permaneceu cerca de onze anos com contrato de efetividade. Mais tarde veio a trabalhar como Chefe de Operações na T... onde também refere ter permanecido cerca de dez anos.
Foi mantendo novas relações afetivas, fruto do qual nasceram mais dois filhos todos de mães diferentes. A última relação afetiva foi com a atual companheira (co-arguida no mesmo processo), de nacionalidade brasileira, fruto do qual tem um filho de 7 anos de idade, passando a viver numa habitação arrendada em ... onde o casal iniciou atividade comercial através de uma empresa de importações/exportações de produtos alimentares.
Apenas o casal trabalhava na empresa não detinham empregados acabando a atividade por ter de encerrar no período da pandemia.
Refere que tem um anterior contacto com a justiça onde foi condenado numa pena de multa pela posse de arma proibida.
Não tem problemas de saúde nem problemáticas aditivas.
II - Condições Sociais e Pessoais
AA, antes da sua prisão, encontra-se a coabitar com a sua esposa, co-arguida no mesmo processo, numa casa arrendada em ..., e com o filho do casal.
A situação económica era precária em virtude do encerramento da empresa devido à pandemia, sendo apoiado pelos familiares.
Sempre manteve uma relação de proximidade com todos os filhos referindo que estes se dão muito bem.
Aparentemente de espírito independente, aparenta ser um indivíduo empreendedor, ambicioso, sonhador, autónomo, orgulhoso, evidenciando alguma ingenuidade e permeabilidade.
Perspectiva regressar ao seu agregado familiar vivendo na sua casa de ..., e profissionalmente, e pretende retomar os seus negócios na empresa que possuiu com a companheira.
O filho encontra-se a viver no Brasil com familiares da esposa, em virtude da prisão de ambos os progenitores, sendo que a companheira se encontra em medida de OPHVE na casa da filha mais velha do arguido.
III – Impacto da situação jurídico-penal
Encontra-se preso no Estabelecimento Prisional de ..., apresentando um comportamento adequado e uma postura adaptada ao meio institucional, encontrando-se a trabalhar como responsável do bar da ala onde está inserido.
Recebe regularmente visitas dos familiares.
Face à atual situação jurídico-penal, não se revê nos factos de que é acusado, demonstrando preocupação quanto ao desenrolar da mesma. Aparenta ter consciência da gravidade da situação em que se encontra, manifestando noção das repercussões negativas na dinâmica familiar.
IV – Conclusão
AA registou um processo de socialização, no agregado familiar com a progenitora, num ambiente que caracteriza com alguma instabilidade afetiva, mas com razoáveis condições socioeconómicas.
No plano pessoal, apresenta um discurso maduro ainda que reservado, esforçando-se por apresentar uma imagem de si equilibrada e ajustada aos valores da sociedade que integra, sendo nota marcante, como característica pessoal, a ambição, valorizando a autonomia económica e os bens materiais.
Não se revê nos factos de que está acusado.
Como fator de proteção, assinala-se o apoio familiar da parte dos filhos e o facto de ser um indivíduo com hábitos de trabalho, circunstâncias que lhe poderão facilitar o seu processo de reinserção social.
Neste sentido, considera-se que o processo de integração de AA se encontra condicionado pela necessária interiorização dos normativos sociais vigentes, bem como das condições profissionais e sociais que irá encontrar quando em liberdade.
106. O arguido foi condenado por acórdão de 5 de Janeiro de 2015, transitado em julgado no dia 4 de Fevereiro de 2015, no processo comum (colectivo) n.º 6/14.2..., JCCC de ..., Juiz ..., na pena de 300 dias de multa, pela prática no dia 11 de Janeiro de 2014, de 1 (um) crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art. 86.º n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro;
[Da Liquidação do Património Incongruente]
107. AA foi constituído arguido no dia 21 de Outubro de 2021;
108. Foi proprietário do veículo ligeiro de passageiros da marca VOLKSWAGEN, modelo 3C (PASSAT), ano 2007, matrícula ..-EO-.., adquirido em 28/01/2019 e alienado em 08/04/2021 à mãe do filho mais novo, BB, igualmente arguida;
109. No período compreendido no ano de 2019, o arguido declarou auferir o rendimento de €875,00;
110. O arguido AA apresenta como rendimento disponível, no período compreendido entre o ano de 2019 e a data de dedução da acusação €2.548,80;
111. E é interveniente nas contas bancárias junto das seguintes instituições financeiras:
- Conta de Depósito à Ordem n.º PT.....................05, aberta a 03/10/1995, e unicamente titulada pelo arguido AA, nela constando os movimentos que se identificam na liquidação apresentada pelo Ministério Público que se dá por integralmente reproduzido;
- Conta de Depósito à Ordem n.º PT.....................87, aberta a 06/05/2013, unicamente titulada pelo arguido, tendo o último movimento sido efetuado a 23/05/2015.
112. A nível financeiro, o arguido AA apresenta os seguintes créditos financeiros globais apurados – 2019 - €135.606,60 e 2020 - €47.665,08;
113. A diferença entre o valor total do património (€183.271,28) e o rendimento líquido obtido (€2.548,80) ascende a €180.722,88;
(…)”.
B) Factos não provados
Não se provou que:
“(…).
O veículo automóvel de matrícula ..-EO-.., cor cinzenta, foi obtido na sequência de transacções de cocaína, sendo o resultado dos lucros auferidos [art. 89ª].
(…)”.
C) Fundamentação de direito quanto ao preenchimento da alínea c) do art. 24º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro
“(…).
Em face da concreta qualificação vertida na acusação na instrução – tráfico agravado, importa verificar, se resultou provado que os arguidos obtiveram ou procuravam obter avultadas compensações remuneratórias.
Não deixamos de ter presente, que as compensações que os arguidos procuravam obter através da actividade que desenvolveram, não se encontram materializadas em quantias concretas que tenham sido apuradas.
No entanto, foi possível apurar o peso líquido da cocaína destinada aos arguidos – 993,300 quilogramas, que é de cerca de € 25.000,00 por quilograma o preço actual de cocaína no meio criminal, que a quantidade de cocaína apreendida no porto de Roterdão tem um valor de mercado europeu superior a um milhão de euros, que a venda feita a terceiros à feita ao preço unitário de €50.000,00 por quilograma, e que os arguidos iriam lucrar valor correspondente à introdução de mil quilogramas de cocaína em Portugal proveniente da América do Sul, visando obter elevada compensação económica.
Consideramos, desta feita, partindo destes concretos pontos da matéria de facto julgados provado, designadamente os referentes aos valores de venda da cocaína, que a compensação que os arguidos pretendiam obter pelo transporte e introdução de uma tonelada de cocaína no mercado europeu é necessariamente avultada. Qualquer outra conclusão seria contrária às regras da experiência do julgador, no que concerne ao tráfico internacional por via marítima (regra geral envolve elevadas quantidades de droga) e a quaisquer critérios de razoabilidade e bom senso.
Nas operações de tráfico, a compensação é aferida em função do risco que cada um dos participantes corre na operação e, no caso dos presentes autos, foram os arguidos os únicos a correrem o risco, que envolveu a importação de bananas onde vinha acondicionada a cocaína, o que fizeram através da sociedade que constituíram para o efeito.
Os arguidos conhecendo a ilicitude da sua conduta, mesmo assim não se coibiram de a empreender, de forma livre voluntária e consciente tendo agido com dolo directo (artigo 14º do Código Penal).
Ante o exposto, não se verificando quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, fica demonstrado que os arguidos BB e AA, cometeram, em coautoria material e na forma consumada um crime de tráfico de e outras actividades ilícitas agravado, p. e p. pelo artigo 21.º n.º 1 e 24.º alínea c) do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-B, anexa ao mesmo diploma.
Não podemos deixar de secundar a integração feita pelo Tribunal recorrido.
Não obstante a impugnação da matéria de facto feita pelos arguidos/recorrentes, a mesma quedou-se inalterada, mostrando-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos integradores da prática do crime de tráfico de estupefacientes tal como expôs o Tribunal recorrido.
Quanto à verificação da circunstância agravativa, e se é certo que não se apurou qual seria concretamente o lucro dos recorrentes, não podemos escamotear – tal como bem definiu o Tribunal recorrido – que estamos perante um transporte, via marítima, desde a América do Sul, de cerca de uma tonelada de cocaína, que – conforme ficou provado – se “destinava() a ser recolhida pelos arguidos AA e BB, mediante contrapartidas monetárias, para ser comercializada cedida a terceiros, mediante contrapartidas monetárias”.
Por outro lado, também ficou provado que “A quantidade de cocaína apreendida no Porto de Roterdão, tem um valor de mercado europeu superior, pelo menos, a um milhão de euros” e que “A venda a terceiros e efectuada por quantia, pelo menos não inferior a € 50.000 por quilograma, de acordo com a Tabela Anual publicada pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (anteriormente designado por I.D.T.)”.
Perante estes factos, decorre da experiência comum que a compensação que os arguidos iriam obter pela introdução de uma tonelada de cocaína no mercado europeu seria necessariamente avultada, tal como afirma o Tribunal a quo. Aliás está dado como provado, no ponto 87., que os arguidos visavam obter elevada compensação monetária.
O entendimento vertido não viola os Princípios da presunção da inocência e in dubio pro reo, acolhidos no nº 2 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, nº 2 do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e nº 1 do art. 48º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, dando-se aqui de novo por reproduzido o que já supra dissemos: o Tribunal recorrido avaliou cuidadosa e detalhadamente a prova, sem quaisquer preconceitos, e não ficou com qualquer dúvida sobre esta – e diga-se, analisando objectivamente a decisão, não vemos que subsista dúvida – pelo que não houve violação dos mencionados princípios.
(…)”.
D) Fundamentação de direito quanto à determinação da medida concreta da pena
“(…).
De acordo com os nºs 1 e 2 do art. 40º do Cód. Penal, “a aplicação de penas… visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
A medida concreta da pena é determinada, nos termos definidos pelo art. 71º do Cód. Penal, “dentro dos limites definidos na lei… em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, atendendo-se “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) a intensidade do dolo ou da negligência; c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Figueiredo Dias (Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 65 a 111), diz que o legislador de 1995 assumiu no art. 40º do Cód. Penal, os princípios ínsitos no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida:
1. Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2. A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3. Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4. Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
Em casos como o de tráfico de estupefacientes são prementes as exigências de prevenção geral e por isso se impõe severidade no doseamento das penas, sobretudo pelos efeitos altamente perniciosos que o tráfico ilícito de drogas acarreta, sendo por demais conhecido o alarme social que provoca e a criminalidade que lhe anda associada.
No caso concreto, a ilicitude do facto (consubstanciada no desvalor da acção e do resultado), mostra-se elevada, considerando a quantidade e qualidade de estupefaciente transportado (cerca de 1 tonelada de cocaína, estupefaciente particularmente nocivo para a saúde pública e que propicia elevados lucros a quem o transacciona – ainda que os elevados lucros não possam agora ser considerados na medida em que constituem a circunstância agravante); agrava a ilicitude o facto de os recorrentes terem constituído uma empresa para a importação da cocaína, sendo esta transportada por via marítima, desde a América do Sul, com vista à introdução na Europa, e o modo como a mesma vinha dissimulada e que a tornava dificilmente detectável.
Os recorrentes agiram com dolo directo, que é a forma mais intensa de dolo. Nenhum dos recorrentes confessou. O arguido negou e a arguida não prestou declarações, o que, ainda que não a prejudique, também não a beneficia.
Os recorrentes estão familiar e socialmente integrados: viviam maritalmente e têm um filho com 7 anos de idade; ambos têm hábitos de trabalho. No EP, o arguido apresenta comportamento adequado e postura adaptada ao meio institucional, encontrando-se a trabalhar como responsável do bar da ala onde está inserido.
A arguida não regista antecedentes criminais.
O arguido foi condenado por acórdão de 5.01.2015, transitado em julgado em 4.02.2015, em pena de multa, pela prática de um crime de detenção ilegal de arma.
Sopesando todas estas circunstâncias na sua globalidade, justifica-se plenamente a pena aplicada ao arguido/recorrente pelo Tribunal a quo, a qual se afigura ajustada à culpa e às exigências reclamadas pela prevenção, não só especial, como sério aviso para não voltar a delinquir, mas também pela prevenção geral positiva (ou de integração), isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à norma violada. Já a pena aplicada à arguida/recorrente peca sem dúvida por defeito, sendo que seria mais justo e adequado condená-la numa pena mais próxima do co-arguido, determinação que estamos impedidos de realizar em face da proibição da reformatio in pejus.
(…)”.
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Âmbito do recurso
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.
Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.
Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são:
- A nulidade da Decisão Europeia de Investigação junta aos autos;
- O não preenchimento do tipo do crime de tráfico e outras actividades ilícitas agravado e a violação do princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo;
- A excessiva medida concreta da pena.
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Questões prévias
a. Nas conclusões 2.1 a 2.11 discorre o arguido ora recorrente, sobre a nulidade da Decisão Europeia de Investigação [doravante, DEI], na qual a 1ª instância e o Tribunal da Relação de Lisboa fundaram as respectivas decisões que o condenaram, com fundamento em não resultar dos autos terem sido cumpridas todas as exigências formais e materiais para a sua emissão, sendo, em consequência e nos termos do disposto nos arts. 23º, nºs 1, 2 e 5, da Lei nº 88/2017, de 21 de Agosto, e 119º, do C. Processo Penal, nulas todas as provas, documentos e informações recolhidos pelo Estado de execução ao Estado de emissão, pois que a DEI apenas é admissível como meio de obtenção de prova, e não como prova, e tem de necessariamente passar pela validação judiciária interna, o que não sucedeu no caso, pelo que, face à sua [da DEI] nulidade, não podem ter-se como provados os factos que, com base nela, as instâncias como tal, consideraram, devendo o processo ser reenviado para novo julgamento, dela expurgado.
Não subsistindo dúvidas quanto a o arguido reconhecer que suscitou – conclusão 2.2.1 – a questão da nulidade da DEI, no recurso por si interposto para a Relação de Lisboa, questão esta que o tribunal ad quem julgou improcedente, cumpre apreciar a recorribilidade da questão para o Supremo Tribunal de Justiça.
Dispõe o art. 432º, nº 1, b), do C. Processo Penal que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça, de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º.
Por seu turno, estabelece o art. 434º, do C. Processo Penal, que os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça se restringem ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo das situações previstas nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º do mesmo diploma legal.
Nos autos, estamos perante um recurso interposto de uma decisão da relação, proferida em recurso, o que afasta as situações previstas nas alíneas a) e c) do nº 1 do referido art.432º.
Estabelece a alínea c) do nº 1 do art. 400º do C. Processo Penal que, não é admissível recurso, [d]e acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo, excepto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coacção ou de garantia patrimonial, quando em 1ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196º.
Deste modo, com excepção dos casos subsumíveis à previsão da 2ª parte da norma, não é admissível recurso dos acórdãos da relação, proferidos em recurso, que não conheçam, a final, do objecto do processo portanto, que não julguem o mérito da causa.
Integram o objecto do processo os factos narrados na acusação e/ou na pronúncia, os factos alegados pela defesa e ainda, os factos resultantes da discussão da causa, desde que relevantes para as questões elencadas nº 2 do art. 368º do C. Processo Penal (art. 339º, nº 4 do mesmo código).
Conhecer do objecto do processo é conhecer da viabilidade da acusação e/ou da pronúncia, em ordem ao seu desfecho, seja de condenação, seja de absolvição, consoante o caso (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1251).
Assim, com este fundamento de irrecorribilidade, visa a lei acautelar a necessidade de defender o Supremo Tribunal de Justiça da intervenção em questões de menor importância que assim se querem ver decididas definitivamente pela Relações, quando forem objecto de recurso intercalar autónomo (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 38).
Podemos, então, dizer que as decisões de questões interlocutórias ou intermédias, portanto, de questões que não integram no objecto do processo, proferidas pelas relação, em recurso interposto da decisão final, não perdem a qualidade de decisões que não conhecem, a final, do objecto do processo, razão pela qual, nos termos do disposto no art. 400º, nº 1, c), 1ª parte, do C. Processo Penal, delas não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, obra colectiva, 2024, Almedina, pág. 60, e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 2024, processo nº 127/16.7GCPTM.E3.S1, de 11 de Outubro de 2023, processo nº 813/22.2JABRG.G1.S1, 30 de Setembro de 2020, processo nº 195/18.7GDMTJ.L1.S1, de 19 de Junho de 2019, processo nº 881/16.6JAPRT-A.P1.S1, de 2 de Março de 2017, processo nº 126/15.6PBSTB.E1.S1, de 29 de Outubro de 2015, processo nº 1584/13.9JAPRT.C1.S1 e de 12 de março de 2015, processo nº 724/01.5SWLSB.L1, in www.dgsi.pt).
A Relação de Lisboa conheceu, no acórdão recorrido, da questão da nulidade da DEI que consta dos autos, decidindo-a nos seguintes termos:
«Assim, é óbvio que os elementos constantes da DEI junta aos autos são admissíveis como prova, não sendo nula a prova ali carreada, nem havendo violação do preceituado nos arts. 6º nºs 1 alíneas a), b), c), d) e e) e 2, 12º nº 2, 13 nº 1, 23º nºs 1, 2, 5 e 45º nºs 1, 2, 3 e 5, todos da Lei 88/2017, de 21 de Agosto.».
Indeferida que foi, portanto, a suscitada questão interlocutória da DEI, deste segmento da decisão não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por irrecorribilidade da mesma, nos termos dos arts. 400º, nº 1, c), 1ª parte e 432º, nº 1, b), ambos do C. Processo Penal. E a circunstância de o recurso ter sido admitido sem restrições não vincula o tribunal superior (art. 414º, nº 3 do C. Processo Penal).
b. Nas conclusões 4.1 a 4.8 alega o arguido ora recorrente decorrer do acórdão recorrido que as instâncias lançaram mão do princípio da livre apreciação da prova, mas tendo efectuado uma errada apreciação da prova, sem correspondência com a prova objectivamente produzida, tendo entendido, designadamente, que a livre convicção do julgador é suficiente para, sem prova directa, e sem indicação dos factos base e das regras da experiência ou de ciência em concreto, para adquirir, por inferência ou presunção natural, a prova dos factos em julgamento, assim violando o princípio da normalidade na utilização da prova indirecta, o que importa uma dimensão materialmente inconstitucional do art. 127º, do C. Processo Penal, por violação dos arts. 32º, nº 1 e 205º, nº 1, da Lei Fundamental, quando interpretado no sentido de que a Livre Convicção do Julgador é suficiente para – sem prova directa, sem indicação de factos base e sem indicação de regras de experiência ou de ciência – adquirir por dedução, ou presunção natural a prova de factos em julgamento, sem fazer apelo ao peso específico das presunções, que devem ser «graves, precisas e concordantes”, inconstitucionalidade que invoca com as legais consequências.
Vejamos.
Já deixámos dito em a., que antecede, que nos termos do disposto no art. 434º, do C. Processo Penal, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça se restringem ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo das situações previstas nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º do mesmo diploma legal. E também já dissemos que, in casu, estamos perante um recurso interposto de uma decisão da relação, proferida em recurso, o que afasta as situações previstas nas alíneas a) e c) do nº 1 do referido art.432º. Pois bem.
A questão que subjaz à invocada inconstitucionalidade é, claramente, uma questão de facto, uma vez que, através dela, o arguido censura às instâncias, a forma como apreciaram e valoraram a prova, directa e indirecta, produzida, razão pela qual, não se inclui nos poderes de cognição deste Supremo Tribunal.
Não podendo, assim, conhecer o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do referido art. 434º, do C. Processo Penal, desta questão de facto, não pode também lógica e necessariamente, conhecer da inconstitucionalidade que nela se apoia.
Aliás, o arguido não desconhece que assim é, pois em 15 de Outubro de 2023 – com a co-arguida – recorreu (referência ....20) para o Tribunal Constitucional do acórdão da Relação de Lisboa de 3 de Outubro de 2023 [acórdão recorrido], invocando esta inconstitucionalidade [só tendo interposto recurso do acórdão da Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça em 3 de Novembro de 2023], tendo a Exma. Juíza Desembargadora Relatora, em despacho de 17 de Novembro de 2023 (referência ......77), determinado que, logo que baixados os autos do Supremo Tribunal de Justiça, lhe seja aberta conclusão para se pronunciar quanto ao recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
Em suma, pelas sobreditas razões, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no art. 434º do C. Processo Penal, de inconstitucionalidade fundada em questão que versa matéria de facto. E também aqui, a circunstância de o recurso ter sido admitido sem restrições não vincula o tribunal superior (art. 414º, nº 3 do C. Processo Penal).
c. Assim, nos termos do disposto nos arts. 400º, nº 1, c), 414º, nºs 2 e 3 e 420º, nº 1, b), todos do C. Processo Penal, deve o recurso ser rejeitado, na parte relativa à nulidade da DEI – referida em a., que antecede – e na parte relativa à referida inconstitucionalidade da interpretação feita pelas instâncias na aplicação do princípio da livre apreciação da prova – referida em b., que antecede, por irrecorribilidade do acórdão da Relação de Lisboa, nestes segmentos.
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Do não preenchimento do tipo do crime de tráfico e outras actividades ilícitas agravado e da violação do princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo
1. Nas conclusões 3.2. a 3.10 argumenta o arguido ora recorrente que não existe prova directa da prática dos factos típicos considerados provados no acórdão recorrido, pois as testemunhas não revelaram conhecimento directo de tais factos, inexistem intercepções telefónicas e nenhum estupefaciente foi encontrado na sua posse, tendo as instâncias formado o respectivo convencimento probatório na interpretação das convicções afirmadas pelas testemunhas de acusação, sem que se mostrem reunidos os requisitos de valoração da prova indiciária, como a pluralidade de indícios, a sua concordância e a impossibilidade de ser atribuído a outras causas, o que não acontece nos autos, onde a imputação de tráfico foi feita de forma vaga e conclusiva, completando a argumentação nas conclusões 3.20 a 3.22, com a afirmação de que, não tendo as instâncias respondido às questões de saber qual foi a sua concreta função na actividade de tráfico de estupefacientes descrita nos factos provados, que lucros iria obter com a conduta ali descrita e quem lhe propôs e quando decidiu aceitar a sua participação, foram violados os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, ao ser condenado pela prática de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas agravado.
Já sabemos que os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça se restringem ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo das situações previstas nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal (art. 434º do mesmo código) e também já dissemos que, in casu, estamos perante um recurso interposto de uma decisão da relação, proferida em recurso, o que afasta aquelas duas situações.
O actual regime do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça [redacção da Lei nº 94/2021, de 21 de Dezembro, entrada em vigor em 21 de Março de 2022, dada ao art. 432º do C. Processo Penal] estabelece que os vícios da decisão e as nulidades que não devam considerar-se sanadas, previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, só podem fundamentar recurso para o mesmo tribunal, de acórdão da relação proferido em 1ª instância (alínea a) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal), ou de acórdão, em recurso per saltum, do tribunal de júri ou do tribunal colectivo que tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos (alínea c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal). Portanto, os recursos de 1º grau para o Supremo Tribunal de Justiça, além da matéria de direito, podem ainda ter por fundamento os referidos vícios e nulidades.
O mesmo não acontece com os recursos interpostos de acórdão da Relação, proferido em recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça – recurso de 2º grau – que só podem ter por fundamento o reexame da matéria de direito. Ressalvado fica, naturalmente, o conhecimento oficioso (Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR I-A, de 28 de Dezembro de 1995), pelo Supremo Tribunal de Justiça, dos vícios decisórios que possam afectar o acórdão recorrido, se forem impeditivos da prolação da correcta decisão de direito.
Com efeito, é entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça que os vícios e as nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, não podem, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432º, nº 1, b) e 434º, ambos do mesmo código, fundamentar recurso de acórdãos da relação, tirados em recurso (entre outros, acórdãos de 24 de Abril de 2024, processo nº 2634/17.5T9LSB.L1.S1, de 29 de Fevereiro de 2024, processo nº 9153/21.3T8LSB.L1.S1, de 29 de Fevereiro de 2024, processo nº 864/20.1JABRG.G1.S1, de 15 de Fevereiro de 2024, processo nº 135/22.9JAFUN.L1.S1, de 7 de Dezembro de 2023, processo nº 356/20.9PHLRS.L1.S1, de 8 de Novembro de 2023, processo nº 651/18.7PAMGR.C3.S1, de 1 de Março de 2023, processo nº 589/15.0JABRG.G2.S1 e de 23 de Março de 2022, processo nº 4/17.4SFPRT.P1.S1, todos in www.dgsi.pt).
Resulta, do que antecede, que a alegação do arguido de inexistência de prova, directa e/ou indirecta, capaz de suportar a valoração probatória firmada pelas instâncias no que respeita à decisão de facto proferida – quer quanto aos factos, objectivos e subjectivos, preenchedores da actividade de tráfico de estupefacientes, quer quanto à factualidade relativa ao preenchimento da circunstância agravante – bem como, quanto a esta circunstância, da convocação do princípio in dubio pro reo [enquanto corolário da igualmente invocada presunção de inocência], na medida em que versam o reexame da matéria de facto, estão subtraídos aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.
A propósito do pro reo, ainda que, conforme dito, o recurso de acórdão da relação, tirado em recurso, não possa ter por fundamento os vícios e as nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, o Supremo Tribunal de Justiça pode conhecer, oficiosamente, da existência dos referidos vícios, quando ela seja impeditiva da correcta decisão de direito, cumpre notar que a apreciação da eventual violação do pro reo deve ser feita segundo critério idêntico ao da apreciação da existência de vícios da decisão.
Vale isto dizer que a dita violação deve ser evidenciada pelo texto do acórdão sindicado, dele resultando, expressa ou implicitamente, que os julgadores, tendo ficado numa situação de dúvida, objectiva, razoável e inultrapassável, quanto a um facto favorável ao arguido, o consideraram não provado ou, inversamente, tendo ficado na mesma dúvida quanto a um facto desfavorável, o consideraram como provado.
Sucede que, lido o acórdão recorrido, nele não se detecta que os Exmos. Juízes Desembargadores que o subscreveram tenham ficada num estado de dúvida, com as referidas características, relativamente a qualquer dos factos que consideraram como provados.
Diga-se, aliás, que em bom rigor, e sempre com ressalva do respeito devido por diversa opinião, a forma como o arguido coloca a questão da violação do princípio in dubio pro reo, e por via, dela, da violação da presunção de inocência constitucionalmente consagrada, nada tem a ver com aquele princípio lógico de prova, mas com uma questão diferente, que trataremos de seguida, que é a de saber se os factos provados do acórdão recorrido permitem ter por preenchida a circunstância agravante que determinou a sua condenação nos autos, pela prática de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas agravado.
2. Nas conclusões 3.11 a 3.20 afirma o arguido ora recorrente que, tendo a cocaína sido apreendida nos Países Baixos, mas não estando apurado o seu grau de pureza, a existir algum lucro, este não atingiria o patamar alcançado pelo tráfico de largas toneladas de estupefaciente, devendo a situação de facto dos autos ser subsumida ao crime do art. 21º, nº 1, do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, como tem sido reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça para quem a avultada compensação remuneratória deverá resultar de factos objectivos como a quantidade de estupefaciente, a duração da actividade, o volume de transacções, o nível da organização e da logística e a inserção do agente na estrutura da rede, sendo certo que, os factos verdadeiramente demonstrados nos autos não preenchem o tipo objectivo descrito no referido art. 21º, nº 1, pelo que, deveria ter sido absolvido, e que, por outro lado, não estando apurado o montante dos lucros e quem deles iria beneficiar e em que medida, nunca deveria ter sido condenado pelo crime agravado.
Vejamos.
a. Com a tipificação da actividade de tráfico de substâncias estupefacientes visa a lei tutelar o bem jurídico saúde e integridade física dos cidadãos portanto, a saúde pública.
O tipo base ou matricial, denominado tráfico e outras actividades ilícitas, encontra-se previsto no art. 21º, do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, que dispõe, na parte em que agora releva:
1 – Quem, sem para tal se encontra autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40º, plantas substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.
(…).
Trata-se de um crime comum, pois pode ter por agente qualquer pessoa, de perigo abstracto, pois consuma-se com a mera criação do perigo ou risco do dano para o bem jurídico tutelado, não integrando o perigo o tipo, antes sendo apenas motivo da proibição, e exaurido ou de empreendimento, pois a protecção do bem jurídico tutelado recua a momentos anteriores a qualquer manifestação danosa.
Não obstante o enorme desvalor social da actividade de tráfico de substâncias estupefacientes e a sua elevada danosidade, a lei não ignora que tal actividade é exercida em distintos graus de perigosidade, carecidos de diferenciadas reacções penais e por isso, ao lado da previsão do tipo matricial (art. 21º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro), encontramos a previsão do tipo especial agravado (art. 24º do mesmo diploma legal), do tipo especial privilegiado (art. 25º do mesmo diploma legal) e ainda do tipo especial de tráfico-consumo (art. 26º do mesmo diploma legal).
O arguido começa por dizer que os factos verdadeiramente demonstrados nos autos não preenchem o tipo base, previsto no art. 21º, nº 1, do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro. Cremos que, quando se refere a factos verdadeiramente demonstrados nos autos, pretende significar os factos provados que constam do acórdão recorrido.
Nesta pressuposição, considerando a matéria de facto provada do acórdão da Relação de Lisboa em crise, evidente se torna a falta de fundamento da afirmação do recorrente.
Com efeito, consta dos factos provados do acórdão recorrido, em síntese, que:
- O arguido e a co-arguida decidiram proceder à introdução de cocaína em território europeu, delineando um plano para assegurarem a entrada e comercialização em Portugal deste estupefaciente, usando, para tanto, a sociedade F..., Lda., com sede em ..., da qual era a co-arguida gerente e o arguido, gerente de facto, que se dedicava à importação e exportação de mercadorias transportadas em contentores por via marítima e terrestre, dissimulando na carga legítima de produtos adquiridos na América do Sul, várias quantidades de cocaína;
- Assim aconteceu com a importação feita pelo arguido e co-arguida, em nome da sociedade, do contentor marítimo com a matrícula TRIU......., com carga declarada de bananas, com origem no Equador e destino final, Portugal, contentor que, em 7 de Fevereiro de 2020, quando se encontrava em trânsito para Portugal, entrou no porto de Roterdão, nos Países Baixos, onde foi fiscalizado pelas autoridades deste país, que detectaram e apreenderam no seu interior, dissimulados entre a carga de bananas, dezanove fardos e três sacos contendo cocaína, pesando esta, 997,300 kg (novecentos e noventa e sete quilogramas e trezentos gramas);
- Depois de apreenderem a cocaína, as autoridades dos Países Baixos voltaram a encerrar o contentor, colocaram-lhe o selo alfandegário e permitiram que seguisse com destino a Portugal, enquanto país de destino final da importação, vindo o mesmo a ser entregue à sociedade F..., Lda.;
- Devido à apreensão da cocaína, para evitarem a fiscalização das autoridades portuguesas à sociedade F..., Lda., o arguido e a co-arguida, de comum acordo, procederam à alteração da sua denominação para R..., Lda., e à mudança da sede para a residência de ambos, em ...;
- A cocaína apreendida em Roterdão destinava-se a ser recepcionada pelo arguido e pela co-arguida, mediante contrapartida monetária, para ser comercializada a terceiros mediante contrapartidas monetárias;
- O arguido e a co-arguida actuaram de forma livre, deliberada e consciente, em comunhão de esforços, querendo comprar, transportar e acondicionar encobertamente, a cocaína apreendida, no identificado contentor, e proceder ao transporte marítimo do estupefaciente, do Equador para Portugal, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.
Perante esta factualidade provada, que em suma, se traduz na importação dolosa, do Equador para Portugal – embora o carregamento tenha sido interceptado e apreendido nos Países Baixos –, de quase mil quilogramas de cocaína, dúvidas não subsistem quanto a ter o arguido praticado, em co-autoria material, um crime de tráfico e outras substâncias ilícitas.
b. Vejamos agora se tal crime é ou não agravado, nos termos da previsão da alínea c) do art. 24º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Nos termos do disposto nesta alínea c), a pena prevista no art. 21º, do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro é aumentada de um quarto nos seus limites mínimo e máximo, se o agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória.
A tarefa que temos agora em mãos é a de precisar o conceito de avultada compensação remuneratória.
Vejamos.
Já tivemos oportunidade de dizer que os diferentes graus de intensidade da actividade de tráfico de estupefacientes exigiu a diferenciação de reacções penais.
O tipo matricial do crime de tráfico e outras substâncias ilícitas previsto no art. 21º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, pela moldura penal abstracta que lhe corresponde – pena de prisão de 4 a 12 anos –, inequivocamente demonstra uma ilicitude elevada e, portanto, um crime de gravidade elevada. A agravação da moldura penal abstracta para pena de prisão de 5 a 15 anos, preenchida que se mostre qualquer das alíneas do art. 24º do mesmo diploma legal, significa que o crime de tráfico e outras substâncias ilícitas agravado pressupõe uma ilicitude e uma gravidade substancialmente mais elevadas do que as pressupostas pelo tipo matricial (Pedro Vaz Patto, Comentário das Leis Penais Extravagantes, obra colectiva, Volume 2, 2011, Universidade Católica Editora, pág. 500).
No que respeita à densificação do conceito, de pouco ou nada valerá levar aos factos provados que o agente alcançou ou visava alcançar com a sua conduta, avultada compensação remuneratória [como sucede nos autos, com os pontos 87 e 101 dos factos provados], por se tratar de uma mera conclusão de facto, na medida em que se traduz numa apreciação valorativa.
Na verdade, o que é necessário, e nisto concordam doutrina e jurisprudência, é que a avultada compensação remuneratória seja conclusão extraída de factores diversos, em função das circunstâncias concretos de cada caso, levados aos factos provados, tais como, a quantidade e qualidade de droga envolvidas, a duração da actividade, o volume de vendas, a estrutura organizativa e logística, a posição ocupada pelo agente nessa estrutura (Pedro Vaz Patto, op. cit., pág. 502 e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Novembro de 2023, processo nº 31/21.7JELSB.L1.S1, de 23 de Março de 2023, processo nº 693/20.2T8AGH.L1.S1, de 3 de Novembro de 2021, processo nº 206/18.6 JELSB.L2.S1, de 28 de Novembro de 2018, processo nº 36/16.0PEPDL.L1.S1, de 10 de Outubro de 2018, processo nº 5/16.0GAAMT.S1 e de 17 de Abril de 2013, processo nº 138/09.9JELSB.L1.S2, todos in www.dgsi.pt).
Revertendo para a matéria de facto provada relevante, temos que a concreta operação de tráfico de droga em que o arguido se envolveu, teve por objecto a importação de quase uma tonelada de cocaína, mas precisamente, de 997,3 kg deste estupefaciente [ponto 19 dos factos provados], que a cocaína apreendida tem um valor de mercado, na Europa, superior a um milhão de euros [ponto 82 dos factos provados], que a cocaína apreendida deveria ter sido recebida pelo arguido e sua co-arguida, mediante contrapartidas monetárias, para ser comercializada a terceiros, mediante contrapartidas monetárias [ponto 83 dos factos provados], que o preço actual do quilograma de cocaína no meio criminal é de € 25000 [ponto 74 dos factos provados], que a venda de cocaína a terceiros, no mercado europeu, é feita por valor não inferior a € 50000/kg [pontos 84 e 85 dos factos provados] e que o arguido e a sua co-arguida iriam lucrar o valor correspondente à introdução de cerca de uma tonelada de cocaína proveniente da América do Sul, em Portugal [ponto 86 dos factos provados].
Estamos perante uma importação, por via marítima, de quase uma tonelada de cocaína, da América do Sul para a Europa, onde a quantidade de estupefaciente envolvida, os meios usados e a natureza internacional da actividade, determinam um nível muito elevado de lucro visado. Com efeito, a concreta operação situa-se logo a seguir à fase de produção da droga, mas ainda muito distante da fase da venda a retalho, sendo que nesta fase, a cocaína apreendida atingiria o valor de [€ 50000x997,3kg=] € 49865000.
Devendo reconhecer-se o enorme diferencial que separa o valor do estupefaciente no termo da sua produção, do valor do mesmo, na fase da venda ao consumo, impõem as regras da experiência e do bom senso, considerar que para o importador, e esta é a posição do arguido, a quase tonelada de cocaína em causa, mesmo atendendo aos custos de aquisição na produção, de transporte e da fruta legalmente importada, significaria uma elevadíssima compensação monetária, situada na ordem de algumas dezenas de milhões de euros, diríamos mesmo, cerca de [€ 25000x997,3kg=] € 24932500.
Assim, dispensando maiores considerações, não merece censura a qualificação jurídico-penal efectuada pelas instâncias, devendo por isso, manter-se a condenação do arguido, pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas agravado, p. e p. pelos arts. 21º, nº 1 e 24º, c), do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-B, anexa.
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Da excessiva medida concreta da pena
3. Insurge-se o arguido ora recorrente – conclusões 5.2 a 5.15 – com a pena de 9 anos de prisão imposta pelo acórdão da 1ª instância e confirmada pelo acórdão recorrido, começando por dizer que prestou declarações na audiência de julgamento, assumindo os factos que praticou e negando os factos a que era alheio, declarações que contribuíram para a descoberta da verdade material, mas que não foram consideradas a seu favor nos acórdãos proferidos pelas instâncias, por não ter sido absolvido, quando não faz qualquer sentido que devesse ter assumido uma acção que não praticou, só porque existe a possibilidade de vir a ser condenado por ela e, nesta hipótese, poder beneficiar de correspondente redução da pena, e passando, depois, a invocar, na decorrência da prova que entende ter sido produzida, a sua idade [55 anos], que não tem processos pendentes, que é consciencioso, moralmente irrepreensível, empreendedor, trabalhador, urbano no trato, bem comportado, afectuoso, bem inserido em termos familiares e sociais, com problemas de saúde e com projecto profissional definido e sólido, razões pelas quais, a prevalecer o juízo condenatório, deve a pena ser reduzida, seguindo até jurisprudência deste Supremo Tribunal e da Relação, e como forma de evitar uma flagrantes injustiça, para um quantum que não se afaste muito do limite mínimo aplicável.
Vejamos.
a. Dispõe o art. 40º do C. Penal, com a epígrafe «Finalidades das penas e das medidas de segurança», no seu nº 1 que, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Estabelece, por sua vez, o seu nº 2 que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, exprimindo esta a responsabilidade individual do agente pelo facto, sendo, assim, o fundamento ético da pena. Prevenção geral – protecção dos bens jurídicos – e prevenção especial – reintegração do agente na sociedade – constituem, pois, as finalidades da pena, por elas se reflectindo a necessidade comunitária da punição do caso concreto.
É pois neste quadro que vai funcionar o critério legal de determinação da medida concreta da pena, previsto no art. 71º do C. Penal.
Nos termos do seu nº 1, a determinação da medida concreta da pena é feita, dentro dos limites definidos pela moldura penal abstracta aplicável, em função das exigências de prevenção e da culpa do agente, e estabelece o seu nº 2 que, para este efeito, devem ser atendidas todas as circunstâncias que, não sendo típicas, militem contra e a seu favor, designadamente, as enunciadas nas diversas alíneas deste mesmo número. Por isso, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84).
A medida concreta da pena resultará do grau de necessidade de tutela do bem jurídico (prevenção geral), sem que possa ser ultrapassada a medida da culpa, intervindo a prevenção especial de socialização entre o ponto mais elevado da necessidade de tutela do bem e o ponto mais baixo onde ainda é comunitariamente suportável essa tutela (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime,1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 227 e seguintes e 238 e seguintes, e Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 43 e seguintes) ou, dito de outra forma, a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (acórdão do Supremo Tribunal de 3 de Julho de 2014, processo nº 1081/11.7PAMGR.C1.S1, in www.dgsi.pt).
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues sustenta que, «[e]m primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.» (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, Nº 2, Abril-Junho, 2002, págs. 181-182).
Do que antecede resulta que a tarefa de determinação da medida concreta da pena não corresponde ao exercício de um poder discricionário do juiz e da sua arte de julgar, mas à aplicação de um critério legal, sendo a pena concreta o resultado de um procedimento juridicamente vinculado.
Em todo o caso, o controlo desta operação pela via do recurso, podendo incidir sobre a questão do limite ou da moldura da culpa e sobre a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, não pode ter por objecto, o quantum exacto da pena, salvo se se mostrarem violadas as regras da experiência ou se a medida concreta fixada se mostrar desproporcionada (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime,1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 197).
Dito isto.
b. Em sede de aplicação do critério legal previsto no art. 71º do C. Penal, a Relação de Lisboa ponderou, como circunstâncias agravantes, a elevada ilicitude do facto, quer pela quantidade [cerca de uma tonelada] e qualidade [cocaína] do estupefaciente envolvido, quer pelo modo de execução do crime [constituição de sociedade para encobrir o tráfico internacional, por via marítima, do estupefaciente, disfarçado na fruta importada], o dolo intenso, porque directo, e o antecedente criminal registado [crime de detenção de arma proibida], e como circunstâncias atenuantes, a integração familiar e social do arguido, os seus hábitos de trabalho e o comportamento adequado às regras do estabelecimento prisional. Considerou ainda a Relação de Lisboa serem prementes as exigências de prevenção geral, face aos perniciosos efeitos do tráfico de estupefacientes, com o consequente alarme social que provoca e a criminalidade que lhe anda associada.
Concordamos com estas considerações da Relação.
Com efeito, a quantidade de droga importada é muito elevada, a cocaína é, como por todos é sabido, uma droga com elevado poder aditivo e de grande danosidade para a saúde, e o modus operandi revela o refinamento próprio de uma das modalidades adoptada no tráfico internacional de estupefacientes, por via marítima, tudo isto apontando para uma ilicitude de grau médio/alto, dentro do arco de ilicitude pressuposto pelas normas incriminadoras.
O dolo com que o arguido actuou é, obviamente, dolo directo, como é, aliás, comum, neste tipo de actividade ilícita, portanto, um dolo intenso e persistente, revelador de forte energia criminosa.
O arguido está inserido em termos familiares e sociais, tem hábitos de trabalho desde jovem e adequado comportamento prisional.
São muito elevadas as exigências de prevenção geral, quer pela frequência com que o tráfico de estupefacientes continua a ser praticado, não obstante as pesadas penas com que é punível, quer, sobretudo, pelo grande alarme que causa na comunidade, designadamente, devido ao reflexo que tem na criminalidade contra a propriedade e, não raras vezes, contra as pessoas.
Relativamente às exigências de prevenção especial, o arguido tem um antecedente criminal, pela prática de ilícito típico diverso do que integra o objecto dos autos, sancionado com pena de multa, o qual não constituiu suficiente motivação para o afastar da prática de novos crimes, revelando, pois, uma personalidade pouco sensível aos valores tutelados pelas normas e à ameaça das respectivas sanções, assim fazendo relevar tais exigências.
Diga-se, face à alegação do arguido, supra, sintetizada, que a sua idade, actualmente, 57 anos [consta do Relatório do acórdão da 1ª instância ter nascido a ... de ... de 1967], não releva para a questão de que cuidamos, tanto mais, que regista um antecedentes criminal, o que também nublará a moral irrepreensível e o bom comportamento, constando, por outro lado, dos factos provados, que não tem problemas de saúde.
Quanto à pretendida atribuição de relevância às suas declarações, estando em causa a prática de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas agravado, cuja prática o arguido negou, e por cuja prática veio a ser condenado pelas instâncias, não se vê como tais declarações possam ter contribuído de forma relevante para a descoberta da verdade, processualmente adquirida.
Note-se por último, que tendo o arguido invocado jurisprudência dos tribunais superiores para respaldar a pretendida diminuição da pena decretada, tal como refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer emitido, o indicado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa [de 2 de Março de 2018, processo nº 308/10.7JELSB.L3] não se encontra publicado na base de dados da DGSI, e o indicado acórdão de 25 de Outubro de 2017 deste Supremo Tribunal [processo nº 163/15.0JELSB.C1.S2] contempla uma diversa situação [o processo tinha por objecto o tráfico, por via marítima, de cerca de 1200 kg de cocaína, e o respectivo recorrente foi condenado pelas instâncias, por crime de tráfico e outras actividades ilícitas agravado, na pena de 10 anos de prisão, crime que o Supremo tribunal de Justiça convolou para crime de tráfico e outras actividades ilícitas, reduzindo, em consequência, a pena para 7 anos de prisão].
Assim, considerando a moldura penal abstracta aplicável ao crime de tráfico e outras actividades ilícitas agravado, p. e p. pelos arts. 21º, nº 1 e 24º, c), do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-B anexa – pena de prisão de 5 a 15 anos –, sobrepondo-se as circunstâncias agravantes às circunstâncias atenuantes, sendo muito elevadas as exigências de prevenção geral e relevantes as de prevenção especial, entendemos que a pena de 9 anos de prisão, decretada pelas instâncias, situada, sensivelmente, sobre ponto intermédio entre o primeiro quarto e o meio da moldura penal abstracta aplicável, sendo rigorosa, é também adequada e proporcional, atentas as exigências de prevenção, e seguramente suportada pela medida da culpa do arguido, de alguma forma, em linha, com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, em casos similares (acórdão de 8 de Novembro de 2023, de 23 de Março de 2022 e de 3 de Novembro de 2021, supra, identificados).
Deve, pois, ser mantida a pena de 9 anos de prisão.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o acórdão recorrido.
Custas do recurso pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).
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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).
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Lisboa, 28 de Maio de 2025
Vasques Osório (Relator)
Jorge Jacob (1º Adjunto)
José Piedade (2º Adjunto)