RECURSO PER SALTUM
CÚMULO JURÍDICO
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
ROUBO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. O arguido refere a existência, por um lado, de dúvida razoável, de que os factos ora em análise, ocorreram efectivamente conforme consignados e como se pretendeu serem demonstrados e, por outro, a necessidade de alteração da qualificação jurídica dos factos.
II. Não só o STJ apenas aprecia matéria de direito e não de facto, como a verdade é que estamos perante recurso interposto não dos vários acórdãos condenatórios, que sentenciaram o arguido pela prática dos ilícitos supramencionados, mas antes do acórdão que se debruçou sobre o cúmulo jurídico que havia a realizar, em resultado de tais condenações prévias.
III. Essas decisões mostram-se, há muito, transitadas em julgado, pelo que o que nas mesmas consta não é já passível de reapreciação em sede de recurso ordinário.
IV. No que concerne às circunstâncias que o recorrente invoca, constata-se que, no que toca à questão da sua situação pessoal durante a infância, escolaridade, trabalho e desestruturação posterior, resultante da sua adição, o tribunal “a quo” já à mesma atendeu e sopesou, não se vislumbrando que, pese embora todas estas circunstâncias tenham uma vertente atenuante, as mesmas sejam de tal modo significativas que nos permitam concluir determinarem, forçosamente, um maior peso redutor, no cálculo da pena única. Infelizmente, a situação pessoal do arguido, neste particular, não é muito diversa da de milhares de outros cidadãos que, não obstante, estruturam a sua vida (embora para tal tenham de enfrentar maiores dificuldades, seguramente, do que outros em circunstâncias mais afortunadas) de acordo com o direito.

Texto Integral


Acordam em conferência na 3ª secção do Supremo Tribunal de Justiça

*

I – relatório

1. Por acórdão de 24 de Fevereiro de 2025, foi o arguido AA condenado, nos seguintes termos:

a) Em cúmulo jurídico das penas em que foi condenado neste processo (231/19) e no processo 195/20.7..., na pena única de 6 (seis) anos de prisão.

b) Declara-se perdoado um ano de prisão, nos termos do artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, sob condição resolutiva de não praticar infracção dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da presente lei, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acrescerá a parte da pena perdoada.

2. Inconformado, veio o arguido apresentar recurso, invocando a violação dos Princípios da Igualdade, Proporcionalidade, Proibição do Excesso e Adequabilidade.

Termina pedindo a sua condenação em pena inferior.

3. O recurso foi admitido.

4. O Ministério Público respondeu à motivação apresentada, defendendo a improcedência do recurso.

5. Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto deu parecer em idêntico sentido.

II – questão a decidir.

Redução da pena imposta.

iii – fundamentação.

1. O tribunal “a quo” deu como assentes os seguintes factos:

As condenações sofridas pelo arguido

1. Por sentença de 29 de Junho de 2015, transitada em julgado a 30 de Setembro de 2015, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 322/13.0..., do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de ..., Juiz ..., foi o arguido condenado pela prática em 10 de Outubro de 2013, de um crime de roubo, na pena de seis meses de prisão, substituída por 180 horas de trabalho a favor da comunidade; substituição que veio a ser revogada, tendo o arguido cumprido a pena de prisão, a qual veio a ser declarada extinta pelo cumprimento a 09 de Julho de 2018.

2. Por acórdão de 14 de Abril de 2021, transitado em julgado a 19 de Maio de 2021, proferido no âmbito do processo comum colectivo n.º 195/20.7..., do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Criminal, Juiz ..., foi o arguido condenado pela prática no dia 9 de Março de 2020, de dois crimes de roubo, qualificados, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 210.º, n.º 2, al.b) e 204.º, n.º 2, al.f) do Código Penal, na pena de 4 anos e 2 meses de prisão por cada um dos crimes e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, subordinada a regime de prova.

3. No âmbito deste processo resultou provado que:

- no dia 9 de Março de 2020, de acordo com um plano previamente delineado, o arguido contactou com BB e combinou com este um encontro no Bairro ..., em ...;

- pelas 21h desse dia, o arguido conduziu até aquele local o seu automóvel, no interior do qual se encontravam CC e DD, e estacionou atrás do veículo onde se encontravam BB e EE, impedindo-lhes a saída;

- nesse momento, o CC e o DD saíram do veículo, empunhando o primeiro uma pistola de calibre 6,35, e dirigiram-se ao veículo onde se encontravam BB e EE, ficando o arguido AA ao volante do seu automóvel, com o motor ligado;

- de seguida CC apontou a pistola na direcção do peito de BB e afirmou “Dá-me o ouro todo, senão prego-te um tiro”, ao que aquele, temendo pela sua vida, tentou tirar os fios que trazia ao pescoço – um fio em malha entrançada com cerca de 50 cm, um fio em malha em forma de S com cerca de 50 cm, um fio em malha batida com cerca de 50 cm e um fio de malha batida com cerca de 50 cm, um fio em malha fina com vários nós e cerca de 55 cm, um fio com quatro argolas com cerca de 60 cm, um pingente com a cara de Cristo e três brilhantes, um pingente com a cruz de Jesus Cristo e um pingente em forma de pergaminho com um L gravado, avaliados num total entre € 4.200 e 4.300 – mas como o estava a fazer lentamente o CC puxou-os com força, arrancando-lhos e retirou-lhos, deles se apoderando;

- de seguida, CC apontou a pistola na direcção de EE e disse-lhe: “Se não tiras o fio que tens ao pescoço, prego-te um tiro”, ao que aquele, temendo pela sua vida e integridade física retirou do pescoço um fio em ouro amarelo, avaliado em € 3.000,00 e entregou-o ao CC;

- na posse dos mencionados fios, CC e DD correram para o interior do automóvel conduzido pelo arguido AA e dessa forma abandonaram o local; o arguido AA previu e quis agir da forma descrita, actuando de forma concertada e em conjugação de esforços com CC e DD, com o propósito de, através de ameaça com arma de fogo sobre BB e EE, se apropriarem dos fios em ouro que encontrassem na posse deles, sabendo que não lhes pertenciam, agindo de forma voluntária, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

4. Por sentença de 22 de Janeiro de 2024, transitada em julgado a 21 de Outubro de 2024, proferida no âmbito dos presentes autos de processo comum singular n.º 231/19.0..., do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal, Juiz ..., foi o arguido condenado pela prática em 28 de Agosto de 2019, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al.a) e n.º 2 e 132.º, n.º 2, al. e) todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, subordinada a regime de prova.

5. No âmbito deste processo resultou provado que:

- no dia 28 de Agosto de 2019, pelas 1h30, na esplanada do estabelecimento denominado I.... ..., em ..., o arguido empurrava pelo chão um vaso com mais de 50 cm de altura, contendo um pinheiro com cerca de 2 metros de altura, tendo sido advertido por FF de que não podia fazê-lo, porquanto o vaso era seu e que da próxima vez não entrava no seu estabelecimento;

- acto contínuo o arguido foi na direcção do ofendido, fazendo com que este se refugiasse no interior do estabelecimento;

- nesse momento, indivíduos não identificados agarraram o arguido, impedindo-o de entrar no estabelecimento;

- todavia, passados alguns segundos, o arguido entrou no estabelecimento e desferiu um soco na cara do ofendido, fazendo com que este fosse projectado entre 1,5 a 2 metros e caído no chão;

- após o arguido desferiu 3 ou 4 pontapés na cabeça e pescoço do ofendido, enquanto este se encontrava deitado no chão;

- como consequência directa da conduta do arguido, o ofendido sofreu dores, traumatismos na face, pescoço, braços e joelho esquerdo, escoriações no cotovelo direito e escoriações com 3 cm no joelho; lesões que demandaram um período de 8 dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho;

- o arguido agiu da forma descrita porque o ofendido lhe disse para não empurrar o vaso, sabendo que tal era motivo sem importância e que não era suficiente para o motivar a agir da forma descrita e não obstante agiu dessa forma, consciente, livre e voluntariamente, querendo molestar o corpo e saúde do ofendido, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Das condições pessoais e personalidade do arguido

6. À data dos factos em apreço no presente processo, AA, integrava o agregado familiar, dos avós paternos, Estrada ....

7. Desde 01 de julho de 2024, que se encontra preso preventivamente à ordem do processo nº 437/24.0..., no Estabelecimento ....

8. Quando foi detido encontrava-se há cerca de 3 meses em situação de indigência, pernoitando em casas devolutas.

9. À data da sua reclusão AA mantinha uma relação amorosa com GG, que viria a terminar, após a sua entrada no Estabelecimento ....

10. HH é o principal laço psicoafectivo, de AA, com a qual reside, desde os 8 anos de idade, sendo a relação com o progenitor de alguma conflitualidade.

11. A mãe faleceu quando AA tinha cerca de 4 anos de idade.

12. Em Agosto de 2022 os avós venderam a propriedade da qual eram detentores e adquiriram um apartamento no centro de ..., morada que consta nos autos na Rua ..., num apartamento de tipologia T3, com adequadas condições de habitabilidade.

13. Parte da infância de AA decorreu inserida no agregado de origem e, durante essa fase da sua vida, o arguido esteve exposto a conflitualidade e a violência doméstica, protagonizados pelo progenitor, o que repercutiu negativamente no seu processo de desenvolvimento, traduzindo-se em problemas comportamentais.

14. Não obstante a elevada instabilidade durante a infância e a adolescência, a escolaridade de AA decorreu de forma ajustada, registando apenas uma retenção, tendo concluído o 12.º ano de escolaridade, com 19 anos de idade.

15. No plano laboral, AA apresenta um percurso regular e contínuo, apesar de alguma mobilidade e precariedade pela ausência de vínculos contratuais.

16. Para além de empregos indiferenciados, AA trabalhou principalmente como técnico de caldeira numa destilaria de aguardente e como operário na extracção de cortiça, actividade com uma remuneração acima da média.

17. À data da sua reclusão encontrava-se desempregado, após ter abandonado a empresa do pai na qual trabalhava como operário da construção civil, por alegados conflitos entre ambos.

18. Ao nível económico, e à data dos factos subjacentes ao processo, foi referido um quadro de precaridade, sem qualquer fonte de rendimentos.

19. À data da sua reclusão AA, consumia de produtos estupefacientes nomeadamente cocaína e haxixe e heroína, manifestando desejo da sua reabilitação numa comunidade terapêutica para a sua toxicodependência.

20. Em meio prisional, o arguido tem registado um comportamento adequado com as normas institucionais vigentes, registando, todavia, uma infracção disciplinar em 2024.

21. Na actualidade encontra-se a trabalhar na faxina do Estabelecimento Prisional.

22. Á data da sua reclusão o arguido efectuou testes de despiste aos consumos de produtos estupefacientes, na Equipa Técnica Especializada de Tratamento ETET/Sotavento, os quais se mostraram negativos.

24. AA tem beneficiado de visitas por parte do pai e da madrasta II e avó HH.

2. O tribunal “a quo” fundamentou o direito aplicável, nos seguintes termos:

Requisitos de funcionamento do cúmulo jurídico

As regras de punição do concurso de crimes estão previstas nos artigos 77.º e 78.º do Código Penal.

Dispõe o artigo 77.º, n.º 1, deste Código que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única.

Conforme deste preceito resulta, o pressuposto essencial para a realização do cúmulo jurídico de duas (ou mais) penas é a prática de várias infracções pelo mesmo arguido antes do trânsito em julgado de qualquer das condenações, ou seja, antes do trânsito da primeira condenação a que venha a ser sujeito.

Já quando a segunda infracção seja cometida depois do trânsito em julgado da condenação pelo primeiro crime, estaremos perante uma acumulação material de penas (sucessão de penas), que pode eventualmente dar lugar a uma situação de reincidência quando reunidos os respectivos requisitos legais (cfr. artigo 75.º do Código Penal).

Pode ainda ocorrer que, apesar de os crimes terem sido praticados antes de transitar em julgado uma condenação por um deles, a situação de concurso venha a ser conhecida já depois do trânsito.

Também neste caso haverá que determinar a aplicação de uma pena única, nos termos do disposto no artigo 78.º, n.º 1, do Código Penal (após a revisão operada pela Lei 59/2007, de 4 de setembro): “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes”.

Para a existência de uma situação de cúmulo nesta última hipótese há, assim, que apreciar se o crime agora conhecido (e que determina o cúmulo) foi praticado antes do trânsito em julgado da condenação anteriormente proferida.

Entende-se, com efeito, como critério temporal determinante a data do trânsito, dado que o referido artigo 78.º apenas fixa os pressupostos do conhecimento superveniente do concurso, mas não as regras próprias para fixação desse concurso.

Quanto a estas, vale o regime do artigo 77.º, n.º 1, e por isso continua a ser relevante a data do trânsito em julgado e não a da condenação (neste sentido Paulo Dá Mesquita, in “O Concurso de Penas” págs. 20, 45 e 57 e L. Moutinho, in “Da Unidade à Pluralidade de Crimes no Direito Penal Português”, Universidade Católica Editora, 2005, págs. 1241 e segs.).

A realização do cúmulo jurídico de penas visa permitir que, num certo momento, se conheça da responsabilidade do arguido quanto a factos do passado, no sentido em que todos esses factos, caso fossem conhecidos e houvesse contemporaneidade processual, poderiam ter sido apreciados (e sobre eles proferida decisão) em conjunto (e num só processo ou num único momento). Por isso, o momento relevante para a determinação do cúmulo jurídico de todas as penas é o trânsito em julgado da primeira condenação, que funciona como barreira excludente, não permitindo o ingresso, no círculo dos crimes em concurso, daqueles crimes que forem cometidos após aquele limite.

Neste sentido foi proferido o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 9/2016, publicado no Diário da República n.º 111/2016, Série I de 2016-06-09, nos termos do qual o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido de que “O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso superveniente de crimes é o trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso”.

Posto isto.

No caso, cumpre apenas proceder ao cúmulo jurídico das penas a que o arguido foi condenado neste processo e no processo 195/20.7...

Sendo este o tribunal da última condenação, é este o Tribunal competente para proceder ao cúmulo, nos termos do disposto no artigo 471.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

5. Da determinação da pena unitária

Para proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares em causa, deverá considerar-se que, de acordo com os critérios enunciados no já citado artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, as penas únicas a aplicar ao arguido apresentam os seguintes limites:

– Como limite máximo: 10 (dez) anos e 2 (dois) meses (correspondente à soma das penas parcelares de 4 anos e 2 meses, 4 anos e 2 meses e 1 ano e 10 meses)

– Como limite mínimo: 4 anos e 2 meses (correspondente à pena parcelar mais elevada)

Com vista à determinação concreta da pena unitária, impõe-se agora reapreciar os factos em conjunto com a personalidade do arguido (cfr. artigo 77.º, n.º 1, in fine, do Código Penal).

Conforme ensina Figueiredo Dias (ob. cit., págs. 291 e 292), importa para tanto aquilatar da “gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente revelará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura pela conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).”

Assim, a formulação do cúmulo jurídico atende aos critérios enunciados no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal que se reflictam na personalidade do arguido (tais como as condições pessoais do agente ou os seus antecedentes criminais) e há de encontrar-se dentro dos limites impostos pelas exigências de prevenção geral positiva e de prevenção especial positiva que o caso concreto imponha, sendo certo que, em caso algum, a pena poderá ultrapassar a medida da culpa (artigos 40.º e 71.º, n.º 1, do Código Penal).

Conferindo concretização prática a todos estes vectores, importa considerar, no caso vertente, as penas parcelares aplicadas ao arguido, a natureza dos factos, a reiteração criminosa e os fins de prevenção geral e especial das penas.

No caso estão em causa crimes de furto qualificado e um crime de ofensa à integridade física qualificada, sendo que o arguido já tinha antecedentes criminais por crime de roubo. Os factos ocorrem em Agosto de 2019 e Março de 2020 (pouco depois de o arguido ter sido restituído à liberdade em Julho de 2018). As penas em concreto aplicadas situam-se num patamar mediano, tendo em conta as penas abstractas aplicáveis aos crimes em apreço e aos antecedentes criminais do arguido, sendo, todavia, necessário que por via da pena o arguido se consciencialize da gravidade dos seus comportamentos e a compreender a gravidade que os mesmos podem ter para terceiros.

Tal como afirma Günther Jakobs (Derecho Penal, Marcial Pons, 2ª edição corrigida, Parte General, pg. 11 e segs), a aplicação da pena há de visar, desde logo, a “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida”. Por isso, acrescenta (ob. cit. pág. 18) “a pena deve proteger as condições de tal interacção e tem, portanto, uma função preventiva (...) para exercitar a confiança na norma (...) aumentando a probabilidade de que esse comportamento seja apreendido pela comunidade de forma considerá-lo como aquele que não se deve ter”.

Ou seja, a comunidade tem de saber que, se alguém violar uma norma jurídico-penal, a reacção para reposição da validade da norma é de tal forma enérgica que dela resulta um efeito dissuasor para todos e cada um dos cidadãos. Em nome do princípio da confiança, que só é alcançado quando os cidadãos constatam que o direito, na sua globalidade, é cumprido e, por isso, se sentem mais seguros. A pena tem de representar uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada. O que implica se reconheça à pena uma função de “tutela, dos bens jurídicos não obviamente num sentido retrospectivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança (de que falava já Beleza dos Santos) e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime” – neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Coimbra Editora, 2004, Tomo I, pg. 76.

No que concerne à prevenção especial, “está orientada no sentido de desenvolver uma influência inibitória do delito no próprio autor, subdividindo-se em três fins: intimidação (preventivo-individual), ressocialização (correcção) e segurança” – neste sentido, o acórdão do STJ de 13/1/2010, CJ, Acs do STJ, XVIII, I, 181.

No caso, para além do já supra referido quanto às exigências de prevenção geral, atendendo ao alarme social criado por este tipo de criminalidade, há que ter em consideração, relativamente à prevenção especial, que o arguido registou uma infância e adolescência marcada pela morte da mãe aos 4 anos e pela conflitualidade com o pai, sendo que ainda assim, completou a escolaridade obrigatória e trabalhou de forma regular e contínua, sendo que, todavia, o consumo de estupefacientes determinou um estilo de vida destruturado, desemprego e situação de indigência, como se verificava à data da sua atual reclusão.

Posto isto.

O Supremo Tribunal de Justiça tem adoptado a jurisprudência de fazer acrescer à pena mais grave o produto de uma operação que consiste em comprimir a soma das restantes penas com factores variáveis, mas que se situam, normalmente, entre um terço e um sexto (por vezes até menos, chegando a um oitavo). Não se trata de uma operação puramente matemática, destituída de fundamento jurídico, mas o que se visa é criar regras que permitam que em situações idênticas a pena única seja similar. O factor de compressão variará de acordo com a consideração que se fizer, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, como indica a lei, mas só em casos verdadeiramente excepcionais se deve ultrapassar um terço da soma das restantes penas, principalmente se estiverem em consideração penas ou soma de penas muito elevadas, pois, se assim não fosse, facilmente se atingiria a pena máxima, reservada para a casos excepcionalmente graves - neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Abril de 2010, publicado em texto integral no site www.dgsi.pt.

Sem prejuízo, neste mesmo Acórdão, o Exmo. Senhor Conselheiro, Rodrigues da Costa fez uma declaração de voto no sentido de que a operação de determinação da pena conjunta não é reconduzível a critérios matemáticos, seja em primeiro, seja em último termo, pois se assim fosse, o legislador teria fixado a respectiva fracção ou proporção com que a soma das restantes penas, acrescendo à pena parcelar mais grave, devia entrar na pena única. Refere ainda o Exmo. Senhor Conselheiro que sendo a pena conjunta balizada por um limite mínimo e por um limite máximo, aquele correspondente à pena parcelar mais elevada e este, à soma das restantes penas, nada impede que, num caso concreto, se aplique o mínimo da moldura penal assim construída e, noutros, se aplique uma pena única próximo do limite máximo, ou mesmo o limite máximo.

Em suma, a determinação da pena única depende essencialmente da avaliação que se faça da personalidade unitária do agente, em conjugação com a globalidade dos factos.

No caso, para além das exigências de prevenção geral e especial supra referidas, há que ter em consideração o modo de execução dos factos e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente.

Neste aspecto o tribunal teve em consideração o lapso temporal desde que os factos ocorreram, a heterogeneidade dos crimes em causa e a gravidade dos mesmos, o respectivo contexto e consequências, os antecedentes criminais do arguido e a personalidade do arguido manifestada nos factos.

Julga-se, assim, adequada à culpa do arguido e às exigências de prevenção que o caso revela a pena única de 6 (seis) de prisão.

6. Da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto

No dia 1 de Setembro de 2023 entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, a qual estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude e que abrange as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas do dia 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º da citada lei.

Dispõe o artigo 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto que:

“1. Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.

2. São ainda perdoados:

a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;

b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa;

c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição;

d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.

3. O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena.

4. Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

5. O disposto no n.º 1 abrange a execução da pena em regime de permanência na habitação.

6. O perdão previsto no presente artigo é materialmente adicionável a perdões anteriores”.

O arguido nasceu a ... de ... de 1996, pelo que à data dos factos tinha 23 anos e os crimes em causa admitem perdão, uma vez que não se encontram excluídos pelo artigo 7.º da referida Lei.

Considerando a idade do arguido à data da prática dos factos (inferior a 30 anos), a pena única aplicada em cúmulo jurídico (inferior a 8 anos de prisão), que em nenhum dos crimes é vítima pessoa a que alude o n.º 2 do artigo 7.º nem se encontram excluídos pelo n.º 1 do mesmo artigo, e que os crimes pelos quais foi condenado não são susceptíveis de serem declarados amnistiados (dado serem puníveis, em abstracto, com pena superior a um ano) é susceptível de ser aplicado o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2.8.

Pelo que se impõe declarar o perdão de um ano de prisão sob a condição resolutiva de não praticar infracção dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da presente lei, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acrescerá a parte da pena perdoada.

3. Alega o recorrente, em sede de conclusões, o seguinte:

I. O presente recurso tem como objecto toda a matéria do douto Acórdão que imputou ao arguido a prática, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 e 132.º, n.º 2, al. e) todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, subordinada a regime de prova; E, no âmbito do processo comum coletivo n.º 195/20.7..., do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Criminal, Juiz..., foi o arguido condenado pela prática no dia 9 de março de 2020, de dois crimes de roubo, qualificados, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 210.º, n.º 2, al. b) e 204.º, n.º 2, al. f) do Código Penal, na pena de 4 anos e 2 meses de prisão por cada um dos crimes e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, subordinada a regime de prova.

II. Não pode o Recorrente conformar-se com a moldura penal que lhe foi aplicada, por considerar-se ser excessiva face: E por em boa verdade ter sempre colaborado com a justiça;

III. O recorrente manifestou ter capacidades de auto analise e juízo critico tendo já assimilado o desvalor das condutas empreendidas e para tanto não mais voltar a ter o aquele ou outro comportamento no âmbito criminal.

IV. O Recorrente apresentou como invocado a colaboração no esclarecimento dos factos e o seu arrependimento.

V. Conforme, melhor resulta da motivação da decisão de facto da sentença recorrida, concatenados os meios de prova ali descriminados, sempre existirá a dúvida razoável, de que os factos ora em análise, ocorreram efetivamente conforme consignados e como se pretendeu serem demonstrados.

VI. Sempre se terá que ter em linha de conta, o facto de: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

VII. E, bem assim, conforme se encontra vertido na nossa jurisprudência que, “a restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (art.º 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso”

VIII. Senão vejamos, entende o Recorrente que a aplicação de tal normativo ao caso concreto, com a moldura legal agravada, não traduz a realidade factual. Ademais, sempre com a devida vénia por opinião diversa, com a amplitude da pena que lhe veio a ser aplicada desmesuradamente fora de contexto, desproporcional e desadequada.

IX. Ora, do acima exposto resulta que deve a decisão de 1.ª instância, ser integralmente revista no que ao aqui recorrente concerne, bem como ser a qualificação jurídica dos factos igualmente revista, no sentido de reduzir-se a pena única aplicada ao recorrente, em obediência aos Princípios da Igualdade, Proporcionalidade, Proibição do Excesso e Adequabilidade.

X. É, pois, claro, que a vida do Recorrente não foi fácil e com efeito, não nega o Recorrente ter estado envolvido nos crimes de que vem acusado.

XI. Sempre se terá que ter em linha de conta, o facto de: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

XII. E bem assim, face ao que se encontra vertido na nossa jurisprudência, eis que, “a restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (art. 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso”

XIII. Senão vejamos, entende o Recorrente que a aplicação de tal normativo ao caso concreto, com a moldura legal agravada, não traduz a realidade factual. Ademais, sempre com a devida vénia por opinião diversa, com a amplitude da pena que lhe veio a ser aplicada desmesuradamente fora de contexto, desproporcional e desadequada.

XIV. Ora, do acima exposto resulta que deve a decisão de 1.ª instância, ser integralmente revista no que ao aqui recorrente concerne, bem como ser a qualificação jurídica dos factos igualmente revista, no sentido de reduzir-se a pena única aplicada ao recorrente, em obediência aos Princípios da Igualdade, Proporcionalidade, Proibição do Excesso e Adequabilidade.

XV. Sempre com a devida vénia por opinião diversa, não andou o Tribunal de 1.ª Instância bem, ao aplicar uma pena única excessiva, desproporcional e desadequada ao aqui recorrente, independentemente de:

XVI. Muito embora se deva retirar a leitura de qua a projeção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pelas necessidades de proteção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas (finalidade de prevenção geral) e de ressocialização (finalidade de prevenção especial); Não obstante, faltou, no nosso entendimento, ao Tribunal de 1.º Instância estabelecer um correto paralelo em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade das penas e a gravidade dos factos praticados.

XVII. Pelo que, no nosso entendimento, deveria o Tribunal “a quo” ter avaliado, em concreto, por via de factores ou circunstâncias relacionadas com este critério de proporcionalidade e com a personalidade do agente, os quais são relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele (art.º 40.º e 71.º, n.º 1, do CP).

XVIII. Atento o facto de na realidade, no âmbito do enquadramento Jurídico-Penal e quanto aos requisitos de funcionamento do cúmulo jurídico, obedecer-se às regras de punição do concurso de crimes estão previstas nos artigos 77.º e 78.º do Código Penal, para além do que dispõe o artigo 77.º, n.º 1, deste Código que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única.

XIX. Conforme deste preceito resulta, o pressuposto essencial para a realização do cúmulo jurídico de duas (ou mais) penas é a prática de várias infrações pelo mesmo arguido antes do trânsito em julgado de qualquer das condenações, ou seja, antes do trânsito da primeira condenação a que venha a ser sujeito.

XX. Sempre com a devida vénia, por opinião diversa, o que se faz corresponder, ter o Tribunal “a quo” não considerado os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto concreto de forma assertiva ou tê-lo pelo menos, feito de forma errónea, imputando ao recorrente mais e maiores responsabilidades, do que efetivamente este teve em todo o processo.

XXI. Ora, no caso concreto, cumpre apenas proceder ao cúmulo jurídico das penas a que o arguido foi condenado neste processo e no processo 195/20.7.... E, sendo este o tribunal da última condenação, é este o Tribunal recorrido, o competente para proceder ao cúmulo, nos termos do disposto no artigo 471.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

XXII. Entendeu-se igualmente, que para proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares em causa, deverá considerar-se que, de acordo com os critérios enunciados no já citado artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, as penas únicas a aplicar ao arguido apresentam os seguintes limites:

XXIII. Como limite máximo: 10 (dez) anos e 2 (dois) meses (correspondente à soma das penas parcelares de 4 anos e 2 meses, 4 anos e 2 meses e 1 ano e 10 meses)

XXIV. Como limite mínimo: 4 anos e 2 meses (correspondente à pena parcelar mais elevada).

XXV. Neste sentido, veio o Tribunal “a quo”, com vista à determinação concreta da pena unitária, em que se impunha, agora, reapreciar os factos em conjunto com a personalidade do arguido (cfr. artigo 77.º, n.º 1, in fine, do Código Penal).

XXVI. Ora, atenta a formulação do cúmulo jurídico efetuada pelo Tribunal “a quo”, em que atende aos critérios enunciados no n.° 2 do artigo 71.° do Código Penal que se reflitam na personalidade do arguido (tais como as condições pessoais do agente ou os seus antecedentes criminais) e há de encontrar-se dentro dos limites impostos pelas exigências de prevenção geral positiva e de prevenção especial positiva que o caso concreto imponha, sendo certo que, em caso algum, a pena poderá ultrapassar a medida da culpa (artigos 40.º e 71.º, n.º 1, do Código Penal). E, considerado no caso vertente, as penas parcelares aplicadas ao arguido, a natureza dos factos, a reiteração criminosa e os fins de prevenção geral e especial das penas.

XXVII. Entendeu o Tribunal “a quo” no caso estão em causa crimes de furto qualificado e um crime de ofensa à integridade física qualificada, independentemente de o arguido já ter antecedentes criminais por crime de roubo.

XXVIII. Atento também o facto, de o Tribunal “a quo” ter determinado que: “os factos ocorrem em agosto de 2019 e março de 2020 (pouco depois de o arguido ter sido restituído à liberdade em julho de 2018).

XXIX. E, concomitantemente decidiu que as penas em concreto aplicadas situam-se num patamar mediano, tendo em conta as penas abstratas aplicáveis aos crimes em apreço e aos antecedentes criminais do arguido, sendo, todavia, necessário que por via da pena o arguido se consciencialize da gravidade dos seus comportamentos e a compreender a gravidade que os mesmos podem ter para terceiros.”

XXX. Apesar de o Tribunal “a quo” ter no caso concreto, para além do ali referido quanto às exigências de prevenção geral, e atendendo ao alarme social criado por este tipo de criminalidade, decidiu o Tribunal recorrido, que: “há que ter em consideração, relativamente à prevenção especial, que o arguido registou uma infância e adolescência marcada pela morte da mãe aos 4 anos e pela conflitualidade com o pai, sendo que ainda assim, completou a escolaridade obrigatória e trabalhou de forma regular e contínua, sendo que, todavia, o consumo de estupefacientes determinou um estilo de vida destruturado, desemprego e situação de indigência, como se verificava à data da sua atual reclusão.”

XXXI. E, tendo a determinação da pena única depende essencialmente da avaliação que se faça da personalidade unitária do agente, em conjugação com a globalidade dos factos.

XXXII. No caso concreto, para além das exigências de prevenção geral e especial supra referidas, há que ter em consideração o modo de execução dos factos e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente.

XXXIII. E, bem assim, regista-se o facto de neste aspeto o tribunal recorrido ter tido em consideração o lapso temporal desde que os factos ocorreram, a heterogeneidade dos crimes em causa e a gravidade dos mesmos, o respetivo contexto e consequências, os antecedentes criminais do arguido e a personalidade do arguido manifestada nos factos.

XXXIV. Em suma, não pode nunca o Recorrente, conformar-se com a decisão do Tribunal recorrido quanto ao facto de ter se julgado, assim, adequada à culpa do arguido e às exigências de prevenção que no vertente caso revelou a pena única de 6 (seis) de prisão.

XXXV. Como se tem reafirmado, para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o citado art.º 71.º, n.º 2, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo praticado pelo arguido.

XXXVI. Ora, no caso concreto, cumpre apenas proceder ao cúmulo jurídico das penas a que o arguido foi condenado neste processo e no processo 195/20.7.... E, sendo este o tribunal da última condenação, sempre seria este o Tribunal recorrido, o competente para proceder ao cúmulo, nos termos do disposto no artigo 471.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

XXXVII. Requer-se pois a V. Exas tenham em consideração o facto de o recorrente ter colaborado sem restrições, em sede de audiência e julgamento, tendo em consideração a difícil infância a que esteve sujeito e a idade do mesmo.

XXXVIII. Pelo que reitera-se, deve a decisão de 1.ª instância, ser integralmente revista no que ao aqui recorrente concerne, nomeadamente quanto à qualificação jurídica dos factos, reduzindo-se a pena ao recorrente, em obediência aos Princípios da Igualdade, Proporcionalidade, Proibição do Excesso e Adequabilidade.

4. Ponto prévio.

No seu recurso, o arguido, entre outro argumentário, faz referência, por diversas vezes, à existência, por um lado, de dúvida razoável, de que os factos ora em análise, ocorreram efetivamente conforme consignados e como se pretendeu serem demonstrados e, por outro, à necessidade de alteração da qualificação jurídica dos factos.

Em ambos os casos e pese embora tais referências, o recorrente acaba por das mesmas retirar apenas a conclusão jurídica da necessidade de reponderação da pena única, por violação dos princípios de Igualdade, Proporcionalidade, Proibição do Excesso e Adequabilidade.

Como é bom de ver, não só este STJ apenas aprecia matéria de direito e não de facto, como a verdade é que estamos perante recurso interposto não dos vários acórdãos condenatórios, que sentenciaram o arguido pela prática dos ilícitos supramencionados, mas antes do acórdão que se debruçou sobre o cúmulo jurídico que havia a realizar, em resultado de tais condenações prévias.

Assim, não restam quaisquer dúvidas que os factos que se mostram enunciados no acórdão recorrido, decorrem – como a lei impõe – da factualidade definitivamente dada como assente nos acórdãos anteriormente proferidos.

Essas decisões mostram-se, há muito, transitadas em julgado, pelo que o que nas mesmas consta – onde se incluem, obviamente, os factos dados como assentes – não é já passível de reapreciação em sede de recurso ordinário; isto é, mostra-se tal factualidade definitivamente adquirida para efeitos do cúmulo jurídico a realizar.

De igual modo, também a qualificação jurídica que foi obtida em cada uma dessas decisões, se mostra definitiva, não sendo já susceptível de ser aqui reponderada ou alterada, precisamente por força do trânsito em julgado há muito ocorrido.

Temos, pois, que quanto a este argumentário, não irá este tribunal proceder a qualquer análise quer factual, quer de enquadramento jurídico, pelas razões expostas, já que apenas lhe cabe, no presente, analisar as questões relativas ao eventual erro de determinação da pena única alcançada pelo tribunal “a quo”, que o recorrente invoca.

5. Apreciando.

A este respeito, o recorrente assenta a sua discórdia quanto ao decidido, no que toca à dosimetria da pena única imposta, que considera excessiva, essencialmente nas seguintes razões:

- sempre colaborou com a justiça, colaborando no esclarecimento dos factos;

- manifestou ter capacidade de auto análise e sentido crítico, tendo já assimilado o desvalor das condutas para tanto não mais voltar a ter aquele ou outro comportamento no âmbito criminal;

- mostrou arrependimento; e

- teve uma infância difícil e, no entanto, completou a escolaridade básica e trabalhou, até ter sucumbido à adição.

6. Cabe começar por realçar que, a respeito da determinação da pena (seja esta a pena parcelar ou única), rege o princípio da pessoalidade. Tal princípio impõe que a pena seja aplicada de um modo individualizado, tendo em conta a situação pessoal, económica, social específica da pessoa visada, bem como a apreciação crítica de todo o seu circunstancialismo actuativo. Assim, a pessoalidade e individualização da pena são uma consequência do princípio da culpa e valem para qualquer sanção penal.

As penas devem ser impostas atendendo a três vértices fundamentais, designadamente:

- adequação - a pena deve ser apropriada para atingir os fins pretendidos pela lei, como prevenção, repressão ou ressocialização;

- necessidade - a opção punitiva deverá recair pela medida menos gravosa que ainda seja capaz de atingir o objectivo pretendido;

- e proporcionalidade - que constitui um limite ao poder punitivo do Estado, protegendo a dignidade humana e os direitos fundamentais do próprio arguido.

Assim, a pena deve ser proporcional ao mal causado pelo crime, mas não pode exceder a culpa do agente.

Importa igualmente atender às exigências de prevenção geral e especial, que regem igualmente os fins das penas.

Na prevenção geral utiliza-se a pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos - prevenção geral negativa – e para incentivar a convicção na sociedade, de que as normas penais são válidas, eficazes e devem ser cumpridas, – prevenção geral positiva.

Na prevenção especial, a pena é utilizada no intuito de dissuadir o próprio delinquente de praticar novos crimes e com o fim de auxiliar a sua reintegração na sociedade.

7. Na determinação da pena única haverá que atender-se ao conjunto dos factos dados como provados, pois estes fornecem o quadro que permite avaliar a gravidade do ilícito global cometido, mostrando-se especialmente valiosa para a sua apreciação a verificação de qual o tipo de conexão que ocorre entre os factos concorrentes.

No que se refere à avaliação da personalidade do agente, esta deve debruçar-se sobre se, face ao conjunto dos factos praticados, estaremos perante uma tendência criminosa ou tão-só, perante uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade. Esta distinção tem revelo porque, no primeiro caso, terá de se considerar que o cometimento de uma pluralidade de crimes constitui uma agravante em sede da moldura penal conjunta.

Como refere Souto Moura (A jurisprudência do STJ sobre Fundamentação e Critérios de Escolha e Medida da Pena, comunicação proferida em acção de formação do CEJ que teve lugar na Faculdade de Direito do Porto em 4 de Março de 2011, acessível em www.stj.pt/ficheiros/estudos), a propósito da pena conjunta aplicável ao concurso de crimes, ponderar em conjunto os factos é atender, fundamentalmente, à ilicitude global de toda a conduta do agente em análise (….) A conexão entre os factos, e a abordagem destes, independentemente de quem os praticou, releva sobretudo para efeitos de prevenção geral. A gravidade dos vários crimes cometidos, a frequência com que eles ocorrem na comunidade e o próprio impacto que têm nessa comunidade, terão, pois, que ser tidos em conta.

8. Temos pois, em breve síntese, que a pena a impor deverá, por um lado, atender à tutela dos bens jurídicos, na medida do possível à reinserção do agente na comunidade e o seu limite mostra-se tabelado pela culpa do agente (artº 40 do C.Penal), o que bem se entende, uma vez que qualquer pena corresponde a uma sanção, uma acção punitiva do Estado, que se tem de revelar adequada, necessária e proporcional.

E a baliza máxima da culpa, referida pelo legislador, não tendo por fim a imposição de um mal ou sofrimento equivalente ao mal cometido ou sofrimento causado (como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira, in Direito Penal Português, II, Lisboa, 1982, pgs. 309 e 310), é, todavia, a expressão de que a punição que o Estado pode impor a um seu cidadão, não pode exceder a própria culpa com que este actuou.

A entender-se de outro modo – isto é, que outros fins das penas, designadamente a nível de prevenção geral ou especial, se sobrepusessem a esse limite máximo de culpa própria – estar-se-ia a viabilizar que, por eventual pressão societária, se mostrasse possível cercear um direito fundamental do cidadão, o direito à liberdade, sem imposição de um limite constitucional e ético, dentro dos padrões que regem a nossa vida em sociedade; isto é, viabilizar-se-ia a imposição de uma sanção, que tem um efeito punitivo associado, já que restringe os direitos consagrados no nº1 do artº 27 da CRP, desproporcional à culpa com a qual o agente actuou.

9. De facto e em última análise, é a existência de culpa geradora de um comportamento violador de um bem juridicamente tutelado, em sede criminal – manifeste-se esta na forma de dolo ou de negligência – que viabiliza, que legitima, num estado de direito, que o Estado possa assumir um direito punitivo sobre um seu cidadão.

Esse direito punitivo assume a característica de uma sanção, de uma pena, cujo cumprimento forçado é imposto ao agente causador de um mal, que atentou contra bens jurídicos alvos de tutela legal.

E é precisamente dentro deste contexto, de uma actuação que provoca culposamente um mal ilegítimo, que se sustém e funda a legitimidade de o Estado poder, por seu turno, vir a sancionar o agente prevaricador, com a imposição de algo que, em última análise, é também ele um mal, já que a imposição de uma pena cerceia sempre, em alguma medida, algum dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente estabelecidos.

10. Acresce que, consubstanciando-se o instituto do recurso num remédio jurídico, no sentido de permitir a colmatação de eventuais erros de apreciação, imputáveis aos tribunais hierarquicamente inferiores, daqui decorre que a alteração das penas que se mostram já definidas só deverá ocorrer se, de facto, um erro assinalável, a reclamar reparação, se venha a constatar existir.

A este respeito veja-se, por todos, o acórdão do STJ, processo nº19/08.3PSPRT, 3ª secção, relator Raúl Borges, de 14-05-2009, disponível em www.dgsi.pt:

Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 196/7, § 255, após dar conta de que se revela uma tendência para alargar os limites em que a questão da determinação da pena é susceptível de revista, afirma estarem todos de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda estar plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e relativamente à determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, esta será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.

A intervenção do Supremo Tribunal em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras de experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, in Sumários, de 30-10-2003, CJSTJ 2003, 3, 208, de 11-12-2003, processo 3399/03-5ª, de 04-03-2004, processo 456/04-5ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, 220, de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 229 e 235, de 15-11-2006, 2555/06-3ª, de 14-02-2007, processo 249/07-3ª, de 08-03-2007, processo 4590/06-5ª, de 12-04-2007, processo 1228/07-5ª, de 19-04-2007, processo 445/07-5ª, de 10-05-2007, processo 1500/07-5ª.

11. Posto este intróito, cumpre apreciar.

12. Face aos factos provados, temos que o arguido, no período temporal de cerca de 1 ano, cometeu dois crimes de roubo qualificados e um crime de ofensa à integridade física qualificada.

Estes crimes foram praticados pouco depois de o arguido ter sido restituído à liberdade, o que havia ocorrido em Julho de 2018.

O arguido actuou sempre com dolo directo.

As penas parcelares impostas situam-se dentro da mediania face às molduras penais respectivas.

A moldura da pena, em sede de cúmulo jurídico baliza-se do seguinte modo:

– Limite máximo: 10 (dez) anos e 2 (dois) meses (correspondente à soma das penas parcelares de 4 anos e 2 meses, 4 anos e 2 meses e 1 ano e 10 meses)

– Limite mínimo: 4 anos e 2 meses (correspondente à pena parcelar mais elevada)

13. No que concerne às circunstâncias que o recorrente invoca, constata-se que, no que toca à questão da sua situação pessoal durante a infância, escolaridade, trabalho e desestruturação posterior, resultante da sua adição, o tribunal “a quo” já à mesma atendeu e sopesou, não se vislumbrando que, pese embora todas estas circunstâncias tenham uma vertente atenuante, as mesmas sejam de tal modo significativas que nos permitam concluir determinarem, forçosamente, um maior peso redutor, no cálculo da pena única.

Infelizmente, a situação pessoal do arguido, neste particular, não é muito diversa da de milhares de outros cidadãos que, não obstante, estruturam a sua vida (embora para tal tenham de enfrentar maiores dificuldades, seguramente, do que outros em circunstâncias mais afortunadas) de acordo com o direito.

14. No que toca à sua colaboração com a justiça e o arrependimento que afirma, a verdade é que nenhuma dessas circunstâncias resulta quer da matéria de facto provada, quer da mera leitura dos acórdãos condenatórios ora cumulados.

Como bem refere o Exº PGA, não se verifica a existência de factos nesse sentido dados como provados. E não se verifica na decisão recorrida nem, como se pode observar da sua leitura, nas decisões englobadas no cúmulo:

- no processo 195/20.7... apresentou, em audiência, versão dos factos que não foi coincidente com a dada como provada pelo coletivo, tentando desresponsabilizar-se da autoria do crime de roubo pela qual acabou condenado; e

- o julgamento no processo 231/19.0... decorreu na ausência do arguido, pois que o mesmo ali não compareceu, não obstante para o mesmo devidamente notificado; e, na decisão, não há qualquer referência a colaboração ou arrependimento do arguido.

15. Finalmente, no que se refere à invocada e presente capacidade de auto análise e sentido crítico, com assimilação do desvalor das suas condutas, de igual modo teremos de concluir não se mostrarem os mesmos minimamente indiciados ou demonstrados, face à análise das decisões condenatórias.

Efectivamente, as audiências de julgamento teriam sido o local ideal para demonstrar essa sua vontade de mudança de vida e, como se viu, a sua postura foi, num caso, de desculpabilização da sua conduta, negando-a e, num outro, de puro e simples desinteresse e desrespeito pelas instituições da justiça, ignorando a notificação para comparecer ao seu próprio julgamento.

Por seu turno, a circunstância de, há poucos meses, ter praticado uma infracção disciplinar, não ajuda a consolidar, convenhamos, a noção da ocorrência de uma epifânia na sua vida, antes parecendo demonstrar que a sua visão, no que toca aos seu percurso de vida, se mantém nos parâmetros em que decorreu nos últimos anos, desde a sua reclusão e saída da prisão em 2018, até ao momento presente.

Temos, pois, que, no que se refere à mudança de paradigma de vida que invoca, não vislumbramos de que factualidade se poderia extrair tal conclusão.

16. Atento o que se deixa dito, a que acresce o que o tribunal “a quo” já deixou exarado no acórdão que proferiu, cujo teor acima se mostra transcrito e ao qual damos o nosso pleno apoio, não se vislumbra que a pena única imposta ao arguido mereça a crítica que aquele lhe dirige, antes se revelando adequadamente fixada, atentas as circunstâncias do caso.

Assim, a pretensão do recorrente, tem forçosamente, de soçobrar.

iv – decisão.

Pelo exposto, acorda-se em considerar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a TJ em 5 UC.

Dê imediato conhecimento ao tribunal “a quo” do teor deste acórdão, advertindo que a decisão ainda se não mostra transitada em julgado.

Lisboa, 28 de Maio de 2025

Maria Margarida Almeida (relatora)

António Manso

Antero Luís