I. É o dever constitucional e legal de imparcialidade e independência que determina o pedido de escusa do juiz, o qual assenta em princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de direito democrático, visando assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que exige também garantias de independência e imparcialidade dos seus titulares
II. Como excepçao ao princípio do juiz natural para que o juiz possa ser escusado é necessário que a intervenção do juiz no processo e no caso concreto possa ser considerada suspeita, e que essa suspeita derive de existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
III. O motivo invocado: ter intervindo noutro processo entre as mesmas partes e crime denunciado de idêntica natureza e onde foi proferido despacho de não pronúncia, deve ser avaliado segundo uma perspetiva de natureza subjetiva, traduzido na averiguação de saber se o juiz de algum modo manifestou ou tem motivo ou interesse pessoal no processo, e outro segundo uma perspetiva de natureza objetiva ou seja, saber se do ponto de vista da generalidade das pessoas, de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, tal situação cria uma desconfiança na imparcialidade e isenção do juiz.
IV. Se o juiz interveio singularmente proferindo despacho de não pronúncia confirmado pela Relação e agora intervirá integrado num colectivo que irá apreciar um recurso de decisão condenatória por idêntico crime nos diversos factos, não há motivo nem sério nem grave.
V. Ali temos um juízo indiciário sobre a ausência de factos ilícitos confirmados pela Relação em recurso, e aqui a apreciação de factos no sentido de averiguar se a decisão proferida e condenatória está correcta e é justa, pelo que não existe, pois, motivo para afastar o principio do juiz natural.
No Proc. nº 397/21.9... a correr termos no Tribunal da Relação de Lisboa, ... Secção Criminal, em que é arguido AA, e
Assistente BB
Veio o Mº Juiz Desembargador Dr. CC, apresentar pedido de escusa, para intervir nos presentes autos.
Alega que lhe foi distribuído o recurso do processo nº 397/21.9..., no qual é arguido AA e ofendida a assistente, e onde está em causa um crime de violência domestica; ambos foram intervenientes por idêntico crime no proc. 844/20.7... de 2021 onde como JIC presidiu à instrução e proferiu despacho de não pronuncia, decisão que foi confirmada pelo Tribunal da Relação em 22/9/2021.
Em face da intervenção nesse processo entende que pode “ocorrer forte probabilidade de que os intervenientes considerem existir, da parte do signatário, uma situação de animosidade, susceptível de gerar desconfiança sobre a minha imparcialidade” embora pela sua parte se sinta apto a integrar a conferência com vista à decisão.
O presente incidente foi instruído com certidão do processado: sentença recorrida, motivação do recurso, resposta do Mº Pº, decisão anterior.
A assistente pronunciou-se no sentido de ser deferida a escusa
Colhidos os vistos, procedeu-se à conferência, com observância do formalismo legal.
Cumpre decidir.
Com interesse para a decisão há a considerar.
- Nos presentes autos o arguido foi condenado pela prática de 2 crimes de violência doméstica (tendo como ofendida a assistente e um filho) tendo sido condenado, por factos ocorridos após Setembro de 2020;
- Os factos constantes da instrução n.º 844/20.7... a que presidiu o ilustre requerente e proferiu despacho de não pronúncia são anteriores aos factos em apreciação no recurso e foram expressamente excluídos na sentença;
- A Relação por acórdão de 22/09/2021 confirmou o despacho de não pronuncia;
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O incidente processual de escusa de juiz (tal como o de recusa), está previsto no art. 43º do CPP, nos termos do qual:
“1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º. (…).
4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nº 1 e 2”,
e assenta em princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de direito democrático, visando assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que exige também garantias de independência e imparcialidade dos seus titulares - os juízes - cuja importância foi elevada à consagração internacional - cfr. os arts. 2º, 8º, 20º, 202º e 203º da CRP; art. 4º nº 2 da LOFTJ; artºs 4º, 5º e 6º do EMJ; art. 6º § 1 da CEDH; art. 10º da DUDH; art. 14º nº 1 PIDCP e do artº 47º da CDFEU - e as regras estabelecidas em vista dessas garantias emergem também do direito de acesso aos tribunais (artº 20º 1 CRP), e constituem, atenta a sua estrutura acusatória do processo penal (art. 32 nº 5 da CRP), um meio de impor e acautelar os princípios das garantias de defesa e do juiz natural (art. 32º nºs 1 e 9 CRP).
É o dever constitucional e legal de imparcialidade e independência que determina o pedido de escusa do juiz, por impor no exercício das suas funções judiciais uma transparência total de que a publicidade da audiência ou a fundamentação dos atos são apenas uma parte das exigências, e que constitui a única maneira de administrar a justiça em nome do povo – artº 205º CRP, e de os cidadãos confiarem na justiça, e que constitui a razão de ser desta1.
Para que o Juiz possa ser escusado é necessário que a intervenção do juiz no processo e no caso concreto possa ser considerada suspeita, e que essa suspeita derive de existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
O instituto da escusa visa “Mais do que garantir uma atuação dentro da legalidade, objetividade e independência, está em causa defender todo o sistema de justiça da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, reforçando por esta via a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados, de acordo com a velha máxima inglesa not only must Justice be done; it must also be seen to be done (Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, «Sujeitos Processuais Penais: o Tribunal», p. 12-13). Esta é uma exigência do processo justo e equitativo.2
Mas a lei não define tais conceitos abertos (motivo sério e grave), pelo que a situação deve ser ponderada caso a caso (já que no aspecto teórico não se suscitam divergência dignas de nota).
Certo é que o motivo invocado: ter intervindo noutro processo entre as mesmas partes e crime denunciado de idêntica natureza e onde foi proferido despacho de não pronuncia, deve ser avaliado segundo uma perspetiva de natureza subjetiva, traduzido na averiguação de saber se o juiz de algum modo manifestou ou tem motivo ou interesse pessoal no processo, e outro segundo uma perspetiva de natureza objetiva ou seja, saber se do ponto de vista da generalidade das pessoas, de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, tal situação cria uma desconfiança na imparcialidade e isenção do juiz.
Quanto ao primeiro aspecto, o Mº Juiz não manifesta nenhum interesse no caso nem se vê que possa existir, e inexistindo uma relação pessoal com as partes no processo pelo que na perspetiva subjetiva não ocorre motivo para a escusa. Numa perspetiva objetiva, não existem razões para que ocorra uma qualquer desconfiança, desde logo porque a situação em que interveio (despacho de não pronuncia por crime de idêntica natureza) não se reconduz à mesma situação de facto, pelo que o conhecimento advindo daquele não se repercute neste, nem jurídica, pois o requerente está numa posição de recurso de decisão condenatória e integrado num coletivo (decisão plural).
O motivo invocado de modo a escusar o Mº Juiz de intervir, tem de ser sério e grave e adequado a gerar desconfiança, e isto porque está em causa a exceção ao principio do juiz natural, como garantia da independência do juiz e também da sua imparcialidade
Ora o motivo invocado não é no contexto nem sério nem grave, e muito menos adequado a geral desconfiança sobre a sua imparcialidade, dado que inexiste qualquer animosidade com as partes. O motivo elencado não traduz mais do que as situações da vida do juiz, quantas vezes tem de julgar as mesmas partes por factos diversos. Deferir o pedido de escusa seria impedir na prática a vigência do principio do juiz natural a impor que nunca o juiz poderia julgar duas vezes o mesmo arguido, ou ter como assistente duas vezes a mesma pessoa. A possibilidade de ocorrer animosidade do arguido ou da assistente para com o juiz que o julga ou que aprecia os seus atos é uma decorrência normal do exercício das suas funções, que de modo algum põem em causa a sua independência e imparcialidade. Ali temos um juízo indiciário sobre a ausência de facto ilícitos confirmados pela Relação em recurso, e aqui a apreciação de factos no sentido de averiguar se a decisão proferida e condenatória está correcta e é justa. Não existe pois motivo para afastar o principio do juiz natural, que só deve ocorrer se existirem razões mais fortes para tal do que aquelas que “visa salvaguardar, que se relacionam com a independência, mas também com a imparcialidade do tribunal”3 e por isso não deve ser deferido o seu pedido.
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Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça decide:
Julgar improcedente o presente incidente e em consequência indeferir o pedido de escusa do Mº Juiz Desembargador Dr. CC de intervir no recurso do proc. nº 397/21.9... que lhe foi distribuído.
Sem custas.
Notifique.
Dn
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Lx e STJ, 28/5/2026
José A. Vaz Carreto (relator)
António Augusto Manso
Maria Margarida Almeida
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1. Seguimos o ac. 31/10/2024 proc. 24/20.1TRLSB-A.S1 www.dgsi.pt;
2. In ac. STJ 20/10/2022 proc 981/17.5PBMTS.P2-A.S1 www.dgsi.pt Cons. António Gama
3. Ac. STJ 23/9/2009 Proc 532/09.5YFLSB www.dgsi.pt Cons. Maia Costa