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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADMINISTRADOR COMERCIAL
DEVERES DOS ADMINISTRADORES
PRESUNÇÃO DE CULPA
PREJUÍZO
Sumário
1. É de natureza obrigacional, a responsabilidade do gerente perante a sociedade gerida pelo incumprimento dos poderes-deveres que lhe são impostos por lei, pelo contrato constitutivo da sociedade, pelos estatutos e pela assembleia-geral de sócios. 2. Presume-se a culpa do gerente por actos ou omissões praticados com preterição dos seus deveres legais ou contratuais (cfr. n.º 1 do artigo 72.º do CSC). 3. Se, no exercício das suas funções, o gerente praticar actos que, segundo as normas do direito civil, constituam delitos civis em prejuízo da sociedade, fica também sujeito ao regime comum da responsabilidade civil extracontratual pela prática de acto ilícito. 4. Não estando provado que a emissão de cheques sem provisão pelo gerente causou à sociedade diminuição patrimonial, encontra-se por preencher o pressuposto do dano, necessário ao arbitramento de indemnização a favor desta correspondente ao valor titulado pelos cheques. 5. A verificação de prejuízos do exercício da sociedade comercial, só é passível de determinar a responsabilidade civil do gerente se tiverem sido consequência de conduta sua, violadora dos deveres a que está sujeito, análise que deve ter em conta as condições existentes e que ele estava em condições de conhecer no momento em que ocorreram os actos ou omissões subjacentes, bem como, nessa ocasião, a expectável evolução das mesmas. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Apelação 571/20.0T8EVR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo Central Cível e Criminal de Évora - Juiz 1
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SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1ª Adjunta: Maria Adelaide Domingos; e
2ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro.
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I. RELATÓRIO
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A.
Veio a “Sociedade Agrícola do (…), Lda.” com a presente acção declarativa comum proposta contra (…), pedir a condenação do Réu no pagamento do montante de € 537.175,70 acrescido de juros vincendos a contar da data da citação até final.
Alegou para o efeito, na p.i. e respectivo aperfeiçoamento a convite do tribunal, que o Réu é sócio, titular de uma quota no montante de € 12.500,00 correspondente a 12,5% do capital da sociedade Autora que tem como objecto social a exploração florestal, agrícola, pecuária e cinegética das herdades do (…), bem como a sua administração. Foi designado gerente, juntamente com outras quatro pessoas singulares, assumindo, a partir de 10.02.2009, o domínio de facto da gerência da sociedade, reforçado, meses mais tarde, por procuração conferida pelas co-gerentes para que gerisse e administrasse a exploração agrícola das três herdades. O Réu geriu e administrou a sociedade, bastando a sua assinatura como gerente para a obrigar, desde 11.02.2012 até 2016, ano em que a Autora passou a ter dificuldades económicas e financeiras, o que levou à revogação das referidas procurações e, mais tarde, por deliberação tomada em assembleia geral extraordinária do dia 17 de Outubro de 2018, à destituição do Réu como gerente.
No exercício das funções de gerente, o Réu:
- cedeu indevidamente direitos de RPU no ano 2013, o que causou à Autora um prejuízo de € 180.000,00;
- desenvolveu, na herdade do (…), um complexo hípico de criação e manutenção de cavalos que determinou à Autora custos com medicamentos e veterinários de € 56.461,88, inscrições e participações em raides hípicos de € 3.185,20, alimentação dos cavalos de € 25.111,07 e com ferradores para os cavalos de € 7.087,40;
- adquiriu, em 2013, 170 cavalos em seu nome próprio e colocou-os a pastar na propriedade, sendo que mais tarde, apenas 10 cavalos foram registados em nome da Autora, causando-lhe um prejuízo de € 40.000,00 em pastagens consumidas pelos cavalos do Réu que poderiam ter sido arrendadas a terceiros;
- transaccionou cavalos sem documentação e quando findou as funções de gerente, levou consigo 40 a 50 cavalos cuja alimentação e assistência veterinária foi sempre suportada pela sociedade Autora com feno da herdade no valor de € 20.000,00, rações no valor de € 50.000,00, medicamentos e assistência veterinária de € 20.000,00;
- sem a autorização das demais sócias, fez a Autora suportar o pagamento de obras no monte da herdade do (…), de reparação de estruturas já existentes, adaptação do casão para alojar os cavalos, construção de boxes, picadeiro, construção de piscinas e chuveiros nos montantes de € 57.650,24 e de € 40.000,00;
- despendeu € 80.000,00 que se encontram por justificar contabilisticamente;
- emitiu cheques sem provisão, em nome da Autora, no montante de € 23.000,00;
- realizou a venda de tractores pertencentes à Autora, recebendo € 28.792,00 desse negócio, valor que desapareceu da sociedade.
Em consequência das dificuldades financeiras da sociedade Autora, os actuais gerentes tiveram necessidade de vender antecipadamente a cortiça, o que causou à Autora um prejuízo no valor de € 150.000,00.
B.
Na sua contestação, o Réu defendeu-se por excepção e por impugnação.
Excepcionou:
- a falta de deliberação prévia para instauração da acção contra o sócio-gerente;
- a prescrição relativamente a alguns factos invocados pela Autora nos artigos 26.º a 95.º da petição inicial porque ocorridos até Março de 2015;
- a renúncia ao exercício do direito em consequência da aprovação dos actos de gestão praticados pelo Réu, com a aprovação das contas referentes aos anos de 2014 a 2017, nos termos do artigo 74.º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais.
Impugnou os fundamentos da pretensão da Autora.
C.
Por despacho proferido a 06.12.2021, foi julgada sanada a exceção dilatória emergente da falta de deliberação social prévia à instauração da presente acção e determinado o prosseguimento dos autos.
D.
Notificada para o efeito, a Autora respondeu por escrito às excepções arguidas pelo Réu, pugnando pela sua improcedência.
E.
Proferido despacho-saneador que fixou o objecto do litígio e enunciou os temas de prova, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, seguida de prolação de sentença com o seguinte dispositivo:
“(…) decide-se julgar totalmente improcedente, por não provada, a presente ação, e, consequentemente absolver o Réu (…) do pedido.
Custas a cargo da Autora.”
F.
Inconformada com o decidido, a Autora interpôs o presente recurso de apelação.
Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial sem itálico e negrito da origem):
“(…)
A) Tendo o gerente, no exercício das suas funções, praticado actos lesivos do património da sociedade gerida, deve o referido gerente ser condenado, a pagar à sociedade os danos patrimoniais provocados que resultam da sua actividade culposa e danosa.
B) Tendo o gerente praticado, actos danosos e culposos, durante o exercício da gestão da sociedade, e tendo tais actos sido mantidos ocultos, durante vários anos aos olhos dos restantes sócios da sociedade, não é pelo facto das contas terem sido aprovadas em assembleia geral, por todos os sócios, que, implica a não condenação do gerente em responsabilidade civil.
C) A aprovação de contas de uma sociedade agrícola por todos os sócios da sociedade, não tem como virtualidade sanar, os erros e factos elícitos de gestão praticados pelo gerente, quando este omite e oculta a prática de tais actos em assembleia geral, único momento em que aos sócios lhes é dado a conhecer a situação da sociedade e que, de boa fé, e com a conivência do contabilista presente nessas assembleias, omitem a verdadeira e real situação económica e financeira, e todos os actos, praticados prejudiciais ao património e ao bom nome da sociedade.”
G.
O Recorrido respondeu, contra-alegando que:
- não foi observado pela Recorrente o ónus da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- resulta dos factos provados que a actuação do Recorrido como gerente e as contas dos exercícios foram sempre aprovadas pelos sócios da Recorrente depois de prestada informação clara e transparente;
- o objecto social da Recorrente abrange tanto a silvicultura como a pecuária;
- a Recorrente não logrou apresentar prova dos factos que sustentavam a sua pretensão;
- o Recorrido, enquanto gerente à data dos factos em questão, não violou os seus deveres legais ou contratuais, pelo que não é responsável perante a Recorrente;
- as obras realizadas na Herdade do (…), valorizaram-na.
H.
Colheram-se os vistos das Ex.mas Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.
I.
Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
Deste modo, são as seguintes as questões em apreciação no presente recurso:
1. Se foi impugnada pela Recorrente a matéria de facto provada e não provada da sentença recorrida e, em caso afirmativo, cumpre os respectivos pressupostos de admissibilidade;
2. Se, em caso de resposta afirmativa à questão precedente, deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada, da sentença recorrida;
3. Se estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil do gerente, aqui Recorrido, pela actividade desenvolvida na sociedade Recorrente durante o período de 2009 a 2018.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
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A. De facto
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Reprodução integral dos factos provados decididos na sentença sob recurso (sem negrito da origem):
“Factos Provados: (…)
1. A Autora é uma sociedade comercial que foi constituída em 2009.02.19 e que tem por objeto social a exploração florestal, agrícola, pecuária e cinegética das Herdades do (…), bem como a sua administração.
2. Após a sua constituição a sociedade designou como seus gerentes (…), (…), (…), (…), este com o cargo de gerente delegado, e (…), todos residentes em Lisboa, com exceção da sócia (…) e do próprio Réu.
3. À data a sociedade obrigava-se com a assinatura de 2 gerentes, sendo um deles sempre o gerente delegado ou pela assinatura deste conjuntamente com a do mandatário.
4. O Réu é sócio da sociedade Autora, sendo titular de uma quota no montante de € 12.500,00, representando 12,5% do capital social.
5. Todos os sócios acima referidos são familiares entre si e são, por herança, os donos dos seguintes prédios:
a) Prédio misto “Herdade do (…)”, com a área de 902,6750 ha, sito na união de freguesias de … (… e …) e …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal sob o n.º (…), a folhas (…), do Livro B-2º, cuja parte rústica está inscrita na matriz sob o artigo (…), da Seção Cadastral (…), e a parte urbana, constituída por cinco casas de habitação, está inscrita na competente matriz sob os artigos (…), (…), (…), (…) e (…).
b) Prédio misto “Herdade da (…)”, sito na união de freguesias de (…) e (…), concelho de Portel, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal sob o n.º (…) a folhas (…) do Livro B-2º, cuja parte rústica está inscrita na matriz sob o artigo (…), Secção C, artigo (…), Secção C, artigo (…), Secção C, artigo (…), Secção C, e com a parte urbana inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…), com a área de 270,000 ha.
c) Prédio Rústico “Herdade do (…)”, sito na união de freguesias de (…) e (…), concelho de Portel, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal sob o n.º (…), cuja parte rústica está inscrita na matriz sob o artigo (…), Secção C (as herdades da … e do … têm uma área conjunta de 318,6363 ha).
6. O Réu e a sua irmã (…) são comproprietários dos aludidos prédios na proporção de 1/8 para cada um e as restantes sócias são comproprietárias na proporção de 1/4 para cada uma.
7. No dia 28 de junho de 2010, foi assinado um contrato de Cessão de Exploração entre todos os comproprietários das três Herdades e a Autora, no âmbito do qual foi acordado no artigo 1º do Ponto 1. “Circunstâncias” do referido contrato o seguinte:
“Os primeiros contraentes (comproprietários) cedem à Sociedade segunda contraente a exploração agrícola, florestal, pecuária e cinegética dos atrás mencionados prédios rústicos”.
8. Foi ainda acordado no artigo 3º do Ponto II “Cláusulas” que: “A segunda contraente será responsável pela totalidade das explorações e investimentos agrícolas, florestais e pecuários que se venham a verificar nos aludidos prédios rústicos.”, tudo conforme decorre do documento junto a fls. 40 a 42 destes autos cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.
9. A partir de 16.01.2012 a forma de obrigar a Autora alterou-se, passando a mesma a ficar obrigada com a assinatura do gerente delegado ou com a assinatura de dois dos outros gerentes.
10. Entre 2016 e 2017 a Autora emitiu cheques da Caixa Geral de Depósitos (conta n.º …), da Caixa Central de Crédito Agrícola (conta n.º …) e do Banco … (conta n.º …) que apresentados a pagamento não tinham provisão, em consequência, o Banco de Portugal revogou a convenção de uso de cheque, ficando a Autora inibida de emitir cheques.
11. Na assembleia extraordinária celebrada no dia 17 de outubro de 2018 foi deliberada a destituição do Réu como gerente da Autora, deliberação que foi aprovada por 75% de votos favoráveis e que foi objeto de registo em 24 de outubro de 2018.
12. O Réu, em nome e representação da Autora, entre 2013 e 2017, realizou obras no Monte da Herdade do (…), no valor de pelo menos € 57.650,24, designadamente, na reparação de estruturas já existentes, construção de boxes e de um picadeiro.
13. No exercício da sua função como gerente da Autora, o Réu decidiu desenvolver a criação, manutenção e treino de cavalos para raids de competição, combinando várias raças de cavalos e com essa finalidade comprou cavalos.
14. Nesse âmbito, a Autora suportou o pagamento de medicamentos e de assistência veterinária nos seguintes montantes:
- Triplusvet: € 8.607,80;
- Equimuralha: € 5.198,75;
- Coprapec: € 8.123,85;
- Anipura: € 15.851,43;
- BCA…, Lda.: € 1.915,80;
- Hospital Veterinário (…) € 13.450,99;
- Diversos € 3.313,21.
15. A Autora suportou ainda despesas com inscrições e participações em raids hípicos no montante de € 3.185,20.
16. A Autora suportou ainda despesas com a alimentação dos cavalos no montante de € 25.111,07 e com ferradores para os cavalos a quantia de € 7.087,40.
17. O Réu comprou e vendeu equinos em nome e em representação da Autora, designadamente em 3 de abril de 2014 um potro no valor de € 2.500,00, em 04.06.2014 dois cavalos à sociedade Agro-Pecuária (…), Lda. no valor de € 1.431,00, em 30.06.2014 um cavalo à sociedade Agro-Pecuária (…), Lda., no valor de € 2.650,00, em 28.11.2014 um cavalo à sociedade Ibérica (…), SL, no valor de € 4.000,00; e em 20.01.2015 um cavalo à sociedade Ibérica (…), SL, no valor de € 7.000,00.
18. O Réu em 6 de abril de 2014 vendeu o trator da Autora da marca John Dear, modelo 7920, matrícula (…) pelo montante de € 66.105,00. (…)
19. Na assembleia geral realizada no dia 14 de dezembro de 2016 a sócia (…) colocou questões quanto à aquisição e custo dos cavalos da sociedade, tendo o Réu e o contabilista da Autora informado os sócios que a aquisição se encontrava refletida na conta corrente, explicado os custos com a assistência dos cavalos e a forma como se processava o pagamento dos cavalos, após o esclarecimento dessas questões, foram aprovadas as contas referentes ao ano de 2014, tudo conforme documento junto a fls. 490 a 491 dos autos cujo teor aqui se dá inteiramente por reproduzido.
20. Na assembleia geral realizada no dia 25 de janeiro de 2017 as sócias reconheceram o desenvolvimento e o crescimento das propriedades, a requalificação de infraestruturas, limpezas florestais, reflorestação, vedações em toda a extrema da Herdade do (…), execução de um corta-fogo, vedações em parte da Herdade da (…), aquisição de maquinaria agrícola, venda da montanheira e da zona de caça turística na Herdade do (…) até 2026 tudo conforme documento junto a fls. 492 a 494 dos autos cujo teor aqui se dá inteiramente por reproduzido.
21. Nessa assembleia, o réu transmitiu às sócias os termos do negócio de venda de dez cavalos a (…), que havia realizado as obras de construção civil no Monte da Herdade do (…), que foram discutidas e levadas ao conhecimento de todas as sócias, tudo conforme documento junto a fls. 492 a 494 dos autos cujo teor aqui se dá inteiramente por reproduzido.
22. Na assembleia geral realizada no dia 29 de março de 2017, as contas de 2015 foram aprovadas por todos os sócios, foi deliberado nomear como gerentes delegados o Réu e a sócia (…), tendo o primeiro manifestado interesse em não continuar com essas funções, pelo que foi deliberada a alteração do artigo 10.º dos Estatutos da sociedade e nomeados como gerentes delegados a referida (…) e (…), tudo conforme documento junto a fls. 494 verso a 495 dos autos cujo teor aqui se dá inteiramente por reproduzido.
23. Na assembleia geral realizada no dia 20 de junho de 2017, foram discutidas questões da venda de cortiça para o ano seguinte e as contas de 2016 foram aprovadas por todos os sócios, tudo conforme documento junto a fls. 496 a 497 dos autos cujo teor aqui se dá inteiramente por reproduzido.
24. Na assembleia geral realizada no dia 14 de maio de 2018 as contas da sociedade Autora relativas ao exercício de 2017 foram aprovadas pelos sócios, com exceção do Réu que se absteve tudo conforme documento junto a fls. 497 verso a 498 dos autos cujo teor aqui se dá inteiramente por reproduzido.
25. Após a cessação de funções do Réu como gerente e devido às dificuldades financeiras apresentadas pela sociedade Autora, a nova gerência teve necessidade de vender antecipadamente a cortiça das herdades tendo em vista obter fontes de receitas.
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Do recurso da decisão da matéria de facto
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No seu requerimento de interposição de recurso, a Recorrente informa que pretende recorrer “…da matéria de facto…” da sentença de primeira instância, bem como a “…reapreciação da prova gravada”.
Vejamos, por isso, em primeiro lugar, se foram observados os requisitos de impugnação da matéria de facto.
Prevê o artigo 640.º do C.P.C.:
“1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
*
Percorridas as alegações de recurso, constata-se que a Recorrente:
i.
Não identifica – seja por referência à redacção, seja por referência ao número ou alínea - qualquer facto provado ou não provado da sentença que deva ser objecto de decisão distinta por este tribunal de recurso.
ii.
Relativamente aos meios de prova, as únicas menções feitas são ao testemunho de Francisco Ferro (cfr. ponto 11 das alegações) e a “…documentos comprovativos das despesas incorridas pela apelante com os cavalos propriedade do apelado, ao longo dos anos…” ou, mais genericamente, a “…documentos juntos aos autos e nunca impugnados pelo apelado” (cfr. pontos 13 e 14 das alegações de recurso).
Quanto ao testemunho de (…), tecendo considerandos conclusivos sobre o respectivo sentido, a Recorrente não procede à transcrição, total ou parcial, do mesmo, não indica quais as passagens da gravação das quais constam as explicações que imputa à aludida testemunha, nem daí retira qualquer consequência relativamente a concretos factos constantes do elenco dos provados ou não provados da sentença de 1ª instância.
No que toca aos documentos, não os individualiza, não faz outra descrição do seu conteúdo para além das supracitadas alegações, nem tampouco dos mesmos retira consequências referentes a concretos factos provados ou não provados da decisão em recurso.
Deste modo, a intenção de recorrer da matéria de facto contida no requerimento de recurso não tem correspondência ou desenvolvimento nas alegações de recurso, sendo manifesto o incumprimento de todos os pressupostos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 e ainda do n.º 2 do artigo 640.º do C.P.C., já que não indica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não concretiza devidamente os meios probatórios, nem a decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto à matéria de facto, para além de não indicar as passagens da gravação, nem transcrever os excertos que considera relevantes do único testemunho sobre o qual discorre nas alegações.
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Nada havendo para conhecer na parte referente ao anúncio de impugnação da matéria de facto, entrar-se-á, de imediato, na apreciação dos fundamentos jurídicos do recurso.
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B. De direito
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Da responsabilidade civil do gerente perante a sociedade
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Na presente acção declarativa com processo comum, o pedido de condenação do Réu / Recorrido funda-se na prática, por este, enquanto gerente da Autora / Recorrente, de actos lesivos da sociedade.
A responsabilidade do sócio-gerente perante a sociedade, resultante de actos praticados em prejuízo desta, está prevista no artigo 72.º do Código das Sociedades Comerciais nos seguintes termos:
“1. Os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.
2. A responsabilidade é excluída se alguma das pessoas referidas no número anterior provar que actuou em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial.
3. Não são igualmente responsáveis pelos danos resultantes de uma deliberação colegial os gerentes ou administradores que nela não tenham participado ou hajam votado vencidos, podendo neste caso fazer lavrar no prazo de cinco dias a sua declaração de voto, quer no respectivo livro de actas, quer em escrito dirigido ao órgão de fiscalização, se o houver, quer perante notário ou conservador.
4 - O gerente ou administrador que não tenha exercido o direito de oposição conferido por lei, quando estava em condições de o exercer, responde solidariamente pelos actos a que poderia ter-se oposto.(…)” (sublinhados nossos).
Do n.º 1 do citado artigo resulta que a responsabilidade do gerente / administrador depende da verificação dos seguintes requisitos:
- dano; e
- inobservância de deveres legais ou contratuais.
A culpa é presumida, o que é característica comum à responsabilidade obrigacional – cfr. artigo 799.º, n.º 1, do CC.
O artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais esclarece quais os Deveres Fundamentais dos gerentes ou administradores, nos seguintes termos:
“1 – Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:
a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade e a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e
b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.”(sublinhados nossos).
Da norma em apreço resulta que os deveres fundamentais dos administradores: são os deveres de cuidado e de lealdade.
O dever de cuidado pode, para Coutinho de Abreu (in “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades”, 2ª edição, Almedina, 2010, pág. 19), ser subdividido nos seguintes deveres: (a) de controlo ou vigilância organizativo-funcional, (b) de actuação procedimentalmente correcta (para a tomada de decisões) e (c) e de tomar decisões (substancialmente) razoáveis.
O mesmo autor define o dever de lealdade como o dever de os administradores exclusivamente terem em vista os interesses da sociedade e procurarem satisfazê-los, abstendo-se portanto, de promover o seu próprio benefício ou interesses alheios. Há uma relação fiduciária, de confiança, entre o administrador e a sociedade que confere àquele os poderes de administração e representação do património desta, pressupondo que o administrador cumprirá fielmente as funções para as quais foi designado, actuando em nome do interesse social.
Assim, na repartição do ónus da prova da acção destinada a responsabilizar o administrador perante a sociedade, compete ao demandante provar que actos ou omissões ilícitas do administrador causaram danos ao património social.
O administrador que prove terem-se verificado as condições postas na norma do n.º 2 do art.º 72º não poderá ser responsabilizado (por ausência de ilicitude).
Coutinho de Abreu, sustenta (in “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades”, Almedina, Cadernos do Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, n.º 5, págs. 42 e 43) que «…atendendo ao artigo 72.º, 2.º, do CSC, se o administrador provar que cumpriu as três condições aí mencionadas – informação adequada (“em termos informados”), ausência de situação de conflito de interesses (dele e/ou de sujeitos próximos…) e actuação “segundo critérios de racionalidade empresarial” – não só (e nem tanto) ilidirá a presunção de culpa (estabelecida no n.º 1 do artigo 72.º) como também (e mais decisivamente) demonstrará a licitude da sua conduta, a não violação (relevante) dos deveres de cuidado e a não violação dos deveres de lealdade).»
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Entende a Recorrente que o Recorrido é responsável pelo ressarcimento dos danos causados à sociedade Autora durante o exercício, nos anos de 2009 a 2018, das funções de gerente, sendo aplicável ao caso o instituto da responsabilidade civil, “…tal como configurado nos artigos 483.º e ss. e 798.º e ss. do Código Civil.”
A Recorrente invoca:
- em primeira linha, a existência de uma relação contratual de prestação de serviços entre si e o Recorrido, enquanto gerente, geradora de responsabilidade contratual pelo incumprimento dos princípios, direitos e deveres associados;
- em segunda linha, a responsabilidade civil extracontratual por terem sido praticados pelo Recorrido, actos ilícitos, gravemente culposos, geradores de dano patrimonial à Recorrente.
Sobre a natureza da responsabilidade do gerente / administrador perante a sociedade, devemos ter presente que as sociedades comerciais têm uma estrutura composta por órgãos sociais dos quais emana a vontade da pessoa colectiva, o primeiro dos quais é a assembleia geral de sócios ou acionistas, sendo também central o papel da gerência ou administração a quem compete a gestão dos negócios sociais e a representação da sociedade perante terceiros (artigo 259.º do CSC).
Exercitando os poderes de orientação técnica e económica, os gerentes conduzem os negócios sociais e representam a sociedade perante terceiros, subordinados à realização do objecto e do interesse da sociedade, razão fundamental dos deveres de cuidado e de lealdade a que se encontram sujeitos.
Como refere o acórdão do Tribunal de Relação de Guimarães de 02.06.2022, relatado pelo Desembargador José Alberto Moreira Dias no proc. 448/21.9T8GMR.G1, «esses poderes são orientados pela relação fiduciária que a gestão de bens e interesses alheios implica e determina que, embora os gerentes e os administradores tenham de assumir riscos para tornar possível a obtenção de lucros, essa assunção de riscos carece de estar balizada desde logo pelo quadro de obrigações por que aqueles devem pautar a sua atuação. Daí que os deveres a que os gerentes e os administradores se encontram subordinados perante a sociedade no exercício dessas suas funções “emergem fundamentalmente da relação interna do administrador com a sociedade, ainda que possam ter reflexos (nomeadamente a sua omissão ou cumprimento defeituoso) na relação externa da sociedade com outros sujeitos (credores, Estado, sócios, trabalhadores e outros terceiros especialmente interessados) e, até, na validade dos negócios sociais celebrados pelos administradores como representantes da sociedade” (…)». [1]
São, por isso, poderes-deveres impostos aos gerentes por lei, pelo contrato constitutivo da sociedade, pelos estatutos e pela assembleia geral de sócios.
Trata-se, verdadeiramente, de uma responsabilidade obrigacional, decorrente da violação de obrigações impostas pelas citadas fontes. Segundo Raúl Ventura e Brito Correia (in “Responsabilidade Civil dos Administradores”, págs. 118 e ss.) a origem directa desta responsabilidade obrigacional é o acto negocial de nomeação.
É, assim, uma responsabilidade civil obrigacional fundada na culpa que, nos termos do n.º 2 do artigo 72.º do CSC, se presume.
Todavia, a qualificação como obrigacional da responsabilidade civil do gerente / administrador para com a sociedade não obsta a que este, no exercício das suas funções, possa praticar actos que, segundo as normas do direito civil, constituam delitos civis em prejuízo da sociedade, sujeitos ao regime comum da responsabilidade civil extracontratual pela prática de acto ilícito (neste sentido Raúl Ventura e Brito Correia (in “Op. Cit.”, págs. 118 e ss.).
Isto posto, impõe-se determinar se da matéria de facto provada resulta a responsabilidade do Réu enquanto gerente da “Sociedade Agrícola do (…), Lda.”.
A sentença recorrida fundamentou a parte da subsunção dos factos ao direito nos seguintes termos:
“No caso em apreço, a Autora imputa ao Réu, enquanto gerente, a prática das seguintes condutas lesivas para o interesse da sociedade:
a) Cedência indevida de direitos de RPU em 2013;
b) Desenvolvimento na herdade do (…) de um complexo hípico de criação e manutenção de cavalos;
c) Consumo da pastagem da propriedade da Autora pelos cavalos do Réu e custeamento por aquela de despesas veterinárias destes animais;
d) Realização e pagamento de obras no monte da herdade do Valongo;
e) Emissão de cheques sem provisão em nome e representação da Autora;
f) Desaparecimento de € 28.792,00, no negócio de venda do trator da Autora;
g) Criação de dificuldades financeiras da sociedade Autora, que obrigaram à venda antecipada da cortiça da Autora.
No que concerne às condutas elencadas em a), c) e f) facilmente se conclui que não ficaram demonstrados quaisquer factos que permitam sustentar minimamente a prática pelo Réu de qualquer uma daquelas condutas lesivas, havendo que concluir, sem necessidade de fundamentação acrescida, que a presente ação carece de base fático-jurídica para as pretensões daí emergentes.
No que toca à conduta descrita na alínea b) acima referenciada – i. e., desenvolvimento na herdade do Valongo de um complexo hípico de criação e manutenção de cavalos – dúvidas não existem de que essa é uma atividade abrangida pelo objeto social da Autora, pelo que o desenvolvimento da mesma não configura uma violação do dever legal específico previsto no artigo 6.º, n.º 4, do CSC que proíbe o administrador de ultrapassar o objeto social da sociedade. Nessa ótica, não vislumbramos que a conduta do Réu em análise poa ser considerada desconforme com o ordenamento jurídico ou contrária aos deveres estatutários e legais que sobre o Réu impendiam, falecendo também neste conspecto fundamento jurídico à pretensão da Autora.
Já em relação à realização e pagamento de obras no monte da herdade do … (cfr. alínea d)) e à emissão de cheques sem provisão em nome e representação da Autora (cfr. alínea e)) importa referir que não ficou demonstrado que em consequência de qualquer uma dessas condutas tenha resultado um concreto dano ou prejuízo patrimonial para a sociedade aqui Autora.
Relativamente à emissão dos cheques sem provisão, importa recordar que o cheque corporiza um meio de pagamento de um determinado bem ou serviço prestado, em regra, por terceiro ao emitente. Significa isto que a emissão de cheques sem provisão não pode gerar no emitente um dano ou prejuízo correspondente ao valor/preço do bem ou serviço prestado por terceiro, quanto muito a falta de provisão de um cheque e a interdição no uso de cheques poderá gerar custos e despesas bancárias bem como danos financeiros ao emitente/titular do cheque. Porém, no caso concreto verifica-se que a Autora não alegou haver sofrido danos/prejuízos bancários ou financeiros, antes fundamentando a sua pretensão na satisfação do crédito titulado pelo cheque, o que, a nosso ver e pelas razões atrás analisadas, carece de totalmente de razão.
Do mesmo modo, cabe salientar que a realização das obras na herdade do Valongo integrou necessariamente uma despesa da Autora mas, simultaneamente, também traduziu uma melhoria e valorização do património da Autora, porém, nessa relação “do deve e do haver” não resultou apurado qualquer concreto dano ou prejuízo sofrido por esta em consequência da realização das referidas obras. Sem prejuízo e ainda quanto à conduta em análise, não podermos deixar de referir que igualmente não se descortina em que medida a mesma poderia configurar uma conduta proibida ou desconforme com os deveres legais ou estatutários do Réu, à luz das normas legais acima invocadas.
Por fim, quanto à criação de dificuldades financeiras da sociedade Autora, que obrigaram à venda antecipada da cortiça da Autora (cfr. alínea g)) a verdade é que inexistem factos provados que permitam estabelecer um concreto nexo de causalidade entre a atuação do Réu enquanto gerente e as dificuldades financeiras apresentadas pela sociedade Autora em 2018. Acresce que, neste âmbito, a Autora também não logrou demonstrar ter sofrido um concreto dano ou prejuízo em consequência da venda antecipada d cortiça.
Em suma, por força da factualidade emergente da prova produzida na audiência de julgamento e da análise jurídica já realizada, consideramos que a Autora não logrou demonstrar qualquer comportamento do Réu gerador de um concreto dano patrimonial suscetível de gerar responsabilidade civil à luz das norma jurídicas acima invocadas.
Ora, à Autora cabia o ónus de demonstrar os factos constitutivos do direito invocado, o que no caso manifestamente não ocorreu. Efetivamente, não ficou demonstrada quer a existência de qualquer comportamento ilícito e culposo do réu, quer a invocada conexão entre o seu comportamento e qualquer dano sobrevindo para a autora, pelo que não estando reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual referenciados, resta concluir pela improcedência da ação.”
Relativamente à fundamentação da sentença proferida em 1ª instância, a principal divergência apontada pela Recorrente nas alegações de recurso, consiste em que a aprovação das contas de uma sociedade agrícola por todos os sócios não tem a virtualidade de sanar os erros e factos ilícitos de gestão praticados pelo gerente, quando este omite e oculta a prática de tais actos em assembleia geral, único momento em que aos sócios é dada a conhecer a situação da sociedade e, no decurso do qual com a conivência do contabilista presente nessas assembleias, se omitem a verdadeira e real situação económica e financeira, bem como todos os outros actos praticados, prejudiciais ao património e ao bom nome da sociedade.
Todavia, como decorre da supratranscrita passagem da sentença recorrida, a improcedência do pedido formulado pela Autora não resultou de se terem considerado sanados erros e / ou ilícitos da praticados pelo Réu, mas da circunstância de não terem resultado provados factos que preenchessem os pressupostos da ilicitude, dano e nexo de causalidade, da responsabilidade obrigacional do Réu perante a sociedade.
Fazendo a análise crítica do fio condutor da decisão da 1ª instância:
i.
Quanto às alíneas a) (cedência indevida de direitos de RPU em 2013), c) (consumo da pastagem da propriedade da Autora pelos cavalos do Réu e custeamento por aquela de despesas veterinárias destes animais) e f) (desaparecimento de € 28.792,00, no negócio de venda do trator da Autora), considerou-se que não ficaram demonstrados factos que permitam sustentar a prática pelo Réu de tais condutas.
Percorrendo a factualidade provada, não há qualquer facto alusivo à cedência indevida de direitos de RPU em 2013, nem ao desaparecimento de dinheiro do negócio de venda do tractor.
Sobre a criação de cavalos e inerentes despesas veterinárias, os factos provados números 13 a 16 dão-nos conta de que o Réu, no exercício da sua função de gerente e em representação da Autora, decidiu desenvolver a criação, manutenção e treino de cavalos para raides de competição, combinando várias raças de cavalos e com essa finalidade comprou cavalos. A Autora suportou despesas com assistência veterinária, inscrições e participação em raides, alimentação e ferradores, decorrentes da criação, manutenção e treino de cavalos para competição.
Trata-se, no entanto, de despesas decorrentes de uma actividade levada a cabo em representação da sociedade, referentes a cavalos pertencentes à Autora e não ao Réu.
Deste modo, os factos provados não confirmam a imputação feita pela Autora, de que o Réu usou estes recursos societários em benefício do seu património pessoal.
ii.
Relativamente à conduta descrita na alínea b) (desenvolvimento na herdade do Valongo de um complexo hípico de criação e manutenção de cavalos), a decisão em análise entendeu que se trata de actividade com cabimento no objecto societário da Autora e, consequentemente, lícita.
Vimos já que o Réu, em representação da Autora, decidiu investir na criação, manutenção e treino de cavalos para raides de competição, determinando tal actividade despesas suportadas pela sociedade.
Está provado (cfr. facto provado número 1) que a Autora tem por objecto social a exploração florestal, agrícola, pecuária e cinegética das Herdades do (…), bem como a sua administração.
A criação, manutenção e treino de cavalos, inscreve-se, objectivamente, na actividade pecuária da Autora.
Não há, por isso, vislumbre de ilicitude na descrita conduta do Réu, acrescentando-se que a circunstância da Autora ter suportado despesas com a criação, manutenção e treino dos animais é expectável e inerente a qualquer actividade desenvolvida com intuito lucrativo, não sendo, em si mesma, um prejuízo, mas um custo do investimento cuja rentabilidade resultará do saldo entre os custos suportados e os proventos obtidos com o respectivo exercício.
Deste modo, a matéria provada tampouco permite concluir que a descrita conduta do gerente foi causadora de dano à Autora.
iii.
Quanto às alíneas d) (realização e pagamento de obras no monte da herdade do …) e e) (emissão de cheques sem provisão em nome e representação da Autora), considerou a sra. Juíza de 1ª instância que não ficou demonstrada a ocorrência de dano para a Autora, devido a qualquer uma dessas condutas.
É certo não resultar da matéria de facto provado um prejuízo patrimonial da Autora na decorrência das aludidas condutas do Réu.
Reportando-nos, primeiramente, à realização e pagamento de obras, ficou demonstrado que o Réu, em nome e representação da Autora, entre 2013 e 2017, realizou obras no Monte da Herdade do (…), no valor de pelo menos € 57.650,24, designadamente, na reparação de estruturas já existentes, construção de boxes e de um picadeiro (facto provado número 12).
Do facto provado não se descortina a ilicitude da conduta do Réu, já que a reparação de estruturas existentes, construção de boxes e de um picadeiro no âmbito do investimento previsto na criação de cavalos, se inscreve nos seus poderes de gestão e no objecto social da Autora.
Por outro lado, como bem nota a sentença recorrida, a manutenção das estruturas existentes e o novo edificado constituem a contrapartida daquele preço pago, traduzindo-se num benefício do património imobilizado social, seja por mitigar a perda de valor decorrente da falta de manutenção, seja por acrescentar novas funcionalidades.
No que respeita à emissão de cheques sem provisão, trata-se de uma conduta ilícita, na medida em que recai sobre o emitente da ordem de pagamento o dever de prover a conta bancária com os fundos necessários à realização do saque (cfr. artigos 3º e 12º da LUCH).
Porém, a emissão de cheques não constitui, só por si, uma conduta prejudicial para a Autora, já que é meio de pagamento de bens ou serviços de que esta foi beneficiária.
E ainda que não nenhuma contrapartida tivesse havido para a Autora – o que, desde logo, se não mostra alegado – é também certo que pelo facto de não terem tido provisão, tais cheques não implicaram o desembolso de qualquer quantia.
Dito de outra forma: quer tenham tido uma causa justificativa válida para a sua emissão, quer não tenham, a emissão de cheques sem provisão não gerou, em si mesma, uma perda patrimonial porque a ordem constante do título não foi solvida.
Deste modo, nada estando provado sobre outras despesas, juros ou encargos suportados pela Autora em consequência da emissão daqueles meio de pagamento, a matéria de facto provada não permite afirmar que esta resultou prejudicada no montante titulado pelos cheques, ou noutro valor.
iv.
Quanto à alínea g) (criação de dificuldades financeiras à sociedade Autora que obrigaram à venda antecipada da sua cortiça) a decisão sob apelação considerou que dos factos provados não resulta, por um lado o prejuízo patrimonial com a venda antecipada da cortiça e por outro, o nexo de causalidade entre a atuação do Réu enquanto gerente e as dificuldades financeiras apresentadas pela sociedade Autora em 2018.
Sendo certo que não está provada a tese, aventada pela Autora, de que a venda antecipada da cortiça foi feita por preço inferior ao que o mercado viria a pagar naquele ano de 2018, donde se não poder afirmar que tenha havido qualquer perda para a Autora decorrente do facto, já relativamente às dificuldades financeiras apresentadas pela Autora em 2018, afigura-se pertinente acrescentar que a saúde financeira de uma sociedade comercial é afectada por um conjunto de elementos ditados pela constante evolução das condições do mercado, sejam eles custos dos factores de produção (no caso da actividade pecuária traduzidos, entre outros, no alimento dos animais tantas vezes influenciado pelas condições meteorológicas de cada ano, nos produtos sanitários, nos cuidados veterinários, nos gastos com pessoal), sejam preços de venda dos animais, sejam ainda de acesso a financiamento.
Trata-se de uma actividade sujeita aos riscos próprios do giro comercial.
O desafio que se coloca à administração / gestão é procurar antecipar tais condições variáveis e tomar as melhores decisões com vista à obtenção do melhor retorno financeiro da actividade societária.
Neste contexto, a evolução conjuntural evidencia com o tempo que podiam ter sido tomadas melhores decisões em momento anterior. Tal não significa, por si só, que tenha havido erro ou incumprimento dos deveres por parte de quem tem a incumbência de dirigir os destinos da sociedade, na medida em que essa ponderação só pode ser feita com os elementos conhecidos no momento em que as decisões foram tomadas e com o desenvolvimento futuro que seria razoável esperar.
Deste modo, o prejuízo do exercício de uma sociedade comercial exposta às condições de mercado, só poderá responsabilizar o gestor / administrador se for evidente que determinada opção não foi adequada àqueles que eram os factores existentes e a evolução expectável nesse momento. Ainda assim, sempre deixando uma margem para a assunção de risco, inerente a qualquer empreendimento de natureza comercial.
Como enfatiza a decisão sob recurso, os factos provados na presente acção não permitem estabelecer relação entre concretas decisões tomadas pelo Réu no exercício da gestão da Autora e as dificuldades financeiras apresentadas por esta sociedade após a sua cessação de funções, nem sequer que a conjuntura existente em cada momento desaconselhasse cada uma dessas tomadas de decisão.
Deste modo, não há nexo de imputação causal entre as referidas dificuldades financeiras e as decisões do anterior gestor, aqui Réu.
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Da precedente exposição resulta que a fundamentação jurídica da sentença recorrida se mostra correcta e adequada à factualidade apurada nos autos, pelo que deverá ser mantido o sentido da decisão de 1ª instância.
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Custas
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Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.
No caso, a Recorrente não obteve vencimento do recurso, pelo que deve suportar as respectivas custas.
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III. DECISÃO
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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:
1. Julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
2. Condenar em custas a Recorrente.
Notifique.
Évora, 22 de Maio de 2025
Ricardo Miranda Peixoto (Relator)
Maria Adelaide Domingos (1ª Adjunta)
Maria João Sousa e Faro (2ª Adjunta)