I. A sentença condenatória numa pena única proferida em conhecimento superveniente do concurso de crimes (art. 78.º do CP) na sequência da realização da audiência a que se refere o art. 472.º do CPP deve, na sua auto-suficiência, respeitar os requisitos de fundamentação exigidos pelo n.º 2 do art. 374.º, com as devidas adaptações, e pelos n.º 3 do art. 73.º do CP e n.º 1 do art. 375.º, do CPP quanto à medida da sanção aplicada, incluindo, necessariamente, a descrição dos factos praticados pelo arguido e as circunstâncias relevantes para determinação da pena, incluindo o critério especial estabelecido na segunda parte do n.º 2 do art. 77.º do CP.
II. A necessidade de fundamentação decorre directamente do art. 205.º, n.º 1, da Constituição, por razões que implicam a necessidade de justificação do exercício do poder estadual quanto à observância dos critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais pela aplicação de uma pena, de modo a possibilitar o seu controlo por parte dos sujeitos processuais e dos tribunais superiores, conferindo garantia efectiva ao direito de defesa, incluindo o direito ao recurso consagrado no art. 32.º, n.º 1, da Constituição.
III. A necessidade de fundamentação das decisões judiciais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de direito, representa um dos aspectos do direito a um processo equitativo protegido pelo art. 6.º da CEDH, que impõe o dever de os tribunais motivarem adequadamente as suas decisões, de acordo com a sua natureza.
IV. A fundamentação da decisão de cúmulo em matéria de facto não se realiza por mera remissão para as sentenças que aplicam penas pelos crimes em concurso, com simples referência às penas concretamente aplicadas e às normas legais incriminadoras violadas.
V. A omissão de fundamentação constitui a nulidade prevista na al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPP que não pode ser suprida por este tribunal, o qual, assim, se encontra impossibilitado de apreciar as questões suscitadas pelo recorrente quanto à fundamentação da decisão sobre a aplicação da pena única e sobre a respectiva medida.
I. Relatório
1. AA, arguido, com a identificação dos autos, não se conformando com o acórdão de 25 de junho de 2024 do Juízo Central Criminal de ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que, em conhecimento superveniente do concurso, procedeu ao cúmulo jurídico das penas aplicadas nos processos 428/19.2..., 116/19.0..., 523/19.8..., 279/19.4..., 103/19.8..., 293/19.0...,, 1186/19.6..., 662/19.5..., 4145/19.5..., 4275/19.3..., 548/19.3..., 207/19.7..., 1877/18.9..., 225/19.5..., 852/19.0..., 187/19.9..., 4148/19.0..., 269/19.7... e 395/19.2... condenando-o na pena única de 16 (dezasseis) anos de prisão, dele vem interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
2. Apresenta motivação, dizendo em conclusões (transcrição):
«1) Foi o recorrente condenado por acórdão cumulatório na pena única de 16 (dezasseis) anos de prisão efetiva.
2) Contudo, o Recorrente não se conforma com o douto acórdão no que respeita ao quantum da pena a que o Tribunal chegou após efectuar o cúmulo jurídico das penas parcelares.
3) O Recorrente entende que a medida concreta da pena aplicada é demasiado severa, logo desproporcionada e desadequada.
4) Na verdade, atendendo a que a moldura penal abstracta no caso em apreço tem como limite mínimo 2 anos de prisão e máximo de 25 anos de prisão, entende o recorrente que, considerando os factos praticados, a sua personalidade (art.º 77.º, n.º 1 do CP), bem como os factores elencados no n.º 2 do art.º 71.º, referidos agora à globalidade dos crimes que praticou, as exigências quer de prevenção geral quer especial seriam plenamente alcançadas se a pena concreta, resultante da operação de cúmulo jurídico, fosse inferior à aplicada em dois (2) anos, isto é, que fosse aplicada a pena única de catorze (14), esta sim proporcional e adequada.
5) Assim, apesar de a decisão não referir expressamente os fundamentos da medida da pena aplicada, sendo as exigências de prevenção geral elevadas, assim como as de prevenção especial, não se deve olvidar o facto de que a conduta que o recorrente tem presentemente revelado interiorizando a gravidade e a ilicitude dos factos que praticou associados ao consumo de estupefacientes, mostrando-verdadeiramente arrependido, tendo investido na manutenção de ocupação laboral no estabelecimento prisional e na manutenção do estado abstémico e no acompanhamento especializado direcionado para a problemática aditiva– e ainda as suas condições pessoais – que beneficia do apoio de terceiros e de familiares, de quem recebe com frequência visitas no EP -, cfr. relatório social a fls.., entendemos que a pena única que lhe foi aplicada deverá ser reduzida para 14 anos de prisão, por ser esta adequada e proporcional, nos termos do disposto no art.º 71.º, do Código Penal.
6) Na verdade, ao condenar o Recorrente numa pena única de 16 anos de prisão efetiva, o Tribunal a quo está a sujeitá-lo a longos anos da sua vida na prisão, facto este que porá em risco a reintegração do recorrente na sociedade.
7) Acresce que o recorrente tem tido sempre, no Estabelecimento Prisional, um comportamento correto e colaborante com todos, designadamente, com guardas e restantes funcionários e reclusos, tendo sempre trabalhado.
8) Pelo que o acórdão recorrido violou o preceituado no art.º 40.º, 71.º e 77.º todos do Código Penal.
Nestes termos e noutros, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogado o douto acórdão recorrido por outro que condene o recorrente, em cúmulo jurídico das penas em que foi condenado, na pena única de 14 anos de prisão.»
3. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413.º, n.º 1, do CPP, respondeu o Ministério Público, dizendo em conclusão (transcrição) que:
«Considerando os factos apurados e a personalidade do arguido, bem como, atendendo às circunstâncias relativas às condições de vida do arguido, relatadas no relatório social e dadas como provadas, extrai-se, na nossa perspectiva, a conclusão de que o juízo de prognose alcançado pelo tribunal recorrido se mostra correcto, não havendo qualquer reparo a fazer ao mesmo no que à pena única aplicada se refere.»
4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer de concordância com o Ministério Público no tribunal recorrido, dizendo:
«[…] a simples leitura da decisão recorrida demonstra que a fundamentação e a ponderação da dosimetria penal efetuada pelo Tribunal a quo não merecem crítica.
Aliás, o recorrente limita-se a afirmar a sua convicção de que a pena que lhe foi aplicada é exagerada e, por isso, violadora dos princípios da proporcionalidade e da adequação. O recurso é, porém, escasso na indicação de outros motivos para fundar tal juízo de desproporcionalidade e de desadequação que não a convicção do próprio recorrente.
Depois de fixar os factos provados com relevo, o Tribunal a quo analisou e ponderou o percurso de vida, a saúde, o contexto social, familiar e ocupacional do arguido.
Pode ler-se no acórdão recorrido, a este propósito, o seguinte: [transcrição]
Em seguida, o Tribunal recorrido descreveu, sucintamente, é certo, a motivação da sua decisão do ponto de vista do direito aplicável e procedeu à determinação da medida da pena única a aplicar, fixando-a em 16 anos de prisão tendo em conta que a moldura abstrata do cúmulo se situa entre um mínimo de 2 anos de prisão e um máximo de 25 anos de prisão.
Assim, e ao contrário do que decorre das alegações do recorrente, o Tribunal recorrido ponderou e aplicou devidamente os critérios e fatores que estava obrigado a levar em conta na determinação da medida das penas.
A pena única aqui aplicada reflete adequadamente as exigências de prevenção geral, que são aqui elevadas, considerando tratar-se de crimes cuja natureza, frequência e potencial lesivo reclamam rigor punitivo para desincentivar o seu cometimento.
Reflete, também com rigor, o grau de ilicitude dos factos e o desvio aos valores impostos pela ordem jurídica que os mesmos implicaram, bem como a intensidade do dolo, que é elevada, uma vez que o arguido, representando os factos criminosos, atuou com intenção direta de os realizar.
Neste contexto, cabe aqui inteiramente citar, até na conclusão a que chega, uma decisão recente deste Supremo Tribunal onde se afirma: “cumpre lembrar que o Supremo tem reafirmado que, também em matéria de pena, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, não se tratando de um re-julgamento da causa. Ou seja, o Supremo intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a determinação da sanção. E não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. E assim o recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar.
Direccionando-se a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso para esse desrespeito aos princípios gerais, às operações de determinação impostas por lei, à desconsideração dos factores de medida da pena, não abrangendo «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197), há que reconhecer que a decisão do acórdão se mostra justificada.”1
5. Examinados os fundamentos do recurso, sufragamos integralmente a argumentação da Senhora Procuradora da República na 1ª instância, que aqui damos por reproduzida e, por todo o exposto, emitimos parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente mantendo-se a decisão recorrida.»
5. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente nada disse.
6. Não tendo sido requerida audiência, seguiu o recurso para julgamento em conferência – artigo 419.º, n.º 3, al. c), do CPP.
Apreciando e decidindo.
II. Fundamentação
7. A decisão recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos:
7.1. Fundamentação de facto
«- Factos provados com relevo:
A. O arguido foi condenado nos seguintes processos objeto do presente cúmulo:
Número | FACTOS | TRÂNSITO | DECISÃO | CRIME | PENAS PARCELARES | PENA ÚNICA |
428/19.2... | 12-3-2019 | 19-10-2020 | 17-9-2020 | 1 furto | 1 ano prisão | |
116/19.0... | 18-6-2019 | 30-11-2020 | 29-10-2020 | Cond perigosa | 1 ano prisao | |
523/19.8... | 13-2-19 | 2-12-20 | 8-7-20 | 1 furto | 8 meses prisao | |
279/19.4... | 19-4-19 a 27-4-19 | 3-5-21 | 23-3-21 | 1 furto 1 resistencia | 1 ano 1 ano e 4 meses | 1 ano e 10 meses |
103/19.8... | 22-1-19 2-2-19 | 6-5-21 | 19-11-20 | 3 furtos | 2x 7 meses 1 ano e 2 meses | 1 ano 6 meses |
293/19.0... | 26-6-19 | 28-5-21 | 27-4-21 | 3 furtos | 2x 4 meses 12 meses | 15meses |
1186/19.6... | 18-6-19 14-2-19 | 11-10-21 | 9-9-21 | 4 furtos | 4x 9meses | 1 ano e 6 meses |
662/19.5... | 7-5-19 | 12-11-21 | 13-10-21 | 1 furto | 1 ano e 2 meses | |
4145/19.5... | 25-2-19 | 19-5-22 | 19-4-22 | 1 furto | 1ano | |
4275/19.3... | 9-9-19 23-2-19 | 2-3-23 | 31-1-23 | 8 furtos | 8x 6 meses | 1 ano e 3 meses |
548/19.3... | 28-12-18 6-1-19 | 26-4-23 | 17-3-23 | 2 furtos | 2x 1 ano | 1 ano e 4 meses |
207/19.7... | 13-3-19 | 9-6-2023 | 10-5-23 | 1 roubo tentado | 2 anos | |
1877/18.9... | 22-10-18 9-6-19 | 19-6-23 | 18-5-23 | 2 furtos qualif | 2x 2 anos | 2 ano e 4 meses |
225/19.5... | 30-3-19 13-8-19 | 6-1-22 | 24-11-21 | 10 furtos qualif | 2x 10 meses 8x 8 meses | 2 anos e 4 meses |
852/19.0... | 24-2-19 13-8-19 | 21-2-22 | 13-5-21 | 2 furtos qualif | 2x 1 ano e 6 meses 10 dias | 2 anos e 4 meses |
187/19.9... | 21-1-19 11-2-19 | 18-1-22 | 5-12-21 | 5 furtos | 5x 1 ano e 3 meses | 2 anos e 8 meses |
4148/19.0... | 16-2-19 | 18-1-22 | 6-12-21 | 1 furto | 8 meses | |
269/19.7... | 31-3-19 | 2-12-19 | 10-10-19 | 1 furto | 8 meses | |
395/19.2... | 12-5-19 | 6-9-23 | 15-6-23 | 1 furto | 1 ano e 4 meses |
B) Resultaram nesses autos provados os factos que constam das respetivas fundamentações que aqui se dão por reproduzidos.
C) No referido processo 269/19.7...a pena aplicada foi declara extinta pelo cumprimento a 18-11-21.
D) Para além dos processos referidos o arguido regista ainda as seguintes condenações:
1. Por decisão de 3 de Junho de 1996, proferida no Processo Sumaríssimo nº 68/96 do ...º Juízo do Tribunal Judicial de ..., pela prática, em 6 de Agosto de 1995, de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de 10 dias de multa, à taxa diária de Esc. 300$00, o que perfaz o montante global de Esc. 3.000$00 (Três mil escudos);
2. Por sentença de 26 de Junho de 1998, proferida no Processo Sumário nº 91/98 do ... Juízo do Tribunal Judicial de ..., pela prática, em 26 de Junho de 1998, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de Esc. 400$00, o que perfaz o montante global de Esc.32.000$00 (Trinta e dois mil escudos) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses, tendo a pena de multa sido, posteriormente, declarada extinta pelo respectivo pagamento;
3. Por sentença de 10 de Abril de 2000, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 200/99 do ...Juízo Criminal do Tribunal Judicial de ..., transitada em julgado em 4 de Maio de 2000, pela prática, em 15 de Novembro de 1998, de um crime de coacção, na pena de 240 dias de multa, e pela prática de um crime de dano, na pena de 120 dias de multa, e em cúmulo jurídico dessas penas parcelares na pena única de 260 dias de multa, à taxa diária de Esc. 500$00 (Quinhentos Escudos), o que perfaz o montante global de Esc. 130.000$00 (Cento e trinta mil Escudos), pena essa que, entretanto, foi declarada extinta pelo pagamento da multa;
4. Por sentença de 17 de Novembro de 2005, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 200/04.4... do... Juízo Criminal do Tribunal Judicial de ..., transitada em julgado em 15 de Dezembro de 2005, pela prática, em 3 de Fevereiro de 2004, de um crime de falsidade de declaração, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 4, o que perfaz o montante global de € 800 (Oitocentos Euros), pena essa que, entretanto, foi declarada extinta pelo pagamento da multa;
5. Por sentença de 25 de Outubro de 2007, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 55/06.4... do ... Juízo Criminal (...ª Secção) do Tribunal Judicial do..., transitada em julgado em 20 de Novembro de 2007, pela prática, em 23 de Novembro de 2005, de um crime de furto, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de € 3, o que perfaz o montante global de € 120 (Cento e vinte Euros), pena essa que, entretanto, foi declarada extinta pelo pagamento da multa;~
6. Por sentença de 19 de Outubro de 2007, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 43/06.0... do ... Juízo do Tribunal Judicial de ..., transitada em julgado em 19 de Dezembro de 2007, pela prática, em 5 de Janeiro de 2006, de um crime de furto, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5, o que perfaz o montante global de € 500 (Quinhentos Euros), pena essa que, entretanto, foi declarada extinta pelo pagamento da multa;
7. Por sentença de 20 de Novembro de 2007, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 581/05.2... do ... Juízo Criminal (...ª Secção) do Tribunal Judicial do..., transitada em julgado em 16 de Janeiro de 2008, pela prática, em 2005, de um crime de falsificação de documento, agravado, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 2,50, o que perfaz o montante global de € 450 (Quatrocentos e cinquenta Euros), a qual veio depois a ser convertida em prisão subsidiária e posteriormente declarada extinta pelo pagamento da multa;
8. Por sentença de 10 de Abril de 2008, proferida no Processo Sumaríssimo nº 454/06.1... do ...º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de ..., transitada em julgado em 10 de Abril de 2008 (cfr. artº 397º, nº 2, do Código de Processo Penal), pela prática, em 26 de Setembro de 2006, de um crime de furto, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de € 5, o que perfaz o montante global de € 1.100 (Mil e cem Euros);
9. Por sentença de 4 de Junho de 2008, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 37/07.9... do... Juízo Criminal do Tribunal Judicial de ..., transitada em julgado em 4 de Julho de 2008, pela prática, em 2 de Março de 2007, de um crime de furto, na pena de 200 dias de multa, a taxa diária de € 4, o que perfaz o montante global de € 800 (Oitocentos Euros);
10. Por sentença de 20 de Junho de 2008, proferida no Processo Sumário nº 384/08.2... do... Juízo do Tribunal Judicial de ..., transitada em julgado em 10 de Julho de 2008, pela prática, em 4 de Junho de 2008, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de €5, o que perfaz o montante global de € 1.250 (Mil, duzentos e cinquenta Euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 10 (dez) meses;
11. Por acórdão de 10 de Julho de 2008, proferido no Processo Comum (Tribunal Colectivo) nº 665/06.0... da... Vara Mista do Tribunal Judicial de ..., transitado em julgado em 30 de Julho de 2008, pela prática, em 12 de Junho de 2006, de um crime de furto, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 3, o que perfaz o montante global de € 540 (Quinhentos e quarenta Euros);
12. Por sentença de 29 de Setembro de 2008, proferida no Processo Abreviado nº 365/08.6... do ... Juízo do Tribunal Judicial de ..., transitada em julgado em 13 de Novembro de 2008, pela prática, em 24 de Maio de 2008, de um crime de furto, na pena de prisão por dias livres, em 12 (doze) períodos, de 36 (trinta e seis) horas cada, pela essa que, entretanto, foi declarada extinta pelo respetivo cumprimento;
13. Por sentença de 10 de Novembro de 2008, proferida no Processo Abreviado nº 375/08.3...do Juízo de Instância Criminal de...– Juiz ..., transitada em julgado em 5 de Dezembro de 2008, pela prática, em 22 de Maio de 2008, de um crime de furto, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de € 7,50, o que perfaz o montante global de € 1.650 (Mil, seiscentos e cinquenta Euros), a qual veio depois a ser convertida em prisão subsidiária e posteriormente declarada extinta pelo respectivo cumprimento;
14. Por sentença de 28 de Outubro de 2008, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 75/08.4... do Juízo de Instância Criminal de ... – Juiz ..., transitada em julgado em 16 de Janeiro de 2009, pela prática, em 30 de Janeiro de 2008, de um crime de furto, numa pena de multa, a qual veio depois a ser convertida em prisão subsidiária e posteriormente declarada extinta pelo pagamento da multa;
15. Por sentença de 2 de Dezembro de 2008, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 567/08.5... do ... Juízo do Tribunal Judicial de São ... transitada em julgado em 2 de Fevereiro de 2009, pela prática, em 22 de Maio de 2008, de um crime de furto, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, pena essa que, entretanto, foi declarada extinta pelo respectivo cumprimento;
16. Por sentença de 11 de Dezembro de 2008, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 224/08.2... do... Juízo do Tribunal Judicial de ..., transitada em julgado em 5 de Fevereiro de 2009, pela prática, em 15 de Fevereiro de 2008, de um crime de furto, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5, o que perfaz o montante global de € 400 (Quatrocentos Euros), a qual veio depois a ser convertida em prisão subsidiária e posteriormente declarada extinta pelo pagamento da multa;
17. Por sentença de 19 de Janeiro de 2009, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 581/08.0... do ... Juízo do Tribunal Judicial de ... transitada em julgado em 18 de Fevereiro de 2009, pela prática, em Março de 2008, de quatro crimes de furto, na pena única, resultante de cúmulo jurídico, de 7 (sete) meses de prisão, pena essa que, entretanto, foi declarada extinta pelo respectivo cumprimento;
18. Por sentença de 5 de Fevereiro de 2009, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 67/08.3... do Juízo de Instância Criminal de ... – Juiz ..., transitada em julgado em 19 de Março de 2009, pela prática, em 7 de Janeiro de 2008, de um crime de furto, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 5, o que perfaz o montante global de € 450 (Quatrocentos e cinquenta Euros), a qual veio depois a ser convertida em prisão subsidiária e posteriormente declarada extinta pelo respectivo cumprimento;
19. Por sentença de 1 de Julho de 2009, proferida no Processo Abreviado nº 4/09.8...do ... Juízo Criminal do Tribunal Judicial de ... transitada em julgado em 31 de Julho de 2009, pela prática, em 26 de Fevereiro de 2009, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 6 (seis) meses de prisão, pena essa que, entretanto, foi declarada extinta pelo respectivo cumprimento;
20. Por sentença de 2 de Fevereiro de 2010, proferida no Processo Comum (Tribunal Colectivo) nº 293/08.5... do ...º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de ..., transitada em julgado em 9 de Março de 2010, pela prática, em 15 de Novembro de 2008, de um crime de furto, na forma tentada, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
21. Por sentença de 18 de Outubro de 2010, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 54/10.1... do ... Juízo Criminal do Tribunal Judicial de ..., transitada em julgado em 17 de Novembro de 2010, pela prática, em 27 de Outubro de 2009, de um crime de falsidade de testemunho, na pena de 7 (sete) meses de prisão, pena essa que, entretanto, foi declarada extinta pelo respectivo cumprimento;
22. Por acórdão de 21 de Outubro de 2013, proferido no Processo Comum (Tribunal Colectivo) nº 2408/12.0... do... Juízo do Tribunal Judicial de ..., transitado em julgado em 27 de Março de 2014, pela prática, em 27 de Dezembro de 2012, de um crime de roubo agravado e em 28 de Dezembro de 2012, de um crime de roubo, na pena única, resultante de cúmulo jurídico, de 6 (seis) anos de prisão;
23. Por sentença de 29 de Maio de 2014, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 9398/12.7...do Juízo Local Criminal de ... – Juiz..., transitada em julgado em 30 de Junho de 2014, pela prática, em 15 de Julho de 2012, de um crime de furto, e em 12 de Agosto de 2012, de um crime de furto, na pena única, resultante de cúmulo jurídico, de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
24. Por sentença de 4 de Dezembro de 2019, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 26/19.0...do Juízo Local Criminal de..., transitada em julgado em 16 de Janeiro de2020, pela prática, em 22 de Janeiro de 2019, de um crime de furto, na pena de 7 (sete) meses de prisão;
25. Por sentença de 3 de Maio de 2019, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 1672/16.0... do Juízo Local Criminal de ... – Juiz..., transitada em julgado em 21 de Janeiro de 2020, pela prática, em 30 de Junho de 2016, de um crime de falsidade de testemunho, na pena de 1 (um) ano de prisão;
26. Por sentença de 27 de Fevereiro de 2020, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 204/19.2... do Juízo Local Criminal de ..., transitada em julgado em 22 de Junho de 2020, pela prática, em 19 de Dezembro de 2018, de um crime de furto, na pena de 7 (sete) meses de prisão;
27. Por acórdão de 29 de Junho de 2020, proferido no Processo Comum (Tribunal Colectivo) nº 4/19.0...do Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., transitado em julgado em 14 de Setembro de 2020, pela prática, em 30 de Dezembro de 2018, de um crime de furto, e em 26 de Julho de 2019, de um crime de furto, na pena única, resultante de cúmulo jurídico, de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; 10-5-2023
F) Percurso de vida, saúde, contexto social, familiar e ocupacional do arguido:
1. À data a que se reportam os factos de que vem acusado no presente processo, AA residia sozinho, na sequência do falecimento da progenitora, em habitação própria, sita na Rua ..., em .... O imóvel, outrora pertença dos progenitores, encontrava-se devoluto e exposto à invasão de terceiros e não possuía energia elétrica por falta de pagamento.
2. O arguido vivenciava dificuldades económicas em consequência da inatividade laboral, referindo obter algum rendimento com a recolha de sucata, alternando residência na morada acima identificada com a permanência na cidade do ..., onde pernoitava em casa de um amigo, proprietário de uma oficina de mecânica, para quem realizava alguns biscates na área da mecânica auto.
3. Ao nível social, o arguido mostrava-se permeável à influência do seu grupo de pares, conotado com o consumo de substâncias psicoativas e conduta antissocial, apresentando um quotidiano gerido de forma desestruturada, ociosa e direcionada para a satisfação das necessidades aditivas.
4. No meio residencial de origem, não obstante a sua imagem esteja associada à problemática aditiva, não se percecionam sentimentos de hostilidade ou rejeição à sua presença.
5. Sendo filho único, AA beneficiou de um enquadramento familiar e social securizante que lhe propiciou a regular integração escolar e a conclusão do 7.º ano de escolaridade, cujo percurso veio a abandonar por falta de motivação.
6. De seguida arguido iniciou percurso laboral junto do progenitor, também já falecido, na empresa que este geria, ligada ao ramo da sucata e comércio de automóveis, desempenho que veio a ser prejudicado com o início, ainda na adolescência, do consumo de substâncias psicoativas e posterior quadro de dependência. Realizou diversos tratamentos de desabituação que se revelaram infrutíferos, tendo a recidiva no consumo de estupefacientes determinado o abandono dos tratamentos, além de potenciar a situação de dependência funcional do agregado familiar, num registo de ociosidade e irresponsabilidade, que culminou no cometimento de ilícitos criminais, reportando-se os primeiros contatos com o sistema de justiça penal a 1998.
7. As oportunidades de medidas de execução na comunidade que lhe foram sendo proporcionadas não surtiram o efeito dissuasor ao nível da reincidência nas práticas criminais, revelando dificuldades no cumprimento das obrigações a que esteve sujeito.
8. Acabaria por cumprir pena de prisão entre 27.02.2009 e 19.04.2012, saindo em liberdade apenas no termo da pena.
9. Em 29.12.2012, AA foi novamente recluído, tendo beneficiado de liberdade condicional aos 5/6 da pena, em 09.12.2018, altura em que reintegrou o agregado familiar da progenitora, que viria a falecer, cerca de um mês depois.
10. À data dos factos descrito nos presente autos, o arguido encontrava-se em acompanhamento em liberdade condicional pela equipa da DGRSP de Entre Douro e Vouga, onde compareceu à primeira entrevista em 10-12-2018, e foi encaminhado para consultas de tratamento/acompanhamento no CRI -ET de Santa Maria da Feira, tendo, contudo, comparecido apenas à primeira consulta em 12.12.2018, data a partir da qual deixou de estar contactável.
11. Em 14.08.2019 o arguido deu entrada noEP 1para cumprimento de medida de coação de prisão preventiva à ordem do processo nº 852/19.0...
12. Em 10.01.2020AA foi ligado ao processo nº 9398/12.7..., para cumprimento do remanescente de 1 ano, 2 meses e 9 dias, referentes à revogação da liberdade condicional, sendo, posteriormente, alvo de sucessivas condenações em penas privativas da liberdade, maioritariamente pela prática de crimes contra o património.
13. Em 30.11.2021 foi transferido para o EP 2, condenado, pela prática de crimes de furto simples e resistência e coação sobre funcionário. Regista ainda vários processos pendentes por crimes de idêntica natureza, por factos praticados, reiteradamente, no hiato temporal entre a sua saída em liberdade condicional e a sua presente reclusão.
14. No EP 1, AA permaneceu ocupado na realização de tarefas de limpeza geral, tendo ficado desimpedido daquela função por razões de ordem e disciplina. Beneficiava de acompanhamento clínico nas especialidades de Psicologia e Psiquiatria, direcionado para a problemática aditiva, acompanhamento que mantém, atualmente, nos serviços clínicos do EP 2.
15. Neste estabelecimento prisional, não obstante o investimento na manutenção de ocupação laboral, tem vindo a registar algumas sanções disciplinares, a última das quais por posse de bebida artesanal com teor de álcool, vulgo, “Xixa”, em 09.01.2023. Não obstante, nos meses subsequentes tem evidenciado uma maior adequação comportamental, consubstanciada pela ausência de sanções disciplinares, pelo maior investimento na aquisição de competências laborais, atualmente no armazém do EP 2, e pela manutenção do estado abstémico.
16. No exterior mantém a amizade de um casal, identificado pelo próprio como figuras de apoio no seu processo de ressocialização e com quem mantém contactos telefónicos.»
7.2. A decisão em matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos:
«Certidões juntas, CRC, ficha biográfica, relatório social, declarações do arguido.»
7.3. Fundamentação de direito:
«Conforme decorre do artigo 78º, nºs 1 e 2 do Código Penal, “se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.”
Nos termos da jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 9/2016, “O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso superveniente de crimes é o trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso”.
“Para efeitos de realização do cúmulo, há que correlacionar a data da prática dos factos com o trânsito em julgado das decisões condenatórias, ou seja, a prática de crimes depois da decisão condenatória transitada afasta a unificação, formando-se outras penas autónomas e porventura outros cúmulos de execução sucessiva” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-11-2012, processo n.º 21/06.0GCVFX-A.S1, in www.dgsi.pt).
Uma pluralidade de infrações conduz, assim, a um concurso de penas quando as diversas infrações tiverem sido cometidas antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer delas, caso em que se realiza o cúmulo jurídico e determina-se uma pena única.
De outro modo, existe uma sucessão de penas quando há uma pluralidade de crimes, mas um dos crimes foi cometido depois do trânsito em julgado da condenação de qualquer um dos outros.
As penas de prisão em situação de concurso devem ser objeto de cúmulo jurídico ainda que alguma delas tenha sido suspensa na sua execução, pois, atenta a jurisprudência maioritária, a suspensão da execução da pena não é abrangida pelo caso julgado formado por cada uma das condenações e o cúmulo jurídico destas penas é a solução que melhor se adequa à avaliação global dos factos e da personalidade do arguido, escopo fundamental do instituto em apreço.
Por outro lado, não são cumuláveis entre si penas de prisão aplicadas a título principal e penas de prisão subsidiária resultantes da conversão de penas de multa não pagas, porquanto a diferente espécie das penas principais aplicadas se mantém, e obsta ao cúmulo jurídico entre elas, aplicando-se neste caso o sistema de acumulação material.
Sem embargo, não obsta à sua integração no cúmulo o facto de alguma pena já se encontrar extinta, devendo ser descontada no cumprimento da pena única aplicada no concurso de crimes, conforme dispõe o artigo 78º, nº1 do Código Penal na redação introduzida pela Lei nº 59/2007 de 04 de setembro.
Não sendo possível integrar no cúmulo penas conjuntas mas apenas penas parcelares, a formulação do cúmulo jurídico obriga a uma operação através da qual se desfazem cúmulos anteriores de penas, construindo-se novo cumulo englobando todas as penas parcelares em concurso.
A pena mais grave agora a considerar é de 2 anos de prisão sendo a soma das penas parcelares superior a 25 anos de prisão.
Moldura abstrata da pena:
A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa. A pena aplicável tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes - artigo 77º, nº2 do Código Penal.
No caso dos autos atentas as penas parcelares em concurso a moldura abstrata do cúmulo é assim entre um mínimo de 2 anos de prisão e um máximo de 25 anos de prisão.
Moldura concreta da pena:
Tendo em conta o sobredito preceito legal, importa ainda atender às regras da punição do concurso previstas no artigo 77º do Código Penal.
Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, assim se respeitando o essencial da pena unitária.
“Na verdade, o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, caráter unitário”. É que “Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema da acumulação material, é forçoso concluir que com a fixação da pena unitária pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda que se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.”
Na realização do cúmulo jurídico no caso de conhecimento superveniente do concurso o tribunal terá que tomar em consideração os factos no seu conjunto (isto é se eles revelam ou não um acontecimento isolado na vida do agente ou antes reflexo de uma tendência ou carreira criminosa) averiguando-se se ocorre ou não ligação entre os factos em concurso, a diversidade ou igualdade de bens jurídicos violados, a sua frequência bem como a personalidade do arguido (não bastando a simples referência abstrata a essa personalidade, exigindo-se antes uma investigação sobre ela, nomeadamente através de relatório social)”;
No caso concreto estão em causa:
- 40 crimes de furto;
- 1 crime de roubo na forma tentada;
- 1 crime de condução perigosa;
- 1 crime de resistência e coação.
- As exigências de prevenção geral são elevadas e igualmente o são as de prevenção especial face ao percurso criminal do arguido - o arguido tinha já antecedentes criminais por crime idêntico, já tinha cumprido pena de prisão e já tinha beneficiado de Liberdade Condicional que lhe foi revogada.
- Os crimes foram praticados num espaço de tempo concentrado (sensivelmente durante um ano) e num mesmo contexto – de dependência de drogas – e são ofensivos essencialmente do mesmo bem jurídico.
Fixa-se a pena única em 16 anos de prisão.»
8. O recurso, que se limita ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos, diretamente recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP].
O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal ad quem, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).
9. Em síntese, tendo em conta as conclusões da motivação, considera o recorrente que, «apesar de a decisão não referir expressamente os fundamentos da medida da pena aplicada», esta é «demasiado severa, logo desproporcionada e desadequada», pretendendo que seja reduzida para 14 anos de prisão.
Assim, no pressuposto de que, conforme jurisprudência estabelecida (por todos, o acórdão de 19.02.2025, §12, Proc. n.º 217/22.7PVLSB.L2.S1, em www.dgsi.pt), não compete ao Supremo Tribunal de Justiça proceder a uma nova determinação da pena, mas apenas verificar o respeito pelos critérios legais na sua determinação e, consequentemente, a sua adequação e proporcionalidade, há, pois, que verificar se o acórdão recorrido respeitou aqueles critérios, procedendo, se necessário, a uma intervenção corretiva na medida da pena aplicada.
Importa, antes de mais, convocar os aspetos essenciais do regime legal aplicável, seguindo o que se tem afirmado em anteriores acórdãos2.
10. Dispõe o n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal («CP») que, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, na qual são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Nos termos do artigo 78.º, n.º 1, do Código Penal, esta regra aplica-se se, como no caso sub judice, após o trânsito em julgado de uma decisão condenatória por qualquer desses crimes, houver conhecimento de condenações em outros processos por crimes praticados em data anterior, isto é, em caso de conhecimento superveniente do concurso de crimes (cúmulo jurídico obrigatório).
Em conformidade com o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 9/2016 (DR n.º 111, Série I, de 09.06.2016), “o momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso” (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 9/2016, DR I, n.º 111, de 9.6.2016).
Se a condenação anterior tiver sido já em pena conjunta – como sucede com as penas aplicadas nos processos 279/19.4..., 103/19.8... 293/19.0..., 1186/19.6..., 4275/19.3..., 548/19.3..., 1877/18.9..., 225/19.5... 852/19.0...e 187/19.9... –, há que proceder à sua “anulação”, desfazendo-se esse cúmulo, e que determinar uma nova pena conjunta em função das penas parcelares aplicadas a todos os crimes em concurso, as quais readquirem, assim, a sua autonomia para determinação da moldura da pena do concurso e da fixação da pena concreta, em consideração das circunstâncias relevantes para a construção do respetivo substrato3.
11. A pena de prisão aplicável aos crimes em concurso tem, como limite máximo, a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal).
A determinação da pena conjunta efetua-se mediante um princípio de cúmulo jurídico e de acordo com um processo que se inicia pela determinação das penas que concretamente devem caber a cada um dos crimes em concurso – que, no caso de conhecimento superveniente do concurso, são as aplicadas por sentenças transitadas nos diferentes processos respeitantes a esses crimes –, seguindo-se o procedimento normal de determinação e escolha da pena, assim se construindo a moldura penal do concurso.
Definida a moldura da pena, o tribunal determina a pena conjunta, seguindo os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) e o critério especial fixado na segunda parte do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, segundo o qual na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente manifestada no facto, em que se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais deste, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e a falta de preparação para manter uma conduta lícita4.
O substrato da medida da pena, devendo incluí-los, não pode, pois, bastar-se com os factos que constituem os elementos do tipo de ilícito ou do tipo de culpa, sendo necessário atender às circunstâncias que, deles não fazendo parte, possam depor a favor do agente ou contra ele, nos termos do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal5.
12. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que dispõe sobre as finalidades das penas, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa», devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no artigo 71.º do mesmo diploma.
Encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade, adequação e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na «justa medida», impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva6.
A projeção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pelas necessidades de proteção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas (finalidade de prevenção geral) e de ressocialização (finalidade de prevenção especial), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, avaliada, em concreto, por fatores ou circunstâncias relacionadas com o facto ilícito típico praticado e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele (artigos 40.º e n.º 1 do 71.º do Código Penal)7.
13. Em caso de conhecimento superveniente do concurso de crimes (artigo78.º do CP), a determinação da pena única efetua-se através de nova sentença que efetue o cúmulo jurídico das penas aplicadas a cada um dos crimes em concurso, mediante audiência e realização das diligências necessárias (artigo 472.º do CPP), sendo competente para o efeito o tribunal da última condenação (artigo 471.º do CPP).
No caso presente, estando em causa a aplicação de uma pena única pelos crimes, numa relação de concurso, que constituem o objeto dos processos 428/19.2..., 116/19.0..., 523/19.8..., 279/19.4..., 103/19.8..., 293/19.0...,, 1186/19.6..., 662/19.5..., 4145/19.5... 4275/19.3..., 548/19.3..., 207/19.7..., 1877/18.9..., 225/19.5..., 852/19.0..., 187/19.9..., 4148/19.0..., 269/19.7... e 395/19.2... – pois que, pelos elementos revelados pelo acórdão recorrido, todos eles foram praticados em momento anterior ao trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer deles, que é a do processo n.º 269/19.7..., ocorrido em 02.12.2019 –, tendo em conta a moldura da pena, a competência se fixou no tribunal coletivo de do Juízo Central Criminal de ... - Juiz ..., por a última condenação, de 15.06.2023, se ter verificado no processo n.º 395/19.2... do juízo local criminal de ..., Juiz..., da respetiva área de jurisdição.
A organização do traslado do processo n.º 395/19.2..., que originou o processo n.º 884/24.7... (conforme despacho de 23.01.2024), em que foi proferido o acórdão recorrido, visou o exercício da competência para o efeito atribuída ao Juízo Central Criminal de ..., não se suscitando, por conseguinte, qualquer questão a este propósito.
14. Como se tem sublinhado em jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça, e recordando acórdãos anteriores8, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento; importante na determinação concreta da pena conjunta é a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados em função das circunstâncias relevantes por via da culpa e da prevenção, a identidade ou não dos bens jurídicos violados, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente revelada nos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão de conjunto que permita aferir se o ilícito global é revelador de uma tendência criminosa ou emergente de fatores ou circunstâncias meramente ocasionais.
Citando Figueiredo Dias9: «Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta».
15. Estabelece o artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
A sentença que aplica a pena única na sequência da audiência a que se refere o artigo 471.º do CPP deve, assim, na sua autossuficiência, com as devidas adaptações – pois não está em causa a decisão sobre factos já julgados nem o exame crítico das provas –, respeitar os requisitos de fundamentação exigidos pelo n.º 2 do artigo 374.º e pelo n.º 1 do artigo 375.º do CPP, incluindo a descrição («enumeração») dos factos provados praticados pelo arguido, que devem ser considerados no seu conjunto e na sua inter-relação, com particular atenção aos elementos relevantes para o conhecimento da personalidade deste, documentada no facto ilícito típico praticado, tendo em conta o critério especial de determinação da pena estabelecido na parte final do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal (acórdão de 27.02.2019 cit.).
Como se decidiu no acórdão de 17.12.2015, proc. 520/13.7PCRGR.L1.S1 (Helena Moniz), «também no caso de uma decisão sobre a aplicabilidade de uma pena única conjunta em sede de conhecimento superveniente esta fundamentação deve existir em cumprimento do art. 374.º do CPP, e ainda do art. 71.º, n.º 3, do CP, onde expressamente se diz que "na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena" — o que nos permite considerar que o legislador entendeu que havia uma necessidade de fundamentação da decisão judicial também na parte respeitante à escolha e determinação da medida da pena, quer se trate de pena singular, quer de uma pena única conjunta, quer em casos de conhecimento "originário" do concurso de crimes, quer em situações de conhecimento superveniente. E neste seguimento o CPP estabelece no art. 375.º, n.º 1, que "a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da pena (...)»10.
16. A necessidade de fundamentação da sentença condenatória, nos termos das disposições legais mencionadas, que concretizam requisitos específicos relativamente ao regime geral estabelecido no artigo 97.º, n.º 5, do CPP, decorre diretamente do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, segundo o qual as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas nos termos previstos na lei.
O dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais resulta, como é conhecido, de razões que se extraem do princípio do Estado de direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais, que implicam, para além do mais, a necessidade de justificação do exercício do poder estadual, de modo a possibilitar o seu controlo por parte dos destinatários e dos tribunais superiores, assim se conferindo garantia efetiva ao direito de defesa, incluindo o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição11. “A fundamentação cumpre, simultaneamente, uma função de carácter objetivo – pacificação social, legitimidade e autocontrolo das decisões – e uma função de carácter subjetivo – garantia do direito ao recurso, controlo da correção material e formal das decisões pelo seu destinatário”12.
A fundamentação das decisões dos tribunais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, representa um dos aspetos do direito a um processo equitativo protegido pelo artigo 6.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos, a qual impõe o dever de os tribunais motivarem adequadamente as suas decisões, de acordo com a sua natureza13.
17. Continuando a recordar a jurisprudência deste Supremo Tribunal e o consignado no acórdão de 27.02.2019 (cit.):
17.1. Escreveu-se no acórdão de 17.06.2015, processo 488/11.4GALNH (Maia Costa): “Constitui orientação sedimentada e segura neste Supremo Tribunal a que aponta para a necessidade de, na determinação da pena unitária do concurso, se deverem observar especiais cuidados de fundamentação, na decorrência aliás do que dispõem os artigos 71.º, n.º 3, do CP, 97.º, n.º 5, e 375.º, n.º 1, do CPP, e 205.º, n.º 1 da CRP. A este propósito, o Supremo Tribunal tem vindo a considerar que a decisão que proceder ao cúmulo de penas está também submetida ao formalismo do art. 374.º, n.º 2, do CPP, devendo, portanto, indicar os fundamentos de facto e de direito que a suportam. Com efeito, e como é sabido, a punição do concurso superveniente não constitui uma operação aritmética ou automática, antes exige um julgamento (art. 472.º, n.º 1, do CPP), destinado a avaliar, em conjunto, os factos, na sua globalidade, e a personalidade do agente, conforme dispõe o art. 77.º, n.º 1, do CP. O que vale por dizer, pois, que o julgamento do concurso de crimes constitui um novo julgamento, destinado a habilitar o tribunal a produzir um juízo autónomo relativamente aos produzidos nos julgamentos dos crimes singulares: agora aprecia-se a globalidade da conduta do agente. Esse juízo global exige uma fundamentação própria, quer em termos de direito, quer de facto. Daí que a sentença de um concurso de crimes não possa deixar de conter uma referência aos factos cometidos pelo agente, tanto no que diz respeito à necessidade de citação dos tipos penais cometidos, quanto também no que concerne à descrição dos próprios factos efectivamente praticados pelo agente, na sua singularidade circunstancial, pois só ela, dando os contornos de cada crime integrante do concurso, pode informar sobre a ilicitude concreta dos crimes praticados (que a mera indicação dos dispositivos legais não revela), a homogeneidade da actuação do agente, a eventual interligação entre as diversas condutas, enfim, a forma como a personalidade deste se manifesta nas condutas praticadas. A decisão de cúmulo, podendo dispensar uma fundamentação especificada conforme o determinado no art. 374.º, n.º 2, do CPP, terá que explicitar os motivos de facto e de direito que determinaram o sentido da decisão. O que vale por dizer que, bastando uma referência sucinta aos crimes em concurso, porquanto os factos constam das respectivas sentenças condenatórias, não pode a decisão deixar de conter o núcleo que o tribunal considerou para aferir da ilicitude do facto global, a homogeneidade da acção e a projecção da personalidade nos crimes praticados”14.
17.2. No mesmo sentido, pode ler-se no acórdão de 27.01.2016, Proc. 178/12.0PAPBL.S2 (Santos Cabral), em www.dgsi.pt: «Fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação “desse bocado de vida criminosa com a personalidade”. A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos pois que a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia e frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão, bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento, mas também a recetividade à pena pelo agente deve ser objeto de nova discussão perante o concurso, ou seja, a sua culpa com referência ao acontecer conjunto, da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.” (…) a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível, mas deve refletir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência. (…) Em relação ao nosso sistema penal é o Professor Figueiredo Dias quem traça a síntese do “modus operandi” da formação conjunta da pena no concurso de crimes. Refere o mesmo Mestre que a existência de um critério especial fundado nos factos e personalidade do agente obriga desde logo a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indispensável conexão entre o disposto nos arts. 78. °-1 e 72.º-3 [leia-se agora 71.º-3], só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um ato intuitivo - da «arte» do juiz uma vez mais - ou puramente mecânica e, portanto, arbitrária. Sem prejuízo de poder conceder-se que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo art. 72.º [leia-se, agora, 71.º] nem por isso um tal dever deixa de surgir como legal e materialmente indeclinável”15.
18. Vista e examinada a fundamentação da decisão em matéria de facto (supra, 7.1), verifica-se que o acórdão se limita: (a) a, numa tabela (parte A), identificar os processos, a data dos factos de cada um deles, as datas das decisões proferidas e do respetivo trânsito em julgado, os tipos de crime (pela sua designação, sem referência às normas incriminadoras), as penas parcelares e as penas únicas aplicadas; (b) a indicar (parte B) que «resultaram nesses autos provados os factos que constam das respetivas fundamentações que aqui se dão por reproduzidos», sem referir, mesmo que sinteticamente, esses factos; (c) a indicar (parte C) que no processo 269/19.7PBMAI «foi declara extinta pelo cumprimento a 18-11-21»; (d) a enumerar outras condenações (parte D); e (d) a fazer referência e a descrever o «percurso de vida, saúde, contexto social, familiar e ocupacional do arguido» (parte F).
O acórdão é, pois, completamente omisso quanto aos factos que constituem os crimes e quanto às respetivas circunstâncias, uma vez que, como se extrai do que anteriormente se expôs, a exigência de descrição («enumeração» - artigo 374.º, n.º 2, do CPP), na fundamentação, não pode realizar-se por mera remissão, sem uma especificação mínima desses factos.
19. Quanto à fundamentação de direito, depois de verificar os pressupostos de aplicação da pena única, convocando os artigos 77.º e 78.º do CP, e de referir que «importa ainda atender às regras da punição do concurso previstas no artigo 77.º», e de salientar a necessidade de consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, diz o acórdão, na parte que agora releva: «[…] no caso de conhecimento superveniente do concurso o tribunal terá que tomar em consideração os factos no seu conjunto (isto é se eles revelam ou não um acontecimento isolado na vida do agente ou antes reflexo de uma tendência ou carreira criminosa) averiguando-se ocorre ou não ligação entre os factos em concurso, a diversidade ou igualdade de bens jurídicos violados, a sua frequência bem como a personalidade do arguido (não bastando a simples referência abstrata a essa personalidade, exigindo-se antes uma investigação sobre ela, nomeadamente através de relatório social)”.
Porém, a este respeito apenas diz que os crimes – cuja factualidade se desconhece – «foram praticados num espaço de tempo concentrado (sensivelmente durante um ano) e num mesmo contexto – de dependência de drogas – e são ofensivos essencialmente do mesmo bem jurídico».
Limitando-se a mencionar que «No caso concreto estão em causa: 40 crimes de furto; 1 crime de roubo na forma tentada; 1 crime de condução perigosa; 1 crime de resistência e coação.»
20. Face ao que anteriormente ficou dito quanto aos requisitos da fundamentação e quanto aos critérios de determinação da pena única, justifica-se, pois, concluir que não podem considerar-se preenchidas as exigências legais de fundamentação relativamente à descrição dos factos e às suas circunstâncias de interesse para a conexão entre eles, para efeitos de apreciação da sua gravidade concreta, considerada na sua globalidade, e ao modo como, pelos fatores e circunstâncias relevantes, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, se relacionam com a personalidade do arguido, neles projetada e por eles revelada, o que impede a constituição da base necessária à aplicação do critério especial de determinação da pena única estabelecido no artigo 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Penal, segundo o qual, na medida da pena, são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Dizendo respeito a matéria de facto cuja fixação se encontra subtraída aos poderes de apreciação e decisão deste Tribunal, impedindo a verificação do respeito pelo critério de proporcionalidade na determinação da pena, que, como se observou (supra 11 e 12 e 14 e 15), se deve aferir em função da gravidade dos crimes e da atividade criminosa, no seu conjunto, não pode esta omissão ser adequadamente suprida na decisão do recurso.
21. Nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, é nula a decisão que não contiver as menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º, nomeadamente a enumeração dos factos provados, necessários à fundamentação e decisão de direito, incluindo os fundamentos que presidiram à medida da pena, nos termos do artigo 375.º do CPP e do artigo 71.º, n.º 3 do Código Penal.
A “enumeração” ou descrição especificada dos factos relevantes para a incriminação e para a determinação da pena, na sua totalidade, ou, pelo menos, de forma sumária, na medida do necessário a verificar e a ponderar a sua conexão e a sua relação com a personalidade do arguido, neles manifestada, nos termos exigidos pelo artigo 77.º do Código Penal para determinação da pena única (neste sentido, por todos, o acórdão de 18.09.2013, no proc. 968/07.6JAPRT-A.S1), não se realiza por remissão para o conteúdo de outros atos processuais (cfr. acórdão deste tribunal de 25.10.1995, no proc. 047762)16.
Esta nulidade, embora não expressamente arguida – mas pressuposta na pretensão do recorrente – ao afirmar que «apesar de a decisão não referir expressamente os fundamentos da medida da pena aplicada» – deve ser conhecida oficiosamente em recurso (artigo 379.º, n.º 3, do CPP).
A verificação e declaração da nulidade obstam ao conhecimento das questões colocadas no recurso, nomeadamente das relacionadas com a medida da pena única aplicada (artigo 608.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 4.º do CPP).
Quanto a custas
22. De acordo com o estabelecido no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. O que não é o caso.
III. Decisão
23. Pelo exposto, acorda-se na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:
a) Declarar nulo o acórdão recorrido, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a), 1.ª parte, e n.º 2, do CPP, por omissão de fundamentação de acordo com o n.º 2 do artigo 374.º e com o n.º 1 do artigo 375.º do mesmo diploma, o qual deve, por isso, ser reformulado para suprimento da nulidade, tendo em conta o que na fundamentação se deixou expresso e o disposto nos artigos 71.º, 77.º, n.º 1, e 78.º, n.º 1, do Código Penal.
b) Não tomar conhecimento das questões suscitadas no recurso, que, assim, fica prejudicado.
Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 28 de maio de 2025.
José Luís Lopes da Mota (relator)
Carlos Campos Lobo
Jorge Raposo
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1. Ac. STJ de 03.07.2024, ainda inédito. Relatora Ana Barata de Brito, processo 72/73.0GCPBL.C1.S1.
2. Em particular nos acórdãos de 27.11.2019, Proc. n.º 3073/19.9T8GMR-S1, e de 13.03.2024, Proc. n.º 2537/10.4TDPRT.P3.S1, em www.dgsi.pt
3. Sobre este ponto, o acórdão de 13.03.2024, Proc. n.º 2537/10.4TDPRT.P3.S1, e, com exaustiva indicação de jurisprudência e de doutrina, o acórdão de 25.10.2017, Proc. 163/10.7GALNH.S1 (Raul Borges), em www.dgsi.pt.
4. Assim, designadamente, conforme jurisprudência reiterada, o acórdão de 23-05-2018, processo n.º 799/15.OJABRG.S1, em www.dgsi.pt)
5. Acórdão de 27.02.2019, no processo n.º 1960/18.0T8VCT.S1, em www.dgsi.pt.
6. Cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º
7. Sobre o modelo de determinação da pena, cfr. Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, em particular pp. 475, 481, 547, 563, 566 e 574, e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 3.ª reimp., 2011, pp. 232-357, que se seguem.
8. Por todos, o acórdão de 19.12.2023, Proc. n.º 785/21.0PLLSB.1.L1.S1, em www.dgsi.pt.
10. No mesmo sentido, refletindo jurisprudência constante, o acórdão de 18.09.2013, no proc. 968/07.6JAPRT-A.S1
11. Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., anotações ao artigo 205.º, Vol. II, 4.ª ed.
12. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa anotada, Tomo III, 2007, anotações III e IV ao artigo 205.º
13. Assim, o acórdão do TEDH de 09.07.2007, no caso Tatishvili c. Rússia, n.º 1509/02, e outros nele mencionados
14. Assim, também, entre outros, reflectindo jurisprudência constante, os acórdãos de 15.05.2013, no Proc. nº 125/07.1SAFRD.S1, e de 06.02.2014, no Proc. n.º 627/07.PAESP.P2.S1 (todos em www.dgsi.pt).
15. Assim também, entre outros, o acórdão de 18.09.2013, no Proc. 968/07.6JAPRT-A.S1 (Isabel Pais Martins), em www.dgsi.pt.
16. Assim, o acórdão de 8.11.2017, Proc. n.º 22/14.4PEFUN.L1.S1.