Tendo em atenção que o indivíduo visado pelos três disparos a três metros de distância fugiu sem evidências de ter sido atingido e que, ao contrário do que a instância valorou, não está demonstrado que o arguido, após os disparos, tenha ido em perseguição da vítima com 2 pistolas, nem que os tiros tivessem sido disparados num arruamento relativamente movimentado da cidade, que estivesse mais gente presente ou que houvesse qualquer perigo para terceiros e desprezo pela integridade física de outros transeuntes ou moradores, mobiliário urbano e outros bens, revela-se uma ilicitude mediana e justifica-se uma redução da pena de 9 anos de prisão para 7 anos de prisão, pelo crime de homicídio agravado na forma tentada, p. e p. pelos art.s 22º, 23º e 131º do Código Penal e art. 86º nºs 3 e 4 da Lei 5/2006, de 23.2
I – RELATÓRIO
Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, o arguido AA, ajudante de pedreiro, filho de BB e de CC, natural de ..., nascido a ........1999,de nacionalidade ..., solteiro, residente na Avenida ..., atualmente preso Estabelecimento ... foi julgado e a final, condenado:
1. Pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio agravado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22º, 23º e 131º, todos do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3 e 4 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena parcial de nove anos de prisão;
2. Pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 86º, nº 1 c) e e), 2º, nº 1 p) e v) e nº 5 g), 3.º, n.º 2 l) e 4, al. a) e 4º, nº 1, do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena parcial de três anos de prisão.
3. Pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de produto estupefaciente de menor gravidade, previsto e punível pelos artigos 21º, nº1 e 25.º, n.º1, al. a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-A, I-B e I-C, anexas a este diploma, na pena parcial de três anos de prisão.
4. E, procedendo, nos termos dos artigos 77º e 78º do Código Penal, ao cúmulo jurídico das três penas parcelares ora aplicadas, na pena unitária de onze anos de prisão.
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Inconformado, o arguido recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões:
1ª O tribunal a quo violou o disposto na alínea a) do nº 2 do artigo71º do Código Penal, ao fixar a medida da pena com base num grau de ilicitude intenso.
2ª In casu, o grau de ilicitude não é reduzido, mas também não é elevado. Não se provando a intenção do arguido ao dar os 3 disparos, seria como resultado inequívoco de matar.
3ª Deste modo, apenas se pode concluir que o grau de ilicitude é moderado. Nem reduzido nem elevado.
4ª A sentença recorrida viola a alínea a) do nº 2 do artigo 71º do Código Penal também porque avaliou o modo de execução pela seguinte circunstância: “3 tiros à queima roupa”
5ª Ora, menos de 3 metros de distância não será de considerar a distância de queima-roupa.
6ª Em todo o caso, se fossem tiros à queima-roupa, o atirador não falharia o alvo dado à grande proximidade.
7ª O relatório social (artigo 370º do CPP) apenas vale quanto aos pontos que forem adotados pelo tribunal e que sejam transpostos para a matéria de facto provada. Na sentença recorrida, estão em causa os artigos 19 a 33 dos factos provados. O demais constante do relatório social não releva.
8ª O tribunal determinou a medida concreta da pena considerando os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram.
9ª Tal não se retira dos factos provados, a sentença considerou que o arguido “não demonstra, em momento nenhum, genuíno constrangimento do ato que enceta.”
10ª Assim, o tribunal violou o disposto na alínea d) do nº 2 do artigo71º do CP.
11ª Não se ignora que o arguido foi condenado pela prática de crime de detenção de arma proibida e de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
12ª Na operação de fixação da medida concreta da pena, atende-se ao disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal.
13ª O limite máximo fixa-se de acordo com a culpa do agente. O limite mínimo situa-se de acordo com as exigências de prevenção geral. Assim, reduz-se a amplitude da moldura abstratamente associada ao tipo penal em causa.
14ª A pena concreta é achada considerando as exigências de prevenção especial e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.
15ª A moldura penal abstrata para o crime de homicídio agravado na forma tentada é de 2 anos, 1 mês e 18 dias e máxima de 14 anos, 2 meses e 20 dias.
16ª A pena não pode ultrapassar a medida da culpa, sob pena de se atingir a dignidade da pessoa humana, pelo que tal limite encontra consagração no artigo 40º do Código Penal.
17ª Não foi provada a motivação do arguido, sendo que a sua remissão ao silêncio não pode prejudicá-lo, não podendo ser retiradas quaisquer consequências probatórias da matéria da acusação.
18ª Não existindo testemunhas oculares dos fatos relatados, estando o visionamento de imagens sujeito a interpretação subjetiva conforme a visualização de um filme.
19ª A medida da culpa do arguido impõe que a pena não seja superior a 6 anos de prisão.
20ª As exigências de prevenção geral não justificam que o limite mínimo ultrapasse o que é estabelecido pela moldura abstrata: 2 anos. 1 mês e 18 dias.
21ª Felizmente, em Portugal, os assassinatos não ocorrem com tanta frequência que permitam qualificar tal fenómeno como um verdadeiro flagelo, que importa estancar pela aplicação de penas mais severas, como sucede com os roubos, abusos sexuais, a corrupção, que se tendem a banalizar.
23ª Não se pode genericamente afirmar, como se faz na sentença, que o arguido tinha intenção inequívoca de matar. Não é sempre assim.
24ª A sua conduta poderá revelar que o mesmo sabia e conformou-se que a sua atuação poderia em última instância ter como consequência a morte do individuo, mas não que essa seria a sua intenção.
25ª Pelas razões já expostas, e que depõem a favor ou contra o arguido, há que afastar as seguintes, que constam da sentença em crise: a intensidade do ilícito assumir uma intensidade muito relevante; modo de execução: tiros à queima roupa; fâ-lo com desprezo pela vida da pessoa sobre a qual atirava; o arguido não demonstra, em momento nenhum, genuíno constrangimento do ato que enceta; e a conduta do arguido causa elevado alarme social e revela sentimentos de elevada antissociabilidade, pelo que as exigências de prevenção especial são muito elevadas.
26ª Há, sim, que considerar o que figura na matéria de facto dada como provada e que se enquadram nomeadamente nas elencadas no nº 2 do artigo 71º do CP.
27ª O grau de ilicitude há-de ter-se por moderado, conforme anteriormente exposto.
28ª O modo de execução não depõe contra o arguido. Aliás, encontra-se provada a sua limitação ao nível da força física e algumas dificuldades no braço direito devido a sequelas nas vertebras cervicais C1 e C2, decorrentes da intervenção cirúrgica de que foi alvo, a 28 de maio de 2019, em Portugal.
29ª Relativamente aos motivos, não estão provados.
30ª Das condições pessoais do arguido, retiram-se que se encontra preso preventivamente, tem reduzido apoio familiar uma vez que a única figura familiar, a mãe encontra-se a residir em ..., de onde o arguido é natural.
31ª No contexto prisional o arguido não tem o acompanhamento necessário à sua condição clínica o que pode em muito prejudicar a sua recuperação e um futuro profissional.
32ª As necessidades de prevenção geral não tornam lícito elevar o limite mínimo resultante da moldura abstrata do tipo: 2 anos, 1 mês e 18 dias
33ª As acentuadas exigências de prevenção geral associadas a um conjunto de circunstâncias que pesam a favor do arguido e contra ele, levam a que a pena concreta se fixe entre o limite mínimo de 5 anos e 6 meses de prisão e o limite máximo de 7 anos de prisão, e, portanto, em medida não superior a 6 anos de prisão.
34ª Os artigos 40º, 71º e 131º do Código Penal implicam uma condenação a pena não superior a 6 anos de prisão
35ª Condenando o arguido a 9 anos de prisão, o tribunal a quo violou o disposto nesses preceitos legais.
36.º Ora, o arguido é julgado e condenado, neste acórdão, por 3 crimes e que estão, assim, numa relação de concurso.
37.º Pelo que deverá se julgar adequado que a pena única global a aplicar seja de 9 (nove) anos de prisão, na mesma proporção da anteriormente aplicada.
Nestes termos, e nos demais de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência ser a pena do crime de homicídio agravado na forma tentada de 9 anos de prisão ser reduzida a pena de 6 anos de prisão, e no cúmulo jurídico de penas, ser aplicada ao arguido a pena única global não superior a 9(nove) anos de prisão.
Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público, concluindo “pelo acerto do douto acórdão recorrido e, concomitantemente, pela não violação de qualquer dispositivo legal”.
*
Neste Supremo Tribunal de Justiça o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer dizendo:
A)-Medida de pena parcelar.
(“Homicídio”, agravado, sob a forma tentada).
1 Não concorda o arguido, ora recorrente, com a pena de 09 anos de prisão aplicada ao crime de “homicídio”, agravado, sob a forma tentada, que considera excessiva, pugnando por pena não superior a 6 anos de prisão.
2 E fá-lo apelando, no essencial:
À ausência de intenção de matar;
À questão do arrependimento;
À distância do tiro;
À falta de prova dos motivos.
3 Alega, pois, o arguido, ora recorrente, em vista da negação, nos factos-provados, do dolo directo, que não se provou que tenha agido com intenção de matar.
4 Alegação, contudo, de todo descabia e desenquadrada do ponto de vista jurídico-processual-penal-recursivo:
Seja porque a intenção de matar consta do facto-provado 15. (enquadrado, lógico-experimentalmente pelos factos -provados 3. a 5.);
Seja porque da (implicitamente) pugnada alteração de facto – tendo em vista, no mínimo, a mera condenação pelo “homicídio”, agravado, a título de dolo necessário, ou até, eventual por via do inábil e deslocadamente invocado(?) erro de julgamento da questão-de-facto) –, pretende o recorrente extrair o vício de erro-de-direito, por pretensa violação das disposições penais atinentes à fixação da pena concreta.
5 Tarefa claramente votada ao fracasso, segundo cremos, porque assente numa falsa questão-de-direito, por pressupor a alteração do decidido nesta matéria no pressuposto da prévia alteração da questão-de-facto apurada.
6 Também cremos que os disparos (a cerca de 03 metros do visado) não foram deflagrados à queima-roupa, com todo o respeito:
Tiro à “queima-roupa” significa um disparo efectuado a uma curta distância (por regra até cerca de 75cm da vítima, para armas de cano curto), tão próxima que os gases e a pólvora em combustão queimam a pele e a roupa, causando lesões típicas, como zonas de tatuagem, esfumaçamento e queimaduras (veja-se, nesta matéria, Carlos Lopes, in “Medicina Legal”, 7ª Ed., 1982, págs. 368ss).
7 Mas essa questão não é decisiva no âmbito da fixação da pena: Disparados três tiros dirigidos contra o tronco da vítima, se o tivessem sido à queima-roupa, estaria, quase certamente, o arguido a ser julgado por lhe tirar a vida, por “homicídio” consumado.
8 A falta de arrependimento ou constrangimento do arguido não consta expressamente dos factos-provados, mas é inegável que o Colectivo – embora em sede de fundamentação da medida da pena – teve a percepção dessa circunstância de facto, dando-a por assente.
9 Nesta medida – e porque o arguido sempre poderia tê-la incluído num recurso da matéria-de-facto, a interpor para o Tribunal da Relação –, tal facto (provado) foi validamente valorado pelo Tribunal “a quo” em sede de determinação da pena concreta.
10 A falta de comprovação da motivação da vítima não significa, por outro lado, que o Tribunal recorrido tenha valorado, de qualquer modo, tal lacuna da matéria-de-facto em desfavor do arguido, ora recorrente – julgar não é a procura do Absoluto, mas a busca de uma verdade prático-jurídica, do real-social, com a densificação suficiente para a criteriosa aplicação do Direito.
11 Por fim, contrapomos nós, todavia, que as concretas circunstâncias da prática do crime em questão, com relevância ao nível da formulação dos juízos de ilicitude e de culpa – valoradas, pois, à luz dos critérios tipológicos previstos na disposição do art. 71º do Código Penal para a determinação da pena –, permitem a conclusão de que a pena parcelar concretamente aplicada se mostra, adentro da sua moldura abstracta – 02 anos, 01 mês e 18 dias a 14 anos, 02 meses e 20 dias de prisão –, justa e criteriosa (de acordo com ditames de necessidade, adequação e proporcionalidade), dando expressão acertada às exigências da prevenção geral e especial, integrada aquela pela ideia da culpa.
12 Concretizemos:
A amplitude da moldura penal abstracta;
A firmeza da vontade criminosa revelada pelo arguido, que, depois de falhar os três tiros, ainda perseguiu a vítima empunhando duas pistolas municiadas;
A ausência de arrependimento;
A idade do arguido (nascido em 1999) – já bem saído da adolescência à data da prática dos factos –, ter-lhe-ia permitido (assim o quisesse) procurar abraçar um projecto de vida pessoal e socialmente responsável;
Os crimes dessa natureza produzem forte alarme social – cometido em zona densamente povoada e/ou frequentada (uma das artérias centrais da ..., cerca das 23.30 horas, em pleno Verão, sem inibições ou hesitações, com a evidente convicção da imposição da vontade e capricho individuais sobre o alento de uma “plateia” de transeuntes que, inevitável e irremediavelmente, assistiram, como meros espectadores (e potenciais vítimas), impotentes, a um acto de descarado menosprezo dos valores ético-jurídicos caros à comunidade.
*
Não foi violada a disposição do art. 71º do Código Penal.
B)-Medida da pena única.
13 Com todo o respeito, impõe-se-nos tão-somente dizer que esta é questão praticamente prejudicada, em face das penas parcelares concretamente aplicadas ao arguido ora recorrente, em especial a de 09 anos de prisão (relativa ao crime de “homicídio”, agravado, sob a forma tentada) – e no pressuposto da improcedência do recurso nessa parte –, considerando as regras relativas à formação da pena única (cfr, art. 77º/2 do Código Penal).
III Em síntese:
O Colectivo aplicou pena parcelar (e única) justa e criteriosa pelo crime de “homicídio”, agravado, sob a forma tentada;
A fixação da pena única é uma questão, em concreto, prejudicada.
IV Em conclusão:
Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:
Deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente, sendo de manter os termos da decisão recorrida.
Não foi apresentada resposta ao Parecer.
*
Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (art.s 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal).
II – FUNDAMENTAÇÃO
Recorre-se directamente para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos dos nºs 2 e 3 do art 410º do Código de Processo Penal (art. 432º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal).
Tendo em consideração o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência 5/2017, de 23 de Junho, a competência do Supremo Tribunal de Justiça é, in casu, inquestionável.
É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
*
O Recorrente não argui expressamente a existência de nulidades ou vícios e, analisado o acórdão recorrido, não se encontram nulidades ou vícios de conhecimento oficioso (art.s 379º e 410º do Código de Processo Penal).
O Recorrente não questiona a sua condenação pelos crimes de detenção de arma proibida e de tráfico de produto estupefaciente de menor gravidade. As duas únicas questões colocadas são:
1. A medida da pena pelo crime de homicídio agravado na forma tentada; e,
2. A medida da pena única.
***
Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada:
Discutida a causa, o Tribunal considera provados os seguintes factos, com relevância:
1. No dia 26 de junho de 2023, pelas 23h26m, junto ao n.º 144 da Avenida ..., em ..., o arguido AA circulava apeado, munido de uma pistola semiautomática, da marca Browning destinada a propulsionar, através do acionamento simples do gatilho e, deste modo, da carga propulsora, projéteis de calibre 6,35mm, com munições no carregador e munido de uma pistola semiautomática, de marca Ruger MK 2, com o número de série rasurado, destinada a propulsionar, através do acionamento simples do gatilho e, assim, da carga propulsora, projéteis de calibre .22, (também municiada).
2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido, ao avistar, na referida artéria, a presença de dois indivíduos de identidade não concretamente apurada, deslocou-se na direção dos mesmos.
3. Quando um destes indivíduos se encontra a atravessar uma passadeira ali existente, o arguido, quando está a pouco mais de 3 metros daquele, empunhou e apontou-lhe, em direção ao tronco, a pistola de calibre 6,35mm e efetuou, pelo menos, 3 disparos.
4. Nesse instante, aquele indivíduo não identificado encetou fuga do local a correr, evitando ser atingido no seu corpo com os tiros disparados.
5. Tais disparos apenas não atingiram o corpo do referido indivíduo por razões alheias à vontade do arguido e porque aquele, em fuga, correu após o primeiro disparo.
6. Nesse mesmo dia, no momento da abordagem pelos Agentes da PSP, o arguido AA tinha, na sua posse, as armas de fogo mencionadas em 1., a primeira com três munições no carregador e a segunda (de marca Ruger), com 9 munições no carregador.
7. Pela 00h30m, do dia 27 de junho de 2023, o arguido tinha, na sua residência, sita naquela Avenida ...
No interior do quarto:
• diversas embalagens contendo no seu interior cocaína, com o peso líquido global de 3,070gr/, com o grau de pureza de 52,4%, correspondente a 54 doses individuais (atento o consumo médio individual);
• diversas embalagens contendo, no seu interior, heroína, com o peso líquido global de 5,546gr/l, com o grau de pureza de 19,2%, correspondente a 10 doses individuais;
• várias embalagens contendo, no seu interior, Canábis (resina), com o peso líquido global de 70,084gr/l, com o grau de pureza de 24,7%, correspondente a 15 dores individuais;
• um tabuleiro com resíduos de Canábis;
• uma balança de precisão com resíduos de Canábis;
• uma navalha com resíduos de Canábis;
• uma faca com resíduos de Canábis;
• duas lâminas de X-acto com resíduos de Canábis;
• um frasco de amoníaco;
• a quantia de 105,00€ fracionada em notas de € 20,00 e € 5,00;
• dois relógios de marca Techno Time e Stainless Steel;
• um telemóvel de marca Iphone;
• um telemóvel de marca Samsung, Duos;
• um telemóvel de marca LG;
• Sacos plásticos zip;
• um par de luvas;
• um fio dourado;
• uma pulseira dourada;
• 19 munições de calibre .22mm;
• e uma pistola de alarme 8mm, marca FT, modelo GT28, com cano obstruído após a câmara, apresentando um orifício localizado superiormente, sem fecho de segurança e sem mola recuperadora da corrediça e respetiva mola, com carregador inoperante.
8. O arguido AA não possuía licença de uso e porte de arma, ou outra, para qualquer tipo de arma de fogo, nem possuía armas registadas em seu nome.
9. O arguido conhecia as características estupefacientes e a natureza proibida dos produtos que detinha e que destinava à venda a consumidores e a ceder a terceiros.
10. O arguido bem sabia que a sua mera detenção, venda e cedência, lhe eram proibidas, uma vez que para tal não estava autorizado e, ainda assim, não se coibiu de o fazer voluntariamente.
11. A balança digital, as navalhas, facas, x-atos, tabuleiro e sacos apreendidos eram utilizados pelo arguido para a preparação, pesagem, embalamento e adulteração das doses individuais de produto estupefaciente, que destinava à venda a terceiros.
12. O amoníaco era utilizado para a preparação de doses individuais de produto estupefaciente que depois destinava a vender a consumidores.
13. A quantia monetária apreendida foi obtida pelo arguido no âmbito da sua atividade de venda de produto estupefaciente.
14. Os telemóveis, relógios, fios e pulseiras foram obtidas pelo arguido no âmbito da sua atividade de venda de produto estupefaciente tendo sido recebidos pelo arguido como contrapartida das entregas de tais produtos que fazia a terceiros.
15. Atento o circunstancialismo descrito e fazendo uso de arma de fogo, o arguido bem sabia que os tiros que disparou poderiam atingir o indivíduo que se encontrava perto de si, querendo atentar contra a sua vida, disparando para o tronco, zona onde se encontram alojados órgãos vitais.
16. Apenas não conseguindo matá-lo por motivos alheios à sua vontade.
17. Mais, conhecia o arguido as características das armas e munições que detinha, que são suscetíveis de serem usadas como armas de agressão e sabia que a detenção, transporte e uso destes instrumentos não são permitidos por lei, não os podendo assim deter sem justificação, e mesmo assim não se inibiu de os ter consigo, o que quis e conseguiu.
18. O arguido AA agiu, em tudo, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
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19. O arguido nasceu em ... no seio de uma família constituída pelos pais, sendo aquele o filho mais novo de uma fratria de três irmãos.
20. O agregado familiar vivia com dificuldades económicas e num ambiente familiar marcado pelos problemas de alcoolismo do pai.
21. O arguido queixa-se de ter sido alvo de maus tratos pelo pai.
22. O arguido concluiu, naquele país, o 9.º ano de escolaridade, tendo abandonado o percurso escolar aos 18 anos de idade.
23. Apresenta um percurso escolar pautado por retenções, absentismo e problemas de comportamento tendo sido alvo de acompanhamento psicológico em ....
24. O arguido, na data supra descrita, residia num quarto arrendado, partilhado com amigos, naquela morada da ....
25. O arguido veio de ... para Portugal com cerca de 18 anos de idade, com a sua mãe, por forma a obter melhores condições de vida, por motivos de saúde e a fim de se afastar de situações problemáticas em que se encontrava no seu país de origem.
26. Após o regresso da mãe para Cabo Verde, o arguido emigrou para França onde permaneceu cerca de um ano, com familiares residentes nesse país, tendo regressado, posteriormente, a Portugal.
27. Nesta fase, passou a gerir a sua vida de acordo com os seus interesses e sem a presença da mãe, que era a figura de referência familiar de apoio.
28. Ao nível profissional, na data indicada em 1., o arguido não desempenhava qualquer atividade profissional lícita.
29. Era ajudado economicamente pela mãe, que lhe enviava, de Cabo Verde, cerca de € 250,00 por mês.
30. O percurso laboral do arguido é de reduzida expressividade, marcado por instabilidade e vínculos precários.
31. Desenvolveu trabalhos de curta duração no MARL e no setor da construção civil profissional, em França.
32. O arguido tem necessidade de acompanhamento médico por limitações, de grau não concretamente apurado, ao nível de força física e algumas dificuldades no braço direito devido a sequelas nas vertebras cervicais C1 e C2, decorrentes da intervenção cirúrgica de que foi alvo, a 28 de maio de 2019, em Portugal.
33. O arguido apresenta consumos precoces de haxixe, que desvaloriza, não os reconhecendo como problemáticos.
34. O arguido está preso preventivamente, desde 1 de fevereiro de 2024, no Estabelecimento ..., à ordem dos presentes autos.
35. No contexto prisional apresenta um registo de uma infração disciplinar datada de 25 de fevereiro de 2024, por “Deter, possuir, introduzir, proibir, fabricar, distribuir ou transacionar estupefacientes/substâncias toxicas” tendo-lhe, a 1 de agosto de 2024, sido aplicada a sanção disciplinar de 12 dias de Permanência Obrigatória no Alojamento (POA).
36. Encontra-se em fase de apreciação a aguardar decisão sobre outra infração alegadamente praticada em 8 de julho de 2024.
37. Tem revelado, assim, dificuldades de cumprimento das regras e normas institucionais.
38. O arguido encontra-se inativo no contexto prisional.
39. Nesse contexto prisional, tem vindo a contar com reduzido apoio familiar, registando à data, duas visitas da mãe, em períodos em que a mesma se deslocou a Portugal.
40. Recebe visitas de dois amigos.
41. O arguido foi condenado, em 11 de março de 2022, por sentença transitada em 15 de maio de 2023, no processo comum singular n.º 738/20.6..., do J..., do Juízo Local Criminal da ..., na pena de 300 dias de multa, pela prática de um crime de detenção de arma proibida.
42. E foi condenado em 5 de junho de 2023, por sentença transitada em 5 de julho de 2023, no processo abreviado n.º 988/22.0..., do Juiz ..., do Juízo Local Criminal da ..., na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, pela prática, em 29 de outubro de 2022, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
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Factos não provados, com relevância para a causa:
a. Que o arguido tenha concretamente visado a zona do abdómen;
b. Que a pistola marca FT, modelo GT28, fosse modificada ou transformada.
Quanto à “medida das penas”, o acórdão recorrido ponderou:
O arguido é condenado, como se viu, pela prática de crime de homicídio agravado na forma tentada, incorrendo na pena mínima de 2 anos, 1 mês e 18 dias e máxima de 14 anos, 2 meses e 20 dias.
É condenado pelo crime de detenção de arma proibida, previsto e punível com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
E é condenado por crime de tráfico de menor gravidade punível apenas com pena de prisão, de 1 a 5 anos.
Em sede de determinação das consequências jurídicas do crime e da reação criminal adequada, a culpa e a prevenção funcionam como critérios gerais orientadores da medida da pena, tendo esta, sempre, como limite, aquela, que é justamente o seu suporte. Relevantes para encontrar a "medida da culpa", são os próprios ilícitos típicos, enquanto apreciados nas suas consequências típicas, que lhe conferem uma certa "imagem" ou sentido social.
Posta a aplicação de duas penas em alternativa no que diz respeito ao crime detenção de arma proibida, haverá, pois, e antes de mais, que proceder à escolha da pena a aplicar ao arguido.
De acordo com o art. 70º do CP (com referência ao art. 40º), a alternativa entre a pena privativa e a pena não privativa da liberdade resolve-se em favor da segunda, sempre que ela se mostre suficiente para promover a recuperação social do agente e satisfaça as exigências de reprovação e de prevenção do crime.
Ora, o arguido não está integrado socialmente, sendo que o seu relatório social aponta muitas fragilidades e perigos para a sua reinserção.
Ressaltando além do mais, essas dificuldades dos seus antecedentes criminais.
O arguido foi condenado, anteriormente, por duas vezes, por um crime de detenção de arma proibida (com trânsito anterior aos factos ora sub judice).
E foi condenado, ainda, antes dos factos por crime de tráfico de menor gravidade, ainda que trânsito da sentença que o condenou ocorresse posteriormente.
O arguido não contribui ativamente para a descoberta da verdade material e não elabora um juízo de autocensura.
As exigências especiais são muito elevadas.
Assim, a pena de multa seria completamente desadequada à situação pessoal do arguido e à imagem global do seu comportamento.
A opção pela pena de prisão é, pois, necessária, adequada e proporcionada, à luz dos objetivos da prevenção geral e especial.
Para mais, sempre que na pena conjunta deva de ser incluída uma pena de prisão, tem a Jurisprudência do STJ – cfr. v.g., Ac. de 5/2/2004 - proc. 151/04, Ac. STJ 12/02/2009 – processo 090110 e Ac. 10/1/2003, processo nº 507/05.3GAER.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt –entendido que se impõe, “na medida do possível, não aplicar pena de multa a um ou mais dos demais crimes em concurso, por também aí se verificarem os inconvenientes geralmente atribuídos às chamadas «penas mistas» de prisão e multa”.
É que “uma tal pena «mista» é profundamente dessocializadora, além de contraditória com o sistema dos dias de multa: este quer colocar o condenado próximo do mínimo existencial adequado à sua situação económico-financeira e pessoal, retirando-lhe as possibilidades de consumo restantes, quando com a pena «mista» aquele já as perde na prisão!” (cfr. Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português – II – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 154).
Assim, limitados, por esta escolha, à aplicação de penas de prisão por cada crime cometido, importa, assim, determinar a medida da pena de prisão aplicável a cada crime, sendo sempre a medida da culpa e as exigências de prevenção a marcar o limite da pena (cfr. art. 71º do CP).
O artigo 71º, nº 2 do Código Penal, manda atender, para a determinação concreta da pena, “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a. O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b. A intensidade do dolo ou da negligência;
c. Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d. As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e. A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f. A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Do crime de homicídio na forma tentada
Visto o critério legal para a determinação da pena e a matéria que se deu por assente, entende-se que a intensidade do ilícito – ainda que da atuação do arguido não tenham resultado danos físicos – já assume intensidade muito relevante.
O arguido dispara, à queima roupa, por motivo não concretamente apurado, 3 tiros a pessoa não concretamente identificada, sem haver qualquer troca de palavras ou aparente provocação da vítima.
Fâ-lo antes da meia noite, num arruamento relativamente movimentado da cidade da ..., com desprezo pela vida da pessoa sobre a qual atirava, mas também pela integridade física de outros transeuntes ou moradores e mobiliário urbano e outros bens.
A intensidade do dolo, atenta a reflexão necessária ao ato, é média, sem se descurar que o arguido dispara por 3 vezes e ainda vai em perseguição da vítima com 2 pistolas, ainda municiadas, após os disparos, com 12 projéteis.
O arguido não demonstra, em momento nenhum, genuíno constrangimento do ato que enceta.
A sua conduta anterior aos factos, vistos os seus antecedentes, é censurável.
O arguido tem duas condenações anteriores, como já se adiantou, mostrando-se indiferente à benevolência daquela que já havia condenado, pela prática de crime de detenção de arma proibida.
A conduta do arguido causa elevado alarme social e revela sentimentos de elevada antissociabilidade, pelo que as exigências de prevenção especial são muito elevadas.
As exigências de prevenção geral são, igualmente, enormes, atento o aumento da insegurança nas ruas daquele Concelho da ....
Desta forma, tudo conjugado, entende-se ser de graduar a medida da pena do crime de homicídio na forma tentada acima do meio da moldura penal.
Assim, tudo exposto, pela prática deste crime, entendemos ser justa e proporcional uma pena parcial de 9 (nove) anos de prisão.
(…)
Do cúmulo jurídico de penas
Ora, o arguido é julgado e condenado, neste acórdão, por 3 crimes e que estão, assim, numa relação de concurso.
Pelo que importa fixar ao arguido uma pena única.
Assim, operando o cúmulo jurídico, de harmonia com o disposto no artigo 77º do Código Penal, há que aplicar uma pena unitária ao arguido, que pode ser fixada entre a maior das 3 penas concretamente aplicadas – 9 (nove) anos– e a soma de todas – 15 (quinze) anos.
De acordo com os traços de personalidade demonstrados (nomeadamente pelos antecedentes), que apontam para uma situação de pluriocasionalidade, e as circunstâncias em que foram cometidos os crimes, vista a relativa homogeneidade da conduta (não se descurando que haja uma relação direta entre a atividade de tráfico e o homicídio na forma tentada e a posse das armas) analisada a reduzida colaboração para a descoberta da verdade, a imagem global da ação delinquente, causadora de elevado alarme social, julga-se adequado condenar o arguido na pena única global de 11 (onze) anos de prisão, correspondente a um terço da diferença da soma das penas e da pena mais elevada..
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1. Medida da pena pelo crime de homicídio agravado na forma tentada
Como resulta das alegações e conclusões, o Recorrente entende que a pena pelo crime de homicídio agravado na forma tentada deve ser reduzida de 9 anos de prisão para 6 anos de prisão.
Tanto quanto se consegue compreender, o Recorrente questiona a intenção inequívoca de matar; considera que a intensidade do ilícito deve ser considerada moderada; que o modo de execução não foi através de “tiros à queima roupa”; os motivos não estão provados e não se demonstrou o desprezo pela vida da pessoa sobre a qual atirava nem que o arguido não demonstra, em momento nenhum, genuíno constrangimento do acto que enceta; as necessidades de prevenção geral não são especialmente elevadas (elevado alarme social) porquanto “os assassinatos não ocorrem com tanta frequência que permitam qualificar tal fenómeno como um verdadeiro flagelo”; também não estão demonstrados os sentimentos de elevada antissociabilidade e exigências de prevenção especial muito elevadas. Salienta ainda a relevância da sua limitação ao nível da força física e algumas dificuldades no braço direito e as condições pessoais.
Vejamos.
Depreende-se da motivação e conclusões de recurso que o Recorrente não questiona a sua actuação dolosa mas apenas a sua intensidade. Basta, aliás, analisar a motivação da matéria de facto para concluir que a existência da intenção de matar, com dolo directo está devidamente fundamentada. Assim, as dúvidas em relação à intenção de matar aparecem como absolutamente insustentáveis e insustentadas porquanto a factualidade provada não deixa margem para que se possa suscitar qualquer questão jurídica em relação à actuação dolosa do arguido, ora Recorrente, que o acórdão recorrido classifica judiciosamente como sendo de “intensidade média”.
Quanto à intensidade do ilícito que se extrai do modo de execução, não pode deixar de se salientar que, algumas afirmações constantes do acórdão recorrido podem suscitar dúvidas ou justificar esclarecimento. Assim:
• Embora “tiros à queima roupa” seja um termo não técnico, está associado a um tiro disparado de muito perto, a curta ou curtíssima distância. Tiros disparados a 3 metros de distância representam já uma distância significativa que não se enquadra no conceito de curta distância nem de “tiro à queima roupa”; de qualquer forma, relevante para a avaliação da forma de execução é o que consta do facto provado 3: tiros disparados “a pouco mais de 3 metros”;
• Não consta dos factos provados que os tiros tivessem sido disparados num arruamento relativamente movimentado da cidade da ..., que estivesse mais gente presente ou que houvesse qualquer perigo para terceiros e, consequentemente, não pode afirmar-se que os disparos tenham sido efectuados com desprezo pela integridade física de outros transeuntes ou moradores e mobiliário urbano e outros bens;
• Também não ficou demonstrado, não constando da factualidade, que o Recorrente, após os disparos, tenha ido em perseguição da vítima com 2 pistolas.
Consequentemente, tendo em atenção o exposto e ainda a peculiaridade da situação, em que se desconhece o indivíduo visado pelos disparos que fugiu sem evidências de ter sido atingido, entende-se que a ilicitude é mediana.
Em relação às demais circunstâncias apontadas, não tem o Recorrente razão. O desprezo pela vida da pessoa sobre a qual atirava decorre do acto de apontar uma arma de fogo a cerca de 3 metros de distância, apontar ao tórax e disparar por três vezes; a falta de constrangimento decorre da sua actuação, percurso de vida e postura processual; as necessidades de prevenção geral são elevadas porquanto, como o acórdão recorrido explica, apesar da reduzida frequência dos homicídios em Portugal, na zona onde os factos ocorreram, o aumento da insegurança nas ruas causa alarme social; justifica-se que se considerem associais as características do Recorrente e as exigências de prevenção especial muito elevadas, face (i) à sua actuação in casu, reveladora de persistência nos desígnios criminosos, (ii) ao já significativo percurso criminal e (iii) à análise dos factos provados quanto às suas condições pessoais e de vida constantes dos factos 19 a 40, demonstrativos de um percurso de marginalidade, com pouco investimento na formação e no trabalho, e evidências de desrespeito pelo outro e pelas normas (mesmo em reclusão).
Por outro lado, constata-se que o acórdão recorrido considerou todas as condições pessoais, tal como resultam da factualidade provada, mostrando-se irrelevantes para a determinação da medida da pena no contexto dos factos, a limitação ao nível da força física e algumas dificuldades no braço direito e não estando demonstrada a invocada ausência de “acompanhamento necessário à sua condição clínica”. Ainda quanto às condições pessoais, não se encontra evidência de que o acórdão recorrido tenha valorado o relatório social para além do que consta dos factos provados 19 a 331, nem o Recorrente procura demonstrar essa valoração indevida.
A determinação da medida concreta da pena deve ser encontrada em função da culpa (a pena não deve ultrapassar o limite imposto pela culpa, nos termos do nº 2 do art. 40º do Código Penal) e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização, em conformidade com o que decorre do disposto nos art.s 71º nº 1 e 40º do Código Penal, ou seja, ponderando as necessidades de tutela do bem jurídico violado, bem como as exigências sociais que emanam dessa lesão, assim como a necessidade de preservação da dignidade do infractor, tendo em vista a sua recuperação e reintegração social.
O que importa verificar é se, como pretende o Recorrente, a pena é desadequada, não se coadunando com os princípios que devem nortear a fixação da medida concreta da pena, indo além da culpa e das necessidades de prevenção geral e especial, perante todo o circunstancialismo operante para doseamento da pena.
Vejamos então, tendo em atenção o exposto e as divergências em relação ao grau de ilicitude supra referidas.
O recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena e a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas, de acordo com Figueiredo Dias2 não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se “tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”3 reconhecendo-se, assim, uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável se não mesmo impossível de sindicar4.
Como se alcança da fundamentação do acórdão recorrido o tribunal observou os ditames dos art.s 40º e 71º do Código Penal na determinação da medida da pena, anotando-se apenas a divergência quanto ao grau de ilicitude:
Em função da culpa do agente nos termos do artigo 71º nº 1 do Código Penal – que constitui limite máximo inultrapassável (art. 40º nº 2 do Código Penal) - tendo ainda em conta as necessidades de prevenção geral, necessárias para tutelar o ordenamento jurídico, de modo a repor a confiança no efeito tutelar da norma violada em reacção aos valores e bens jurídicos que lhe subjazem – determinativas do limite mínimo da pena, acabando a pena concreta por ser encontrada, dentro destes limites, de acordo com as exigências de prevenção especial de ressocialização manifestadas pelo agente, que vão determinar, assim, qual o quantum da pena necessário para o reintegrar socialmente, se for caso disso, e ter sobre ele um efeito preventivo no cometimento de futuros crimes5.
Foi devidamente considerada a premência das necessidades de prevenção geral e na dosimetria da pena, os factores do caso concreto que não integrem o tipo legal (factores relativos à execução do facto, factores relativos à personalidade do agente e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto)6, nos termos do artigo 71º nº 2 do Código Penal, nos termos supra expostos.
Conclui-se, assim, pelo respeito dos princípios gerais que presidem à determinação da medida da pena e pelas operações de determinação impostas por lei, com a indicação e consideração dos factores de medida da pena, tendo sido sopesadas todas as circunstâncias atendíveis.
Resta, então apreciar se a pena definida pelo tribunal a quo é excessiva, como sustenta o Recorrente, ou se, ao invés, se mostra justa, adequada e proporcional, sendo certo que não sendo caso de manifesta desproporcionalidade7, não se justifica qualquer compressão.
A pena foi fixada em 9 anos de prisão, acima do ponto médio da moldura penal, pelo que, atendendo às circunstâncias anteriormente referidas, em função da moldura da pena abstractamente aplicável, numa consideração global das circunstâncias relativas ao facto e ao agente relevantes para determinação da pena, a que se refere o artigo 71.º do Código Penal a pena mostra-se excessiva. Tendo em atenção o grau de ilicitude supra definido e, no mais, as circunstâncias constantes do acórdão recorrido justifica-se uma redução da pena, para 7 anos de prisão. Esta pena, pouco acima do 1/3 da moldura penal, corresponde ao mínimo indispensável para garantir a tutela dos valores violados, satisfazer as necessidades de prevenção geral e as exigências de prevenção especial.
A moldura concreta da pena encontrada – sete anos de prisão – está plenamente fundamentada e é justa – proporcional, adequada e necessária – e conforme aos critérios plasmados no art. 71º do Código Penal, em sintonia com a jurisprudência deste Tribunal para casos semelhantes8.
2. Medida da pena única
A alteração da pena pelo crime de homicídio agravado, na forma tentada, p. e punível. pelos art.s 22º, 23º e 131º do Código Penal e art. 86º nºs 3 e 4 da Lei 5/2006, de 23.2, impõe que se reaprecie a pena única.
Como se viu, o Recorrente não questiona as penas parcelares de 3 anos de prisão pelos crimes de detenção de arma proibida e de tráfico de produto estupefaciente de menor gravidade, pretendendo apenas que a pena única global a aplicar seja de 9 anos de prisão, na mesma proporção da anteriormente aplicada. Tratar-se-á de lapso a referência a 9 anos de prisão e não a 8 anos de prisão porquanto, a manter-se a proporção, como pretendido, a pena dever-se-ia fixar nos 8 anos.
Como decorre da fundamentação da medida da pena única transcrita supra, o Tribunal a quo enquadrou devidamente a determinação da pena única, atendendo aos traços de personalidade demonstrados (nomeadamente pelos antecedentes), que apontam para uma situação de pluriocasionalidade, circunstâncias em que foram cometidos os crimes, vista a relativa homogeneidade da conduta, analisada a reduzida colaboração para a descoberta da verdade e a imagem global da acção delinquente, causadora de elevado alarme social.
Os critérios para a fixação da pena única devem reflectir uma ponderação das “características da personalidade do agente, em termos de revelar ou não tendência para a prática de crimes ou de determinado tipo de crime, devendo a pena única reflectir essa diferença em termos substanciais”, sendo essencial considerar o tipo de criminalidade em causa e efectuar uma “conveniente avaliação da totalidade dos factos como unidade de sentido, enquanto reportada a um determinado contexto social, familiar e económico e a uma determinada personalidade”.
“Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização.»
Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita” 9.
O acórdão recorrido fixou a pena única em 1/3 da diferença entre o mínimo de 9 anos (pena parcelar mais alta) e o máximo de 15 anos (soma de todas as penas parcelares), nos termos do art. 77º nº 2 do Código Penal.
A fórmula aplicada na determinação da pena única mostra-se adequada às circunstâncias concretas do caso e, por isso, deve ser mantida.
Assim, partindo da pena parcelar mais alta de sete anos, encontra-se a pena única de 9 anos de prisão.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido AA, e, consequentemente em:
• Fixar em sete anos de prisão a pena pelo crime de homicídio agravado, na forma tentada, p. e p. pelos art.s 22º, 23º e 131º do Código Penal e art. 86º nºs 3 e 4 da Lei 5/2006, de 23.2;
• Fixar a pena única em nove anos de prisão.
Sem custas (art. 513º nº 1 do Código de Processo Penal).
Lisboa, 28-05-2025
Jorge Raposo (relator)
António Manso
Maria Margarida Almeida
_____________________________________________
1. Correctamente, como bem assinala, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.9.2022, no proc. 469/21.0GACSC.S1.
2. Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009, §255, pg. 197.
3. Neste sentido também os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.2008 e 11.7.2024, respectivamente nos proc.s 08P1964 e 491/21.6PDFLSB.L1.S1.
4. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.3.2004, CJ 2004, 1, pg. 220 e de 20.2.2008, proc. 07P4639.
5. Anabela Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, Coimbra, 1995, pg.s 545-570.
6. Figueiredo Dias, ob. cit., pg.s. 245-255.
7. “A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos, – adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na justa medida, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.12.2020, proc. 565/19.3PBTMR.E1.S1)
8. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.3.2022 no proc. 874/20.9JAPRT.S1 ( homicídio tentado por disparo em “quezília de trânsito” que também não acerta na vítima, manteve a pena de 4 anos da 1ª instância e não suspendeu por causa do “comportamento anterior aos crimes, reveladores de insensibilidade às penas não privativas da liberdade que anteriormente lhe foram aplicadas…”; também com relevância, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8.9.2016, no proc. 610/15.1PCLSB.S1, de 17.12.2024, no proc. 84/21 8GBETZ.E1.S1 e de 19.11.2020, no proc. 936/18.2PBSXL.S1 (citado pelo Recorrente, em situação em que os três tiros acertaram na vítima)
9. Conselheiro António Artur Rodrigues da Costa em “O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ”, texto disponível in http://www.stj.pt/ficheiros/estudos /rodrigues_costa_cumulo_juridico. pdf, pg. 12.