RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
PRISÃO PREVENTIVA
ABSOLVIÇÃO EM JULGAMENTO
IN DUBIO PRO REO
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário

1. No n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal estabelecem-se os pressupostos do arbitramento de indemnização por privação ilegal ou injustificada de liberdade, possuindo cada uma das suas alíneas autonomia relativamente às demais.
2. Assim, na alínea c) daquela norma incluem-se as situações em que um arguido, após prisão preventiva legalmente decretada e mantida, vem a ser absolvido a final, mas exige-se aí, em ordem ao reconhecimento do direito à indemnização, a comprovação de que o arguido não foi o agente do crime ou de que actuou justificadamente.
3. Da referida norma decorre, pois, que o legislador ordinário não pretendeu abranger todos os casos de absolvição, o que tem suscitado controvérsia, sobretudo, em face das sentenças penais em que o arguido é absolvido por força do princípio in dubio por reo, mas em termos que são extensíveis às absolvições por falta de prova.
4. A comprovação aludida na lei tem sido, efetivamente, entendida pelos Tribunais Comuns como a demonstração (positiva) de que o arguido não cometeu o crime objeto do processo, não se bastando com o mero juízo negativo sobre esses factos.
5. A questão colocada por esta norma e sua interpretação reside, então, em saber se esta solução é conforme com a Constituição, debate que tem convocado os princípios da igualdade e da presunção de inocência (artigos 13.º e 32.º, n.º 2, da Constituição).
6. O Tribunal Constitucional já se pronunciou, no Acórdão n.º 284/2020, pela inconstitucionalidade da norma, com fundamento da violação dos aludidos princípios, ancorando-se na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sobre o princípio da presunção de inocência.
7. Não obstante, pode também afirmar-se que o princípio da presunção de inocência não se projeta sobre o processo civil, que obedece a regras próprias, maxime, em termos probatórios, sendo, aliás, reflexo dessa autonomia o regime legal da oponibilidade das sentenças penais condenatórias e absolutórias a terceiros, previsto nos artigos 623.º e 624.º do Código de Processo Civil.
8. No que tange ao princípio da igualdade, este não obsta a que se estabeleçam distinções, desde que as mesmas se mostrem materialmente fundadas, o que sucede no caso em apreço, atento o diferente o juízo probatório subjacente às decisões.
9. Acresce que o artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, que deferiu ao legislador ordinário a delimitação das condições a que deve obedecer o reconhecimento do direito indemnizatório em apreço, alude apenas aos casos de privação ilegal de liberdade, pelo que não alcança a alínea c) em evidência.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 1399/22.3T8BJA.E1
(1ª Secção)

Sumário: (…)

(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)


***

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


I – Relatório
1. (…) intentou a presente ação declarativa, sob forma de processo comum, contra o Estado Português, formulando o seguinte pedido:
Nestes termos, e nos melhores de direito que V/Exa. doutamente suprirá, deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e, em consequência:
- Ser declarada e reconhecida, nos termos do disposto no artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa, a inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 13.º, n.º 1, e 32.º, n.º 2, daquele diploma, da norma consagrada no artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, quando interpretada no sentido de se não considerar que não foi agente do crime ou actuou justificadamente o arguido a quem foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva e que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo;
- Considerar-se positivamente comprovada a inocência do A. quanto ao crime de que foi acusado, nos termos do exposto no capítulo “II. Da comprovada inocência do A.” e, consequentemente, ser o R. condenado a pagar ao A., pelos danos sofridos em virtude do tempo que esteve injustificadamente preso preventivamente, o valor de € 26.200,36, a título de danos não patrimoniais e, a título de danos patrimoniais, o valor de € 4.864,50 pelos lucros cessantes em função dos rendimentos que deixou de auferir, e o valor de € 28.935,14 correspondente às despesas com honorários de advogado no âmbito do processo-crime.
Caso assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se admite, deve:
- Em face da inconstitucionalidade material da norma consagrada no artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do CPP vinda de arguir, considerar-se a sentença absolutória aqui junta como doc. 4 fundamento bastante do direito de indemnização do A. pela privação de liberdade injustificada, independentemente de se entender que ali se haja dado como positivamente comprovado que este não praticou o crime de que foi acusado ou, por outro lado, que a decisão de absolvição tenha resultado da aplicação do princípio in dubio pro reo e, consequentemente, ser o R. condenado a pagar ao A., pelos danos sofridos em virtude do tempo que esteve injustificadamente preso preventivamente, o valor de € 26.200,36, a título de danos não patrimoniais e, a título de danos patrimoniais, o valor de € 4.864,50 pelos lucros cessantes em função dos rendimentos que deixou de auferir, e o valor de € 28.935,14 correspondente às despesas com honorários de advogado no âmbito do processo-crime.”
Como fundamento da sua pretensão o A. alegou que foi constituído arguido no Processo n.º 36/21.8GJBJA, detido e preso preventivamente em 05.04.2021, com fundamento na existência de indícios da prática de um crime de violência doméstica.
O A. interpôs vários recursos das decisões de sujeição e de subsequente manutenção da medida de coação de prisão preventiva, os quais visavam a respetiva revogação, mas que foram julgados improcedentes.
A medida de coação veio a ser revogada em 28.10.2021, após a produção de prova naqueles autos, e em consequência foi-lhe restituída a liberdade, tendo sido, a final, absolvido da prática do crime de violência doméstica de que se encontrava acusado.

2. O R. contestou, pugnando pela improcedência da ação.

3. Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença, da qual consta o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, o Tribunal julga a acção improcedente, por não provada e, consequentemente, absolve o Estado Português dos pedidos contra si deduzidos.”

4. Inconformado com a sentença, veio o R. interpor recurso da mesma, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
I. Conforme julgado provado pelo tribunal a quo, o aqui Recorrente foi absolvido, por sentença, do crime de violência doméstica pelo qual se encontrava indiciado e acusado e que o levou à prisão preventiva.
II. Como bem se percebe, a prova produzida em julgamento permitiu ao tribunal aceder à factualidade material ocorrida no dia 04-04-2021.
III. Sucede que, tendo procedido à competente valoração daqueles factos, o tribunal concluiu “pelo não preenchimento dos elementos objectivos (e subjectivos) do crime de violência doméstica imputado ao arguido".
IV. Com efeito, o tribunal conseguiu apurar os factos praticados pelo arguido e o que determinou a sua absolvição foi a valoração desses factos, tendo o Mmo. Juiz considerado que não preenchiam o crime de violência doméstica.
V. Soçobrando o crime de violência doméstica, o tribunal, no âmbito do processo-crime, averiguou ainda a possibilidade de os factos praticados pelo aqui Recorrente consubstanciarem um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
VI. Porém, conforme julgado provado na sentença ora recorrida, também relativamente a esse tipo criminal o tribunal do processo-crime decidiu absolver o aqui Recorrente, com a seguinte fundamentação:
VII. Ora, o facto de o aqui Recorrente ter sido absolvido mesmo deste tipo criminal -de menor gravidade comparativamente com o crime de violência doméstica -demonstra eloquentemente que o tribunal não se deparou com uma situação de dúvida relativamente aos factos praticados e à sua qualificação jus-penalista,
VIII. Tendo concluído inequivocamente que nenhum crime havia sido praticado pelo ora Recorrente.
IX. O que se prevê no artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do C.P.Penal é que existirá direito a indemnização quando “se comprovar que o arguido não foi agente do crime”, e não: “se comprovar que o arguido não foi agente dos factos” (pelos quais foi acusado e que determinaram a sua prisão preventiva).
X. Assim, para que se reconheça ao arguido o direito à indemnização em causa não se lhe impõe que comprove não ter sido agente dos factos descritos na acusação criminal; basta que este comprove que não ter sido agente do crime de que vinha acusado,
XI. O que sucede em duas hipóteses: quando os factos preenchem o tipo de ilícito imputado, mas são julgados não provados; ou quando os factos são julgados provados, mas não preenchem o tipo de ilícito imputado.
XII. Em ambos os casos a conclusão é a mesma: não foi praticado qualquer crime; E o mesmo é dizer: o arguido “não foi agente do crime”.
XIII. Aliás, como pode dizer-se que “o autor não demonstrou não ter sido agente do crime” (o que se encontra exarado na sentença ora recorrida) se existe uma sentença judicial transitada em julgado em que se decidiu expressa e inequivocamente que o aqui Recorrente não praticou qualquer crime?
XIV. Quando muito, poderia o tribunal a quo afirmar que “o autor não demonstrou não ter sido agente dos factos de que vinha acusado”, mas que não foi agente do crime, isso é inequívoco, pois que o tribunal do processo-crime decidiu inequivocamente que os factos praticados pelo aqui Recorrente não constituem crime.
XV. Não se argumente que o entendimento ora propugnado conduzisse a que todo o arguido preso preventivamente tivesse sempre direito a ser indemnizado.
XVI. Sufragando a tese ora propugnada pelo Recorrente, três hipóteses se afiguram possíveis:
- quando os factos são julgados provados, mas não preenchem o tipo de ilícito imputado, o arguido terá direito à indemnização prevista no artigo 225.º, n.º 1, alínea c);
- quando os factos preenchem o tipo de ilícito imputado, mas são julgados não provados sem aplicação do princípio in dubio pro reo o arguido terá direito à indemnização;
- quando os factos preenchem o tipo de ilícito imputado, mas são julgados não provados por aplicação do princípio in dubio pro reo o arguido não terá direito à indemnização. 2
XVII. Pois que só neste último caso é possível afirmar que não se encontra comprovado que o arguido “não foi agente do crime”.
XVIII. Ora, no caso vertente, e conforme já exposto, os factos vertidos na acusação deduzida contra o arguido, aqui Recorrente, foram, no âmbito do processo-crime, julgados provados;
XIX. No entanto, o tribunal entendeu que tais factos não preenchiam o tipo de ilícito criminal que lhe vinha imputado, nem qualquer outro.
XX. Encontra-se, assim, provado que o Recorrente não foi agente do crime.
XXI. Em face do exposto, deve fazer-se acrescer ao elenco dos factos provados constante da sentença recorrida o seguinte:
“Encontra-se comprovado que o Autor não foi agente do crime”.
XXII. Devendo, consequentemente, ser-lhe reconhecido o direito à indemnização prevista no artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do C.P.Penal.
Nestes termos, e nos melhores de direito, que V/Exas. doutamente suprirão, deve a sentença recorrida ser objecto de revogação e determinar-se ao tribunal a quo que profira nova sentença em que condene o Réu/Recorrido a pagar ao Recorrente uma indemnização com fundamento no disposto no artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do C.P.Penal, nos termos por este impetrados na petição inicial.
2 O que decorre da jurisprudência maioritária, pese embora a posição sustentada no Acórdão n.º 284/2020 do Tribunal Constitucional mereça a concordância do Recorrente, conforme se expôs em primeira instância.”

5. O R. apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, nos seguintes termos:
1 – (…), ora recorrente, autor na ação declarativa com processo comum que moveu contra o Estado Português, interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Central Cível e Criminal de Beja, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, o qual julgou a ação improcedente e, consequentemente, absolveu o réu Estado, do pedido de indemnização peticionado nos autos.
Na ação, o autor pediu a condenação do Estado Português a pagar-lhe uma indemnização por danos sofridos provocados pela sua privação da liberdade “injustificada” em regime de prisão preventiva, a título de danos não patrimoniais, a título de danos patrimoniais, pelos lucros cessantes em função dos rendimentos que deixou de auferir, e o valor correspondente às despesas com honorários de advogado no âmbito do processo-crime, em alternativa, caso assim não se entendesse, o que por mera cautela de patrocínio o autor admitiu, devia em face da inconstitucionalidade material da norma consagrada no artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do CPP, considerar-se na sentença como fundamento bastante do direito de indemnização do A. pela privação de liberdade injustificada, e, consequentemente, ser o R. condenado a pagar ao A., pelos danos sofridos em virtude do tempo que esteve injustificadamente preso preventivamente, a título de danos não patrimoniais, a título de danos patrimoniais, pelos lucros cessantes em função dos rendimentos que deixou de auferir, e o valor correspondente às despesas com honorários de advogado no âmbito do processo-crime.
2 - Cremos, salvo o devido respeito, que não assiste razão ao recorrente, não merecendo censura a sentença ora recorrida, e, consequentemente, o recurso está condenado à improcedência.
3 - O processo 36/21.8GJBJA, teve como objeto a investigação da prática por parte do recorrente, ali arguido, do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º/1, alínea b), 2, alínea a), 4, 5, e, 6 do Código Penal.
Sujeito a 1.º interrogatório judicial de arguido detido no Juízo de Competência Genérica de Ourique, o Tribunal considerou fortemente indiciados os factos suscetíveis de integrarem em abstrato a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º/1, alínea b), 2, alínea a), 4, 5, e 6 do Código Penal, julgou verificados o forte perigo de continuação da atividade criminosa, o forte perigo de perturbação do inquérito e de perturbação da ordem e tranquilidade pública, e sujeitou o recorrente à medida de coação de prisão preventiva, sujeição que se manteve até 28.10.2021.
O recorrente interpôs, várias vezes, recurso da manutenção da sujeição à prisão preventiva, cujos provimentos foram negados.
De referir que, por despacho judicial de 17.08.2021, o Tribunal procedeu à incorporação do processo n.º 50/20.0GJBJA no processo n.º 36/21.8GJBJA, no qual o arguido ora recorrente foi acusado da prática do crime de violência doméstica contra a mesma vítima.
Sucede que, em 28.10.2021, em sede de audiência de discussão e julgamento, foi revogada a prisão preventiva do recorrente e restituído a liberdade.
Em sede de sentença, o Tribunal deu como provados os factos constantes da acusação, nomeadamente os respeitantes à relação do recorrente com a vítima, às agressões perpetradas pelo recorrente no corpo da vítima, aos impropérios ditos pelo recorrente dirigidos á vitima, mas decidiu que os mesmos não consubstanciavam a prática de um crime de violência doméstica, e atribuiu desse modo uma nova qualificação jurídica, absolvendo assim o recorrente da prática de o crime de violência doméstica.
4 - É no momento em que é decretada a prisão preventiva que qual erro deve ser avaliado e qualificado como grosseiro, parece evidente que o recorrente estava fortemente indiciado pela prática do aludido crime de violência doméstica, que o tipo legal de crime permite a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, e que os perigos de continuação de atividade criminosa, perturbação de inquérito e da ordem e tranquilidade pública existiam, e exigiam a sua remoção, sendo que esta só se podia fazer através da aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
5 - O artigo 225.º/1, alínea c) do Código de Processo Penal prevê o dever do Estado por indemnização motivada por privação injustificada da liberdade quando o arguido comprove que não foi agente do crime ou que atuou justificadamente.
6 - Do preceito resultam, assim, duas normas: (i) a que atribui o direito de indemnização quando se comprove a inocência ou atuação justificada do arguido (norma positiva) e (ii) a que exclui a atribuição desse direito quando a inocência ou atuação justificada do arguido se não comprove (norma negativa).
7 - Ora, diga-se desde já que, como é evidente, nas situações de absolvição resultante da falta de prova bastante, ou de aplicação do princípio in dubio pro reo, não há direito de indemnização.
8 - Não é verdade que a sentença proferida no âmbito do processo 36/21.8GJBJA tenha chegado à conclusão de que o recorrente, ali arguido, não foi agente do crime nem que atuou justificadamente.
9 – O recorrente nem sequer fez prova disso.
10 - O Tribunal, face a prova produzida, procedeu à desqualificação do crime de violência doméstica, apenas e só.
11 - De facto, o Tribunal deu como provados os factos, sendo o recorrente o agente agressor físico e verbal.
12 - Porém, atribui-lhe outra “roupagem” jurídica, e tão só.
13 - Ou seja, em nenhum momento o recorrente conseguiu provar que não foi o autor dos factos ou que atuou justificadamente.
14 - O recorrente não fez prova da sua inocência ou de atuação justificada.
15 - Por esse motivo, não estão preenchidos quaisquer dos pressupostos da responsabilidade civil do Réu, Estado Português.
16 - A alegada inconstitucionalidade, se existisse, não teria qualquer cabimento no presente caso. O artigo 225.º/1, alínea c), do CPP determina a não ressarcibilidade dos danos que sofra por efeito da privação de liberdade a que foi sujeito caso venha a ser absolvido sem prova de inocência ou atuação justificada – vide Acórdãos do Tribunal Constitucional 12/2005 e 13/2005). Também neste sentido, de não inconstitucionalidade da norma, se pronuncia a doutrina portuguesa, Américo Marcelino, Manuel Lopes Maia Gonçalves e os Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto - (2009) Código de Processo Penal – Comentário e Notas Práticas, Coimbra Editora.
17 - Inexiste assim qualquer inconstitucionalidade material da norma ínsita no artigo 225.º/1, alínea c), quando interpretada no sentido de se não considerar que não foi agente do crime ou atuou justificadamente o arguido a quem foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva e que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo, nem a mesma se pode invocar no presente caso por não ter sido essa a razão da absolvição do ora recorrente.
18 - Assim, bem decidiu o Tribunal a quo em julgar a ação por improcedente, por não provada, e consequentemente, absolveu o Estado Português dos pedidos contra si deduzidos”.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a Decidir

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

Assim, cumpre apreciar:

a) se deve a decisão da matéria de facto ser alterada;

b) se deve a sentença ser revogada e ordenado ao Tribunal a quo que profira nova sentença em que condene o R. a pagar ao A. uma indemnização.

III – Fundamentação de Facto

1. O Tribunal a quo julgou provados e não provados os seguintes factos:
a- Factos provados
Da discussão da causa e com relevo para a boa decisão da mesma resultaram provados os seguintes factos:
1. Em 05.04.2021 no Juízo de Competência Genérica de Ourique do Tribunal Judicial da Comarca de Beja foi aplicada ao A. a medida de coação prisão preventiva no âmbito do processo de inquérito n.º 36/21.8GJBJA;
2. Entendeu o Tribunal que se encontrava fortemente indiciada aa prática pelo A. de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a), n.º 4, n.º 5, n.º 6 do Código Penal, com uma pena de prisão de 2 a 5 anos;
3. O A. interpôs recurso desta decisão;
4. Por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 22 de Junho de 2021, foi negado provimento ao recurso;
5. Em 12.05.2021, na sequência de a vitima ter prestado declarações para memória futura, o A. requereu a alteração das medidas de coacção aplicadas, o que foi indeferido pelo Tribunal;
6. O A. interpôs recurso desta decisão;
7. Por Acórdão proferido em 11 de Agosto de 2021 o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso;
8. Por despacho datado de 29.06.2021, em sede de reexame trimestral dos pressupostos da prisão preventiva decidiu-se novamente manter aquela medida de coacção;
9. O A. não recorreu desta decisão;
10. A 05.07.2021 foi deduzida acusação pública contra o A. pela prática de um crime de violência doméstica.
11. Por essa razão, procedeu-se a novo reexame dos pressupostos da prisão preventiva, mantendo-se a medida de coacção, por despacho datado de 06.07.2021;
12. O A. apresentou recurso desta decisão, mais uma vez sem provimento;
13. A 04.08.2021, o tribunal voltou a manter a medida de coacção aplicada.
14. Por despacho datado de 30-09-2021, em sede de reexame dos pressupostos da prisão preventiva o Juízo de Competência Genérica de Ourique, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, decidiu manter a medida de coacção;
15. Por despacho datado de 28-10-2021, proferido em sede de audiência de julgamento, decidiu o Mmo. Juiz do Juízo de Competência Genérica de Ourique, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, revogar a medida de coacção de prisão preventiva, ordenando a libertação imediata do Autor.
16. A 08.11.2021 foi proferida sentença em que absolveu o A. da prática do crime de violência doméstica, decisão que transitou em julgado no dia 09-12-2021;
17. Foi dada como provada a seguinte factualidade:
“1) O arguido (…) e a ofendida (…) mantiveram, pelo menos desde março de 2019 até junho de 2020, uma relação amorosa e viveram em comunhão de cama, mesa e habitação, na residência sita na Rua (…), n.º 6, em (…).
2) Em 21 de outubro de 2020, no âmbito do Inquérito n.º 50/20.0GJBJA, encontrando-se o arguido indiciado da prática do crime de violência doméstica, por decisão judicial em sede de instrução, foi determinada a suspensão provisória do processo-crime, pelo período de 6 (seis) meses, mediante a imposição ao arguido (…) das seguintes injunções:
- de formalização de pedido de desculpas à vítima; e
- de iniciar acompanhamento individual/psicoterapêutico, fiscalizado pela DGRSP.
3) Após uma rutura de cerca de 4 meses, o casal reatou a relação amorosa em novembro de 2020 continuando a viver em condições análogas à dos cônjuges na residência mencionada em 1).
4) Ao longo do dia 4 de abril de 2021, e após ter regressado do cemitério, o arguido ingeriu pelo menos uma garrafa de vinho tinto e três garrafas de espumante.
5) Nessa mesma data, cerca das 21h00, no interior da residência comum, o arguido, visivelmente embriagado e após a ofendida ter estado a conversar através de videochamada com a filha (…), começou a discutir com a ofendida e a apelidá-la de “puta” e “vagabunda”, dizendo que o filho desta era um “veado” e desonrando a progenitora da ofendida.
6) (…) Nessa sequência a ofendida tentou acalmar o arguido para que este fosse dormir, tendo o mesmo dado um empurrão no corpo da ofendida e esta ripostado dando-lhe uma bofetada na cara.
7) (…) Ato contínuo o arguido agarrou a ofendida pelos cabelos e empurrou o corpo desta contra a parede, tendo a ofendida respondido fisicamente, de forma não concretamente apurada, com o propósito de se defender do arguido.
8) (…) Em seguida o arguido desferiu um número não concretamente apurado de pancadas de mão aberta que atingiram o corpo da ofendida, nomeadamente na zona das costas e dos braços.
9) Nessas circunstâncias a ofendida começou a pedir ajuda, gritando por socorro, ao mesmo tempo que se tentava afastar do arguido.
10) (…) Após serem alertados por (…), que passava nas imediações, alguns elementos da corporação dos Bombeiros Voluntários de (…), sediada na mesma rua e a poucos metros de distância, deslocaram-se à entrada da residência comum do casal tendo ouvido os pedidos de socorro da ofendida e chamada a patrulha da GNR ao local.
11) (…) Ao sair de casa a ofendida feriu-se ligeiramente na mão esquerda porquanto o vidro da porta de entrada da residência se encontrava partido.
12) Já no exterior e em virtude do estado de nervosismo e ansiedade em que se encontrava a ofendida perdeu momentaneamente os sentidos tendo sido assistida por elementos dos Bombeiros Voluntários de (…) que ali se encontravam”;
18. Entendeu o Tribunal que face à prova produzida, e ao comportamento do aqui A. deveria proceder à desqualificação do crime de violência doméstica;
19. De seguida, procedeu à análise do crime de injuria e de ofensas à integridade física simples;
20. A esse propósito consta da fundamentação da sentença, além do mais: “naturalmente sem embargo da sua relevância penal no âmbito do disposto no artigo 181.º do Código Penal. Sucede que não tendo sido deduzida acusação particular a respeito do crime de injúria, não se verificam as condições de procedibilidade a que se reportam os artigos 49.º e 50.º do Código de Processo Penal e que obstaculizam, desde logo, a possibilidade de o Tribunal sequer ponderar a condenação do arguido a propósito daquele crime.”
(…) “A nível da estrutura subjetiva, este crime exige por parte do agente uma conduta dolosa, em qualquer das suas modalidades (cfr. artigos 13.º e 14.º do Código Penal), relativamente às ofensas provocadas no corpo ou na saúde do ofendido, pressupondo o conhecimento dos elementos objetivos do tipo (elemento intelectual do dolo), a vontade de realização do facto (elemento volitivo) e a consciência da ilicitude da conduta (elemento emocional do dolo). Ora, face ao assinalável estado de embriaguez em que o arguido se encontrava (atento o elevado consumo de bebidas alcoólicas no dia dos acontecimentos) e perante o contexto em que se desenrolou a interação (verbal e física) com a ofendida, com ações agressórias mútuas, suscitam-se-nos amplas dúvidas de que a conduta do arguido assumiu a forma dolosa, em qualquer das modalidades do dolo, julgando mesmo que tal comportamento se ficou unicamente a dever a um estado de desequilíbrio e perturbação em consequência do seu estado ébrio”;
21. A defesa do A. âmbito do processo-crime, gerou despesas com honorários de advogado no valor de € 28.935,14.;
22. O A. explorava um uma loja de rações para animais, dedicava-se à criação de animais para venda e ainda à agricultura;
23. Durante o tempo em que esteve preso o A. sentiu-se injustiçado, desolado, deprimido e sem esperança.

*
b- Factos não provados
Com relevo para a boa decisão da causa não resultou provado que:
A) Durante o tempo em que esteve preso preventivamente o A. deixou de auferir € 4.864,50;
B) Durante o tempo em que esteve preso o A. ponderou suicidar-se”.

2. No recurso começa o A. por requerer a alteração da decisão da matéria de facto, no sentido do aditamento de um facto provado, com a seguinte redação:
“Encontra-se comprovado que o Autor não foi agente do crime”.
Esta alteração é justificada pelo A. com referência ao artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, norma que constitui o suporte legal do pedido formulado nesta ação, da qual consta que:
“1 - Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando: (…)
c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou atuou justificadamente”.
O A. pretende, assim, que passe a constar da matéria de facto provada a afirmação de um dos pressupostos legais do direito indemnizatório que invoca nesta ação.
Daqui resulta que semelhante afirmação não consubstancia um facto, mas sim uma conclusão, porquanto para saber se está comprovado que o arguido não foi agente do crime deve o Tribunal analisar a sentença proferida no processo crime, análise esta a ser efetuada na fundamentação de direito da sentença cível.
Por outro lado, compulsada a matéria de facto provada nos presentes autos, constata-se que sob 17 a 20 consta a descrição quer dos factos provados na sentença proferida no processo crime, quer de excertos da fundamentação de direito desta sentença que permitem apreender o sentido da decisão.
Assim, atendendo a que da decisão da matéria de facto não devem constar conclusões e considerando que a matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo se mostra suficiente para a decisão a proferir, deve a mesma manter-se inalterada.

IV – Fundamentação de Direito
1. No caso em apreço o A. peticionou a condenação do Estado Português no pagamento de uma indemnização pelos danos sofridos em consequência de prisão preventiva a que foi sujeito, sustentando que foi acusado e submetido a julgamento por indícios da prática de um crime de violência doméstica, mas a final foi proferida sentença de absolvição.
Peticiona também o A., preliminarmente, que se declare “a inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 13.º, n.º 1, e 32.º, n.º 2, daquele diploma, da norma consagrada no artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, quando interpretada no sentido de se não considerar que não foi agente do crime ou actuou justificadamente o arguido a quem foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva e que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo”.
Na sentença em recurso julgou-se improcedente a ação por se entender que não está aqui em causa o princípio in dubio pro reo, na medida em que o A. não foi absolvido por existirem dúvidas sobre a realidade dos factos constantes da acusação, mas antes em virtude da diferente qualificação jurídica dos factos provados efetuada pelo Tribunal criminal.
Por outro lado, afirma o Tribunal a quo que competia ao A. demonstrar que não foi agente do crime ou que atuou justificadamente, o que não logrou fazer, pois ficou provada a prática de factos pelo arguido, mas o Tribunal criminal procedeu a uma diferente qualificação jurídica dos mesmos.
Nas suas alegações de recurso o A. acompanha a argumentação do Tribunal a quo no sentido de que não foi absolvido por aplicação do princípio in dubio pro reo, porém, advoga que está provado que não foi agente do crime, porquanto foi absolvido da imputação da prática de um crime de violência doméstica, que era a constante da acusação, não relevando para este efeito a circunstância dos factos descritos na acusação terem sido subsumidos na sentença penal a outros tipos criminais.

2. A questão que se coloca é, assim, a interpretação do citado artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, a qual é, inequivocamente, controvertida.
Revela-se útil, para este desiderato, ter presente o conteúdo integral daquela norma, integrada em Capítulo com a epígrafe “Da indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada”:
“1 - Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando:
a) A privação da liberdade for ilegal, nos termos do n.º 1 do artigo 220.º, ou do n.º 2 do artigo 222.º;
b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia; ou
c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente; ou
d) A privação da liberdade tiver violado os n.ºs 1 a 4 do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
2 - Nos casos das alíneas b) e c) do número anterior o dever de indemnizar cessa se o arguido tiver concorrido, por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade.”
Ora, esta norma deve ser lida conjuntamente com o artigo 27.º, n.º 5 da Constituição, onde se estabelece que “A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.”
Na jurisprudência dos Tribunais Comuns onde se aborda esta temática tem vindo pacificamente a entender-se que o legislador constitucional cometeu ao legislador ordinário a missão de delimitar as condições em que pode ser atribuída a indemnização, não fixando quaisquer pressupostos ou limites (entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 13.02.2020 (Raquel Batista Tavares), Processo n.º 975/17.0T8BGC.G1, e do Tribunal da Relação de Évora de 23.05.2024 (Cristina Dá Mesquita), Proc. 1836/21.4T8PTM.E2, ambos in http://www.dgsi.pt/).
Assim, apenas nas circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal haverá lugar a indemnização, sendo, de igual modo, consensual que “Nem a Constituição nem a lei impõe o dever de indemnizar todo e qualquer arguido absolvido, ou que não tenha chegado a ser pronunciado, a quem anteriormente tenha sido aplicada a medida de prisão preventiva” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.02.2023 (Ferreira Lopes) (Processo n.º 4064/18.2T8SNT.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/).
Por outro lado, a redação do n.º 1 do citado artigo 225.º aponta para a alternatividade das diferentes circunstâncias, de onde decorre que ainda que a privação da liberdade não tenha sido ilegal, nem tenha ocorrido erro grosseiro na apreciação dos seus pressupostos de facto, poderá haver lugar a indemnização se, a final, o arguido vier a ser absolvido.
Adicionalmente, do n.º 2 da mesma norma extrai-se que mesmo quando o arguido venha a ser absolvido, não terá direito a indemnização se tiver concorrido para a privação da sua liberdade.

3. Compulsando os factos 17 a 20 da sentença em recurso verificamos que no processo crime foi julgado provado que o arguido praticou os seguintes factos:
- começou a discutir com a ofendida e a apelidá-la de “puta” e “vagabunda”, dizendo que o filho desta era um “veado” e desonrando a progenitora da ofendida (facto 5);
- deu um empurrão no corpo da ofendida (facto 6);
- agarrou a ofendida pelos cabelos e empurrou o corpo desta contra a parede (facto 7);
- desferiu um número não concretamente apurado de pancadas de mão aberta que atingiram o corpo da ofendida, nomeadamente na zona das costas e dos braços (facto 8).
Estes factos determinaram que:
- a ofendida fosse transportada de ambulância ao Hospital de Beja (facto 13);
- vindo a apresentar escoriação com 1 cm na face dorsal do 5º metacarpo, equimose arroxeada com 1cmx1cm na face interna do 1/3 médio do braço no membro superior direito; e equimose arroxeada com 2cmx2cm na região externa do cotovelo (facto 14).
Importa assinalar que a acusação submetida a juízo não continha apenas os factos acima descritos, contemplando ainda outros 12 factos, que foram julgados não provados sob as alíneas A) a M), respeitantes a intercorrências entre o arguido e a ofendida com reporte a datas não concretamente apuradas (alínea A)), ao mês de novembro de 2019 (alínea B)), ao período posterior a janeiro de 2020 (alínea C)), ao dia 12 de abril de 2020 (alíneas D) a H)), ao dia 4 de julho de 2020 (alínea I)), ao dia 6 de julho de 2020 (alínea J)), ao período posterior ao final de 2020 (alínea L)) e ao próprio dia em que ocorreram os factos provados (alínea M)).
Esta decisão assentou na falta de prova, decorrente da circunstância do arguido e da vítima não terem prestado declarações em audiência, sendo o arguido com fundamento no seu direito ao silêncio e a ofendida com fundamento na circunstância de ser companheira do arguido, o que lhe permitiu recusar a prestação de depoimento.
Está, aliás, provado na sentença penal, sob 16., que “A ofendida continuou e continua a habitar a residência comum do casal, contatando frequentemente o arguido, gerindo os negócios deste e indo visitá-lo por duas vezes ao Estabelecimento Prisional de Beja, a última das quais no passado mês de setembro, pretendendo ambos continuar o seu relacionamento conjugal”.
Acresceu a circunstância das declarações prestadas pelo arguido em primeiro interrogatório judicial serem “parcas”, como referido pelo Tribunal penal na motivação da decisão de facto, e no que concerne às declarações para memória futura prestadas pela ofendida, não foram as mesmas analisadas naquela motivação, com exceção da parte relativa aos factos que foram julgados provados.
Adicionalmente, de acordo com a acusação, os factos teriam ocorrido, na sua maioria, no interior da habitação onde o casal residia, portanto, sem a presença de testemunhas.
Em sede de fundamentação de direito veio depois a entender-se que a factualidade provada não preenchia a previsão da norma que tipifica o crime de violência doméstica, por não revestir intensidade suficiente para o efeito, como se extrai da leitura da sentença proferida no processo crime, junta com a p.i. como doc. 1.
Nesta sequência, julgou-se que semelhante factualidade integrava a previsão objetiva do crime de ofensas à integridade física e do crime de injúrias, mas considerou-se não estar demonstrado o elemento subjetivo da infração, porquanto “face ao assinalável estado de embriaguez em que o arguido se encontrava (atento o elevado consumo de bebidas alcoólicas no dia dos acontecimentos) e perante o contexto em que se desenrolou a interação (verbal e física) com a ofendida, com ações agressórias mútuas, suscitam-se-nos amplas dúvidas de que a conduta do arguido assumiu a forma dolosa, em qualquer das modalidades do dolo, julgando mesmo que tal comportamento se ficou unicamente a dever a um estado de desequilíbrio e perturbação em consequência do seu estado ébrio.”
Ora, foram colocados no elenco dos factos não provados da sentença penal, sob as alíneas N) a P), os factos pertinentes ao elemento subjetivo da infração.
Escreveu-se a esse propósito na motivação da decisão de facto:
A factualidade respeitante ao elemento subjetivo e à consciência da ilicitude não se consolidou porque os factos de que a mesma dependia não se provaram e porque se aferiu, ante a postura desprendida com que (…) prestou as suas declarações, que a mesma não se sentiu humilhada ou intimidade pela conduta do arguido de modo suficientemente grave para verem restringida a respetiva liberdade pessoal e, sobretudo, atingida a sua dignidade humana.”
A propósito do consumo de álcool no dia dos factos cuja prática ficou provada, escreveu-se naquela motivação que nas declarações para memória futura que a ofendida prestou – as suas únicas declarações, uma vez que não foi ouvida em audiência, ao abrigo do disposto no artigo 134.º do Código de Processo Penal -, a ofendida circunstanciou a atuação do arguido “no plano de uma discórdia motivada pela excessiva embriaguez do arguido”, acrescentando-se mais à frente que a prova testemunhal produzida em audiência serviu também para contextualizar o sucedido no exterior da residência “e elucidar (…) quanto ao evidente estado de embriaguez do arguido (aludindo a forte odor a álcool que exalava, à sua falta equilíbrio corporal e ausência de discurso conexo)”.
Ou seja, apesar de na motivação da decisão de facto se afirmar uma “excessiva embriaguez” e de se julgar não provado o elemento subjetivo da infração, é em sede de fundamentação de direito que se articula expressamente aquele estado de embriaguez e o dolo, começando por declarar-se a existência de “amplas dúvidas” a este respeito para, de seguida, se afirmar o convencimento do Tribunal sobre a ausência de dolo.
Relativamente ao crime de injúrias, considerou-se ainda estar em falta uma condição de procedibilidade, a acusação particular, ainda que esta condição constitua uma argumentação complementar ou adicional, face à conclusão atinente à inexistência de dolo, uma vez que todos os factos ocorreram na mesma data e contexto.
Assim, ainda que a passagem da sentença penal acima transcrita onde se alude às “amplas dúvidas” do Tribunal possa lançar ela própria dúvidas sobre se a decisão foi ancorada no princípio in dubio pro reo – não impedindo esta conclusão o posicionamento da afirmação em apreço na fundamentação de direito, pese embora não seja o lugar próprio -, afigura-se que a declaração subsequente revela que o Tribunal penal ultrapassou o estado de dúvida em que se encontrou e acabou por estabelecer uma convicção.
Em conclusão, dos termos da sentença penal não decorre que o princípio in dubio pro reo tenha constituído critério de decisão da matéria de facto.

4. Mas este caso suscita, desde logo, a questão atinente à interpretação da expressão “agente do crime” que consta da alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal.
Desde logo, não acompanhamos a alegação do A. de que apenas releva, para este efeito, o crime de que se mostrava acusado, pois temos de considerar aqui os limites do caso julgado material em matéria penal.
O objeto do processo penal é constituído pelo acervo de factos descritos na acusação, abrangendo tanto a qualificação jurídica dos mesmos efetuada na acusação, como as qualificações jurídicas consentidas nos termos do artigo 358.º do Código de Processo Penal, como se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.06.2023 (Paulo Costa) (Proc. 1/21.5S1LSB-B.P1, in http://www.dgsi.pt/):
“IV - Face ao disposto no artigo 339.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, o objeto do processo não é constituído pela incriminação imputada ao arguido, mas antes pelos factos que lhe são imputados; perante a reconfiguração jurídica não há qualquer alteração do objeto do processo, não sendo posto em causa o seu efeito de vinculação temática”.
Devemos, pois, reportar a expressão “agente do crime” aos tipos criminais vertidos na acusação ou àqueles que o Tribunal criminal venha a considerar na sentença, nos termos da alteração da qualificação jurídica dos factos permitida pela lei processual penal.

5. Assim, na sentença penal absolutória está provado que o arguido agrediu e insultou a sua companheira e está também declarado que estes factos são penalmente típicos, uma vez que apesar de não preencherem a previsão da norma que pune o crime de violência doméstica, integram a previsão das normas que punem o crime de injúrias e o crime de ofensas à integridade física, mas não ficou demonstrado o elemento subjetivo da infração.
Ora, a expressão “agente do crime” abrange apenas a comprovação de que o arguido não praticou os atos materiais previstos na norma incriminadora, ou alcança também as situações em que está provado que o arguido praticou esses atos e não provado tão somente o elemento subjetivo da infração?
Quando cotejamos esta expressão com a menção seguinte à atuação justificada, que deve ser reconduzida à verificação de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa (artigos 31.º a 39.º do Código Penal) (José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, 3ª ed., Coimbra, 2025, pág. 640), verificamos não poder acolher essa redução.
Com efeito, se na sentença se concluir que o arguido praticou os atos materiais que lhe são imputados, mas se julgar provado que atuou ao abrigo de uma causa de exculpação, por exemplo, o estado de necessidade desculpante, a absolvição será inquestionavelmente demonstradora da inocência do arguido, apesar de terem sido demonstrados todos os factos objetivos constitutivos da infração de que foi acusado.

6. Remanesce a vexata quaestio da “comprovação”.
Como se disse acima, da leitura integral do artigo 225.º do Código de Processo Penal decorre, com evidência, que em lugar de se afirmar irrestritamente o direito a uma indemnização por privação de liberdade, o legislador ordinário descreveu várias circunstâncias alternativas que permitem o reconhecimento desse direito.
E no que respeita, em particular, à alínea c) do n.º 1, tendo o legislador aludido à “comprovação” de não ter sido o arguido o agente do crime, em lugar de se reportar simplesmente à sua absolvição, a extração de um sentido útil da redação adotada impele a conclusão de que o legislador pretendeu diferenciar as sentenças absolutórias, não as abrangendo todas no seu âmbito de aplicação.
Neste enquadramento, a referida “comprovação” tem sido lida como excludente das decisões de absolvição com fundamento no princípio in dubio pro reo, à luz da consideração de que nestes casos a decisão não assenta na convicção de que o arguido não praticou os factos que lhe são imputados, mas resulta de um non liquet probatório que, em sede de processo penal, deve ser resolvido de acordo com aquele princípio.
Também já se disse acima que o princípio in dubio por reo não presidiu à decisão da matéria de facto quanto ao elemento subjetivo da infração, porém, no que tange à maior parte dos elementos objetivos da infração, que respeitam a outras ocorrências distintas, nas datas e nos contextos, o juízo probatório negativo do Tribunal penal ancorou-se na falta de prova.
Decorre também da sentença penal que o núcleo fáctico provado foi considerado insuficiente para a subsunção do caso ao tipo da violência doméstica, quer dizer, a decisão sobre a matéria de facto projetou-se decisivamente na qualificação jurídica.
Deve, pois, perguntar-se: São equiparáveis os casos em que existe um princípio de prova insuficiente para convencer o Tribunal e aqueles em que não existe prova?
E a “comprovação” alcança-se apenas com a afirmação, pela positiva, de que o arguido não praticou aqueles factos, ou satisfaz-se com a mera negativa?

7. A primeira pergunta leva-nos num bosquejo pela jurisprudência dos Tribunais Comuns, onde a questão mais debatida tem sido aquela que foi suscitada pelo A. nestes autos, isto é, a alegada inconstitucionalidade material da alínea c) na interpretação de que não se mostra comprovada a inocência do arguido se a sua absolvição se fundar no princípio in dubio pro reo.
Este juízo de inconstitucionalidade mostra-se maioritariamente rejeitado pelos Tribunais Comuns, desde logo, pelos Tribunais da Relação (Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.09.2014 (Pimentel Marcos), Processo n.º 2208/11.4TVLSB.L1-7; do Tribunal da Relação de Guimarães de 13.02.2020 (Raquel Batista Tavares), acima citado; do Tribunal da Relação do Porto de 08.01.2015 (José Manuel Araújo de Barros), Processo n.º 1740/12.7TBPVZ.P1; do Tribunal da Relação de Évora de 09.06.2022 (Anabela Luna de Carvalho), Processo n.º 760/21.5T8FAR.E1, de 23.05.2024 (Cristina Dá Mesquita), acima citado, e de 16.12.2024 (Francisco Matos), Processo n.º 1261/19.7T8STR.E1; todos in http://www.dgsi.pt/).
Há, contudo, jurisprudência divergente no Supremo Tribunal de Justiça, onde, de forma unânime, se rejeitava o juízo de inconstitucionalidade, mas na mesma exata data de 02.02.2023 foram votados dois arestos de sentido oposto, assumindo-se num deles a afirmação da inconstitucionalidade da norma.
Assim:
- no Acórdão proferido no Processo n.º 4064/18.2T8SNT.L1.S1 (acima citado), manteve-se o sentido decisório que vinha sendo sustentado pelo Supremo Tribunal de Justiça a este propósito, indicando-se aí, em suporte da afirmação de que se trata de uma orientação dominante, os Acórdãos de 29.06.2005 (Processo n.º 2490/2005), de 11.09.2008 (Processo n.º 1748/08), de 22.03.2011 (Processo n.º 5715/04) e de 11.10.2011 (Processo n.º 1268/03);
- no Acórdão proferido no Processo n.º 4978/16.4T8VIS.C1.S1 (in http://www.dgsi.pt/) (Ana Paula Lobo) decidiu-se, diferentemente, que:
I. O art.º 225.º do Código de Processo penal consagra hoje, expressamente, a responsabilização do Estado, em casos de privação de liberdade, sempre que o réu venha a ser absolvido.
II. Raramente no processo-crime se consegue mais que a absolvição por falta de prova. O réu não tem de provar que está inocente, a acusação é que tem que provar que é culpado.
III. Não existem uns réus mais inocentes que outros consoante a absolvição decorra com mais ou menos intensidade da aplicação do princípio do “in dúbio pro reo”. Só há, em face da lei, duas alternativas possíveis: culpado ou inocente sem possibilidade de qualquer terceira alternativa de suspeita ambígua de que seja culpado ainda que se não tenha conseguido demonstrar que praticou o crime.
IV. Não importa que tenha sido absolvido porque demonstrou que não praticou o crime, ou porque não ficou provado que o praticou, nem se exige que a decisão que determinou a prisão esteja ferida de qualquer nulidade, invalidade ou excesso.
V. Trata-se simplesmente de o Estado, em nome da comunidade, assumir que este é o custo do compromisso entre os direitos individuais dos cidadãos, o direito fundamental à liberdade, com assento constitucional, e os imperativos sociais de protecção das vítimas, prevenção e perseguição dos criminosos, e garantia da segurança que, também no texto constitucional, vai a par da liberdade. O direito à liberdade individual, confronta-se com o direito à segurança de todos, num equilíbrio difícil de estabelecer e que não deixará de causar alguns danos colaterais”.

8. a) A posição do Tribunal Constitucional tem sido maioritariamente no sentido da conformidade da referida norma com a Constituição, mas como se aponta na decisão em recurso, o Tribunal Constitucional também já sufragou aquela inconstitucionalidade.
Assim, o Tribunal Constitucional proferiu, entre outras, as seguintes decisões:
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 185/2010 (Maria Lúcia Amaral) (Processo n.º 826/2008, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100185.html):
Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de se não considerar injustificada prisão preventiva aplicada a um arguido que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo”;
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 284/2020 (Pedro Machete) (Processo n.º 1170/17, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200284.html?impressao=1):
Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, n.º 1, e 32.º, n.º 2, da Constituição, o artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, interpretado no sentido de se não considerar que não foi agente do crime ou atuou justificadamente o arguido a quem foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva e que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo”.

b) No que concerne ao Acórdão n.º 185/2010, a decisão nele adotada assentou essencialmente na ideia de que não compete ao Tribunal Constitucional ponderar da bondade da opção legislativa, atendendo a que a Constituição outorgou ao legislador ordinário a definição dos parâmetros da atribuição de indemnização.
Consta da fundamentação do Acórdão n.º 185/2010, designadamente, o seguinte:
"Assim, o risco que todo o indivíduo corre de, verificados certos pressupostos legais, se ver sujeito a prisão preventiva é – e a tradição contratualista tem-no salientado bem – consequência, ou “contrapartida”, de uma dupla necessidade: da necessidade de proteger a liberdade dos outros; da necessidade de salvaguardar bens comunitários de segurança e de eficácia do sistema penal.
Resta saber – e essa é a especial questão que nos ocupa – por conta de quem deve correr esse risco, caso se venha ex post a concluir, por juízo absolutório, que, numa dada situação concreta, a prisão preventiva se não justificava. Deve ainda o risco correr por conta do indivíduo, que assim suporta toda a carga do sacrifício que lhe foi imposto, ou deve ele correr por conta da comunidade, sendo repartido (enquanto dever estadual de indemnizar) por todos os seus membros, na medida do benefício que do sacrifício individual retiraram? (…)
Importa por isso, antes do mais, resolver a questão: introduz uma restrição excessiva, ou não proporcionada, do direito à liberdade, lesiva do disposto na parte final do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, a norma contida no n.º 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal, que, não se satisfazendo com o juízo absolutório, faz depender o direito a indemnização por prisão preventiva materialmente injustificada da prova, a produzir na acção de responsabilidade civil contra o Estado, de ocorrência de erro grosseiro na apreciação pressupostos de facto que determinaram a imposição da medida de coacção? (…)
O Tribunal Constitucional não tem agora que tomar posição sobre se, perante esse cenário, i. é, perante um cenário em que existisse, sem margem para dúvida, um nexo de causalidade entre a introdução de um regime de responsabilização solidária e uma situação de deficit de prisão preventiva, estaria ou não em condições de intervir com fundamento em inconstitucionalidade por excesso de restrição.
É que, ao contrário do que, numa primeira apreciação, se seria levado a pensar, paira uma incerteza sobre se a introdução de um regime de responsabilização solidária inevitavelmente conduz a uma situação de deficit de prisão preventiva.
Com efeito, não é desrazoável admitir-se a hipótese de o cenário ser o oposto, i. é de a introdução de um mecanismo de responsabilização solidária por sujeição a prisão preventiva através da atribuição de uma indemnização em casos de absolvição vir agilizar a aplicação da prisão preventiva por parte de magistrados judiciais.
Sabendo que a sujeição de um indivíduo a prisão preventiva, em caso de posterior absolvição, daria sempre lugar à atribuição de uma indemnização, o magistrado judicial poderia, consciente ou inconscientemente, sentir-se menos compelido a moderar o recurso a essa medida de coacção comparativamente com o que sucede face ao regime actualmente em vigor, verificando-se, inclusive, um aumento do número de prisões preventivas decretadas e, portanto, uma afectação mais intensa da própria liberdade individual do arguido.
Não interessa saber se tal cenário é certo, provável, ou apenas hipotisável. A mera incerteza basta para que o Tribunal Constitucional não possa senão deferir perante o juízo formulado pelo legislador, gozando este último de ampla liberdade de conformação relativamente ao próprio juízo quanto à necessidade do regime contido no n.º 2 do artigo 225.º do CPP.”
A questão foi também apreciada sob o prisma do artigo 22.º da Constituição, concluindo-se que também nesta sede não se antolha a invocada inconstitucionalidade, porquanto “É à lei que cabe determinar em que casos deve o Estado responder civilmente por prejuízos causados às pessoas por actos da função judicial, determinando os seus pressupostos e a medida da indemnização. A tese segundo a qual decorreria, in casu, e da simples redacção do artigo 22.º da CRP, um direito à indemnização directamente aplicável, análogo a um direito, liberdade e garantia nos termos conjugados dos artigos 17.º e 18.º, n.º 1, primeira parte – o que seria bastante para fundamentar a inconstitucionalidade das condições “restritivas” do dever público de indemnizar fixadas no n.º 2 do artigo 225.º do CPP – não colhe, portanto, atenta a natureza de garantia institucional que detém a previsão, na Lei Fundamental, do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado. Face a este parâmetro, não merece portanto censura a norma sob juízo.”
Ex adverso importa colher a argumentação desenvolvida no voto de vencido lavrado pelo Juiz Conselheiro Vítor Gomes no citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 185/2010, o qual aduz que a razão decisiva para o juízo de inconstitucionalidade é a exigência ao arguido da prova da sua inocência na ação civil.
Afirma-se nesse voto de vencido:
Interpreto, pois, o n.º 5 do artigo 27.º da Constituição como não restringindo o direito a indemnização pela prisão preventiva feita “contra a Constituição e na lei” às hipóteses de ilicitude da imposição da medida. A prisão preventiva lícita, mas que vem a revelar-se materialmente injustificada, não deixa de constituir uma lesão do direito de liberdade individual. A conformidade à lei e a correcção de apreciação dos pressupostos de facto no momento da imposição da medida de coacção é o bastante para a privação da liberdade, mas não explica a privação da compensação pelo sacrifício. O legislador pode conformar o direito à indemnização, de acordo com a ampla liberdade que a parte final do preceito lhe outorgou (v.gr., limitação ou sistema de determinação dos danos atendíveis, prazos, mecanismos processuais), mas não pode eliminar o seu núcleo essencial.
(…) proteger a hipotética liberdade de uma categoria (todos os arguidos) mediante a não compensação pública do sacrifício da liberdade do arguido efectiva e concretamente atingido pela prisão preventiva que a posteriori vem a revelar-se injustificada, é solução que me parece desproporcionada e repelida pelo princípio do Estado de direito.”

c) No Acórdão n.º 284/2020 salienta-se preliminarmente a orientação reiterada do Tribunal Constitucional no sentido da constitucionalidade da norma, assumida nos Acórdãos n.ºs 90/84, 160/95, 12/2005, 13/2005 e, por último, no acima citado Acórdão n.º 185/2010.
A argumentação contrária centra-se, de seguida, na violação do princípio da igualdade e do princípio da presunção de inocência, sublinhando-se que por força da absolvição criminal deve ser aceite para todos os efeitos que o arguido é inocente.
Invoca-se o disposto no artigo 6.º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em abono desta última asserção.
Neste Acórdão alude-se também à jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol relativa a norma idêntica e em igual sentido, perante o entendimento de que só haveria lugar a indemnização estando demonstrada a “inexistência objetiva do facto” criminoso imputado ao arguido.
No entanto, o Relator do Acórdão, Juiz Conselheiro Pedro Machete, lavrou uma Declaração de Voto ao seu Acórdão, da qual consta que a “causa eficiente” da inconstitucionalidade é a violação do princípio da presunção de inocência, sendo meramente “consequencial” a violação do princípio da igualdade: “a solução consagrada no artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do CPP só pode ser considerada «arbitrária e desrazoável» (n.º 17, in fine, do presente acórdão) devido à ilegitimidade constitucional de distinguir entre absolvições com fundamento no princípio in dubio pro reo absolvições por falta de provas quanto à ilicitude ou quanto à culpabilidade do arguido e absolvições com fundamento na certeza positiva, fundada na prova produzida no processo, de que o arguido não foi agente do crime ou atuou justificadamente absolvições por comprovação da inocência. E tal ilegitimidade decorre da vertente extraprocessual do princípio da presunção da inocência (cfr., ibidem, os n.ºs 19 e 20).”
Nesta sua Declaração de Voto, assinala ainda o Relator que “na verdade, não fora a projeção extraprocessual do princípio da presunção de inocência (ou, porventura, a imposição de compensação dos sacrifícios graves e individualizados, a qual, todavia, não constitui ratio decidendi da presente decisão), o que impede o legislador de estabelecer a indemnização apenas em relação a certos casos qualificados (aqueles em que a prisão preventiva, a detenção ou a obrigação de permanência na habitação tenha sido corretamente aplicada a arguidos comprovadamente inocentes)?
Considerada em si mesma, aquela distinção nada tem de arbitrário ou desrazoável nem tão-pouco poderia ser objeto do controlo negativo exercido pelo Tribunal Constitucional relativamente às opções político-legislativas do legislador democrático. Na verdade, se o objetivo prosseguido é a compensação de um dano injustamente sofrido, a injustiça tida em mente pelo legislador só se mostra verificada na hipótese de absolvição com fundamento na inocência do arguido. Nos demais casos, subsiste a dúvida quanto à própria injustiça do dano, isto é, da privação da liberdade: o arguido pode ser culpado ou não; certo é tão-só que não se conseguiu fazer prova da sua culpabilidade.
De resto, a mencionada interpretação ampliativa ou já mesmo corretiva do citado artigo 225.º, n.º 1, alínea c), ensaiada no n.º 16 do acórdão, a propósito da deslocação da «ratio da medida da compensação pelo sacrifício da privação de liberdade para uma compensação pela dúvida em relação à inocência do arguido», é, ela própria, condicionada pelo princípio da presunção da inocência. Este, como o acórdão reconhece, constitui o «elemento fundamental para esclarecer se o termo de comparação consiste imediata e obrigatoriamente na absolvição caso em que o genus proximum é constituído pelo universo dos absolvidos em processo crime ou se as vicissitudes do próprio processo criminal (ou, posteriores à absolvição definitiva proferida no âmbito deste) também podem relevar em função de outros objetivos político-legislativos caso em que será possível sustentar a não comparabilidade das absolvições, por exemplo, em razão dos respetivos fundamentos» (v. ibidem).
É somente porque o princípio da presunção da inocência, compreendido à luz da jurisprudência do TEDH e que foi expressamente acolhida no presente acórdão, irradia para fora do concreto processo criminal em que uma das respetivas consequências processuais foi aplicada o aludido princípio in dubio pro reo , que se pode afirmar, tal como sucede no n.º 16 do acórdão, que, nos casos em que o Estado, pela mão do Ministério Público, não consiga provar, além de qualquer dúvida razoável, a autoria dos ilícitos típicos e a culpa do arguido, este último «fica do ponto de vista da responsabilidade penal, como sempre esteve, à luz do ordenamento jurídico-constitucional: inocente»; e, nessa medida, «numa situação comparável, do ponto de vista do dano que a indemnização por prisão preventiva visa reparar», à do arguido absolvido com base na certeza da sua inocência.”
Foi lavrada uma Declaração de Voto ao Acórdão em apreço pelo Juiz Conselheiro Manuel da Costa Andrade, na qual, em síntese, manifesta a sua concordância com a declaração de inconstitucionalidade na parte relativa à sua fundamentação no princípio da igualdade, mas refuta-a quando sustentada no princípio da presunção de inocência.
Afirma-se nessa Declaração de Voto:
“Brevitatis causa: uma pessoa absolvida em processo penal é, para todos os efeitos e em todos os lugares do direito, uma pessoa criminalmente inocente. Isto qualquer que seja o fundamento da sua absolvição: ausência dos momentos (objetivos ou subjetivos) do comportamento típico, justificação do facto, persistência de dúvida atinente aos momentos do tipo-incriminador ou do tipo-justificador (in dubio pro reo), etc.
Só que, como instituição do processo criminal, não pode impor-se aos demais ramos do direito, no sentido de pré-determinar juízos, valorações e consequências pragmáticas próprias destes outros ramos de direito. E que só a eles cabe encontrar. Até porque se trata de ramos de direito que obedecem a racionalidades e códigos próprios e se inscrevem em horizontes axiológico-normativos distintos, por vezes mesmo antinómicos. Tal vale sobremaneira e de forma paradigmática para os pertinentes regimes probatórios. Sabe-se como, diferentemente do processo penal, o processo civil assenta no princípio da autorresponsabilidade probatória das partes e conhece um regime de proibições de prova não sobreponível ao do processo penal. Estão em causa sistemas normativos diferentes, vocacionados para interpretarem e julgarem em termos assimétricos os mesmos pedaços de vida sobre que venham a convergir. Por ser assim, factos que é forçoso dar como não provados em processo penal e tratá-los como se eles, pura e simplesmente, não existissem, podem perfeitamente ser dados como provados noutros ramos de direito e aí valorados como cumprindo a fattispecie das pertinentes previsões legais. Só pode ser assim em homenagem à separação, autonomia e autorreferência da lei civil (substantiva ou adjetiva) ou outra, face ao desempenho do sistema penal (substantivo ou adjetivo). Decisiva e unívoca, apenas uma inultrapassável linha vermelha: estes outros ramos de direito não podem renovar, nem sequer pressupor e menos ainda erigir em pressuposto das suas decisões qualquer lastro ou resíduo de censura ou estigma criminal. Que a seu tempo foram definitiva e irreversivelmente afastados do mundo do direito e da vida.”

9. Diz-se no acima aludido artigo 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos que “Qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”.
A este respeito escreve Ireneu Cabral Barreto (A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 7ª ed., Coimbra, 2025, pág. 242) que “após a absolvição, a presunção de inocência não pode ser posta em causa noutros processos relacionados com o principal, na medida em que as questões suscitadas naqueles constituem um corolário ou um complemento do processo principal onde o visado era o arguido, por exemplo, para efeitos de atribuição de uma indemnização por prisão preventiva.”
Do preceito transcrito, ou de qualquer outro preceito da Convenção não decorre, porém, a obrigatoriedade de reconhecer a um arguido absolvido o direito a uma indemnização, pelo que “esta recusa de indemnização não colide com o princípio de presunção de inocência” (ibidem).
No entanto, se vier a reconhecer-se esse direito, não pode recusar-se a indemnização em alguns casos por se entender que nesses a responsabilidade penal subsiste apesar da absolvição (ibidem).
A referência essencial, nesta sede, é o muito citado Acórdão do TEDH Sekanina v. Áustria, de 25.08.1993, secundado por outras decisões do TEDH, designadamente, Capeau v. Bélgica, de 13.01.2005, Baars v. Países Baixos, de 28.10.2003, Puig Panella v. Espanha, de 25.04.2005, e Tendam v. Espanha, de 13.07.2010 (Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª ed., Lisboa, 2011, pág. 642).

10. Refira-se ainda, no quadro da defesa da inconstitucionalidade da referida norma e sua interpretação, as vozes de Paulo Pinto de Albuquerque (ob. cit., págs. 641-644), Catarina Veiga Ribeiro («Prisão Preventiva e o Conceito de Absolvição», in Revista da Ordem dos Advogados, 79, n.º 3-4 (Jul.-Dez. 2019), págs. 537-554) e José Mouraz Lopes (ob. cit., págs. 640-642).
Maia Costa sustentou, diversamente, que tal interpretação não padece de inconstitucionalidade (Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed., Coimbra, 2021, págs. 865-866).

11. Retomando a primeira questão acima enunciada, afigura-se que se for lida a “comprovação” com o significado de exigência de prova positiva de que o arguido não praticou os factos que lhe são imputados, então tanto a prova insuficiente como a ausência de prova não preenchem aquele critério.
Com efeito, num caso como o dos autos, em que tanto o arguido como a ofendida optaram por não prestar declarações em audiência, ao abrigo das disposições legais que consentem ao arguido o direito ao silêncio e à sua companheira a faculdade de recusar a prestação de depoimento, e em que os factos são essencialmente do domínio da vida íntima do casal, não sendo presenciados por terceiros, é comum não se lograr a prova dos factos descritos na acusação.
A esta luz, a questão da constitucionalidade da interpretação que rejeita o arbitramento de uma indemnização nos casos de absolvição in dubio pro reo é extensível àqueles em que não existe prova dos factos.

12. Passamos à segunda questão, apreciando se a comprovação exige a demonstração positiva da ausência de responsabilidade criminal.
Salienta-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.02.2023 (Ana Paula Lobo) (acima citado) que no modelo de decisão no processo penal, por força dos princípios do acusatório e da presunção de inocência, a instrução da causa e a subsequente sentença devem apenas responder à pergunta sobre se o arguido praticou os factos descritos na acusação. Se a resposta for positiva, os factos descritos na acusação são julgados provados, mas na situação inversa, os factos descritos na acusação são simplesmente vertidos no enunciado de factos não provados, isto é, por regra, não constam do elenco da matéria de facto provada as razões determinantes do juízo probatório negativo sobre os factos da acusação. O mesmo é dizer, por regra, as sentenças penais absolutórias não comprovam a inocência do arguido, antes e apenas a sua ausência de culpa.
No caso em apreço há duas vertentes distintas: os factos não provados que integrariam a tipicidade do crime de violência doméstica; o elemento subjetivo da infração relativamente à matéria de facto provada.
Quanto aos factos não provados que integrariam a tipicidade do crime de violência doméstica, nada consta da decisão de facto no sentido da confirmação de que o arguido não os praticou, aliás, se compulsarmos a contestação apresentada nos presentes autos pelo R., vemos aí sublinhado que no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.08.2021, que manteve a medida de coação de prisão preventiva, após as declarações para memória futura prestadas pela ofendida, se consignou o seguinte:
Ainda assim se dirá que as declarações prestadas pela ofendida (...), a que tivemos acesso através da transcrição das mesmas que o Recorrente apresentou, são confirmatórias dos factos considerados como fortemente indiciados na decisão judicial de imposição da medida de coação de prisão preventiva. E que dessas declarações não decorre qualquer atenuação dos perigos que justificaram a imposição da medida de coação de prisão preventiva” (o Acórdão em evidência mostra-se junto aos autos com a p.i., como doc. 2).
No que respeita depois ao elemento subjetivo da infração relativamente à matéria de facto provada, consta da sentença penal que o arguido ingeriu bebidas alcoólicas no dia em que praticou os factos e que se encontrava “visivelmente embriagado” (facto provado 5.).
É certo que na sentença proferida no processo crime não se alude expressamente ao instituto da inimputabilidade, porém, é para aqui que somos remetidos perante uma absolvição fundada em ausência de dolo por virtude do estado de embriaguez do arguido, e é também seguro que a circunstância de factos de natureza criminosa serem praticados em estado de embriaguez não determina a imediata consideração do arguido como inimputável. Pode tratar-se, diversamente, de um caso de imputabilidade diminuída, sendo então a decisão a proferir de condenação, ou mesmo de um caso de plena imputabilidade, tudo dependerá da gravidade do estado de embriaguez no caso concreto, a avaliar não só em função da quantidade / qualidade de álcool ingerido, como do tempo decorrido desde o consumo e da fisiologia do indivíduo.
Aliás, à luz da doutrina da actio libera in causa, o estado de embriaguez pode até ser perspetivado sob outra forma, entendendo-se que o dolo se reporta ao momento em que o agente inicia a ingestão de bebidas alcoólicas: “A situação da actio libera in causa ocorre quando o sujeito se encontra em estado de inimputabilidade no momento da realização do resultado típico tendo, no entanto, em momento anterior, em que estava em pleno uso da sua compreensão e de determinação segundo a justeza de uma acto, de forma dolosa, ou imprudentemente, se coloca nesse estado. As situações mais comuns ocorrem quando alguém se embriaga “para vencer as suas inibições e dar uma tareia (“paliza”) ao seu inimigo em estado de inimputabilidade ou imprudentemente não repara que durante a embriaguez empregará violência sobre o seu inimigo.”
“Segundo o modelo do tipo, que predomina na jurisprudência e na doutrina, a imputação não se conecta com a conduta durante a embriaguez, mas sim com o facto de se embriagar ou com a conduta que de qualquer modo provoca a exclusão da culpabilidade. Essa conduta prévia se interpreta como causação dolosa ou culposa e por tanto, no caso, é punível em função do resultado típico” [Claus Roxin, op. loc. cit., pág. 850-851.]” (Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 25.10.2017 (Gabriel Catarino), Processo n.º 292/14.8GACOV.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/).
Refira-se, inclusivamente, que os consumos alcoólicos constituem um contexto frequente no âmbito dos crimes de violência doméstica, como se assinala na contestação apresentada pelo R. nos presentes autos, onde se diz que “a violência doméstica e o consumo de álcool estão diretamente relacionados, sendo inclusive um dos factores de risco”.
Contudo, as considerações tecidas na sentença penal sobre o caráter determinante da embriaguez para a prática dos factos provados conduzem à conclusão de que para o Tribunal penal, na data da prática dos factos, o arguido não estava capaz de entender e querer, ou seja, sob esta perspetiva está comprovada a inocência do arguido quanto aos factos provados.
No mais, isto é, com respeito aos factos que foram julgados não provados, já assim não sucede, como decorre do acima exposto.

13. A questão reside, assim, em saber se a apontada restrição é compatível com a Constituição, o que implica determinar se assiste ao legislador ordinário plena liberdade de conformação do direito de indemnização, ou se esse poder de conformação deferido pelo artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, enfrenta limites.
O que está em causa é o direito fundamental à liberdade, consagrado no n.º 1 do artigo 27.º da Constituição, o qual só pode ser comprimido nos casos excecionais previstos nos n.ºs 2 e 3 do mesmo preceito, onde se integra precisamente a medida de coação de prisão preventiva (alínea b) do n.º 3).
Ora, não existe consenso relativamente à inconstitucionalidade material de que se cura, desde logo, porque existe apenas um Acórdão do Tribunal Constitucional a sufragá-la e, mesmo neste aresto, a respetiva fundamentação não foi integralmente subscrita por unanimidade.
Com efeito, apesar da posição que fez maioria nesse Acórdão assentar predominantemente o juízo de inconstitucionalidade na violação do princípio da presunção de inocência, ancorada na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a respeito deste princípio, foi exarada naquele Acórdão uma Declaração de Voto que acentua a separação entre os diversos ramos do direito e sublinha as distintas regras que os regem, desde logo, ao nível probatório, refutando a ideia da projeção do princípio da presunção de inocência no processo civil.
Se pensarmos nos artigos 623.º e 624.º do Código de Processo Civil, confirmamos essa ideia, pois não obstante o trânsito em jugado da decisão penal condenatória ou absolutória, assiste a um terceiro demandado em processo civil com base em tal sentença a faculdade de demonstrar o contrário do que nela foi decidido.
Retenhamos as referidas normas:
- Artigo 623.º (“Oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória”)
“A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.
- Artigo 624.º (“Eficácia da decisão penal absolutória”)
“1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
2 - A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.”
Da aplicação destas normas pode resultar que apesar de ter sido decretada a absolvição do condutor de um automóvel, no âmbito de um processo penal relativo à prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência, a pessoa que se reclama vítima de atropelamento por esse condutor logre demonstrar, em ação cível subsequente, que o condutor agiu com negligência e, com este fundamento, obtenha a condenação da companhia de seguros do lesante no pagamento de uma indemnização.
A absolvição proferida no processo penal não é colocada em crise, uma vez que por força do caso julgado material o arguido não poderá voltar a ser acusado e julgado pelos mesmos factos (princípio ne bis in idem), mas irão subsistir na ordem jurídica duas decisões de sentido contrário, reconhecendo-se, para estritos efeitos civis, a culpa do condutor.
Importa ainda assinalar que já foi apreciada e rejeitada a alegada inconstitucionalidade do citado artigo 624.º, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.05.2024 (Ana Paula Leal Carvalho) (Processo n.º 72/23.0T8FAR.E1.S1, in http://www.dgsi.pt/):
“I. A sentença penal absolutória decorrente de prova positiva ( por resultar provado que não foram praticados os factos imputados no processo penal), não se impõe, nos termos do artigo 624.º do CPC, com eficácia erga omnes na ação cível para efetivação da (eventual) responsabilidade civil decorrente dos factos de que o réu havia sido acusado na ação penal, antes constituindo uma presunção ilidível de que os mesmos não foram praticados e, por consequência, sendo ilidível por prova em contrário a cargo do demandante cível.
II. A não imposição, erga omnes, da sentença penal absolutória (com base na referida prova positiva) não viola quer o principio ne bis in idem, quer os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do Estado de Direito Democrático (artigo 2.º da C.R.P.), não sendo o artigo 624.º inconstitucional por violação do disposto nos artigos 2.º e 29.º, n.º 5, da CRP.”
Assim, salvo o devido e muito respeito por opinião contrária, a recusa do arbitramento de uma indemnização com fundamento em absolvição, por se encontrar a situação considerada fora do âmbito traçado pelo legislador ordinário, em nada contende com a afirmação da inocência do arguido, quer dizer, não implica qualquer alteração ao juízo probatório negativo formulado na sentença penal, antes se enquadra na ideia de que em sede de processo civil as regras que presidem às decisões são outras, concretamente, as atinentes ao ónus da prova (artigo 342.º do Código Civil) e ao princípio a observar em casos de dúvida (artigo 414.º do Código de Processo Civil).
É a esta luz que se afirma competir a quem peticiona o arbitramento da indemnização a demonstração dos pressupostos do seu direito, nos termos do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil.
No que respeita ao princípio da igualdade, é entendimento pacífico que o mesmo consente a diferenciação de situações desde que haja um fundamento legítimo para tal, como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2007, pág. 341): “o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante.”
Nada obsta, assim, à distinção efetuada in casu, a qual é materialmente fundada no diferente juízo probatório subjacente às decisões, atendendo-se ainda à génese do artigo 27.º, n.º 5, da Constituição.
Com efeito, no acima citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.01.2015 aponta-se a intenção subjacente ao artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, que se reconduz ao ressarcimento de danos decorrentes de prisão ou detenção ilegais, isto é, “contra o disposto na Constituição e na lei”:
“IV - O n.º 5 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, que visa tão só a indemnização por privação de liberdade contra o disposto na Constituição ou na lei, tem um campo próprio de aplicação, em conexão com a responsabilidade, genericamente consagrada no artigo 22.º do mesmo diploma, por lesão, por parte do Estado, de direitos, liberdades e garantias, com este preceito tendo assim uma relação de especialidade.
V - Demarca-se também da previsão do n.º 6 do artigo 29.º, relativa à indemnização por danos sofridos com condenação injusta, reportada ao clássico erro judiciário.
VI - O artigo 225.º do Código de Processo Penal concretizou o dever de indemnizar a que alude o n.º 5 do artigo 27.º, conforme à previsão da parte final deste – «nos termos que a lei estabelecer». (…) XI - A alteração ao artigo 225.º do Código de Processo Penal introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, aditando, como fundamento do pedido indemnizatório, à prisão manifestamente ilegal e ao erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto – alíneas a) e b) do n.º 1 –, a comprovação de que o arguido não cometeu o crime ou actuou justificadamente – alínea c) –, é inovação que extravasa o âmbito do comando do n.º 5 do artigo 27.º da Constituição, filiando-se no princípio consagrado no n.º 6 do artigo 29.º desta de que os cidadãos injustamente condenados têm direito a ser indemnizados, para esse efeito alargando o conceito de condenação às medidas de coação gravemente atentatórias da liberdade do arguido.”
As situações que preenchem aquela previsão são as enunciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal, integrando-se no mesmo conceito também a alínea d), onde se prevê a privação de liberdade em infração ao disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Nesta última norma prevêem-se as condições em que pode licitamente ocorrer a privação de liberdade, estabelecendo-se no seu n.º 5 que “Qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo tem direito a indemnização.”
A propósito, refere Ireneu Cabral Barreto (ob. cit., págs. 172-173) que por virtude da articulação com o artigo 35.º da Convenção, o exercício do direito aqui previsto pressupõe o esgotamento dos meios internos, e que o Tribunal apenas examina uma queixa com este fundamento quando as jurisdições nacionais ou o próprio Tribunal concluam pela ocorrência de uma violação do disposto neste artigo 5.º.
A alínea d) do n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal mostra-se, deste modo, alinhada com a Convenção e, como se disse, enquadrada no contexto do arbitramento de uma indemnização por privação ilegal de liberdade.
Já assim não sucede com a alínea c), pelo que este normativo se encontra fora do âmbito da previsão do artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, alcançando uma situação materialmente distinta, caracterizada por terem sido observadas as normas que permitem a privação da liberdade do sujeito.
Este alargamento alicerça-se, então, em razões de justiça material, atinentes à suportação de um sacrifício infundado, que deve, deste modo, ser arcado pela comunidade, por envolver uma atuação do Estado.
Mas sendo assim, impõe-se a comprovação de que o arguido não foi agente do crime, o que não sucede quando a absolvição assenta na mera falta de prova dos factos.
Sublinhe-se que os factos que vieram a integrar a acusação pelo crime de violência doméstica foram apreciados para sustentar a medida de coação de prisão preventiva, tendo sido sucessivamente considerado, ao longo do processo, que existiam indícios suficientes da prática deste crime pelo A., inclusivamente, pelo Tribunal da Relação, que assim o decidiu em três ocasiões, mesmo depois de terem sido prestadas as declarações para memória futura por parte da ofendida.
A imagem global decorrente da multiplicação de ocorrências homogéneas é essencial para a qualificação dos factos como constitutivos de um crime de violência doméstica, pelo que a redução do acervo factual, na sentença, a uma única ocorrência, decorrente da falta de prova das demais sete, foi determinante da alteração de qualificação jurídica, a qual, por sua vez, acabou por conduzir à absolvição, conjugadamente com a demonstração da ausência de dolo quanto à única ocorrência provada.
Em conclusão, a falta de prova dos factos que reconduziriam o caso à imputação de um crime de violência doméstica foi elemento decisivo da absolvição decretada a final.
Tudo visto, mantém-se a sentença recorrida.

14. As custas são suportadas pelo A., que fica vencido (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo A..
Notifique e registe.
Sónia Moura (Relatora)
Ricardo Miranda Peixoto (1º Adjunto)
Ana Pessoa (2ª Adjunta)