A pretensão da recorrente de retirar proveito da actuação desenvolvida pelo seu marido em seu nome, mas de dela se demarcar na medida em que isso lhe convenha, apenas demonstra má-fé, consubstanciando um abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil).
Autora/recorrida: (…).
Ré/recorrente: (…).
Pedidos:
Anulação do contrato de compra e venda, celebrado entre a autora, como compradora, e a ré, como vendedora, que teve por objecto o veículo automóvel com a matrícula (…);
Condenação da ré a restituir o preço à autora, no montante de € 16.000,00, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, calculados à taxa legal em vigor, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Sentença recorrida:
Declarou a resolução do contrato de compra e venda, celebrado entre a autora, como compradora, e a ré, como vendedora, que teve por objecto o veículo automóvel com a matrícula (…);
Determinou a entrega do veículo, pela autora à ré, e a devolução, pela ré à autora, do valor pago de € 16.000,00, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, calculados à taxa legal em vigor, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Conclusões do recurso:
1 – Não foi dado como provado que, no dia 04.09.2020, a autora (parte nos autos) tenha denunciado o defeito à ré (parte nos autos), e muito menos se provou, e por isso não foi dado como provado, que a ré tenha tido conhecimento de uma qualquer denúncia do defeito antes da recepção da carta registada enviada pela autora em 06.10.2020.
2 – A autora não logrou provar que a ré teve conhecimento do defeito antes de 06.10.2020, e esse ónus probatório cabia àquela.
3 – Nos termos do artigo 916.º, n.º 2, do Código Civil, a autora deveria ter denunciado o defeito à ré no prazo de trinta dias depois do conhecimento do mesmo (04.09.2020), o que não aconteceu, porque a carta de denúncia de tal defeito apenas foi enviada em 06.10.2020.
4 – Quer isto dizer que, nos termos do artigo 917.º do Código Civil, a acção de anulação caducou por terem decorrido mais de 30 dias, contados entre o dia do conhecimento do defeito e o dia da realização da denúncia.
5 – Além disso, decorreram mais de seis meses entre a data do conhecimento do defeito, mesmo assumindo que aconteceu em 04.09.2020, e a data da citação da ré, ou seja, em 15.03.2021, o que, nos termos do artigo 917.º do Código Civil, também leva à caducidade da acção de anulação.
6 – Na sentença recorrida fora assim violados os artigos 916.º e 917.º do Código Civil.
7 – Na mesma decisão, não são analisados os prazos legais invocados e a sua aplicabilidade ou inaplicabilidade ao caso concreto, não se especificando os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, o que leva à nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC.
8 – No dia 07.02.2023, respondendo ao douto despacho da Mma. Juiz a quo proferido na sequência do requerimento apresentado pela ré, a autora informou e confessou nos autos que a viatura tinha naquela data 179.076 kms. (requerimento com a referência 9414919), ou seja, mais 33.576 kms., sendo certo que, entretanto, passou mais um ano e meio, encontrando-se sempre a viatura a ser utilizada pela autora.
9 – Entre a data da aquisição do automóvel e a data da sentença decorreram mais de 4 anos, sendo um facto notório que a viatura desvalorizou nas mãos da autora, que sempre a utilizou e serviu-se da mesma todo este tempo.
10 – Peticionar-se a devolução integral do valor pago consubstancia um abuso de direito, tal como foi alegado (artigo 334.º do Código Civil), que se traduz num enriquecimento ilegítimo e até ilícito da autora à custa da ré.
11 – A decisão de resolução do contrato de compra e venda tem efeitos retroactivos à data da sua celebração, não sendo possível presentemente a autora entregar o veículo à ré nas condições em que estava à data da celebração do negócio, devido ao uso que lhe dado ao longo de 4 anos.
12 – Conclui-se que importaria apenas condenar a ré a restituir o preço, deduzido do valor daquele uso até à presente data, a liquidar nos termos do disposto no artigo 609.º, n.º 2, do CPC.
13 – Na sentença recorrida deveriam ter sido ponderados os factos que consubstanciam a actuação da autora imbuída de abuso de direito, e não foram, apesar de alegados, o que traduz uma omissão de pronúncia, que conduz à nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do CPC.
Questões a decidir:
1 – Admissibilidade da correcção da sentença recorrida;
2 – Nulidade da sentença;
3 – Caducidade do direito da recorrida;
4 – Abuso de direito por parte da recorrida.
Factos julgados provados pelo tribunal a quo:
1 – No dia 13 de Março de 2020, foi celebrado entre a autora e a ré um contrato de compra e venda verbal de veículo automóvel.
2 – O objecto do contrato foi o veículo automóvel da marca Mercedes-Benz, modelo A 180 CDI, a gasóleo, com a matrícula (…), com o número de quadro (…).
3 – O preço acordado para a venda do veículo em causa foram € 16.000,00 (dezasseis mil euros).
4 – A aquisição do referido veículo deveu-se essencialmente à conjugação dos seguintes factores: a) Ao facto da autora pretender adquirir um veículo automóvel para as suas deslocações diárias, bem como da sua filha, uma vez que o veículo automóvel anterior, da marca Toyota, modelo Corolla 1.8D de 1990, ter sido alvo de um acidente e o valor da reparação ser superior ao valor de mercado; b) Ao facto de ambas pretenderem que o veículo fosse económico, motivo pelo qual a escolha recaía sobre um veículo a gasóleo, dado o número elevado de quilómetros diários que teriam de fazer; c) Que o veículo fosse considerado seguro.
5 – Com efeito, a autora teve conhecimento do veículo automóvel objecto dos presentes autos da seguinte forma:
6 – Em virtude do acidente do veículo da marca Toyota, modelo Corolla 1.8D de 1990, a autora, por recomendação de um amigo, deslocou-se à oficina da propriedade do marido da ré, (…) – Reparação Auto e Peças, Sociedade Unipessoal, Lda., com vista à reparação da viatura em causa.
7 – Uma vez que o valor da reparação era, segundo informações do próprio, superior ao valor comercial do veículo, o marido da ré, (…), aconselhou a autora e a sua filha a adquirirem outro veículo automóvel, tendo indicado que tinha vários veículos para venda.
8 – Um desses veículos era aquele que pertencia à sua mulher, ora ré, o qual corresponde à viatura objecto dos presentes autos.
9 – Após análise do veículo, a autora e a sua filha consideraram que o mesmo correspondia a um bom negócio, principalmente porque o mesmo pertencia à família do (…), pessoa sobre a qual, naquele momento, tinham confiança em virtude das informações transmitidas.
10 – A autora sabia que o carro não era novo, com ano de fabrico em 2015, contudo, e uma vez que apresentava uma quilometragem correspondente a cerca de 145.500 km, entendeu que o preço era o correcto para um veículo com aquela quilometragem.
11 – Por força do referido contrato de compra e venda, a autora procedeu ao registo de propriedade do veículo com a matrícula (…) no dia 13 de Março de 2020 que foi realizado pela solicitadora (…), por conhecimento do marido da ré.
12 – Tendo igualmente a autora procedido à transferência do montante acordado através da sua conta bancária domiciliada na Caixa Geral de Depósitos para a conta bancária da ré, junto Banco (…), como o IBAN (…).
13 – Porém, o veículo em causa tinha, em 4 de Junho de 2019, sido alvo de uma intervenção na Mercedes-Benz na Holanda, tendo ficado registado no histórico do veículo a seguinte quilometragem: 189.486 km.
14 – O veículo automóvel em causa foi objecto de uma adulteração e ocultação de quilómetros, pois que os 145.500 km inicialmente transmitidos não correspondiam à quilometragem real do veículo, característica que inicialmente lhe foi transmitida pelo vendedor e que foi determinante para a aquisição do mesmo.
15 – O veículo em causa possui mais cerca de 44.000 km em relação ao inicialmente transmitido.
16 – Após a obtenção desta informação, a filha da autora contactou telefonicamente o marido da ré, (…), com o intuito de denunciar o problema existente, tendo tais contactos tido início no dia 4 de Setembro de 2020.
17 – No mesmo dia, em 4 de Setembro de 2020, a filha da autora deslocou-se à oficina do marido da ré com a informação obtida na Mercedes-Benz, com o intuito de resolver a questão.
18 – Com efeito, inicialmente, o marido da ré revelou que pretendia resolver a questão de forma amigável, tendo procurado dissuadir a filha da autora na anulação do contrato de compra e venda, uma vez que o veículo era de boa marca e estava em boas condições.
19 – Com vista a resolver-se a questão de forma amigável, a filha da autora ficou de comunicar à autora as seguintes propostas para a mesma pensar: (i) anulação do contrato de compra e venda, com devolução do dinheiro; (ii) manutenção do contrato, com o reembolso do diferencial do valor pago a mais em virtude dos quilómetros do veículo.
20 – Sucede que, uma semana mais tarde, quando a autora contactou (…) para o informar que pretendia de facto a anulação do contrato de compra e venda celebrado com a ré, o mesmo abandonou por completo o registo amigável, tendo inclusivamente ameaçado a autora se a mesma fosse para tribunal.
21 – Em consequência da posição assumida pela ré, a autora enviou-lhe, em 6 de Outubro de 2020, uma carta, por intermédio da qual, para além de denunciar o defeito existente na viatura, informava que pretendia a devolução do dinheiro pago, com a respectiva entrega da viatura.
22 – Perante a ausência de respostas da parte da ré, a autora, através da sua anterior mandatária, em 3 de Dezembro de 2020, enviou uma nova missiva à ré, através da qual, por um lado, expunha novamente a situação e, por outro, procurava resolver amigavelmente o assunto.
23 – Esta missiva foi alvo de resposta, por parte do mandatário da ré, no dia 15 de Dezembro de 2020, declinando qualquer responsabilidade no assunto.
24 – O veículo em causa teve entrada em Portugal em 21 de Dezembro de 2019, com proveniência da Alemanha.
25 – A pessoa responsável pela entrada do veículo em mercado nacional foi (…), residente na Rua (…), n.º 15, Leiria, enquanto proprietário.
26 – Sendo certo que o veículo possuía, alegadamente, 143.038 km.
27 – Com vista a compreender os quilómetros reais que o veículo neste momento possa ter, a autora submeteu o veículo a um teste de investigação internacional, tendo o mesmo descoberto que há um registo, datado de 8 de Novembro de 2019, de que o veículo foi sujeito a uma intervenção com 208.899 km.
Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:
1 – A ré e o marido desconheciam a situação descrita em 14 e 15.
2 – A quilometragem nunca foi um requisito que a autora tivesse alegado como essencial, nunca tendo verbalizado essa essencialidade ao marido da ré, e muito menos a esta, com quem pouco conversou.
3 – Mesmo que o veículo tivesse mais 44.000 km, o preço de mercado seria o mesmo.
4 – Cumpria todos os requisitos de segurança, conservação e qualidade, sendo irrelevante acumular mais 44.000 km.
5 – A autora solicitou uma vistoria prévia ao carro por um perito, que confirmou tais requisitos.
Na peça processual em que contra-alegou, a recorrida incorporou um requerimento, dirigido ao tribunal a quo, de rectificação da sentença recorrida. O tribunal a quo não se apercebeu desse requerimento, pelo que remeteu os autos ao tribunal ad quem sem o decidir. Daí que, por despacho proferido pelo relator, os autos tenham voltado ao tribunal a quo para esse efeito.
O tribunal a quo proferiu, então, despacho com o seguinte teor:
«Requerimento de retificação da sentença: Tratando-se de lapso de escrita, evidente da confrontação do dispositivo com o corpo da sentença, decide-se, ao abrigo do disposto no artigo 614.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, retificar a sentença proferida nos autos, devendo, passar a constar que o valor de € 16.000,00 a entregar pela Ré à Autora é acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal em vigor, desde a data de citação até efetivo integral pagamento.»
Em seguida, a recorrente apresentou um requerimento cujo teor é o seguinte:
«1 – O artigo 614.º, n.º 2, do CPC, prevê que em caso de recurso a retificação da sentença só pode ter lugar antes de ele subir.
2 – Ora, compulsados os autos, verifica-se que a retificação teve lugar após a subida do recurso.
Conclusão:
Tendo a retificação da sentença sido efetuada depois de o recurso subir, não é a mesma admissível por se mostrar intempestiva, sob pena de se encontrar violado o artigo 614.º, n.º 2, do CPC.»
A recorrente não tem razão.
A rectificação da sentença foi requerida antes da subida dos autos ao tribunal ad quem. Só por lapso os autos subiram ao tribunal ad quem antes de o tribunal a quo ter apreciado aquele requerimento, lapso esse prontamente detectado e resolvido nos termos acima descritos. Daí que o n.º 2 do artigo 614.º do CPC não tenha sido violado. Seria absurdo que um pedido de rectificação da sentença tempestivamente formulado não pudesse ser apreciado e atendido devido a um lapso cometido, não pela parte, mas pelo próprio tribunal.
2 – Nulidade da sentença:
Segundo a recorrente, a sentença recorrida é nula, por duas razões:
- Porque «não são analisados os prazos legais invocados e a sua aplicabilidade ou inaplicabilidade ao caso concreto, não se especificando os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, o que leva à nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC»;
- Porque não foram «ponderados os factos que consubstanciam a actuação da autora imbuída de abuso de direito, (…) apesar de alegados, o que traduz uma omissão de pronúncia, que conduz à nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do CPC».
2.1. Ao contrário do que a recorrente afirma, a sentença recorrida fundamenta a decisão de julgar improcedente a excepção de caducidade. Essa fundamentação é a seguinte:
«Vem a autora pedir a anulação do contrato de compra venda de veículo automóvel celebrado entre as partes e, consequentemente, a condenação da ré na devolução do montante de € 16.000,00 (dezasseis mil euros), por força da desconformidade verificada no veículo (km a mais do que os indicados).
As relações assim estabelecidas entre autora e ré conformam juridicamente um contrato de compra e venda, cujo objeto a autora alega ser defeituoso, pelo que a situação concreta deve ser avaliada sob o regime do exercício dos direitos do comprador de coisa defeituosa estabelecido no Código Civil, cuja regulamentação está prevista nos artigos 913.º e ss. do Código Civil.
Dispõe o artigo 913.º do referido Código que se a coisa vendida sofrer vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente (anulabilidade por erro ou dolo), em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
O artigo 916.º, n.º 2, do Código Civil, sob a epígrafe denúncia do defeito, estabelece que, “a denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa”. Por seu turno, dispõe o artigo 917.º do Código Civil, que a acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.º 2 do artigo 287.º.
No caso concreto, ficou provado que o veículo automóvel foi vendido, no dia 13 de março de 2020, pela ré à autora, e foi objeto de uma adulteração e ocultação de quilómetros, pois que os 145.500 Km inicialmente transmitidos não correspondiam à quilometragem real do veículo, característica que inicialmente lhe foi transmitida e que foi determinante para a aquisição do mesmo (mais cerca de 44.000 Km do que informado). Provou-se, ainda, que a autora teve conhecimento do defeito em 4 de setembro de 2020 e que a sua filha contactou o marido da ré, denunciando o defeito nesse dia, sendo que, e em consequência da posição assumida pela Ré, a Autora enviou-lhe, em 6 de outubro de 2020, uma carta, por intermédio da qual, para além de denunciar o defeito existente na viatura, informava que pretendia a devolução do dinheiro pago, com a respetiva entrega da viatura.
Pelo exposto, atenta a simplicidade e sem necessidade de mais considerações, verifica-se que não se verifica a invocada exceção de caducidade.»
Perante isto, não faz sentido afirmar-se que, na sentença recorrida, o tribunal a quo não fundamentou a decisão de julgar improcedente a excepção de caducidade.
2.2. Nos artigos 38º a 44º da contestação, a recorrente alega, em síntese, que a pretensão da recorrida de anulação do contrato de compra e venda, com reembolso da totalidade do preço, constitui um abuso de direito, porquanto o decurso do tempo e a utilização do veículo desvalorizaram-no, ao que acresce o facto de este ter sofrido um acidente de viação.
Tal como a recorrente sustenta, esta questão não foi conhecida na sentença recorrida, o que determina a nulidade desta, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, do CPC.
Em cumprimento do n.º 1 do artigo 665.º do CPC, conheceremos da questão do alegado abuso de direito por parte da recorrida no ponto 4.
3 – Caducidade do direito da recorrida:
Como resulta da transcrição a que procedemos em 2.1, o tribunal a quo julgou improcedente a excepção de caducidade com base em fundamentação que assim se resume:
- O veículo foi vendido em 13.03.2020;
- A recorrida tomou conhecimento do defeito em 04.09.2020;
- A filha da recorrida denunciou o defeito, ao marido da recorrente, em 04.09.2020;
- Em consequência da posição assumida pela recorrente, a recorrida enviou-lhe, em 06.10.2020, uma carta através da qual, além de denunciar o defeito, informou que pretendia entregar o veículo contra a devolução do preço que por ele pagou;
- Pelo que foram respeitados os prazos estabelecidos pelo n.º 2 do artigo 916.º do Código Civil.
A recorrente contrapõe, em síntese, o seguinte:
- Dos pontos 16 a 19 do enunciado dos factos provados (EFP) não se retira que a recorrida ou a filha desta tenham denunciado o defeito do veículo à recorrente em 04.09.2020, mas apenas que houve conversas entre a filha da recorrida e o marido da recorrente;
- Não se provou que a recorrente haja tomado conhecimento de qualquer denúncia do defeito antes da recepção da carta registada que a recorrida lhe enviou em 06.10.2020;
- Pelo que não foi respeitado o prazo de 30 dias estabelecido no n.º 2 do artigo 916.º do Código Civil;
- Por outro lado, decorreram mais de 6 meses entre a data em que a recorrida tomou conhecimento do defeito (04.09.2020) e aquela em que a recorrente foi citada para a presente acção (15.03.2021);
- Pelo que também não foi respeitado o prazo de 6 meses estabelecido no artigo 917.º do Código Civil.
A recorrente não tem razão.
3.1. As partes do contrato de compra e venda do veículo são a recorrente e a recorrida, respectivamente vendedora e compradora. Contudo, daí não decorre, como de forma simplista a recorrente sustenta, que só se possa considerar efectuada a denúncia do defeito do veículo na data em que ela recebeu a carta registada que a recorrida lhe enviou em 06.10.2020.
Resulta dos pontos 6 a 9 do EFP que, durante a fase de negociação da compra e venda do veículo, a recorrida e a filha desta apenas contactaram com o marido da recorrente, que actuou em representação desta. A recorrente apenas interveio na celebração do contrato, intervenção essa reveladora da sua concordância com a actuação levada a cabo pelo seu marido, durante a fase da negociação, em sua representação.
Sendo assim, tem de se entender que o nexo de representação da recorrente pelo seu marido também abrange o período posterior à celebração do contrato de compra e venda, nomeadamente para o efeito da recepção da denúncia do defeito. Tendo sido através do seu marido que tomou conhecimento de que a recorrida tinha interesse em comprar-lhe o veículo, beneficiando do contacto com o público que a actividade profissional daquele lhe proporcionava, constitui uma imposição do princípio da boa-fé o entendimento de que uma denúncia feita ao marido da recorrente se considera feita a esta última.
A pretensão da recorrente de retirar proveito da actuação desenvolvida pelo seu marido em seu nome, mas de dela se demarcar na medida em que isso lhe convenha, apenas demonstra má-fé, consubstanciando um abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil).
Analisada a situação sob a perspectiva da recorrida, merece a tutela do direito a confiança, nela gerada pela circunstância de a negociação do contrato de compra e venda do veículo ter decorrido com a intervenção exclusiva do marido da recorrente, de que poderia efectuar a denúncia do defeito no estabelecimento e na pessoa deste. Tanto mais que, ao receber a denúncia, o marido da recorrente não remeteu a recorrida, ou a filha desta (cuja actuação em representação da mãe, durante todo o processo de aquisição do veículo e de denúncia do defeito deste, é indiscutível), para a sua mulher, antes tendo continuado a actuar em nome e por conta dela.
Sendo assim, a denúncia do defeito considera-se efectuada no dia 04.09.2020, pelo que respeitou o prazo estabelecido no n.º 2 do artigo 916.º do Código Civil.
3.2. O facto de terem decorrido mais de 6 meses entre a data em que a recorrida tomou conhecimento do defeito e aquela em que a recorrente foi citada para a presente acção não tem qualquer relevância para o efeito previsto no artigo 917.º do CC. O prazo de 6 meses estabelecido nesta norma é para a propositura da acção de anulação, não para a citação no âmbito desta acção, como decorre da sua simples leitura.
4 – Abuso de direito por parte da recorrida:
Como referimos em 2.2, a recorrente sustenta, nos artigos 38º a 44º da contestação, que a pretensão da recorrida de anulação do contrato de compra e venda, com reembolso da totalidade do preço, constitui um abuso de direito, porquanto o decurso do tempo e a utilização do veículo desvalorizaram-no, ao que acresce o facto de este ter sofrido um acidente de viação.
Desenvolvendo esta ideia, a recorrente salienta o seguinte nas suas alegações de recurso:
- A recorrida utiliza diariamente o veículo há mais de 4 anos, acumulando, este, milhares de quilómetros;
- Inevitavelmente, daí resultou uma desvalorização do veículo;
- Daí que, em vez da anulação do contrato de compra e venda, com o consequente reembolso da totalidade do preço, a recorrida devesse ter pedido a manutenção do contrato com redução do preço;
- A pretensão da recorrida envolve um enriquecimento ilegítimo desta à custa da recorrente, consubstanciando, assim, um abuso de direito.
A recorrente não tem razão.
A recorrida denunciou o defeito do veículo logo que tomou conhecimento da sua existência, tendo-se deslocado à oficina do marido da recorrente, munida dos elementos necessários para a prova da existência daquele, com o intuito de anular o contrato de compra e venda. Tal anulação só não ocorreu nessa altura porque o marido da recorrente não quis. Em face disso, a recorrida teve de ficar com o veículo contra a sua vontade e de o utilizar, na sua actividade quotidiana, até à actualidade.
Portanto, sendo evidente que o decurso do tempo e a utilização que a recorrida vem fazendo do veículo o desvaloriza, não menos evidente é que tal acontece por culpa exclusiva da recorrente, em representação da qual o seu marido actuou. Se a recorrente, como era seu dever uma vez que o defeito se verificava, tivesse reconhecido de imediato o direito da recorrida à anulação do contrato de compra e venda e, contra a entrega do veículo, tivesse restituído o preço que recebera, a desvalorização do veículo nas mãos da recorrida seria mínima. Foi a actuação ilícita da recorrente, ao recusar-se a restituir o valor que recebera da recorrida e a aceitar a restituição do veículo, que maximizou a desvalorização deste. O enriquecimento da recorrida a que a recorrente alude é imputável exclusivamente a si própria. A recorrente sempre teve a possibilidade de, cumprindo o seu dever de restituir o preço recebido contra a entrega do veículo, minimizar aquele enriquecimento e o seu próprio prejuízo.
Sendo assim, a referida desvalorização e o referido enriquecimento não podem constituir obstáculo, por via do instituto do abuso de direito, ao exercício do direito da recorrida à anulação do contrato. Tal equivaleria a penalizar a recorrida, que tem a lei do seu lado, em benefício da recorrente, que actuou ilicitamente, com fundamento precisamente nesta actuação ilícita. Traduzir-se-ia num claro benefício do infractor, resultado esse que, obviamente, não constitui a finalidade do instituto do abuso de direito.
Concluindo, não se verifica o abuso de direito invocado pela recorrente.
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
22.05.2025
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Eduarda Branquinho (1.ª adjunta)
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho (2.º adjunto)