PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
REQUISITOS
PERICULUM IN MORA
CONSTRUÇÃO DE OBRAS
Sumário

I. No procedimento cautelar comum, o “fundado receio” de que outrem, antes de proferida a decisão de mérito, cause lesão grave e dificilmente reparável de tal direito, deve estar apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas.
II. A alegação de que a requerida, uma sociedade comercial dedicada à construção e ao imobiliário, se encontra inactiva numa conjuntura económica favorável ao respectivo ramo de actividade, não permite inferir com objectividade a ocorrência de uma ameaça séria e actual que imponha a necessidade de proceder ao “arrolamento” e/ou ao “arresto” do seu património ou do dos respectivos sócios, com vista à garantia de um crédito arrogado pelos requerentes, decorrente do incumprimento de contrato de empreitada.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Apelação 1625/24.4T8FAR-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Cível de Faro – Juiz 1

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Sumário (cfr. artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1ª Adjunta: Susana Ferrão da Costa Cabral; e
2º Adjunto: Filipe César Osório.
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I. RELATÓRIO
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A.
(…) e (…) instauraram o presente procedimento cautelar não especificado contra “(…) – Sociedade de Gestão (…) e (…), Lda.”, (…) e (…), todos melhor identificados nos autos, pedindo que seja decretado o arrolamento de todos os bens dos Requeridos, designadamente, contas bancárias, bens imóveis, bens móveis sujeitos a registos e respetivos inventários empresariais e que, após o respetivo arrolamento, seja ordenado o arresto de bens que lhes pertençam e que possam garantir o pagamento de € 106.165,03 (cento e seis mil e cento e sessenta e cinco euros e três cêntimos).
Alegaram para o efeito que os Requeridos incumpriram as obrigações estabelecidas em contrato de empreitada celebrado entre as partes, considerando ser-lhes devida a devolução do valor de que estes se locupletaram por não terem executado os trabalhos que lhes eram exigíveis e ainda uma compensação por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da não conclusão dos trabalhos e atrasos na realização da obra, tudo no supramencionado valor.
Mais sustentam que apenas nesta data tiveram conhecimento de que a Ré (…) se encontra com a sua atividade comercial inactiva desde o dia 31 de Janeiro de 2024, informação que carece de razoabilidade económica num contexto de crescimento do sector imobiliário e da construção e tendo em conta que a Ré apresentava, em 2022, capital próprio no valor de € 298.105,03, daí depreendendo existir uma intenção dolosa por parte dos Requeridos / pessoas singulares de promoverem uma diminuição efectiva do património da sociedade, de forma a evitarem as consequências de eventual condenação no processo principal.
B.
Foi proferida, com data de 26.02.2025, decisão de indeferimento liminar da providência requerida, considerando não estar preenchido pela factualidade alegada no requerimento inicial, o pressuposto do justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito arrogado pela Requerente.
Transcreve-se parcialmente, de seguida, a decisão recorrida (sem negrito da origem):
“(…)
Deste modo, os pressupostos legais das providências cautelares não específicas continuam a ser, à luz da nova redação do Código de Processo Civil, os seguintes:
• Existência de direito alegadamente ameaçado (fumus boni juris);
• Fundado receio de lesão grave;
• Remoção do periculum in mora concretamente verificado;
• Não aplicabilidade de nenhuma das providências previstas nos artigos 377.º a 409.º do Código de Processo Civil (cfr. artigo 362.º, n.º 3, do Código de Processo Civil);
• Que o prejuízo do seu eventual decretamento não seja superior ao dano que se pretende acautelar (artigo 368.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso concreto importa, desde logo, salientar a deficiência que apresentam os pedidos formulados pelos requerentes, o que apenas se admite ficar a dever-se às dificuldades inerentes à identificação de bens pertencentes à sociedade ou aos seus sócios gerentes. Todavia, salvo melhor opinião, o que não se pode pretender sob a aparência de uma tutela cautelar de um direito é obviar à deficiência de alegação de factos essenciais à procedência da providência, tanto que a identificação dos bens em causa, sempre permitiria alcançar as condutas concretas adotadas pelos requerentes com vista à dissipação desses bens, o que, como agora se constata, também ficou por alegar.
Assim sendo e se é certo que se mostra suficientemente alegada a matéria atinente ao direito alegadamente ameaçado, pois que, os requerentes, na qualidade de donos da obra invocam ter resolvido validamente o contrato de empreitada que celebraram com a requerente/sociedade, por incumprimento imputável a esta última, considera-se que a mera alegação de inatividade da empresa numa informação prestada por outra empresa e de que tal indicia a intenção de dissipação de património, à mingua de qualquer atuação concreta, por parte dos seus representantes legais, com vista a tal dissipação ou diminuição do património societário, por si só, não é enquadrável no conceito de fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito invocado pelos requerentes.
Assume ainda particular relevo a análise do requisito atinente ao periculum in mora pois que, em nosso entender e de acordo com a materialidade alegada no requerimento inicial, apenas a demora inerente à realização de prova pericial (já requerida pela ré) poderá acarretar algum atraso na obtenção de decisão final transitada em julgado, sendo também de salientar o facto de ter sido suscitada a ilegitimidade processual passiva dos sócios gerentes para figurarem na ação, ao que os requerentes silenciaram, para virem agora, por via da presente providência, pretender atingir património individual que, como é consabido, apenas responde pelas dívidas da sociedade nos apertados limites previstos no Código das Sociedades Comerciais, designadamente no artigo 78.º e seguintes.
Importa ainda salientar que, da informação que os requerentes carrearam para os autos também resulta que, a requerida sociedade tem a sua situação contributiva regular, não consta na lista pública de execuções e apenas possui duas ações judiciais em aberto, sendo que, uma delas coincidirá com a ação principal e a outra, a uma injunção no valor de € 2.545,46 (dois mil e quinhentos e quarenta e cinco euros e quarenta e seis cêntimos), elementos que contrariam a alegada situação deficitária em que a empresa se encontra.
Acresce que, de acordo com a certidão de matrícula referente à sociedade, à data de entrada da ação principal em juízo (14/5/2024), o facto da requerida/sociedade não ter cumprido a obrigação de prestação de contas relativa ao ano de 2023 já era suscetível de ser do seu conhecimento – vide certidão que antecede – sendo que, nessa altura, não foi invocado qualquer receio de prática de atos de dissipação de património.
Pelas razões aduzidas consideramos que não se encontra indiciado o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito invocado pelos requerentes, inexistindo razão para qualquer convite ao aperfeiçoamento do articulado, mostrando-se prejudicada a apreciação do preenchimento dos demais requisitos de procedência das providências cautelares comuns.
(…)”.
C.
Inconformados com o assim decidido, os Requerentes interpuseram recurso de apelação, pugnando pela reversão da decisão.
Concluíram as alegações nos seguintes termos (transcrição parcial, sem negrito e sublinhado da origem):
“(…)
C. A fundamentar o justo receio de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, os Recorrentes sustentaram que, apenas nesta data, tiveram conhecimento de que a Recorrida (…) se encontra com a sua atividade comercial suspensa por inatividade desde o dia 31 de janeiro de 2024, juntando informação prestada pela empresa (…), de acordo com a qual, efetivamente, a empresa em causa encontra-se inativa, com a atividade comercial suspensa por não ter cumprido as suas obrigações legais/fiscais referentes ao ano de 2023.
D. Ora, os Recorrentes fundam o seu receio no facto de os Recorridos estarem a deliberadamente promover a atos de diminuição do património da Sociedade Comercial Recorrida (…), para no final do processo não existir património suficiente para promover ao pagamento da compensação a que venham a ser condenados,
E. Sendo que se em 2022 a empresa Recorrida possuía um capital próprio no valor de 298 105,03 € (duzentos e noventa e oito mil, cento e cinco euros e três cêntimos), é estranho que a mesma, após ser notificada que os Recorrentes iriam agir contra si judicialmente, na magnitude de valor de compensação ora sindicado, tenha não apresentado as suas contas de 2023, e em consequência seja declarada a sua suspensão por inatividade, num ciclo económico em que atento o objeto social desta, deveria estar a laborar com elevados rendimentos.
F. O único motivo que se nos afigura como lógico é pois, que tal comportamento, seja motivado numa intenção dolosa por parte dos Recorridos de promoverem a uma diminuição efetiva do património da Sociedade R. (…) com vista a não pagarem a compensação que foi peticionada em sede de ação principal - como é infelizmente prática habitual de diversas sociedades comerciais que assumem a qualidade de Ré em situações de incumprimento análogas. (…)
H. Não considerou que os Recorrentes demonstrassem o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável com a seguinte fundamentação “considera-se que a mera alegação de inatividade da empresa numa informação prestada por outra empresa e de que tal indicia a intenção de dissipação de património, à mingua de qualquer atuação concreta, por parte dos seus representantes legais, com vista a tal dissipação ou diminuição do património societário, por si só, não é enquadrável no conceito de fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito invocado pelos requerentes”.
I. Todavia, não foi apenas a inatividade da Recorrida (…) que se invocou para o fundado receio de dissipação ou diminuição patrimonial, a par da referida inatividade invocou-se desde logo e por confissão a intenção expressa dos demais Recorridos em assacarem responsabilidades totais para a Recorrida (…) – cfr. artigos 50º a 52º da Contestação que foram invocados no artigo 8º e seguintes do Requerimento Inicial: “50º - A Ré (…), Lda. foi quem celebrou o contrato de empreitada com os AA. e não os RR. (…) e/ou (…), sendo que, 51º - O R. (…) é técnico de construção civil da Ré (…) e a R. (…), gerente, desta empresa comercial, não se aplicando, salvo o devido respeito in casu, o alegado em 68 a 73 da P.I., quanto à sua legitimidade processual. 52º - A haver um devedor é a 1ª Ré (…), Lda., a qual nunca se eximiu de, com os AA. acertar eventuais contas face à abrupta resolução contratual por parte dos donos da obra que vinha executando, ora AA., mas não aos valores exorbitantes, irreais ou reclamados na causa.” Ora, a imputação de eventual e única culpa por parte dos demais Recorridos à R. (…), Lda. é deliberada e propositada!
J. A inatividade decorre da não apresentação de contas pela R. (…) desde 2022! A qual foi invocada pelos Recorrentes, o não cumprimento de uma obrigação legal, que permite a terceiros conhecer o real estado da sociedade, é em si potenciador de risco para terceiros, que sejam credores da mesma/ ou com ela se encontrem em litígio, em virtude de não se ser possível conhecer o real estado da mesma, designadamente, os negócios, aquisições, vendas, dados contabilísticos e/ou inventários.
K. Conforme a certidão comercial junta pelo próprio Tribunal a quo a última prestação de contas decorre do “DEP 1041/2023-07-13 17:11:09 UTC – PRESTAÇÃO DE CONTAS INDIVIDUAL sendo referente a contas de 01-01-2022 a 31-12-2022”
L. Nesta senda, refere ainda o Tribunal a quo “sendo também de salientar o facto de ter sido suscitada a ilegitimidade processual passiva dos sócios-gerentes para figurarem na ação, ao que os requerentes silenciaram, para virem agora, por via da presente providência, pretender atingir património individual que, como é consabido, apenas responde pelas dívidas da sociedade nos apertados limites previstos no Código das Sociedades Comerciais, designadamente no artigo 78.º e seguintes.
M. Não corresponde totalmente à verdade este desiderato, com efeito o prazo para responder às exceções foi concedido pelo Tribunal a quo para aperfeiçoamento do articulado apresentado, cujo prazo terminou em momento posterior à prolação da presente decisão. – Pelo que não silenciaram os Recorrentes.
N. Por outro lado, quando o Tribunal a quo faz referência ao artigo 78.º do CSC (…), parece-nos, com a devida vénia, que maior reforço na necessidade de proteção dos interesses e expectativas legais dos Recorrentes, com efeito, ainda não foi feita prova nem julgada a responsabilidade culposa no negócio jurídico por parte dos Recorridos (…) e (…), pelo que o Tribunal a quo não pode afastá-los de imediato de tal desiderato sob pena de omissão de decisão.
O. Por outro lado, e sem que faça o mínimo sentido lógico, fundamentou o Tribunal que não demonstraram indiciariamente os Recorrentes o fundado receio de lesão e dificilmente reparável em virtude de “Acresce que, de acordo com a certidão de matrícula referente à sociedade, à data de entrada da ação principal em juízo (14/5/2024), o facto da requerida/sociedade não ter cumprido a obrigação de prestação de contas relativa ao ano de 2023 já era suscetível de ser do seu conhecimento – vide, certidão que antecede – sendo que, nessa altura, não foi invocado qualquer receio de prática de atos de dissipação de património.”
P. Ora, este entendimento, salvo devida vénia e respeito não se encontra correto.
Q. Com efeito, conforme supra se mencionou o último deposito de contas foi referente ao ano de 2022 e ocorreu a 13 de Julho de 2023 e os ora Recorrentes instauraram a ação a 14.05.2024.
R. A Modelo 22 de IRC deve ser submetida anualmente, até ao último dia do mês de maio do ano seguinte ao período de tributação a que respeitam os rendimentos. Caso o período de tributação não corresponda ao ano civil, a declaração deve ser apresentada até ao quinto mês seguinte ao termo desse período.
S. No ano de 2024, ano no qual a entrega é relativa à atividade desenvolvida no ano de 2023, o prazo de entrega foi prorrogado. Esta prorrogação deveu-se a atrasos de disponibilização da declaração por parte da AT, sendo o prazo limite da sua entrega e respetivo pagamento até dia 15 de julho de 2024.
T. Pelo que aquando da apresentação da ação principal em juízo era impossível aos AA. ora Recorrentes preverem que os Recorridos não cumpririam as obrigações fiscais a que estão vinculados, principalmente quando no ano transacto haviam tido excelentes resultados capazes de per si pagar na totalidade a compensação peticionada.
U. Ora, se a Recorrida (…) não apresentou as suas contas referentes a 2023, como pode o Tribunal a quo concluir “Importa ainda salientar que, da informação que os requerentes carrearam para os autos também resulta que, a requerida sociedade tem a sua situação contributiva regular, não consta na lista pública de execuções e apenas possui duas ações judiciais em aberto, sendo que, uma delas coincidirá com a ação principal e a outra, a uma injunção no valor de € 2.545,46 (dois mil, quinhentos e quarenta e cinco euros e quarenta e seis cêntimos), elementos que contrariam a alegada situação deficitária em que a empresa se encontra.
V. O Tribunal a quo não possui qualquer prova que lhe permita concluir que a Recorrida (…) tenha a sua situação contributiva regular.
W. Pelo que, se a Recorrida (…) não cumpriu as suas obrigações fiscais e declarativas, como podem os Recorrentes serem conhecedores dos seus ativos?
X. A Sentença em crise refere “No caso concreto importa, desde logo, salientar a deficiência que apresentam os pedidos formulados pelos requerentes, o que apenas se admite ficar a dever-se às dificuldades inerentes à identificação de bens pertencentes à sociedade ou aos seus sócios-gerentes. Todavia, salvo melhor opinião, o que não se pode pretender sob a aparência de uma tutela cautelar de um direito é obviar à deficiência de alegação de factos essenciais à procedência da providência, tanto que a identificação dos bens em causa, sempre permitiria alcançar as condutas concretas adotadas pelos requerentes com vista à dissipação desses bens, o que, como agora se constata, também ficou por alegar.”
Y. Os Recorrentes face ao incumprimento das obrigações legais e fiscais pela Recorrida (…) não têm forma de ser saber o ativo patrimonial desta, nem das pessoas singulares como decorrência do sigilo fiscal.
Z. Ora, é neste receio fundado de lesão séria e irreparável que assentam os Recorrentes a sua pretensão, sendo que o tribunal a quo sobre o fumus bonis iuris já se pronunciou que esta manifestamente provado.
AA. Assim, apenas por meio do arrolamento, poderão de forma concreta os Recorrentes, saber quais os bens a arrestar.
BB. Tendo em consequência os Recorrentes instaurado procedimento cautelar comum com características de Arrolamento (…) para após identificação dos bens titulados pelos Recorridos serem os mesmos arrestados na proporção de € 106.165,03 (cento e seis mil e cento e sessenta e cinco euros e três cêntimos) para garantia de pagamento do valor peticionado.
CC. Ao ter indeferido liminarmente a presente providência cautelar, entendemos, que esteve mal o Tribunal a quo!
DD. Uma vez que o procedimento cautelar assenta numa summaria cognitio, cujo fumus bonis iuris o tribunal dá como verificado, mas de forma inconcebível não entende o risco sério de lesão dos Recorrentes por falta de pagamento pela Recorrida (…), alicerçada pela estratégia de defesa em sede de Contestação, na falta de cumprimento das obrigações legais e fiscais a que esta se encontrava adstrita e na consequente suspensão da sua atividade comercial.
EE. Não olvidando que o incumprimento das obrigações fiscais/legais é posterior à data em que que a Recorrida (…) é citada, e quando esta poderia (e até 15 de Julho) promover ao cumprimento das obrigações decorrentes do ano económico de 2023.
FF. Sendo tal incumprimento, com referência ao ano económico de 2023 que levou à suspensão da atividade da mesma R. (…) por inatividade em 31 de Janeiro de 2024.
GG. Esteve mal o Tribunal a quo quando se olvidou que o prazo limite da entrega do Modelo 22 do IRC referente ao ano de 2023 viu prorrogada a sua entrega e respetivo pagamento até ao dia 15 de julho de 2024.
HH. E, ao considerar a R. (…) com a situação contributiva regularizada quando por meio da própria certidão comercial que o Tribunal a quo requereu, se constata que a Recorrida (…) não entregou o Modelo 22.
II. Apenas com recurso ao presente procedimento cautelar poderão os Recorrentes ter a certeza de garantia de pagamento no final do processo.
JJ. E, não como a Sentença em crise refere “apenas a demora inerente à realização de prova pericial (já requerida pela ré) poderá acarretar algum atraso na obtenção de decisão final transitada em julgado” uma vez que o trânsito em julgado não se verificará com a decisão do tribunal a quo, pela admissibilidade de recurso atento o valor da causa. (…).”
D.
Citados, os Requeridos apresentaram as suas contra-alegações de recurso, nas quais pugnaram pela manutenção da decisão recorrida.
Pediram a junção de documentos contabilísticos, demonstrativos do património disponível da sociedade Requerida, do respectivo valor e da regularidade da sua situação contributiva fiscal.
E.
Foi admitido o recurso.
F.
Questão a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos Recorrentes (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
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É apenas uma, a questão jurídica suscitada pelo presente recurso:
A factualidade alegada pelos Requerentes do procedimento cautelar preenche o pressuposto do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito por eles invocado?
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II. FUNDAMENTAÇÃO
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A. De facto
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O recurso é exclusivamente de direito e os elementos relevantes para a decisão constam do relatório antecedente.
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B. De direito
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Da (in)admissibilidade da junção de documentos
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Vieram os Recorridos, com as suas contra-alegações, requerer a junção de documentos contabilísticos, demonstrativos do património disponível da sociedade Requerida, do respectivo valor e da regularidade da sua situação contributiva fiscal.
Cumpre proferir despacho sobre a respectiva admissibilidade, ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 652.º do CPC.
Prevê o n.º 1 do artigo 651.º do CPC que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.”
No caso vertente, o recurso incide sobre uma decisão de indeferimento liminar de procedimento cautelar proferida antes de cumprido o exercício do contraditório, tendo os Requeridos sido citados depois interposto recurso da decisão final nos termos previstos pelo n.º 7 do artigo 641.º do CPC.
Estamos, assim, perante uma situação regulada pelo artigo 425.º do CPC que abre a porta, no caso de recurso, à junção, depois do encerramento da discussão, dos “…documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”.
Na verdade, não tendo os Requeridos sido citados ou tido qualquer intervenção processual nos autos até ao momento da prolação da decisão recorrida, não lhes foi possível, até à apresentação das contra-alegações de recurso, juntar elementos demonstrativos da saúde financeira e fiscal da sociedade Requerida, posta em causa no r. i. dos presentes autos de procedimento cautelar.
Isto não significa, por si só, que os documentos em apreço devam ser admitidos por este tribunal.
Na verdade, apesar de preenchida a condição adjectiva prevista pelo artigo 425.º do CPC, impõe-se atentar se os documentos cuja junção vem requerida são pertinentes para a apreciação dos fundamentos do presente recurso que, recorde-se, incide sobre o despacho de indeferimento liminar proferido sem decisão sobre a matéria de facto controvertida, apenas com base na matéria de facto alegada no r.i., aí considerada insusceptível de preencher o pressuposto do fundado receio de que, antes de proferida a decisão de mérito, ocorra lesão grave e dificilmente reparável do direito de crédito cujo reconhecimento peticionam nos autos principais.
A resposta afigura-se negativa.
É que, sem embargo de se mostrarem relevantes para demonstrar a situação financeira da sociedade Requerida questionada pelos Requerentes, a verdade é que, não tendo havido decisão sobre a matéria de facto alegada pelas partes, está este tribunal de recurso impossibilitado de conhecer a prova dos factos controvertidos.
Tal compete, em primeira linha, ao tribunal de 1ª instância e, só depois de proferida sentença com decisão da matéria de facto, poderá o Tribunal da Relação conhecer, em hipotético recurso que daquela venha a ser interposto, essa eventual questão.
Recordemos que o presente recurso tem por objecto avaliar se o indeferimento liminar se deve manter e depende, tão somente, da ponderação sobre o eventual preenchimento do pressuposto do periculum in mora pela matéria de facto alegada no r. i., o que não deve ser confundido sobre o juízo da suficiência da prova produzida para demonstrar tais factos, questão a colocar em ulterior momento processual caso se entenda que os factos alegados consentem o prosseguimento dos autos para a fase da produção de prova.
Por isso, a documentação junta pelos Requeridos nas suas contra-alegações de recurso, tendo por objectivo demonstrar a saudável situação financeira da Requerida, não tem qualquer relevância para o conhecimento do presente recurso, razão pela qual se não admite a sua junção neste momento processual.
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Da qualificação do presente procedimento cautelar
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Pese embora tenha sido peticionado o “arrolamento” de todos os bens dos Requeridos e o subsequente “arresto” dos bens necessários para garantia do crédito alegadamente titulado pelos Requerentes, o presente procedimento cautelar vem proposto como procedimento comum, sujeito aos pressupostos previstos pelos artigos 362.º e ss. do CPC, e não como procedimento cautelar especificado de arrolamento, previsto pelos artigos 403.º e ss., ou de arresto, previsto pelos artigos 391.º e ss., ambos do mesmo diploma legal.
Considerados os fundamentos do direito arrogado pelos Requerentes – consistente num crédito fundado em incumprimento pelos Requeridos, de contrato de empreitada celebrado com a Requerente – não é aqui admissível o procedimento de arrolamento, na medida em que este tem por função evitar o extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documento, como dependência de acção à qual interesse a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos sobre os mesmos bens (cfr. artigo 403.º do CPC).
No caso vertente, não está em causa a conservação de documentos como meios de prova necessários aos autos principais, nem nos mesmos autos se verifica qualquer disputa sobre a titularidade de bens, móveis ou imóveis, entre os Requerentes e os Requeridos.
O que se ocorre, de forma evidente, é que os Recorrentes se arrogam, nos autos principais, titulares de um direito de crédito sobre os Requeridos e com o presente procedimento cautelar pretendem conservar a garantia patrimonial desse crédito, características típicas do procedimento cautelar especificado de arresto, ainda que, invocando o desconhecimento do património titulado pelos Requeridos, peçam o prévio “arrolamento” como forma de proceder ao respectivo apuramento.
Como bem nota o sumário do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.07.2010, relatado pelo Desembargador Guerra Banha no proc. n.º 885/10.2TBMAI-B.P1:
“I- Em face das disposições constantes dos artigos 421.º, n.º 1 e 422.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o arrolamento sobre bens, móveis ou imóveis, funciona como meio de obter a conservação desses bens, e não como garantia do pagamento de dívidas, que é a finalidade que a lei atribui ao arresto (artigo 406.º, n.º 1, do CPC).
II- Nos termos das mesmas disposições legais, constituem requisitos do arrolamento: 1) ser titular de um direito, certo ou eventual, sobre os bens que se pretende arrolar; 2) haver justo receio de extravio, ocultação ou dissipação desses bens.
III- Ao credor não é lícito requerer o arrolamento dos bens do devedor com o fundamento de que está em perigo a satisfação do seu direito de crédito” (sublinhado nosso).
Não obstante a factualidade alegada pelos Requerentes não ser apta a preencher os pressupostos de decretamento do “arrolamento”, vejamos se, e em que medida, as alegações produzidas no requerimento inicial têm potencial para cumprir os requisitos do procedimento cautelar comum.
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Do procedimento cautelar comum
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Dispõe o artigo 362.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que, em caso de fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a sua efectividade.
O decretamento de procedimento cautelar não especificado depende, assim, da verificação dos seguintes pressupostos:
a) que muito provavelmente exista o direito alegadamente ameaçado objecto de futura acção declarativa ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor;
b) que haja fundado receio de que outrem, antes de proferida a decisão de mérito (ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente), cause lesão grave e dificilmente reparável de tal direito;
c) que ao caso não convenha nenhuma das providências especificadas nos artigos 393.º a 427.º do CPC;
d) que a providência requerida seja adequada a remover o “periculum in mora” concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado;
e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se queria evitar.
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Do periculum in mora
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Não podendo acompanhar-se a conclusão “Z” das alegações de recurso dos Recorrentes quando declaram que a decisão recorrida proferida pelo “…tribunal a quo sobre o fumus boni iuris já se pronunciou que está manifestamente provado” – na medida em que por um lado, nenhuma decisão sobre a matéria de facto foi proferida no despacho de indeferimento liminar e por outro, as considerações tecidas sobre a suficiência dos factos alegados pelos Requerentes no requerimento inicial circunscrevem-se ao arrogado direito destes sobre a sociedade Requerida, não tendo abrangido os Requeridos pessoas singulares –, a verdade é que o fundamento invocado pela sra. Juíza de 1ª instância para indeferir liminarmente a pretensão, se baseia na ausência de factos ilustrativos do fundado receio de que, antes de proferida a decisão de mérito, ocorra lesão grave e dificilmente reparável do direito de crédito cujo reconhecimento peticionam nos autos principais.
Assim, nos termos também balizados pelas alegações recursivas dos Requerentes, é sobre este pressuposto que incidiremos a nossa apreciação.
Como refere António Abrantes Geraldes (in “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. III, Almedina, 3ª edição, págs. 99 e ss., «a avaliação deste requisito deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras da experiência aconselhem uma decisão cautelar imediata, sob pena de total ineficácia da acção declarativa ou executiva. Mas não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contra parte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm essa virtualidade de permitir ao tribunal, mediante solicitação do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão» (sublinhados nossos).
E mais adiante, «o facto de o legislador ter ligado as duas expressões com a conjunção copulativa “e”, em vez da disjuntiva “ou”, deve levar-nos a reflectir que não é apenas a gravidade das lesões previsíveis que justifica a tutela provisória, do mesmo modo que não basta a irreparabilidade absoluta ou difícil.
Apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil recuperação.» (sublinhado nosso).
Nesta ponderação, porém, impõe-se que o juiz coloque na balança dos interesses, a par dos prejuízos que o requerente pretende evitar, aqueles que a decisão possa provocar na esfera jurídica do requerido, seguindo o padrão referido no artigo 387.º, n.º 2 e, assim, indeferindo a providência quando o prejuízo dela resultante exceda consideravelmente o dano que com ela se pretende evitar.
A respeito do “fundado receio”, dá-nos o mesmo autor conta de que deve estar «…apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo. Não bastam, pois, simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados assentes numa apreciação ligeira da realidade, embora, de acordo com as circunstâncias, nada obste a que a providência seja decretada quando se esteja ainda face a simples ameaças advindas do requerido, ainda não materializadas, mas que permitam razoavelmente supor a sua evolução para efectivas lesões.» (in Op. Cit., pág. 103) (sublinhados nossos).
Em termos muito próximos, a propósito do conceito de “justo receio” exigido pela providência de arresto, vêm entendendo a doutrina e a jurisprudência que pode resultar, nomeadamente: da prova sumária de que o requerido pretende alienar os seus bens imóveis (neste sentido v. Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 560 e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.05.1989, in BMJ n.º 387, pág. 646); da prova de que se corre o risco de o devedor ficar em situação de insolvência por dissipação ou oneração do seu património (Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, págs. 10 e 18 e ss.); da constatação de que não tem outros bens além do salário, tem outros débitos e pretende abandonar o local de trabalho para se furtar ao cumprimento dessas obrigações (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.09.1991, in BMJ n.º 409, pág. 871); ou do facto de se constatar ser consideravelmente difícil a realização do crédito (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.07.1987, in Colectânea de Jurisprudência, Tomo IV, pág. 216).
Debruçando-nos agora sobre a matéria de facto constante do requerimento inicial, os Requerentes sustentam que a Ré (…) se encontra com a sua atividade comercial parada desde o dia 31 de Janeiro de 2024 (cfr. artigo 13º), o que carece de razoabilidade económica num contexto de crescimento do sector imobiliário e da construção (cfr. artigo 17º) e tendo em conta que apresentava, em 2022, capital próprio no valor de € 298.105,03 (cfr. artigos 14º e 16º), daí depreendendo existir uma intenção dolosa por parte dos Requeridos pessoas singulares de promoverem uma diminuição efectiva do património da sociedade, de forma a evitarem as consequências de eventual condenação no processo principal (artigo 18º do requerimento inicial).
Ora, das alegações assim produzidas apenas resultam dois factos objectivos:
- a sociedade Requerida apresentava, em 2022, capital próprio de € 298.105,03; e
- a mesma sociedade tem a sua actividade comercial suspensa desde 31.01.2024.
O resto, é constituído por uma consideração conclusiva – a falta de razoabilidade económica da suspensão – e por uma mera suspeição – a intenção dos Requeridos diminuírem o património da sociedade – que não tem outro suporte senão a referida suspensão da actividade social.
Embora se trate de um facto que é, por enquanto, controvertido, a eventual suspensão da actividade da Requerida (…) pode dever-se a um tão grande número de razões que não tem, em si mesma, a virtualidade de permitir a conclusão de que se trata de uma manobra com vista a diminuir a garantia constituída pelo seu património ou, sequer, que da mesma decorra uma perda das condições de solvabilidade da sociedade.
Acresce que os Requerentes não alegam qualquer facto de que resulte estar a Requerida a procurar desfazer-se dos seus activos ou a aumentar o seu passivo, alterando a situação patrimonial evidenciada em momento anterior.
Estamos perante meras suspeitas, sem fundamento objectivo e razoável.
E se assim é relativamente à sociedade Requerida, quanto aos Requeridos pessoas singulares não há uma só referência, no articulado inicial, à sua corrente condição patrimonial ou financeira para permitir concluir que é insuficiente para garantir o crédito arrogado pelos Requerentes, ou à prática de actos que permitam recear, num futuro próximo, pela perda dessa capacidade.
Como vimos, não bastam ao decretamento do procedimento cautelar comum simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados assentes numa apreciação ligeira da realidade.
Exige-se algo mais que permita, embora com o grau de relativismo próprio da apreciação perfunctória dos interesses em confronto, razoavelmente supor que a situação evoluirá no sentido de colocar em perigo a eficácia da eventual decisão condenatória a proferir pelo tribunal na acção principal.
Em face das razões apresentadas, crê-se que os factos objectivos alegados pelos Requerentes no seu requerimento inicial não permitem, ainda que venham a resultar provados, uma tal conclusão, pelo que se considera fundada a decisão de indeferimento liminar recorrida.
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Custas
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Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no vencimento ou decaimento na causa ou, não havendo vencimento, no proveito.
No caso vertente, os Recorrentes foram vencidos, pelo que devem suportar as custas do recurso.
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III. DECISÃO
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Nestes termos, decide-se:
Julgar improcedente a presente apelação, confirmando a decisão recorrida.
Condenar os Recorrentes no pagamento das custas do presente recurso.
Notifique.
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Évora, 22 de Maio de 2025
Ricardo Miranda Peixoto (Relator)
Susana Ferrão da Costa Cabral (1ª Adjunta)
Filipe César Osório (2º Adjunto)