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IMPUGNAÇÃO DA RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA
PREJUÍZO PARA OS CREDORES
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
Sumário
I. A lei estabelece uma presunção “iuris et de iure” de prejudicialidade em relação aos actos taxativamente elencados no artigo 121.º, entre os quais os realizados pelo insolvente a título oneroso dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte (vide alínea h)). II. Provada a prática de acto desta natureza dentro do período temporal previsto na norma, funciona a presunção inilidível de prejudicialidade à massa, tornando o acto resolúvel sem necessidade de verificação de qualquer requisito adicional, designadamente da má fé dos contraentes. III. Para o preenchimento da previsão da alínea h) do n.º 1 do artigo 121.º não basta um qualquer excesso, ele terá de ser manifesto, ou seja, deve existir uma desproporção relevante e significativa entre as prestações correspectivas, “exigindo-se um excesso manifesto, claro e injustificado, não se integrando no curso normal das coisas”. IV. Verifica-se um manifesto desequilíbrio das prestações a cargo de cada uma das partes, com prejuízo evidente para a devedora insolvente, quando escassos três meses antes de se apresentar à insolvência celebrou com terceiro contrato de arrendamento de fracção autónoma da qual é proprietária e tem o valor locativo apurado de € 525,00 mensais, exigindo como contrapartida da cedência a renda mensal de apenas € 300,00, vigorando o contrato por 5 anos, findos os quais, não sendo denunciado, passaria a contrato de duração indeterminada. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 2478/22.2T8STR-G.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Santarém Juízo do Comércio de Santarém – Juiz 3
I.Relatório No Juízo do Comércio de Santarém,
(…), residente na Quinta de (…), Lote 35, 1º, FR, 2080-188 Almeirim, instaurou contra a Massa Insolvente de (…), Lda., representada pela sra. Administradora de Insolvência, a presente acção declarativa, pedindo a final:
a) a revogação da decisão proferida pela sra. AI que procedeu à resolução em benefício da massa insolvente do contrato de arrendamento habitacional celebrado em 15/06/2022 entre o impugnante e a insolvente;
b) a condenação da demandada a reconhecer que o mencionado contrato de arrendamento é válido e eficaz:
c) seja declarado que o impugnante não tem que restituir o imóvel arrendado;
d) a condenação da ré a proceder à emissão dos recibos relativos às rendas pagas desde a data de declaração de insolvência.
Em fundamento alegou, em síntese, inexistir fundamento para a resolução do contrato celebrado, que se apresenta como válido, residindo desde então no locado com a sua companheira, a mãe desta e um filho menor de idade, pagando pontualmente a renda ajustada, a qual corresponde ao valor corrente das rendas na zona para imóveis de idêntica tipologia, sendo certo, afirma, que à data da sua celebração desconhecia em absoluta a situação financeira da senhoria.
Mais invocou a inconstitucionalidade do estabelecido nos artigos 120.º e 121.º do CIRE, quando interpretados no sentido de permitir que a sra. AI proceda à resolução de contratos de arrendamento para habitação celebrados de boa fé em momento anterior à declaração de insolvência, por violação do disposto no artigo 65.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Citada a massa insolvente, manteve o alegado na carta de resolução, reiterando estarem reunidos os legais pressupostos atento o que dispõem os artigos 120.º e 121.º do CIRE.
Teve lugar audiência prévia, na qual foi definido o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, peças que se fixaram sem reclamação das partes.
Realizou-se a audiência final, no termo da qual foi proferida sentença que, na improcedência da acção, manteve a resolução do negócio.
Inconformado, apresentou o autor o presente recurso e, tendo desenvolvido os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões: 1ª– O Tribunal a quo decidiu mal e ilegalmente, quando julgou totalmente improcedente, por não provada, a presente acção de impugnação de resolução de acto em benefício da Massa Insolvente contra a Massa Insolvente de (…), Lda. e, em consequência, manteve a resolução do negócio realizado pela sra. A.I.. Com efeito, 2ª– A presente acção tem por objecto principal a revogação da decisão proferida pela sra. A.I. que procedeu à resolução – em benefício da Massa Insolvente –, do contrato de arrendamento habitacional, com prazo certo (5 anos), celebrado em 15/Junho/2022, entre a firma (…), Lda. e o aqui Autor. 3ª–In casu está em causa um direito constitucionalmente consagrado (direito à habitação) – artigo 65.º, n.º 1, da C.R.P.. 4ª– O Tribunal a quo fez uma apreciação errada e ilegal da prova quando, em 3) supra dos factos não provados, deu a matéria aí plasmada por não provada. Com efeito, 5ª– O Tribunal a quo deveria ter dado por provado que: “Aquando da celebração do contrato de arrendamento o Autor desconhecia a situação financeira da insolvente”. Ora, o Tribunal a quo ao não dar tal por provado fez uma apreciação errada e ilegal da prova. Com efeito, 6ª– Tal matéria decorre não só do depoimento da testemunha … (que o Tribunal a quo descredibilizou), mas também do depoimento de parte do Autor (pedido pela R.), efectuado em sede de audiência de discussão e julgamento, que, no que concerne, tais depoimentos (da testemunha … e do A.) estão devidamente transcritos no dorso das Alegações (págs. 2 e 3) que antecedem às Conclusões e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais daí decorrentes e advenientes. Ora, 7ª– A matéria referida na Conclusão 5.ª supra, que deveria ter sido dada por provada, nãofoiinfirmada por qualquer testemunha ou por qualquer outro meio de prova. Mas mais, 8ª– Em 1) dos factos não provados foidadopornãoprovado que: “Aquando da celebração do contrato, o Autor tinha conhecimento de que a Insolvente se encontrava em situação de insolvência”. Ora, 9ª– No que concretamente concerne estamos perante um oxímoro relativamente ao referido em 1) e 3) dos factos não provados. Salvo o devido respeito por melhor e douta opinião, claro. 10ª– A presente acção enquadra-se e é uma acção de apreciação negativa (artigo 10.º, n.ºs 2 e 3, alíneas a) e b), do C.P.C.). Pelo que, 11ª– O ónus da prova decorre do regime estabelecido no artigo 343.º, n.º 1, do Código Civil. Donde, era à R. Massa que competia a prova dos factos constitutivos do direito a que se arrogou (resolução do contrato de arredamento habitacional, com prazo certo – 5 anos). Ora, 12ª– Sem prejuízo do acima dito nas Conclusões que antecedem, e cotejando a matéria dada por não provada constata-se que a R. Massa não logrou prova que:
“1)Aquandodacelebraçãodocontrato,oautortinhaconhecimentodequeainsolventeseencontravaemsituaçãodeinsolvência. 2)Ecelebrouocontratocomainsolventeemconluiocomopropósitodeoneraremoimóvelcomumarrendamentoporumperíodode5anosecomumacontrapartidamonetáriainferioraosvaloresdomercadodearrendamentoàdataedificultarasuavendanoprocessodeinsolvênciacomprejuízoparaoscredoresdainsolvente”. Donde, 13ª– Uma vez que a R. Massa não logrou prova os susoditos factos/composto fáctico, jamais a presente acção deverá improceder. Aliás, 14ª– O Tribunal a quo estribou-se na alínea h) do n.º 1 do artigo 121º do C.I.R.E. para considerar resolvido o contrato de arrendamento habitacional sub judice. Contudo, 15ª– Cotejado tal normativo legal adjectivo não se vislumbra que as obrigações assumidas pela Insolvente ao efectuar um contrato de arrendamento habitacional, com prazo certo (5 anos), com o A., e ao receber a renda contratualizada, excedeu manifestamente as obrigações do A. que se vinculou no mesmo a pagar a renda, o que aliás tem feito, e desde sempre fez, pontualmente, conforme prova o referido em I) dos factos provados, a saber:
“I)Apósadeclaraçãodeinsolvênciaefaceàimpossibilidadedeprocederaopagamentodasrespectivasrendasmediantetransferênciaparaacontabancáriadainsolvente,oautorpassouadepositá-lasparaoIBANdamassainsolvente,doquedeuconhecimentoàsra.AI.”. Donde, 16ª– O Tribunal a quo, in casu, ao julgar a presente acção improcedente violou expressamente o estabelecido nos artigos 121.º, n.º 1, alínea h) e 120.º, n.º 1, 2, 3, 4 e 5, alíneas a), b) e c), a contrario, do C.I.R.E.. Aliás, 17ª– O direito à habitação que é um direito constitucionalmente consagrado (artigo 65.º, n.º 1, da C.R.P.), de natureza substantiva, jamais poderia (e/ou deveria) sucumbir perante qualquer normativo legal meramente adjectivo; pois, tal constituiria além do mais um manifesto abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil), o que se invoca, para todos os efeitos legais daí decorrentes e advenientes. Ademais, 18ª– Sempre seria inconstitucional, por violação do estabelecido no artigo 65.º, n.º 1, da C.R.P., o estabelecido nos artigos 120.º e 121.º do C.I.R.E., se interpretados no sentido de que: “É permitido ao Administrador de Insolvência (A.l.) proceder à Resolução de Contratos de Arrendamento Habitacionais – em benefício da Massa Insolvente –, celebrados anteriormente à Sentença que decretou a Insolvência, ainda que celebrados de boa-fé”. 19ª– Para os efeitos reportamos ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido pelo S.T.J. n.º 2/2021, de 5/Agosto/2021 (Doc. 4, junto com a P.I.), que, em sumário diz: "(...)Avenda,emsededeprocessodeinsolvência,deimóvelhipotecado,comarrendamentocelebradosubsequentementeàhipoteca,nãofazcaducarosdireitosdolocatáriodeharmoniacomopreceituadonoartigo109.º,n.º3,doCIRE,conjugadocomoartigo1057.ºdoCódigoCivil,sendoinaplicávelodispostonon.º2doartigo824.ºdoCódigoCivil." Acórdão este que aborda a "pulcra questio" sub judice, nas suas várias vertentes científico axiomáticas”. 20ª– Dizer ainda que o contrato de arrendamento habitacional em regime de prazo certo (5 anos), “sub judice”, em nada onera, por qualquer forma e/ou meio, o prédio urbano/fracção objecto do referido contrato. Pois que até constitui uma vantagem financeira para a Massa (e/ou para o futuro adquirente/investidor), uma vez que, beneficia mensalmente de uma renda de Euros: 300,00. Aliás, 21ª– Ainda não vislumbramos os motivos e/ou os fundamentos porque “razão” a sra. A.I. ainda não procedeu à venda do prédio urbano/fracção “sub judice” e objecto de apreensão no processo principal/insolvência. Ainda para mais quando, nos autos, já existe relatório pericial indicativo do valor de mercado do imóvel/fracção em apreço. Quid Juris? 22ª– Em D) do seu petitório o Autor requereu: “D) Ser a Ré Massa Insolvente de (…), Lda., condenada a proceder à emissão de todos os recibos relativos às rendas que o A./impugnante pagou, desde a data em que foi decretada a insolvência de (…), Lda. e posteriores”. 23ª– EM I) dos factos provados foi provado que: “I)Apósadeclaraçãodeinsolvênciaefaceàimpossibilidadedeprocederaopagamentodasrespectivasrendasmediantetransferênciaparaacontabancáriadainsolvente,oautorpassouadepositá-lasparaoIBANdamassainsolvente,doquedeuconhecimentoàsra.AI.”. 24ª – Cotejada a sentença verifica-se que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre o pedido efectuado na alínea D) da P.I. do A.. Ora, tal constitui uma nulidade, o que se invoca para todos os efeitos legais daí decorrentes e advenientes. Com efeito, 25ª – In casu, e no que concretamente concerne, o Tribunal a quo violou o estabelecido no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C., uma vez que ao longo da sentença não se pronunciou sobre o pedido efectuado na alínea D) da P.I. do Autor. Do que decorre que, 26ª – A douta sentença agora e aqui “atacada”, é nula, uma vez que o Tribunal a quo violou o estabelecido no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C.. É assim que, 27ª – O Venerando Tribunal da Relação de Évora deverá proferir douto Acórdão que revogue “intotum” a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, agora e aqui “atacada” e, consequentemente e decorrentemente, 28ª – No douto Acórdão que vier a ser proferido pelo V. Tribunal da Relação, deverá: A) Ser revogada a decisão proferida pela sra. A.I. (…), que procedeu à resolução – em benefício da Massa Insolvente – do contrato de arrendamento habitacional – celebrado em 15/junho/2022, entre a firma (…), Lda. e o aqui A. –, através de carta registada datada de 22/dezembro/2022, que o aqui A. recebeu em 29/dezembro/2022, com todas as consequências legais daí advenientes e decorrentes e consequentemente, B) Ser a Ré Massa Insolvente de (…), Lda., condenada a reconhecer que o contrato de arrendamento habitacional celebrado em 15/junho/2022, entre a firma (…), Lda. e o aqui A. (…), é válido e eficaz nos termos e para os efeitos plasmados no mesmo, com todas as consequências legais daí decorrentes e advenientes. Neste circunspecto, C) Ser ainda declarado que o aqui A. (…) não tem que restituir o imóvel arrendado à Massa Insolvente; D) Ser a Ré Massa Insolvente de (…), Lda., condenada a proceder à emissão de todos os recibos relativos às rendas que o A. pagou, desde a data em que foi decretada a insolvência de (…), Lda. e posteriores; oqueserequer. Semprescindir, E) E em qualquer caso, ser a Sentença proferida pelo Tribunal a quo declarada nula, por violação do estabelecido no artigo 615º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
Contra alegou a massa insolvente pugnando sem surpresa pela manutenção do decidido.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões suscitadas pelo apelante:
i. da nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
ii. do erro de julgamento no que se reporta ao facto dado como não provado em 3.
iii. Da verificação dos pressupostos da resolução do negócio em benefício da massa - do erro de interpretação e aplicação do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 121.º do CIRE e da inconstitucionalidade da interpretação que do preceito é feita na sentença recorrida.
* i. da nulidade da sentença
OS apelantes dizem ser nula a decisão proferida por omissão de pronúncia, uma vez que o tribunal não apreciou a pretensão formulada em D), silenciando qualquer referência à mesma.
Apreciando:
O vício da omissão de pronúncia, que é a causa da nulidade da sentença prevista na parte final da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º, sanciona a violação do dever consagrado no n.º 2 do artigo 608.º e aí delimitado. Nos termos do aqui preceituado, o juiz encontra-se obrigado a resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso).
Questões, para o efeito dos preceitos em referência, são as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e, bem assim, as excepções invocadas pelo réu, não se confundindo, conforme a doutrina e a jurisprudência vêm persistentemente defendendo, “(…) com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia” (Ac. do STJ de 03-10-2017, Revista n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1, também em www.dgsi.pt).
No caso dos autos impõe-se reconhecer a razão do recorrente, uma vez que o tribunal não se pronunciou sobre o pedido de emissão dos recibos por banda da insolvente, omissão que conduz à nulidade da sentença nos termos do convocado artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC. Contudo, a nulidade assim reconhecida tem apenas como consequência substituir-se este Tribunal à 1.ª instância caso os autos contenham os elementos necessários à apreciação do pedido deduzido (cfr. artigo 665.º, n.º 1), questão de que infra se conhecerá.
* ii. da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto
O apelante diz ter sido mal julgado o ponto 3 dos factos não provados, matéria factual que, sustenta, deveria ter sido dada como provada, apelando às declarações por si prestadas e testemunho da companheira, (…), indevidamente desconsiderado pelo Tribunal, ao que acresce a circunstância de tal julgamento não se harmonizar com o efectuado a propósito do ponto 1, tendo-se dado igualmente como não provado que “Aquando da celebração do contrato, o Autor tinha conhecimento de que a Insolvente se encontrava em situação de insolvência”.
Está em causa o facto alegado pelo impugnante no sentido de que “Aquando da celebração do contrato de arrendamento (…) desconhecia a situação financeira da insolvente”.
Antes de mais, importa esclarecer que a circunstância de um determinado facto ser julgado não provado não permite inferir que se demonstrou o seu contrário. Igualmente certo é que muito dificilmente existirá contradição entre factos julgados não provados. De todo o modo, no que aos presentes autos diz respeito, foram julgados não provados o facto positivo ter o autor conhecimento da situação de insolvência da devedora declarada insolvente, alegado pela ré, e também o facto contrário, ou seja, o alegado desconhecimento dessa mesma situação por banda do autor, ou seja, a prova produzida pelas partes não logrou convencer o tribunal nem de uma realidade, nem da outra, sem que daqui resulta qualquer incompatibilidade intrínseca.
Importa por outro lado ter presente que a presente acção deve ser caracterizada como de simples apreciação negativa (artigo 4.º, n.º 2, do CPC), o que não vem questionado. Tendo por finalidade obter a declaração de inexistência dos factos em que se funda a resolução ou mesmo a inexistência do direito de resolução exercitado, à Ré massa insolvente caberá fazer prova dos factos constitutivos do direito à resolução nos termos do artigo 343.º do CC, sendo encargo do Autor a prova dos factos modificativos, extintivos ou impeditivos desse direito. Daqui decorre que o facto que importava provar era apenas o pela ré alegado conhecimento do autor da situação de insolvência da devedora, tendo por referência a data relevante da celebração do contrato. Não tendo a ré logrado fazer prova desse facto, revelador da má fé do aqui apelante, a resolução do acto foi mantida por força da sua inclusão na previsão da alínea h) do n.º do 1 do artigo 121.º, que prescinde daquele requisito, tornando irrelevante o apuramento do conhecimento ou desconhecimento que aquele tivesse da situação financeira da devedora. Por assim ser, o conhecimento da impugnação deduzida resultaria na prática de um acto inútil, o que se encontra vedado pelo artigo 130.º do CPCivil, pelo que dela não se conhecerá.
* II. Fundamentação De facto
É a seguinte a factualidade a atender: A) Por documento escrito denominado “ContratodeArrendamentohabitacional”, datado de 15/06/2022, a insolvente declarou dar de arrendamento ao autor, que aceitou, pela renda mensal de € 300,00, a fracção autónoma designada pela letra “F”, destinada a habitação, do prédio urbano sito na Quinta (…), lote 35, 1º Fr., Almeirim, descrito na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob o n.º (…), e inscrito na respectiva matriz predial urbana da freguesia de (…) sob o artigo (…). B) Consta da cláusula 4ª do referido documento que
“1.Opresentecontratodearrendamentoécelebradoporprazocerto,peloperíodode5anos. 2.Apósaprimeirarenovaçãooarrendamentotemduraçãoindeterminada.” C) Por sentença proferida no âmbito dos autos principais em 16/09/2022, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de (…), Lda.. D) Por carta datada de 22/12/2022, remetida ao autor e por este recebida, a Sra. Administradora de Insolvência que a subscreveu nessa qualidade, comunicou que resolvia, “embenefíciodamassainsolvente,nostermosdoartigo 120.ºealíneasb)eh)don.º 1doartigo121.ºdoCIRE”, o contrato de arrendamento habitacional referido em A), cfr. doc. junto sob o n.º 2 com a petição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. E) Da comunicação mencionada em D) constam como fundamentos para a mencionada resolução que: “1.A sociedade (…), Lda. (…) que figura como senhoria no negócio supra identificado, apresentou-se à insolvência em 12/09/2022. 2.Antesdissotinhaprocedidoàcessaçãodoscontratosdetrabalho,detodososseustrabalhadoresem31dejulhode2022,porextinçãodospostosdetrabalho. 3. A sentença de declaração de insolvência da sociedade (…), Lda. foi proferida em 16/09/2022 (…). (…) 6. Ainda que a renda se encontre a ser paga à insolvente, o que não se conseguiu apurar, o valor atribuído a título de renda – € 300,00 mensais – é muito inferior ao valor praticado para imóveis como este, com tipologia T3, um estacionamento na cave e arrecadação no sótão, destinado a habitação. 7. Acresce que: a)Oarrendamentoemcausaonera o imóvel, pelo menos pelo períodode 5 anos, dificultando assim a sua venda no processo de insolvência; b) Asenhoriaencerrouaempresacercadeummêsdepoisdoarrendamento; c)Asenhoriaapresentou-seàinsolvênciacercade3mesesapósacelebraçãodocontratodearrendamento; d)Estearrendamentoémanifestamente desvantajoso, por ter de seesperar, pelo menos, 5 anos (prazo de duração inicial do contrato)para poder ser efetuada a venda sem o ónus do arrendamento e, emcontrapartida, apenas ser recebido 300,00€ de renda mensal. Peloqueocontratoépassívelderesoluçãonostermosdoartigo121.º,n.º 1,al.h)doCIRE. SEMPRESCINDIR: Sempreosatossupramencionadosserãopassíveisderesoluçãonostermosdoartigo120.ºdoCIRE: 8.À data da celebração do referido contrato, já a sociedade (…), Lda. se encontrava, há muito tempo, em situação de insolvência. Isto porque: (…) 12.Opassivoda (…),Lda.ascendeaomontantede € 904.820,08. 13.Aorainsolventeem31/07/2022encerrouasuaactividade,tendo procedidoàcessaçãodoscontratosdetrabalhocomostrabalhadores,porextinçãodospostosdetrabalho. 14. A ora insolvente, e a arrendatária (…) tinham conhecimento, à data do referido contrato de que a primeira tinha várias dívidas nomeadamente à Fazenda Nacional e à SegurançaSocial,estandoemsituaçãodeinsolvência,ambosactuandoemmá-fé,eemprejuízodoscredoresdainsolvente. (…)” F) À data da celebração do contrato de arrendamento, o valor locativo mensal de mercado do imóvel ascendia a € 525,00. G) Em abril de 2024 o imóvel objecto do contrato de arrendamento tinha um valor de mercado de € 141.200,00. H) …E um valor locativo mensal de € 590,00. I) Após a declaração de insolvência, e face à impossibilidade de proceder ao pagamento das respectivas rendas mediante transferência para a conta bancária da insolvente, o autor passou a depositá-las para o IBAN da massa insolvente, do que deu conhecimento à sra. AI. Factos Não Provados
Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:
1) Aquando da celebração do contrato, o autor tinha conhecimento de que a insolvente se encontrava em situação de insolvência.
2)… E celebrou o contrato com a insolvente em conluio com o propósito de onerarem o imóvel com um arrendamento por um período de 5 anos e com uma contrapartida monetária inferior aos valores do mercado de arrendamento à data e dificultar a sua venda no processo de insolvência com prejuízo para os credores da insolvente.
3) Aquando da celebração do contrato de arrendamento o autor desconhecia a situação financeira da insolvente.
4) O montante de renda acordado entre insolvente e autor correspondia ao valor locativo do imóvel à data da celebração do contrato de arrendamento. * De Direito Da verificação dos pressupostos da resolução do negócio em benefício da massa
A resolução de actos em benefício da massa, cujo regime se encontra previsto nos artigos 120.º a 126.º do CIRE[1], é o mecanismo por via do qual a lei permite à massa insolvente a reintegração do seu património, revertendo actos de dissipação praticados pelo devedor com a consequente frustração dos credores, seja antes do decretamento da insolvência, em períodos que definiu, seja no decurso da mesma.
Por outro lado, visando a insolvência a satisfação igualitária dos direitos dos credores (cfr. artigo 1.º), não deverá ser admitida a concessão de vantagens a nenhum credor a partir do momento em que seja conhecida a situação de insolvência do devedor. Deste modo, e cumpridos que sejam determinados requisitos de natureza objectiva e subjectiva, a lei prevê a possibilidade do administrador de insolvência destruir a eficácia de toda uma panóplia de actos. Importa no entanto realçar que no âmbito deste instituto os actos resolúveis não são tidos por inválidos, enquanto afectados de vícios, quer de natureza formal, quer de natureza substancial; “do que se trata aqui é de, em razão dos interesses supremos da generalidade dos credores da insolvência, sacrificar outros interesses havidos como menores (os de quem contrata com o devedor insolvente e, eventualmente, os de quem negoceia com aquele, portanto todos os terceiros em relação ao devedor insolvente) em função do empobrecimento patrimonial daqueles credores, por via da prática de actos num dado período temporal, designado como suspeito, que precede a situação de insolvência”, sendo sua “finalidade a reintegração no património do devedor (ou melhor da massa insolvente) para efeito de satisfazer os direitos do credor.”[2].
Nos termos do artigo 120.º podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos a ela prejudiciais quando praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência (cfr. o n.º 1). Consoante dispõe o n.º 2 do preceito, consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência, estando assim em causa, “para além dos actos que implicam diminuição da massa insolvente (…) todos os que tornem a satisfação do interesse dos credores mais difícil ou mais demorada”[3]. Demonstrada a prejudicialidade do acto, a sua resolubilidade depende, ainda assim, da má fé do terceiro, a qual, no entanto, é presumida – presunção juris tantum – nas situações previstas no n.º 4 do preceito.
A par da resolução dos actos prevista neste artigo 120.º, subordinada aos mencionados pressupostos, prevê o preceito imediato uma outra modalidade, dita incondicional. Nos termos da solução legal aqui consagrada, atendendo à natureza do acto e tempo em que foi praticado, não depende a sua resolução de qualquer requisito adicional, ou seja, presumida em termos inilidíveis a sua prejudicialidade (cfr. o n.º 3 do artigo precedente), dispensa a lei a demonstração do requisito da má fé.
A lei estabeleceu assim uma presunção “iuris et de iure” de prejudicialidade em relação aos actos taxativamente elencados no n.º 1 do artigo 121.º, dentre os quais, e para o que aqui releva, os realizados pelo insolvente a título oneroso dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte (vide alínea h). Provada a prática de acto desta natureza dentro do período temporal previsto na norma, funciona a presunção inilidível de prejudicialidade à massa, nascendo o direito potestativo à sua resolução.
Atentando agora no caso em apreço, verifica-se que, afastada a má fé do autor e, bem assim, a também invocada gratuitidade do acto, considerou-se na sentença recorrida que o valor locativo do imóvel à data da celebração do contrato, em muito excedendo a renda contratualmente fixada, aliado à duração acordada para a vigência do mesmo, evidenciava um manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas pela devedora insolvente na sua qualidade de locadora, e o autor, como arrendatário, em prejuízo da primeira, tendo em consequência mantido a resolução operada pela sra. AI, mas apenas a coberto da alínea h) do n.º 1 do artigo 121.º. Porque a apelada não pediu o alargamento do objecto do recurso, no que respeita aos fundamentos invocados na carta de resolução que não foram atendidos (e só estes poderiam aqui ser discutidos) e o apelante não questiona que o negócio resolvido foi celebrado no período temporal fixado na referida alínea h) do artigo 121.º, o objecto do recurso circunscreve-se à questão de saber se, face aos factos apurados, as obrigações assumidas pela devedora declarada insolvente “excedem manifestamente as da contraparte”, conforme expressa a sobredita alínea.
Ensina o Prof. Gravato de Morais[4] que os actos a título oneroso são aqueles que importam a realização de atribuições patrimoniais para ambas as partes, como é o caso do contrato de arrendamento, modalidade do contrato de locação, definido por lei como aquele pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa mediante retribuição (cfr. o artigo 1022.º do Código Civil).
Demonstrada a natureza onerosa do contrato celebrado, de resto não controvertida no âmbito do recurso, nem tão pouco que o mesmo se realizou no período de suspeição consagrado na lei, importa indagar da verificação do pressuposto decisivo da resolubilidade do acto, a saber, se as obrigações assumidas pela insolvente excedem manifestamente as da contraparte, no caso o aqui apelante. Como resulta claro da letra da lei, não basta um qualquer excesso, ele terá de ser manifesto, ou seja, deve existir uma desproporção relevante e significativa entre as prestações correspectivas “em que as vantagens patrimoniais obtidas pelo outro contraente, em detrimento do insolvente, ultrapassam os limites considerados razoáveis, por manifestamente desequilibrados. Para tanto, é necessário que tal excesso seja manifesto, claro e injustificado, não se integrando no curso normal das coisas“ (do acórdão do STJ de 15.11.2007, Revista n.º 3008/07, cujo sumário se encontra disponível em www.stj.pt – jurisprudência cível do ano 2007). E não fornecendo a lei um critério objectivo, afigura-se que apenas caso a caso, relevando a natureza do bem e demais circunstâncias do negócio, se pode determinar se estamos ou não perante um excesso manifesto.
A propósito, resultou apurado nos autos que sendo o valor locativo do imóvel à data da celebração do contrato de € 525,00, foi contratualmente ajustada entre o autor e a devedora insolvente uma renda anual no valor de € 3.600,00, a pagar em duodécimos de € 300,00, ou seja, apenas um pouco mais de metade do valor pelo qual a fracção poderia ter sido arrendada, diferença “tendencialmente susceptível, verificada a restante factualidade do normativo, de originar a resolução em benefício da massa insolvente”[5]. E a verdade é que não se encontra, no acordo celebrado, qualquer justificação para tal redução, v. g. por se ter o locatário obrigado à realização de obras de conservação da responsabilidade do senhorio, uma vez que as partes tiveram até o cuidado de consignar que o locado se encontrava em bom estado de conservação, não tendo o autor logrado trazer aos autos quaisquer factos capazes de convencer da racionalidade, do ponto de vista da insolvente, da celebração de um tal negócio.
Quanto ao prazo de 5 anos acordado, não se afigurando extraordinário no âmbito de um contrato de arrendamento para habitação permanente, já é menos normal quando se considere o ajustamento de uma renda tão abaixo do valor que podia ter sido obtido, surgindo como menos usual a duração ilimitada prevista para o caso de não ser denunciado no termo daquele prazo inicial. De todo o modo, considerando que nada mais foi dado como provado ou ponderado na decisão recorrida, designadamente quanto ao eventual afastamento de potenciais compradores e redução do valor de venda do imóvel atendendo à existência e subsistência do contrato de arrendamento, resulta como factor decisivo a atender o valor de renda fixado. O que, em nosso entender, é suficiente para justificar e manter a resolução operada, dado o demonstrado desequilíbrio manifesto entre a obrigação assumida pela insolvente -cedência do gozo de um imóvel cujo valor locativo era, à data de € 525,00 – e a contrapartida a pagar pelo arrendatário, no montante de apenas € 300,00, durante pelo menos 5 anos (sem embargo de se ter previsto a actualização segundo os coeficientes anualmente publicados em portaria) e sem que tenha sido sequer adiantada uma qualquer racional justificação para tal.
Da inconstitucionalidade dos artigos 120.º e 121.º do CIRE
O apelante suscitou a inconstitucionalidade dos artigos 120.º e 120.º do CIRE, quando interpretados no sentido de conferir à Sr.ª AI a possibilidade de resolver os contratos de arrendamento para habitação permanente, celebrados em data anterior à declaração da insolvência, encontrando-se o arrendatário de boa fé, por violadores do artigo 65.º da CRP, que assegura o direito à habitação, invocando em abono de tal posição o AUJ 2/2021, de 5 de Agosto de 2021. Vejamos se tal fundamento é aqui de atender.
Resulta do disposto no artigo 109.º que, tendo os contratos de locação merecido a atenção do legislador insolvencial, nos casos em que o insolvente é o locador, expressou que a declaração de insolvência não suspende a execução do contrato, sendo a sua denúncia possível apenas para o termo do prazo em curso, isto sem prejuízo dos casos de renovação obrigatória (vide n.º 1 do preceito). A resolução, conforme resulta da remissão para o n.º 5 do artigo precedente, só é possível (sem prejuízo, naturalmente, dos casos em que encontra fundamento no incumprimento do contrato), quando a coisa locada não haja sido ainda entregue ao locatário à data da declaração da insolvência.
Segundo o regime que resulta da disposição vinda de citar, declarada a insolvência do locador o contrato continua a sua vigência, mantendo-se o senhorio obrigado a assegurar o gozo do locado para os fins contratualmente fixados (artigo 1031.º, alínea b), do CC), o que não é prejudicado pela sua alienação, conservando o locatário os direitos a manter a sua posição contratual e a preferir na venda (nos termos do artigo 1091.º do mesmo diploma legal). Isto mesmo foi reafirmado pelo STJ no AUJ 2/2021, convocado pelo apelante, no qual fixou a seguinte jurisprudência: “A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente a hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil”.
Mas se o legislador teve o cuidado de acautelar a posição jurídica do locatário no caso de insolvência no citado artigo 109.º, nenhuma ressalva fez – e poderia tê-lo feito – na previsão da alínea h), não podendo desconhecer que na categoria dos actos onerosos ali previstos cabia o contrato de arrendamento urbano, ainda que para fins habitacionais. E não o fez porque, atendendo à particular fisionomia dos actos ali contemplados, dos quais claramente desconfiou, entendeu que o terceiro contraente que extrai do contrato um benefício extraordinário e não justificado não é merecedor de tutela, fazendo prevalecer o direito dos credores do insolvente sobre a estabilidade do acordo celebrado. E desta ponderação dos interesses em jogo que ao legislador ordinário é permitido fazer não se vê que resulte violação do direito à habitação, sem embargo de se reconhecer que goza de garantia constitucional. E assim é porque assegurar uma habitação condigna a cada cidadão é, em primeira linha, encargo do Estado.
Ainda que a propósito da caducidade do direito real de habitação, mas em termos perfeitamente transponíveis para o caso dos autos, o TC pronunciou-se sobre esta questão nos seguintes termos (cfr. acórdão 50/2022, de 18 de Janeiro[6]): “O artigo 65.º da Constituição, sob a epígrafe «Habitação e Urbanismo», estabelece o seguinte nos seus n.ºs 1 a 4: «1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar. 2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado: a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social; b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais; c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada; d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução. 3. O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria. 4. O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística.». O direito à habitação consagrado neste artigo – cujo conteúdo se traduz no «direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família» (Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Volume I, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2017, pág. 958 e seguintes) – assume, a exemplo do que se verifica com outros direitos sociais, uma dupla naturezaou dimensão, conforme tem vindo a ser reconhecido pelo Tribunal Constitucional na sua jurisprudência (cfr., neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 101/92, 612/2019 e 393/2020). Por um lado, tem uma dimensão negativaou defensiva, que se traduz no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de atos que prejudiquem tal direito; por outro lado, tem uma dimensão positiva, que correspondente ao direito dos cidadãos a medidas e prestações estaduais, visando a sua promoção e proteção, isto é, a medidas e prestações estaduais tendentes a assegurar «uma habitação adequada e condigna à realização da condição humana, em termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar». (….) É esta segunda vertente ou dimensão positivado direito à habitação, enquanto direito fundamental de natureza social, que se encontra acentuada no artigo 65.º da Constituição, particularmente nos seus n.ºs 2 a 4. Nesta vertente, conforme tem salientado o Tribunal Constitucional na sua jurisprudência (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 130/92, 131/92, 151/92, 633/95, 32/97, 374/2002, 212/2003, 590/2004 e 168/2010), o direito à habitação é configurado como um direito a prestações, cujo principal destinatário é o Estado, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido de criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito (cfr. o n.º 2 do referido artigo 65.º), bem como a adoção de políticas no sentido de estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria (cfr. o n.º 3, idem) e ainda, em conjunto com as regiões autónomas e as autarquias locais, a adoção de outras medidas adequadas à prossecução daquele direito (cfr. o n.º 4, ibidem). Significa isto que as pretensões fundadas no direito à habitação não têm como destinatários diretos os particulares nas relações entre si, mas antes o Estado e igualmente as Regiões Autónomas e autarquias locais”.
E acrescentou: “Acresce ainda, por outro lado, e conforme já referido, que o direito à habitação constitucionalmente garantido não se identifica nem se confunde com o direito a ser proprietário (ou titular de um direito real de gozo) sobre o imóvel onde se tenha a habitação. Daí que não se possa configurar como constitucionalmente imposto, enquanto exigência decorrente da proteção do direito à habitação, uma solução no sentido de, nas relações entre particulares, consagrar um regime impeditivo da caducidade do direito real de habitação, quando o mesmo incida sobre uma casa de morada de família e esteja em conflito com uma hipoteca com registo anterior, incidente sobre o mesmo imóvel. Por outro lado, conforme também já mencionado, o “mínimo de garantia” do direito à habitação – enquanto direito de obter habitação própria ou de obter habitação por arrendamento “em condições compatíveis com os rendimentos das famílias” – é algo que se impõe como obrigação, não aos particulares, mas sim ao Estado. (…) No entanto, não obstante o reconhecimento, por este Tribunal, da função social da propriedade, sobretudo em sede de arrendamento, que poderá justificar a imposição de restriçõesaos direitos do proprietário privado (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 311/93, 263/2000, 309/2001 e 543/2001), daí não decorre, repete-se, que seja exigível impor aos particulares que se substituamao Estado nas obrigações que sobre este impendem em matéria de proteção do direito à habitação (cfr. os Acórdãos n.ºs 101/92, 130/92, 633/95 e 570/2001)” (é nosso o destaque a sublinhado).
Tendo presentes tais considerandos, afigura-se que a opção do legislador insolvencial nos citados artigos 120.º e 121.º, designadamente no que respeita à previsão da alínea h) deste último preceito, ao não excluir da resolução incondicional contratos de arrendamento para habitação nos casos em que deles resulta o manifesto desequilíbrio das prestações assumidas por cada uma das partes em prejuízo da insolvente -e, consequentemente, dos seus credores- ainda que não se apure a má fé do arrendatário, não afronta o citado artigo 65.º da CRP.
Mantida a resolução operada pela sra. AI, cumpre finalmente conhecer do pedido formulado pelo apelante sob a alínea D), aqui tendo peticionado a condenação da ré a emitir os recebidos correspondentes às quantias recebidas a título de rendas.
Dispõe o artigo 787.º do CC que quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita, donde, a terem sido pagas as rendas, a ré tem o dever de emitir os pertinentes recibos até à resolução do contrato. Percebe-se naturalmente porque não o fez depois disso, uma vez que não reconhecia o autor como arrendatário, mas mantendo-se a obrigação deste pagar o montante equivalente à renda acordada enquanto se mantivesse no gozo do locado, a terem sido entregues tais quantias, também em relação a elas tem o direito a exigir documento de quitação. Termos em que procede, apenas neste segmento, o presente recurso.
* III. Decisão Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo autor e, em consequência, condenam a ré massa insolvente a emitir os recibos das rendas recebidas até à resolução do contrato e, bem assim, das quantias pagas pelo autor pela ocupação do locado até à sua entrega, mantendo-se quanto ao mais a sentença recorrida.
Custas a cargo do autor e da ré nesta e na primeira instância, na proporção de 1/20 para esta última e 19/20 para o primeiro (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.).
Évora, 22 de Maio de 2025
Maria Domingas Simões
Mário Branco Coelho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário * Sumário: (…)
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[1] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que doravante vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Gravato Morais, in “Resolução em Benefício da Massa Insolvente”, Almedina, 2008, pág. 47.
[3] Assim, Carvalho Fernandes, João Labareda, CIRE Anotado, 2.ª edição, 2013.
[4] “Resolução em Benefício da Massa Insolvente”, Almedina, 2008, págs. 133-134.
[5] Prof. Gravato de Morais, ob. Cit., pág. 136.
[6] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220050.html