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CONFLITO DE COMPETÊNCIA
ACÇÃO DE HONORÁRIOS
COMPETÊNCIA CONEXÃO
Sumário
1 – A competência para a acção de honorários é provisionada no artigo 73.º do Código de Processo Civil, determinado a lei que é competente o tribunal da causa na qual foi prestado o serviço, devendo aquela correr por apenso a esta. 2 – A acção de honorários só deverá correr por apenso ao processo onde foram prestados os serviços, quando o tribunal seja competente em razão da matéria. 3 – Em razão da matéria, a acção de honorários é uma acção declarativa comum que pode ser julgada, tanto pelos juízos centrais cíveis, como pelos juízos locais comuns. 4 – A competência em razão da matéria não é critério único de afastamento do critério da conexão, pois, na verdade, esta operação está ainda condicionada pela prévia delimitação do tribunal competente em razão do valor. 5 – Face aos critérios de distribuição de competência na actual organização do sistema judiciário o foro conexional previsto para as acções de honorários é de aplicação muito limitada. 6 – Se o serviço forense foi prestado num juízo central cível, este será competente para a acção, desde que a quantia peticionada na acção de honorários exceda € 50.000,00. Se, apesar de prestado o serviço no juízo central cível, o valor peticionado não ultrapassar o referido limite, aquele juízo já não é competente, mas sim o juízo local cível ou o juízo de competência genérica. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Processo n.º 22624/24.0YIPRT-A.E1 Juízo Central de Competência Cível de Faro (J3)/Juízo Local de Competência Cível de Loulé (J2) * Conflito de competência I – Relatório:
O requerente (…), advogado em causa própria, intentou acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, contra “(…) – (…) Imóveis, Lda.”, em que pede a cobrança de valores relativos à prestação de serviços de mandato forense, no valor de € 4.047,00, acrescido de juros legais. *
Em benefício da sua pretensão, o Autor invoca que, no exercício da sua actividade de advogado, prestou serviços à Ré, como mandatário judicial, no âmbito do Processo n.º 22624/24.0YIPRT, do Juízo Central Cível de Faro-Juiz 3, tendo o mandato cessado por revogação. *
A Mm.ª Juíza do Juízo Local Cível de Loulé decidiu que «a acção de honorários correrá por apenso à respectiva acção onde foram prestados os serviços desde que esse tribunal seja competente em razão da matéria. Assim, a acção foi indevidamente proposta neste Tribunal, porquanto a mesma deverá correr por apenso ao supra referido Processo n.º 22624/24.0YIPRT, do Juízo Central Cível de Faro-Juiz 3. Nos termos do disposto no artigo 104.º, n.º 1, do CPC, a incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, e entre outros casos, nas causas que, por lei, devam correr como dependência de outro processo (cfr. alínea c), como é o caso da acção de honorários de mandatários judiciais. Pelo exposto, nos termos dos artigos 73.º, n.º 1, 102.º, 104.º, n.º 1, alínea c) e n.º 3, todos do CPC, por ser de conhecimento oficioso, declaro este Juízo Local Cível incompetente para tramitar a presente acção e determino a remessa, para apensação, ao Processo n.º 22624/24.0YIPRT, do Juízo Central Cível de Faro-Juiz 3».
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Na sua parte mais pertinente, no âmbito do Juízo Central de Competência Cível de Faro, foi prolatada decisão em que se defende que «a aplicação da regra da competência por conexão, prevista no citado artigo 73.º do Código de Processo Civil, pressuponha a competência material para a causa deste Juízo Central Cível que, em concreto, não existe. Na verdade, como tem vindo a ser entendido, de modo pacífico, o artigo 73.º do Código de Processo Civil estabelece, além duma regra de conexão, uma norma de competência territorial e não de competência em razão da matéria. (…) Donde, concluímos, assiste razão ao Ilustre Autor quando invoca a exclusão da aplicação do artigo 73.º do Código de Processo Civil ao caso, pois este pressupõe a competência material deste Juízo Central Cível de Faro, o que não se verifica». *
Ambas as decisões transitaram em julgado.
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Foi suscitado o competente conflito negativo de competência.
* II – Factualidade com interesse para a justa decisão do incidente:
Os factos com interesse para a justa decisão do incidente constam do relatório inicial.
* III – Enquadramento jurídico:
Estamos perante um enquadramento em que existe um conflito negativo de competência; isto é, dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional consideram-se incompetentes para conhecer da mesma questão, tal como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 109.º[1] do Código de Processo Civil, com referência ao artigo 76.º[2] da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
Em face do disposto no n.º 1 do artigo 211.º da Constituição da República Portuguesa, os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal, e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas, estabelecendo os artigos 64.º do Código de Processo Civil e 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26/08), que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, tendo consequentemente também competência residual no confronto com as outras ordens de tribunais.
João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa ensinam que a «competência é, grosso modo, a adstrição a certo tribunal de certa categoria de processos. Vista pelo ângulo do tribunal, a competência pertence à organização judiciária e como tal é regulada pelas leis de organização judiciária (artigos 37.º, n.º 1, 40.º, 41.º e 42.º, n.º 1 e 2, da LOSJ) e, por vezes, pelo Código de Processo Civil (artigos 65.º e 66.º)»[3].
No entendimento de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, «a competência em razão da matéria distribui-se deste modo por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas. Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram»[4].
Este critério da competência em razão da matéria não actua «apenas no plano da contraposição dos tribunais judiciais aos outros tribunais, mas também, como resulta do artigo 65.º, no plano da contraposição dos vários tribunais de 1.ª instância entre si»[5]. E, nesta problemática, conforme defendem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, a distribuição da competência afere-se pelo pedido efectuado e pela causa de pedir[6][7].
A competência para a acção de honorários é provisionada no artigo 73.º[8] do Código de Processo Civil, determinado a lei que é competente o tribunal da causa na qual foi prestado o serviço, devendo aquela correr por apenso a esta.
As razões associadas a este critério territorial especial podem encontrar-se nas palavras de Alberto dos Reis que asseverava que «o tribunal competente para as acções mencionadas é aquele em que correu o processo a que diz respeito o mandato judicial. Não só se manda propor a acção no tribunal da causa em que foi prestado o serviço, mas determina-se ainda que a acção de honorários ou de cobrança de crédito tem de correr por apenso ao processo em que se exerceu o mandato»[9].
Na opinião do professor de Coimbra «o tribunal da causa em que foi prestado o serviço é mais qualificado para conhecer da acção, visto possuir elementos para uma decisão mais justa e conscienciosa»[10] e «a lei quer, por uma razão de ordem superior, que o juiz tenha à vista o processo em que foi exercido o mandato: a instrução é mais fácil, a decisão mais conscienciosa»[11][12].
Esta regra especial do tribunal da causa é ditada, na leitura de Ferreira de Almeida, por razões de uma maior eficácia e funcionalidade dos tribunais, «o que melhor se conseguirá confiando o julgamento ao juiz decisor da causa principal geradora da dívida de honorários, o qual, por tal motivo, se encontrará em melhor posição para avaliar a dimensão e a qualidade do esforço ou actividade despendidos[13].
No entanto, tal como evidencia Abrantes Geraldes (et alii) o preceito apenas trata da competência por conexão, não pretendendo resolver a questão da determinação da competência material nos casos em que os serviços do mandatário são prestados no âmbito de processos da competência de tribunal ou de juízo de competência especializada (v.g. família, propriedade intelectual, criminal, etc.).[14]
Esta posição é tributária do ensino de Alberto dos Reis que sublinhava que «o artigo manda propor a acção no tribunal da causa em que foi prestado o serviço; com esta determinação não quis atribuir-se competência ao tribunal da causa, seja qual for a sua natureza, para conhecer da acção de honorários, o que quis prescrever-se foi que, se esse tribunal tiver competência objetiva para julgar a acção de honorários, a essa competência acrescerá a competência territorial para a referida acção. Por outras palavras: o artigo 76.º[15] pressupõe necessariamente que o tribunal da causa tem competência, em razão da matéria, para conhecer da ação de honorários; e partindo deste pressuposto, atribui-lhe também competência, em razão do território, para a mesma acção»[16].
Deste conjunto de contributos e da análise da jurisprudência aplicável resulta que a acção de honorários só deverá correr por apenso ao processo onde foram prestados os serviços, quando o tribunal seja competente em razão da matéria.
Dito isto, ao contrário da posição expressa na declaração de incompetência proferida pelo Juízo Central de Competência Cível, não estamos perante um cenário de competência em razão da matéria.
Efectivamente, os juízos centrais cíveis (artigo 81.º, n.º 3, alínea a), LOSJ) são eles, próprios juízos de competência especializada. Estes Juízos têm uma competência residual em relação ao juízo local cível determinada em função do valor e da forma do processo (artigo 117.º e 130.º, n.º 1, LOSJ)[17].
Em contraponto, compete aos juízos locais cíveis, além do mais, preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outros juízos ou a tribunal de competência alargada (artigo 130.º, n.º 1, LOSJ). Como os juízos centrais cíveis só conhecem de processos comuns (artigo 117.º, n.º 1, alínea a), LOSJ), os juízos locais cíveis conhecem de qualquer processo especial que não seja de competência de outro juízo ou de tribunal de competência territorial alargada[18].
No fundo, a delimitação da competência dos juízos centrais cíveis (artigo 117.º, n.º 1, LOSJ) perante a competência dos juízos locais cíveis (artigo 130.º, n.º 1, LOSJ) é realizada em função quer do valor da causa, quer da forma de processo[19].
Em razão da matéria, a acção de honorários é uma acção comum que pode ser julgada, tanto pelos juízos centrais cíveis, como pelos juízos locais comuns, pois ambos têm competência objectiva para julgar este tipo de causa.
Porém, a competência em razão da matéria não é critério único de afastamento da competência por conexão, pois, na verdade, esta operação poderá estar ainda condicionada pela prévia delimitação do tribunal competente em razão do valor. Na realidade, não estamos perante uma regra de distribuição de competência territorial que prevaleça sobre o critério do valor. Por isso, Paulo Pimenta assinala que o foro conexional é de aplicação muito limitada.
No tratamento doutrinal desta exacta questão, este autor esclarece que «se o serviço foi prestado num juízo central cível, este será competente para a acção, desde que a quantia peticionada na acção de honorários exceda € 50.000,00. Se, apesar de prestado o serviço no juízo central cível, o valor peticionado não ultrapassar o referido limite, aquele juízo já não é competente, mas sim o juízo local cível ou o juízo de competência genérica (artigo 130.º da LOSJ). Em contrapartida, note-se que, não por via do artigo 73.º, 1, mas pelo critério geral de competência, é bem possível que uma acção de honorários relativamente a serviço prestado num qualquer outro tribunal ou juízo seja competência do juízo central cível: como se trata de uma acção declarativa comum, basta que o valor do pedido (logo, o valor da acção – cfr. artigo 297.º, 1) seja superior a € 50.000, assim se aplicando o artigo 117.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ»[20].
Nestes termos, concordando-se com esta posição dogmática, declaro competente para a tramitação da acção o Juízo Local de Competência Cível de Loulé (J2).
* IV – Conclusões: (…)
* V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decido resolver o conflito negativo de competência surgido nos autos, atribuindo a competência para conhecer do processo ao Juízo Local de Competência Cível de Loulé (J2).
Sem tributação.
Notifique (artigo 113.º do Código de Processo Civil) e, oportunamente, baixem os autos.
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Processei e revi.
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Évora, 30/05/2025
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
(Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Évora, no uso de competências delegadas)
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[1] Artigo 109.º (Conflito de jurisdição e conflito de competência):
1 - Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas atividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.
2 - Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
3 - Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência
[2] Artigo 76.º (Competência do presidente):
1 - À competência do presidente do tribunal da Relação é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nas alíneas a) a d), f), g) e h) do n.º 1 do artigo 62.º
2 - O presidente do tribunal da Relação é competente para conhecer dos conflitos de competência entre tribunais de comarca da área de competência do respetivo tribunal ou entre algum deles e um tribunal de competência territorial alargada sediado nessa área, podendo delegar essa competência no vice-presidente.
3 - Compete ainda ao presidente dar posse ao vice-presidente, aos juízes e ao secretário do tribunal.
4 - É aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 62.º às decisões proferidas em idênticas matérias pelo presidente do tribunal da Relação.
[3] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 141.
[4] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, revista e atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 207.
[5] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 165.
[6] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 103.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/05/2014, publicitado em www.dgsi.pt.
[8] Artigo 73.º (Ação de honorários):
1 - Para a ação de honorários de mandatários judiciais ou técnicos e para a cobrança das quantias adiantadas ao cliente, é competente o tribunal da causa na qual foi prestado o serviço, devendo aquela correr por apenso a esta.
2 - Se a causa tiver sido, porém, instaurada na Relação ou no Supremo Tribunal de Justiça, a ação de honorários correrá no tribunal da comarca do domicílio do devedor.
[9] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição (reimpressão), vol. I, Coimbra Editora, 1948, pág. 216.
[10] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1960, pág. 76.
[11] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1960, pág. 76.
[12] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1960, pág. 76.
[13] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, vol. I, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 453, citando os acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/06/2000, in CJ XXV-III-33 e do Supremo Tribunal de Justiça de 30/11/1995, in BMJ 451-370.
[14] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração (artigos 1.º a 702.º), 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 111.
[15] A que corresponde na actualidade o artigo 73.º do Código de Processo Civil.
[16] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, Coimbra, pág. 204.
[17] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 146.
[18] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 146.
[19] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 147.
[20] Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 126, nota de rodapé 281.