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CAUSA PREJUDICIAL
PENDÊNCIA DA ACÇÃO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
RECONVENÇÃO
Sumário
I. Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 272.º do CPCiv., “Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens”. II. É susceptível de revelar aquele propósito a manifesta improcedência da segunda acção e também a circunstância das pretensões ali deduzidas autonomamente poderem ser formuladas na acção dependente. III. A formulação do juízo antecipatório da manifesta improcedência da acção proposta em segundo lugar implica a consideração das várias soluções plausíveis de direito. IV. Não podendo descartar-se liminarmente, atendendo ao modo como o réu - autor naquela acção - configurou a causa de pedir, que possa eventualmente obter êxito em alguma das pretensões que deduz quando se considere um determinado enquadramento jurídico que, não sendo porventura o mais evidente, não deixa de se perfilar como candidato, não é possível formular um juízo consistente de manifesta improcedência e, por conseguinte, concluir que com a sua propositura visou apenas a suspensão da causa dependente. V. Não sendo certa a admissão a título reconvencional das pretensões deduzidas pelo réu na acção proposta, dada a existência de divergências jurisprudenciais, justificada se apresenta a sua opção pela instauração de acção autónoma, não podendo inferir-se desta circunstância que tenha buscado apenas a suspensão da causa dependente. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo 700/23.7T8LAG.E1[1] Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo de Competência Genérica de Lagos
I. Relatório
(…), residente na Rua da (…), n.º 253, 1300-338 Lisboa, instaurou contra (…), reformado, divorciado, com domicílio na Praça (…), n.º 8, 17.º C, 1600-171 Lisboa, a presente acção com processo especial para divisão de coisa comum, requerendo a final que na procedência da acção fosse ordenada a adjudicação ou venda, com a repartição do preço, do imóvel que identifica, do qual alegou ser comproprietária, por lhe ter sido feita doação de metade indivisa por sua mãe que, conjuntamente com o réu, o haviam adquirido por compra que teve lugar no ano de 1992, na constância do casamento.
Citado, o R. apresentou contestação e nela suscitou a título de questão prévia a propositura de causa prejudicial, alegando ter instaurado contra a aqui autora e também contra a mãe desta, seu ex-cônjuge, acção declarativa constitutiva, a qual corre termos pelo Juízo Central Cível de Portimão sob o n.º 5/24.6T8PTM, na qual pede que seja revogada a doação que fez a esta última da metade indivisa do prédio conhecido como Casa da (…), sito em Lagos, Monte (…), casa 21, descrito na CRP de Lagos sob a ficha n.º (…) e inscrito na matriz predial respectivo da freguesia da (…) sob o artigo (…), e as RR condenadas na consequente restituição, sendo este mesmo imóvel objecto da presente acção.
Mais alegou ter formulado naquela acção pedido subsidiário, pedindo que a ali 1.ª Ré, seu ex cônjuge, seja condenada a pagar-lhe “o montante de que (…) dispôs para aquisição de metade do imóvel em nome da 1.ª Ré, bem como metade de todos os encargos e despesas que suportou exclusivamente, num total de € 141.104,17 (cento e quarenta e um mil cento e quatro euros e dezassete cêntimos), ao que deverá ainda acrescer o valor pago a título que IMI que venha a ser apurado pela Autoridade Tributária, devendo ser então julgada procedente a impugnação pauliana da doação realizada pela 1.ª a 2.ª Ré, nos termos dos artigos 610.º e ss. do Código Civil.
Por despacho proferido em 26/3/2024 [Ref.ª 131641377], foi julgada verificada a existência de questão prejudicial e decretada a suspensão da instância até que seja proferida sentença transitada em julgada no processo n.º 5/24.6T8PTM, ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do Código Processo Civil.
Inconformada com a decisão, dela recorreu a autora e, tenho desenvolvido nas alegações os fundamentos da sua discordância com a decisão, formulou a final as seguintes conclusões:
I. O presente Recurso tem como objecto o despacho proferido em 26/03/2024 (ref.ª 131641377), que determinou a suspensão da instância à luz do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC, por entender existir uma relação de prejudicialidade entre os presentes autos e a acção que corre termos sob o número de processo n.º 5/24.6T8PTM.
II. Salvo o devido respeito pelo despacho recorrido, o mesmo limitou-se a decretar a existência de uma relação de prejudicialidade entre os presentes autos e o processo n.º 5/24.6T8PTM, ignorando que a propositura deste último processo se destinou única e exclusivamente a obter a suspensão da instância nos presentes autos, em clara contravenção ao disposto no artigo 272.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. C.1) Introdução
III. Os presentes autos têm como objecto a divisão do prédio urbano sito em Lagos, em Monte (…), Casa 21, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob a ficha n.º (…), da freguesia da (…), e inscrito na matriz predial da freguesia da (…) sob o artigo … (doravante, abreviadamente, Imóvel).
IV. O referido Imóvel é detido em compropriedade pela Recorrente e pelo Recorrido, sendo cada um titular de uma quota correspondente a metade da propriedade sobre o mesmo.
V. A Recorrente não queria, nem quer, que a compropriedade se mantenha, razão pela qual deu início aos presentes autos, requerendo ao Tribunal aquo a divisão da coisa comum (ref.ª 47066399).
VI. O Recorrido foi citado para os presentes autos em 21/11/2023 (ref.ª 11895927), terminando o prazo de 30 (trinta) dias para apresentar contestação em 21/12/2023.
VII. Essa contestação apenas viria a ser apresentada em 04/01/2024 (ref.ª 47560240), em primeiro dia de multa processual.
VIII. Em sede de contestação, o Recorrido pugnou pela suspensão da presente instância.
IX. Para sustentar tal posição, o Recorrido informou os presentes autos que, em 03/01/2024, tinha dado início à acção declarativa sob processo comum n.º 5/24.6T8PTM, que se encontra a correr termos junto do Juízo Central Cível de Portimão (Juiz 1) do Tribunal Judicial da Comarca de Faro (v. petição inicial junta como documento n.º 3 à contestação apresentada nos presentes autos).
X. O referido processo foi proposto contra a Exma. sra. … (aí Ré), Mãe da Recorrente (aí também Ré) e ex-mulher do Recorrido (aí Autor).
XI. No processo n.º 5/24.6T8PTM, o Recorrido (aí Autor) pugna pela revogação de uma doação feita alegadamente na constância do casamento que o uniu à Exma. sra. … (aí Ré), doação essa que teve como objecto uma quota correspondente a metade da propriedade sobre o Imóvel.
XII. Para garantir o crédito emergente da revogação dessa alegada doação, o Recorrido (aí Autor) deduziu contra a Recorrente (aí Ré) um pedido de impugnação pauliana sobre a doação da quota correspondente a metade do Imóvel, que lhe foi feita pela Exma. sra. (…) após a dissolução do vínculo conjugal que a unia ao Recorrido.
XIII. Em 05/02/2024, proferiu o Tribunal aquo um despacho (ref.ª 131031261) pelo qual convidou a Recorrente a pronunciar-se sobre a suspensão da instância, resposta essa que esta apresentou por requerimento datado de 14/03/2024 (ref.ª 48293266).
XIV. Nessa pronúncia, a Recorrente demonstrou que o Recorrido apenas propôs o processo n.º 5/24.6T8PTM para obter a suspensão da presente instância, nos termos do artigo 272.º n.º 2 do CPC.
XV. Com efeito, a Recorrente demonstrou, por um lado, que é possível prognosticar com segurança a manifesta improcedência do processo n.º 5/24.6T8PTM.
XVI. E, por outro lado, que mesmo que o processo n.º 5/24.6T8PTM fosse procedente, o que se concebe sem conceder, os pedidos aí formulados podiam e deviam ter sido formulados enquanto pedidos reconvencionais.
XVII. Segundo a doutrina e a melhor jurisprudência dos nossos tribunais superiores, ambas as situações descritas permitem afirmar que o processo n.º 5/24.6T8PTM foi proposto única e exclusivamente para obter a suspensão da presente instância.
XVIII. Conduta que se afigura em violação não só do artigo 272.º, n.º 2, do CPC, mas também dos mais elementares princípios de direito processual civil, como são os princípios da cooperação e da boa-fé processual, revistos nos artigos 7.º, n.º 1 e 8.º, ambos do CPC.
XIX. Não obstante, foi proferido o despacho recorrido (ref.ª 131641377), pelo qual o Tribunal aquo determinou a suspensão da instância.
XX. Despacho esse que, salvo o devido respeito, não se pode manter. C.2) Da suspensão da instância como o único intuito do Recorrido – dassituações que preenchem a proibição ínsita ao artigo 272.º, n.º 2, do CPC
XXI. Nos termos e para os efeitos do artigo 272.º, n.º 1, do CPC, existe uma relação de prejudicialidade entre duas causas sempre que numa delas, conhecida por causa prejudicial, se discute uma qualquer questão cuja decisão pode afectar o julgamento da outra causa, a causa dependente.
XXII. Verificando-se uma relação de prejudicialidade entre duas situações, é lícito ao juiz da causa dependente suspender a instância até que seja proferida decisão no âmbito da causa prejudicial.
XXIII. Pode afirmar-se, abstractamente, que existe uma relação de prejudicialidade entre o presente processo (causa dependente) e o processo n.º 5/24.6T8PTM (causa prejudicial).
XXIV. Afinal, caso se decida na causa prejudicial pela anulação da alegada doação feita pelo Recorrido (aí Autor) na pendência do casamento à sua ex-mulher, a Exma. sra. … (aí Ré), de uma quota correspondente a metade da propriedade sobre o Imóvel, então essa quota regressaria à sua esfera jurídica, tornando-se o proprietário pleno do Imóvel e deixando de existir uma coisa comum para dividir nos presentes autos.
XXV. No entanto, não basta a existência de uma relação de prejudicialidade entre duas causas para que o juiz da causa dependente possa determinar a suspensão da instância, uma vez que o artigo 272.º, n.º 2, do CPC veda tal possibilidade sempre que a causa prejudicial seja proposta somente para obter a suspensão da instância na causa dependente.
XXVI. A doutrina e a jurisprudência têm identificado um conjunto de situações em que é possível afirmar que a propositura da causa prejudicial visou apenas obter a suspensão da instância na causa dependente.
XXVII A primeira dessas situações ocorre sempre o juiz da causa dependente, ao analisar a petição inicial da causa prejudicial, consegue à partida prognosticar, com um elevado grau de certeza, a manifesta improcedência dessa causa.
XXVIII Concretizando, tratam-se de situações em que o juiz da causa dependente, após ser confrontado com um pedido de suspensão da instância, estuda a petição inicial da causa prejudicial e convence-se com base nos argumentos e meios de prova aí apresentados que os pedidos aí formulados não têm qualquer cabimento jurídico e que, consequentemente, a causa prejudicial está à partida condenada a improceder.
XXIX Nessas situações, a suspensão da instância não terá qualquer efeito útil, porque se a causa prejudicial está à partida votada ao insucesso, então aí não se decidirá nenhuma questão jurídica susceptível de eliminar ou de alterar de forma significativa a questão jurídica objecto da causa dependente
XXX. Sendo possível concluir com uma análise liminar que a causa prejudicial é manifestamente improcedente, então tem de se concluir que a sua propositura teve como único intuito obter a suspensão da instância na causa dependente, devendo, por isso, ser recusada tal suspensão, nos termos do artigo 272.º, n.º 2, do CPC.
XXXI. A segunda situação em que é possível concluir que a propositura da causa prejudicial constitui um artificio para obter a suspensão da instância na causa dependente ocorre sempre que a questão suscitada na causa prejudicial podia ter sido suscitada e decidida na causa dependente
XXXII. Ou seja, se os pedidos formulados na causa prejudicial podiam, de acordo com as regras do CPC, ser formulados e conhecidos na causa dependente, então a causa prejudicial não permite obter uma apreciação diferenciada, ou pelo menos mais vantajosa, das pretensões aí aduzidas.
XXXIII. Logo, pode-se concluir que a causa prejudicial, para além de não ter razão para existir autonomamente, foi apenas proposta para obtenção de uma decisão de suspensão da instância na causa dependente, razão pela qual tal pedido de suspensão não poderá ser procedente, nos termos do artigo 272.º, n.º 2, do CPC. C.3) Da suspensão da instância como o único intuito do recorrido – damanifesta improcedência da causa prejudicial
XXXIV. O processo n.º 5/24.6T8PTM é manifestamente improcedente, conclusão a que se chega pela leitura da sua petição inicial (vide documento n.º 3 junto à contestação apresentada nos presentes autos).
XXXV. Nesse processo, o Recorrido (aí Autor) alega que foi casado com a Exma. sra. … (que não é parte nos presentes autos, mas que aí é Ré), sob o regime de separação de bens, entre os anos de 1984 e 2022.
XXXVI. Em 1992, ou seja, durante a constância do casamento, o Recorrido (aí Autor) alega que agraciou a Exma. sra. … (aí Ré) com uma doação de uma quota correspondente a metade da propriedade sobre o Imóvel.
XXXVII. Em 14/10/2022, o casamento entre ambos foi dissolvido por divórcio, o que fez com que o mesmo decidisse que queria revogar a doação feita em 1992 à Exma. sra. … (aí Ré) da quota correspondente a metade da propriedade sobre o Imóvel, tendo formulado um pedido nesse sentido.
XXVIII. Como a referida quota foi alvo de doação, feita pela Exma. sra. … (aí Ré) a favor da Recorrente (aí Ré), por escritura pública datada de por escritura de 06/06/2023, o Recorrido (aí Autor) fez um pedido de impugnação pauliana dessa doação, de forma a salvaguardar o crédito emergente da revogação da suposta doação.
XXXIX. O artigo 1765.º, n.º 1, do CC prevê a possibilidade das doações entre cônjuges serem revogadas a qualquer momento.
XL. No entanto, só se podem revogar doações que tenham existido, o que implica que quem quer revogar uma doação tenha, antes de mais, que demonstrar a existência da mesma.
XLI. Estando em causa a suposta doação de uma quota correspondente a metade da propriedade sobre o Imóvel, para que a mesma fosse válida tinha de constar de documento particular autenticado ou de escritura pública, nos termos do artigo 947.º, n.º 1, do CC.
XLII. Tratando-se de requisito de validade do próprio negócio jurídico, a doação de propriedade sobre imóveis apenas pode ser provada pela apresentação do documento que a titula, ou seja, do documento particular autenticado ou da escritura pública, nos termos do artigo 364.º, n.º 1, do CC.
XLIII. Compulsada a petição inicial apresentada na causa prejudicial, chega-se à conclusão que não foi junto ou protestado juntar aos autos qualquer documento particular autenticado ou escritura pública que titule a doação que o Recorrido (aí Autor) alega ter existido.
XLIV. Antes pelo contrário, junto à petição inicial que deu início à causa prejudicial nota-se a existência de um contrato-promessa de compra e venda e de uma escritura de compra e venda, referente à compra do Imóvel, onde o Recorrido (aí Autor) e a Exa. sra. … (aí Ré) figuram como promitentes-compradores e compradores, respectivamente.
XLV. Não se encontrando demonstrada a existência da pretensa doação feita pelo Recorrido (aí Autor) a favor da Exma. sra. … (aí Ré), sua ex-mulher, não pode ser procedente o pedido de revogação dessa suposta doação entre cônjuges formulado na causa prejudicial, nem o pedido de impugnação pauliana da doação feita pela Exma. sra. … (aí Ré) a favor da sua filha, a ora Recorrente (aí Ré).
XLVI. Trata-se de uma questão de direito probatório simples, que não levanta quaisquer divergências doutrinárias ou jurisprudenciais, e que estava ao alcance do Tribunal aquo após uma mera leitura da petição inicial apresentada na causa prejudicial.
XLVII. A falta de fundamento jurídico das pretensões apresentadas na causa prejudicial instaurada um dia antes de o Recorrido ter apresentado contestação nos presentes autos, permite concluir que essa causa foi proposta com o único fito de obter a suspensão da instância nos presentes autos, nos termos do artigo 272.º, n.º 2, do CPCiv.
XLVIII. Assim, o despacho recorrido não se pode manter, devendo o mesmo ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos, o que expressamente se requer a V. Exas.. C.3) Da suspensão da instância como o único intuito do Recorrido – dapossibilidade dos pedidos formulados na causa prejudicial serem formuladosnos presentes autos
XLIX. Os pedidos formulados no processo n.º 5/24.6T8PTM (v. petição inicial junta como documento n.º 3 à contestação apresentada nos presentes autos) podiam ter sido formulados nos presentes autos.
L. Recorde-se que aquilo que foi requerido pelo Recorrido (aí Autor) no âmbito da causa prejudicial foi a revogação da doação referente a uma quota correspondente a metade da propriedade sobre o Imóvel, que terá alegadamente feito na constância do casamento a favor da sua ex-mulher, a Exma. sra. … (aí Ré), bem como a impugnação pauliana da doação dessa mesma quota feita por esta a favor da Recorrente (aí Ré) após a dissolução do vínculo conjugal.
LI. Tais pedidos assentam nos mesmos factos que encontramos vertidos nos artigos 37º a 62º da contestação apresentada pelo Réu nos presentes autos e que servem de base à sua defesa, pelo que os mesmos podiam ter sido deduzidos nos presentes autos por via da reconvenção, nos termos do artigo 262.º, n.º 2, alínea a), do CPC.
LII. Não se ignora que os pedidos formulados na causa dependente seguem a forma de processo comum e que o pedido formulado nos presentes autos segue a forma de processo especial.
LIII. Tal não consubstancia, no entanto, contraindicação absoluta a que os pedidos formulados na causa prejudicial fossem aduzidos nos presentes autos em sede reconvencional, uma vez que o artigo 262.º, n.º 2, do CPC, pela remissão operada para o artigo 37.º, n.º 2 e 3, do CPC, admite a cumulação de pedidos que sigam formas processuais distintas, desde que tal se revele essencial ou pelo menos interessante à justa composição do litígio.
LIV. Ora, o próprio Tribunal aquo reconheceu no despacho recorrido que decidir sobre a revogação da alegada doação entre cônjuges apresentava-se como essencial para a boa decisão da presente divisão de coisa comum.
LV. Pelo que nada impediria o Tribunal a quo de admitir a cumulação de pedidos, ordenando a adaptação da tramitação processual.
LVI. Igualmente não se ignora que a Exma. sra. (…) não é parte nos presentes autos, mas tal seria facilmente ultrapassável pelo seu chamamento aos mesmos, o que é permitido pelo artigo 266.º, n.º 4, do CPC.
LVII. A dedução de reconvenção nestes autos teria exactamente os mesmos efeitos que a instauração da causa prejudicial, da perspectiva das pretensões do aqui Recorrido, ali Autor.
LVIII. Na realidade, a dedução dos pedidos prejudiciais em sede reconvencional traria mesmo vantagens de um ponto de vista da economia processual, pois permitiria que todas as questões relevantes fossem apreciadas, plenamente e sem restrições, no âmbito de um único processo judicial.
LIX. Logo, há que concluir que a propositura da causa prejudicial visou somente a suspensão dos presentes autos, nos termos do artigo 272.º, n.º 2, do CPC.
LX. Assim, o despacho recorrido não se pode manter, devendo o mesmo ser revogado e substituído por outro que determine a prossecução dos presentes autos o queexpressamente se requer (…)”.
Conclui pela procedência do recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que determine o prosseguimento dos autos.
*
O R. contra alegou, defendendo a manutenção do julgado.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se a acção prejudicial foi instaurada pelo R. com o único propósito de obstar ao prosseguimento dos presentes autos, com a consequência de dever ser recusada a requerida – e pela 1.ª instância decretada – suspensão da instância.
* II. Fundamentação
Relevam para a decisão os factos relatados em I., importando pois determinar se, conforme pretende e sustenta a apelante, devia ter sido recusada a requerida suspensão da instância.
Epigrafado de “Suspensão por determinação do juiz ou por acordo das partes”, dispõe o artigo 272.º do CPC, para o que aqui releva, que:
“1. O Tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado. 2. Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens”.
Ensinava o Prof. Alberto dos Reis que “uma causa é prejudicial a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda”.[2]
Numa outra formulação, entende-se como causa prejudicial “(…) aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia” (acórdão do TRL de 24 de Outubro de 2019, processo 25645/18.9T8CSB.L1-6). E em citação de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (in CPC Anotado, vol. I, págs. 314-315) “o nexo de prejudicialidade define-se assim: estão pendentes duas acções e dá-se o caso de a decisão de uma poder afetar o julgamento a proferir noutra; a razão de ser da suspensão, por pendência de causa prejudicial é a economia e a coerência de julgamentos; uma causa é prejudicial à outra quando a decisão da primeira possa destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda».
Com a decisão de suspender a acção dependente visa-se salvaguardar, conforme se consignou no aresto deste mesmo TRE de 10 de Novembro de 2022 (processo 1217/22.2YLPRT.E1, em www.dgsi.pt), a unidade do sistema jurídico e a harmonia das decisões judiciais, obstando a que sejam proferidas decisões contrárias. Atende-se, deste modo, a “considerações de racionalidade processual, pois se a decisão de uma das ações retira a razão de ser à outra, então não faz sentido desenvolver atividade jurisdicional na ação que resultará prejudicada por tal decisão”.
No caso em apreço, tal como a própria apelante parece reconhecer, a acção proposta pelo aqui réu, a proceder, destrói o fundamento da presente acção, uma vez que deixa de existir uma situação de compropriedade, que é pressuposto da acção de divisão de coisa comum. Não obstante, argumenta, resulta evidente que a acção prejudicial foi instaurada com o único propósito de obstar ao prosseguimento dos presentes autos, o que resulta claro quando se considere que é manifesta a sua improcedência; ainda a assim não ser entendido, sempre os pedidos nela formulados “podiam e deviam ter sido formulados enquanto pedidos reconvencionais”, situações que, segundo “a doutrina e a melhor jurisprudência dos nossos tribunais superiores (…) permitem afirmar que o processo n.º 5/24.6T8PTM foi proposto única e exclusivamente para obter a suspensão da presente instância”.
Mas será que a improcedência da acção proposta pelo aqui réu é assim tão evidente, tal como a faculdade de deduzir os mesmos pedidos nesta acção em via reconvencional?
Conforme aponta a apelante, a primeira situação ocorre sempre que o juiz da causa dependente, ao analisar a petição inicial da causa prejudicial, antecipa, com elevado grau de certeza, que a acção não tem mérito, sendo manifesta a sua improcedência, o que diz ser o caso dos autos. Vejamos se assim ocorre.
A recorrente reconhece que o artigo 1765.º, n.º 1, do CC prevê a possibilidade das doações entre cônjuges serem revogadas a qualquer momento. Considera, no entanto, que estando em causa a suposta doação de uma quota correspondente a metade da propriedade sobre o Imóvel, para que a mesma fosse válida tinha de constar de documento particular autenticado ou de escritura pública, nos termos do artigo 947.º, n.º 1, do CC, requisito formal de que depende a validade do próprio negócio jurídico. Não tendo a petição inicial da causa prejudicial sido acompanhada de documento particular autenticado ou escritura pública que titule a doação que o ora recorrido, ali autor, alega ter existido, antes constando daqueles autos o contrato promessa de compra e venda e escritura relativa ao contrato prometido, nos quais interveio como promitente compradora e, depois, como adquirente, a mãe da apelante, também ré naquela acção, conclui não poder ser julgado procedente o pedido de revogação dessa suposta doação entre cônjuges, nem a subsequente impugnação pauliana da doação feita por aquela Ré a favor da sua filha, aqui autora. Na perspectiva da apelante está, pois, em causa, conforme alega, “uma questão de direito probatório simples, que não levanta quaisquer divergências doutrinárias ou jurisprudenciais, e que estava ao alcance do Tribunal aquo após uma mera leitura da petição inicial apresentada na causa prejudicial”.
Não secundamos, antecipa-se, o juízo feito pela autora no sentido da manifesta improcedência da acção instaurada pelo réu. Com efeito, atendendo a que a formulação desse juízo antecipatório implica a consideração das várias soluções plausíveis de direito, não poderá, em nosso entender, descartar-se liminarmente, atendendo ao modo como o autor configurou a causa de pedir naquela acção, que possa eventualmente obter êxito em alguma das pretensões que deduz quando se considere a disciplina dos negócios jurídicos indirectos, enquadramento jurídico que, não sendo porventura o mais evidente, não deixa de se perfilar como candidato. Vejamos:
O Prof. Pedro Pais de Vasconcelos define negócios jurídicos indirectos como “(…) aqueles em que as partes elegem um tipo negocial legal para com ele alcançar um fim que não é próprio desse tipo, mas que, não obstante, ele permite alcançar. No negócio indirecto ocorre uma diferença entre o fim típico e o fim indirecto que é efectivamente prosseguido (…).
Há dois aspectos importantes nos negócios indirectos, que importa reter: o tipo de referência e o fim indirecto. O tipo de referência deve ser um tipo negocial legal, por referência ao qual as partes celebraram o negócio. O fim indirecto é atípico, no sentido de que não é característico do tipo de referência; mas pode ser típico, no sentido de que pode ser o fim correspondente à função característica de um outro tipo negocial.
No negócio indirecto há uma divergência entre a função típica e o fim concreto com que é celebrado (fim indirecto)” (“Teoria Geral do Direito Civil”, Ed. 2010, pág. 636). Conforme o mesmo autor adverte “O negócio indirecto não deve ser confundido com o negócio simulado com simulação relativa, em que as partes convencionam entre si celebrar certo negócio (negócio real ou dissimulado), mas declarar exteriormente que celebraram um outro diferente negócio (negócio aparente ou simulado). O negócio simulado tem uma configuração complexa, tripla, em que se conjugam formalmente, em princípio, três aspectos: o negócio aparente, que é simulado; e o pacto simulatório, que é mantido secreto e pelo qual as partes acordam só vale e tem verdadeira vigência, entre elas, o negócio verdadeiro e não o aparente, e que este apenas deve ser exigido perante terceiros.
Ao contrário, no negócio indirecto não existe pacto simulatório, não existe divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada, não existe a intenção de criar externamente uma falsa aparência negocial, não existe acordo para enganar terceiros. No negócio indirecto as partes não têm a intenção de esconder o que quer que seja, nem de enganar quem quer que seja. Querem simplesmente utilizar o modelo regulativo de um tipo negocial para um fim que não corresponde à sua função típica, mas que esse tipo permite alcançar” (ob. citada, pág. 638).
Também a propósito dos negócios ditos indirectos explicava o Prof. Manuel de Andrade “Pode um negócio típico (venda, etc.) cujos efeitos são realmente queridos pelas partes ser concluído por um motivo ou por um escopo ulterior diverso dos que estão de acordo com a função característica (causa) desse tipo negocial e correspondente a outro negócio típico ou tipificável (doação, qualquer negócio de garantia creditória, etc. (…)” (“Teoria Geral” vol. II, pág. 179).
Nos negócios indirectos visa-se, pois, um fim ulterior, que resulta de forma indirecta do negócio celebrado e tem autonomia em relação às suas consequências típicas, ainda que decorra imediatamente da actuação do outorgante no negócio que celebra. O negócio indirecto, querido pelas partes, pode ser uma doação, como, por exemplo, ocorre frequentemente quando os pais, com dinheiro seu, pagam o preço de um imóvel que negociaram e pretendiam de facto adquirir para dele fazer doação a um filho, intervindo este como adquirente na escritura de compra e venda.
No caso dos autos, a fazer-se prova do alegado pelo réu na acção que instaurou, poderá questionar-se, é certo, ainda a reconhecer-se que se está perante uma doação, se foi doada a metade do imóvel ou antes a quantia correspondente a metade do preço e, neste último caso, se a donatária não tem outros bens que possam responder pelo cumprimento da obrigação de restituição, em ordem a justificar a impugnação da subsequente doação de que foi beneficiária a sua filha, aqui autora. Seja como for, podendo os factos alegados pelo ora réu na causa prejudicial ser juridicamente enquadrados na figura dos negócios indirectos, não pode, a nosso ver, concluir-se sem mais que a acção que instaurou contra a aqui autora e sua mãe se encontra, para mais de forma manifesta, condenada a um inescapável insucesso, evidente quando se analise a petição inicial, tornando-a merecedora de um juízo antecipado de improcedência. Ao invés, não pode este Tribunal, pelos motivos expostos, formular tal juízo, donde não ser possível concluir, por esta via, que a instauração pelo aqui réu daquela outra acção teve como único escopo, tal como exige a lei, obter a suspensão dos presentes autos.
Invocou ainda a apelante como reveladora da única intenção do apelado ser a obtenção da suspensão dos presentes autos a circunstância de as questões suscitadas na acção instaurada poderem ser decididas na presente, aqui podendo/devendo ter formulado os mesmos pedidos em sede de reconvenção. E assim é porque, argumenta, assentando estes pedidos nos factos alegados de 37º a 62º da contestação apresentada nestes autos e que servem de base à sua defesa, podiam aqui ser deduzidos nos termos do artigo 266.º, n.º 2, alínea a), do CPCiv.. Trata-se, contudo, de entendimento que, ao invés do que a apelante pretende fazer crer, está longe de ser pacífico.
Conforme é sabido, com ressalva de algumas poucas excepções que para o caso não relevam, não existe um ónus de reconvir (cfr., a título meramente exemplificativo, o acórdão do STJ de 22 de Maio de 2021, processo n.º 29/12.6TBPTL.G2.S1, acessível em www.dgsi.pt).
Por outro lado, admitindo o artigo 266.º do CPCiv. que o réu deduza pedidos contra o autor nos casos em que tais pretensões emergem do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa, logo o n.º 3 do preceito exclui a admissibilidade da reconvenção quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz o autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias interpretações. Ora, a autorização a conceder ao abrigo deste último preceito implica que a tramitação das diferentes formas de processo que caibam a um e outro dos pedidos não seja manifestamente incompatível, exigindo ainda a lei que se verifique a existência de um interesse relevante na apreciação conjunta das diversas pretensões.
Pese embora à acção de divisão de coisa comum corresponda a tramitação do processo especial regulado nos artigos 925.º e seguintes do CPCiv. e o obstáculo à admissibilidade da reconvenção que decorre do convocado n.º 3 do referido artigo 266.º, os tribunais tendem a admitir a dedução de pedido reconvencional no âmbito das acções desta natureza quando, não sendo contestada a indivisibilidade, o réu “invoque a existência de créditos seus contra o autor que tenham a ver com o prédio a dividir e que possam influenciar o valor daquilo que o autor tenha direito a receber no fim da acção, de modo a evitar que tenha que ser intentada nova acção para discutir esses créditos” (do acórdão do TRL de 12/9/2024, processo n.º 1207/23.8T8LSB.L1-2, na esteira do decidido pelo mesmo TRL no acórdão de 28/9/2023, processo n.º 2212/21.4T8PDL.L1-6, e também o acórdão do TRC de 20/2/2024, no processo n.º 183/22.9T8PNI-B.C1, todos acessíveis em www.dgsi.pt). Apesar desse entendimento, que cremos maioritário, não deixa, ainda assim, de se registar a prolação de decisões divergentes, recusando em alguns casos a conexão exigida pelo n.º 2 (veja-se o recente acórdão deste mesmo TRE de 9/5/2024, no processo n.º 6713/22.9T8STB.E1, também em www.dgsi.pt).
Voltando ao caso dos autos, ainda a aceitar que a pretensão do apelado no sentido de ver revogada a alegada doação feita ao ex-cônjuge constitui a base da sua defesa, logo, ter-se-ia como verificada a conexão prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 266.º, conforme indica a apelante – o que, em todo o caso, não se afigura evidente, uma vez que produzindo a revogação, em regra, efeitos ex nunc, tal não serve como fundamento de impugnação da alegada compropriedade, a qual subsistia à data da propositura da acção –, já não se vislumbra que conexão existiria em ordem a justificar a admissibilidade da dedução dos pedidos subsidiários. Acresce que a admissão de reconvenção na qual fossem formulados os pedidos que constam da causa prejudicial implicaria o chamamento de uma pessoa estranha ao processo, o que, se não constitui obstáculo legal à sua admissibilidade (cfr. o n.º 4 do artigo 266.º), seria com certeza um elemento a ponderar pelo juiz quando tomasse a decisão de a autorizar – ou não – ao abrigo dos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, aplicável ex vi da remissão operada pelo n.º 3 do citado artigo 266.º.
Resulta do exposto que, não sendo certa a admissão de reconvenção na qual fossem pelo aqui R formulados os pedidos que deduziu na acção por si proposta e que desta é prejudicial, independentemente da motivação profunda que possa ter tido, justificada se apresenta a sua opção pela instauração de acção autónoma, não podendo inferir-se desta circunstância que tenha buscado apenas a suspensão dos presentes autos.
Improcedentes os fundamentos do recurso, resta confirmar a decisão recorrida.
* III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da apelante, que decaiu (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Évora, 22 de Maio de 2025
Maria Domingas Simões
Cristina Dá Mesquita
Canelas Brás
Sumário: (…)
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[1] Exmos. Srs. Juízes Adjuntos:
1.ª Adjunta: Exm.ª Sra. Juíza Desembargadora Cristina Dá Mesquita;
2.º Adjunto: Exm.º Sr. Juiz Desembargador Canelas Brás.
[2] “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. III, Coimbra 1946, pág. 268.