Quando o requerente/inquilino chegava a casa, deparou-se com parte dos seus bens pessoais em malas abertas e avulso no exterior e junto à casa arrendada.
Quando colocou a chave na fechadura, o requerente constatou também que esta tinha sido trocada, impedindo-o assim de entrar em casa.
Foi proferida uma primeira decisão, sem prévia audição da requerida, cujo dispositivo é o seguinte: «(…) julgo procedente o procedimento, na parte sob apreciação, e em consequência, determino que a requerida proceda à entrega dos bens pessoais do requerente que se encontravam no locado – documentos e utensílios de cozinha».
Dado o contraditório à requerida, esta deduziu oposição.
Após a realização de nova audiência de produção de prova, foi proferida nova decisão, cujo dispositivo é o seguinte: «julga-se improcedente a oposição deduzida pela Requerida … mantendo-se a providência cautelar decretada nos seus precisos termos».
A requerida interpôs recurso de apelação desta decisão, tendo formulado conclusões que assim sintetizamos:
1 – O conteúdo dos pontos 2.1.2, 2.1.3, 2.1.5, 2.1.11, 2.1.12, 2.1.13, 2.1.14, 2.1.15 e 2.1.20 do enunciado dos factos provados (EFP) deve ser julgado não provado.
2 – O conteúdo dos pontos 2.2.1 e 2.2.2 do enunciado dos factos não provados (EFNP) deve ser julgado provado.
3 – Devem, ainda, ser julgados provados os seguintes factos, alegados pela recorrente:
- Entre 08.08.2024 e 13.08.2024, a requerida não entrou no imóvel e colocou os bens pessoais do requerente no exterior da casa;
- Entre 08.08.2024 e 13.08.2024, a requerida não mudou a fechadura do imóvel;
- Entre essas datas, a requerida não foi ao local, nem sequer esteve no Algarve;
- Apenas em 31 de Agosto de 2024, teve oportunidade de se deslocar ao Algarve e, em concreto ao imóvel, tendo constatado que o mesmo tinha sido abandonado, completamente esvaziado de bens e pertences.
4 – As alterações que devem ser introduzidas no EFP e no EFNP determinam a procedência do recurso e a revogação da decisão que manteve a providência decretada.
5 – Ao manter a providência na parte em que foi ordenada a restituição de utensílios de cozinha, a decisão recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC, por condenação em objecto diverso do pedido.
As questões a decidir são as seguintes:
1 – Nulidade da decisão recorrida;
2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
3 – Consequências da solução dada às questões anteriores.
Na decisão recorrida, foram julgados indiciariamente provados os seguintes factos:
2.1.1. Encontra-se inscrito, a favor da requerida, o prédio urbano sito na Urbanização (…) – (…), n.º 22, Albufeira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob a descrição n.º (…) e inscrito na matriz sob o artigo matricial (…), da freguesia (…) e (…).
2.1.2. No dia 3 de Janeiro de 2024, a requerida remeteu uma mensagem por WhatsApp ao requerente, informando-o de que a renda podia ser: «sem recibo € 1.000,00 mais luz, água e wi-fi. Com recibo € 1.250,00 mais as despesas».
2.1.3. Ambos acordaram, sob proposta da requerente, que as rendas seriam pagas sem contrato de arrendamento reduzido a escrito.
2.1.4. Tanto que o requerente transferiu para a conta da requerida o montante total de € 5.000,00 (cinco mil euros), inerente às rendas de Março a Julho de 2024.
2.1.5. A requerida começou a pressionar de forma sucessiva, incisiva, para que o requerente abandonasse o respectivo imóvel.
2.1.6. Foi proposta uma acção de despejo (n.º 587/24.2T8ABF) proposta no dia 4 de Junho de 2024 pela aqui requerida, contra o aqui requerente. Aí, a autora alega ser dona da fracção “X” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º (…), freguesia de (…) e em Fevereiro de 2024 ter acordado dar a fracção de arrendamento por um ano ao réu por € 1.000,00/mês (primeiros seis meses) e € 1.200,00/mês (a partir do 7º mês), não tendo este entretanto fornecido os seus dados para formalização do contrato. Por isso ter-lhe-á solicitado a entrega do imóvel. Além do mais, conclui pedindo (…) b) Seja o réu condenado a restituir, de imediato, o locado livre de pessoas e bens. Houve contestação e reconvenção. Foi proferido despacho de aperfeiçoamento.
2.1.7. No dia 8 de Agosto de 2024, quando o requerente chegou à sua casa arrendada, constatou que tinham cortado o fornecimento de água e luz, serviços estes que se encontravam em nome da requerida.
2.1.8. No dia 13 de Agosto de 2024, pelas 13h, quando o requerente chegava a casa, deparou-se com parte dos seus bens pessoais em malas abertas e avulso no exterior e junto à casa arrendada.
2.1.9. Quando colocou a chave na fechadura, o requerente constatou também que esta tinha sido trocada, impedindo-o assim de entrar em casa.
2.1.10. De imediato, dirigiu-se ao destacamento da Guarda Nacional Republicana de Albufeira, apresentando uma queixa-crime contra a senhoria e requerida, constante do auto de notícia, datado de 13/08/2024, e com o NUIPC (…).
2.1.11. No dia 14 de Agosto de 2024, o requerente enviou uma mensagem à senhoria e requerida, por WhatsApp, dando-lhe conta da ocorrência de que parte dos seus bens pessoais se encontravam no exterior junto à porta do imóvel arrendado.
2.1.12. Que não conseguiu abrir a porta, porque a fechadura tinha sido mudada.
2.1.13. E questionando a proprietária se era possível retirar os restantes bens que se encontravam, e que se presume, ainda se encontrem no interior do locado, esta nada disse.
2.1.14. Privando-o ainda do acesso aos seus pertences pessoais que se encontram no seu interior.
2.1.15. O restante dos seus bens, ficaram retidos dentro do imóvel sem que o mesmo possa ter acesso aos mesmos, por consequência da troca de fechadura, são eles: vários documentos, cartão de crédito e utensílios de cozinha.
2.1.16. O requerente, face à conduta da requerida, após o dia 13 de Agosto teve de pernoitar, conjuntamente com a namorada, em hotéis.
2.1.17. Tiveram de pedir a amigos para os ajudarem e para lhes darem abrigo até encontrarem uma nova casa.
2.1.18. Tiveram de pedir a amigos para os ajudarem e para lhes darem abrigo até encontrarem uma nova casa.
2.1.19. Aliás, os bens, roupa, sapatos, utensílios de uso doméstico do requerente foram colocados no exterior, tiveram de ficar acomodados temporariamente num armazém que pediram emprestado, e alguns acabaram mesmo por se estragar.
2.1.20. Impediu, até à presente data, que o requerente tivesse acesso aos seus bens pessoais e que muita falta lhe fazem para o seu dia a dia e trabalho.
Na decisão recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:
2.2.1. Na sequência da instauração da ação de despejo referida em 2.1.6., em data não concretamente apurada do mês de Julho de 2024, o requerente abandonou, por iniciativa própria, o imóvel identificado em 2.1.1..
2.2.2. Apenas em 31/08/2024, quando a requerida se deslocou ao imóvel, veio a encontrar a casa devoluta, livre de pessoas e bens, não tendo o requerente deixado qualquer bem que lhe pertencesse.
No requerimento inicial, o recorrido pediu a condenação da recorrente a restituir os seguintes objectos: passaporte e carta de condução, dois relógios suíços, vários discos rígidos com dados de clientes, dinheiro, Apple ipad, Apple air pods, TV 43 inch Hisense, documentos da sua namorada, cartões de crédito, cartão SIM, cartão de crédito da sua namorada, joias de ambos, uma caneta Mont Blanc, vários USB Stick, documentos de que a sua namorada necessitava para tratar da autorização de residência em Setembro de 2024, um smartphone Samsung e um smartphone Motorola. Não pediu a condenação da recorrente a restituir utensílios de cozinha.
Não obstante, na decisão que proferiu antes de ser dado o contraditório à recorrente, o tribunal a quo apenas ordenou que esta procedesse à entrega dos seguintes bens do recorrido: «documentos e utensílios de cozinha». O que a segunda decisão manteve.
Ao ordenar a restituição de utensílios de cozinha, o tribunal a quo condenou a recorrente a restituir algo que não foi pedido. Daí que a recorrente tenha razão ao arguir a nulidade da decisão recorrida. Trata-se de uma condenação em objecto diverso do pedido. Logo, verifica-se a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC.
Consequentemente, a condenação da recorrente na restituição de utensílios de cozinha não poderá subsistir, devendo revogar-se a decisão recorrida nessa parte.
2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Iniciamos este ponto salientando que, atento o disposto no artigo 130.º do CPC, que consagra o princípio da limitação dos actos, apenas cumpre analisar a impugnação dos pontos do EFP e do EFNP cuja alteração possa relevar para a decisão do recurso. Tudo aquilo que se mostre irrelevante, não será analisado, por inutilidade.
A recorrente pretende que o conteúdo dos pontos 2.1.2, 2.1.3, 2.1.5, 2.1.11, 2.1.12, 2.1.13, 2.1.14, 2.1.15 e 2.1.20 do EFP seja julgado não provado.
Após a redução do pedido e o que concluímos no ponto anterior, apenas está em apreciação a condenação da recorrente a restituir os documentos, pertencentes ao recorrido, que este alegou terem ficado no interior do locado, a saber, passaporte, carta de condução e cartões de crédito. Sendo assim, a generalidade da referida matéria de facto não tem relevância para a decisão do recurso.
Com efeito, é, para este efeito, indiferente:
- Se a recorrente e o recorrido celebraram o contrato de arrendamento nos termos descritos nos pontos 2.1.2 e 2.1.3, ou noutros;
- Se a recorrente pressionou, ou não, o recorrido a abandonar o locado (ponto 2.1.5);
- Se o recorrido enviou, ou não, à recorrente, a mensagem descrita nos pontos 2.1.11 a 2.1.14.
Interessa, sim, desde logo, o que consta dos pontos 2.1.8 e 2.1.9 do EFP, que não foi posto em causa no presente recurso. Está, com efeito, indiciariamente provado que, no dia 13.08.2024, o requerente se deparou com bens pessoais seus em malas abertas e avulso no exterior e junto ao locado, e que, quando colocou a chave na fechadura, constatou que esta tinha sido trocada, o que o impediu de entrar. Perante isso, é irrelevante saber se o recorrido enviou, à recorrente, uma mensagem queixando-se da referida situação. Interessa é que esta se verificou.
Também interessa o que consta do ponto 2.1.15 do EFP, contra cujo conteúdo a recorrente se insurge. Tendo em conta o que concluímos no ponto anterior, está em causa saber se existe fundamento para julgar indiciariamente provado que, dentro do locado, ficaram retidos o passaporte, a carta de condução e cartões de crédito pertencentes ao recorrido.
A audição da globalidade da prova produzida impõe uma resposta negativa a esta questão. Não há fundamento para concluir, com um mínimo de segurança, mesmo no âmbito de um procedimento cautelar, que o passaporte, a carta de condução e os cartões de crédito do recorrido ficaram no interior do locado.
A única testemunha que afirmou terem ficado bens do recorrido no interior do locado foi (…), namorada daquele. Tratou-se de uma afirmação feita em termos muito vagos: tais bens seriam o passaporte e o cartão de crédito do recorrido, o cartão de crédito da testemunha e «utensílios de casa»[1].
O depoimento da testemunha (…) não foi corroborado por qualquer outro meio de prova. Mais, aquilo que resulta dos depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…), bem mais esclarecedores que o de (…), é que, posteriormente ao episódio descrito nos pontos 2.1.8 e 2.1.9 do EFP, o recorrido conseguiu entrar no locado (nem sequer tendo cuidado de, ao sair, fechar a porta de acesso à rua, que ficou aberta) e que aí não ficou qualquer bem seu.
Sendo assim, o conteúdo do ponto 2.1.15 do EFP deverá passar a constar do EFNP. O mesmo deverá acontecer com o conteúdo do ponto 2.1.20 do EFP, uma vez que pressupõe que tivessem ficado bens pessoais do recorrido no interior do locado, o que não se provou ter acontecido.
Como concluiremos no ponto seguinte da presente fundamentação, a simples transição do conteúdo do ponto 2.1.15 do EFP para o EFNP é suficiente para determinar a procedência do recurso. Daí que seja inútil analisar se o conteúdo dos pontos 2.2.1 e 2.2.2 do EFNP deve ser julgado provado e se devem ser aditados, ao EFP, os factos novos que a recorrente enuncia nas suas alegações.
3 – Consequências da solução dada às questões anteriores:
Não se tendo provado que tivesse ficado, no interior do locado, qualquer bem pertencente ao recorrido, a recorrente nada tem de restituir a este último. Consequentemente, o recurso deverá ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida.
Delibera-se, pelo exposto:
- Eliminar os pontos 2.1.15 e 2.1.20 do enunciado dos factos provados;
- Acrescentar, ao enunciado dos factos não provados, o seguinte:
«2.2.3. Os restantes bens do requerente ficaram retidos no interior do locado, sem que ele possa ter acesso aos mesmos, por consequência da troca de fechadura; são eles: vários documentos, cartão de crédito e utensílios de cozinha.
2.2.4. Impediu, até à presente data, que o requerente tivesse acesso aos seus bens pessoais e que muita falta lhe fazem para o seu dia a dia e trabalho.»
- Julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se sem efeito a providência cautelar decretada pelo tribunal a quo.
Custas, em ambas as instâncias, a cargo do recorrido.
Notifique.
22.05.2025
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário (1.ª adjunta)
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho (2.º adjunto)
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[1] E não «utensílios de cozinha», como, por manifesto erro do tribunal a quo ao proferir a primeira decisão, ficou a constar do EFP e, em consequência disso, do dispositivo.