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PROIBIÇÃO DE PROVA
VIDEOVIGILÂNCIA
ESTABELECIMENTO DE DIVERSÃO NOTURNA
Sumário
I - A obtenção de imagens (do arguido) através das câmaras colocadas no interior e no exterior de um estabelecimento de diversão noturna (uma “discoteca”) não corresponde a qualquer método proibido de prova, pois existe justa causa para a sua obtenção e utilização como meio de prova, porquanto se visa documentar a prática de uma infração criminal e as imagens obtidas não dizem respeito ao “núcleo duro da vida privada” da pessoa visionada. II - A obtenção dessas imagens, através do sistema de videovigilância, e a posterior utilização das mesmas no âmbito de um concreto processo penal, não correspondem a qualquer método proibido de prova, porquanto, no circunstancialismo referido (que não respeita ao “núcleo duro da vida privada” do arguido), existe justa causa, consubstanciada na documentação da prática de uma infração criminal. III - Este entendimento não é infirmado pela falta de autorização da CNPD (Comissão Nacional da Proteção de Dados) para a instalação do sistema de recolha de imagens existente no local. IV - Assim, as imagens em causa constituem prova válida, podendo (e devendo) ser valoradas em conjunto com a demais prova produzida.
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
1. RELATÓRIO
A – Decisão Recorrida
No processo comum com intervenção de tribunal singular nº 412/21.6JAFAR, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Albufeira, Juiz 3, nos termos da acusação formulada pelo MP, foi efectuado julgamento, após o que se decidiu o seguinte (transcrição):
A) Absolver o arguido A da prática do crime de detenção de arma proibida de que vinha acusado; B) Condenar o arguido E, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º nº 1 alínea c) da Lei nº 5/2006, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão que ficará, por um ano e oito meses, suspensa na execuçãoe que será, nos termos do art. 53º do Código Penal, acompanhada de regime de prova, impondo-se ao arguido as seguintes regras de conduta: I.Obrigação de procurar activamente trabalho, por forma a assegurar por meios próprios o seu sustento, II. Obrigação de colaborar com os técnicos dos serviços de reinserção social durante o período de duração da suspensão, designadamente recebê-los, prestar-lhes as informações que lhe solicitem, comparecer a quaisquer convocatórias, e comunicar-lhes, ou ao Tribunal, quaisquer alterações de morada ou ausências da residência por período superior a 10 dias.
B – Recurso
Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, invocando a aplicação da lei da amnistia, a nulidade na utilização, como meio de prova, das imagens de videovigilância e a respectiva violação do tecido constitucional, a violação dos princípios da inocência e do in dubio pro reo, a inexistência do crime pelo qual foi condenado e a circunstância de a pena aplicada ser excessiva e desproporcional.
C – Resposta ao Recurso
O M.P., junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência total do mesmo.
D – Tramitação subsequente
Aqui recebidos, foram os autos com vista à Exma Procuradora Geral Adjunta, que emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, foi apresentada resposta pelo arguido reafirmando os seus argumentos.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
A – Objecto do recurso
De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar de o recorrente delimitar, com as conclusões que retira das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este, contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
Atentas as conclusões do recorrente, delas se podem extrair as seguintes matérias:
1) Aplicação da lei da amnistia
2) Nulidade na utilização, como meio de prova, das imagens de videovigilância e a respectiva violação do tecido constitucional
3) Violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo
4) Alteração da pena
B – Apreciação
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.
Aí, foi dado como provado, e não provado, o seguinte (transcrição):
Factos provados
Com interesse para a decisão da causa ficaram provados os seguintes factos: I. No dia 19 de Dezembro de 2021, a hora não apurada mas antes da 5h 20m da manhã, os arguidos A e E dirigiram-se à discoteca KISS sita na Rua Vasco da Gama, em Albufeira, numa viatura da marca Audi, matrícula (…..). II. Na referida viatura encontrava-se guardada uma arma de fogo, espingarda-caçadeira com os canos serrados. III. Os arguidos entraram na discoteca e, cerca das 5h 20m, o arguido A e um terceiro ali presente iniciaram entre si uma troca de palavras, sendo que um dos seguranças do local, ao se aperceber do conflito, encaminhou o arguido para fora da discoteca. IV. A certa altura o arguido E saiu da discoteca e dirigiu-se no sentido da Rua Vasco da Gama, onde se encontrava estacionado o supra referido veículo automóvel Audi, pertencente ao arguido A, de onde o arguido E retirou a espingarda-caçadeira. V. Nessa sequência, o arguido E, na posse da referida espingarda-caçadeira, por volta das 5h 50m, regressou à porta da discoteca, onde se encontrava o arguido A. VI. Minutos depois de sair da imediação da porta o arguido E, ainda na posse da espingarda-caçadeira, regressou à porta da discoteca, onde se encontrava o arguido A. VII. Nas imediações da discoteca, o arguido E disparou para o ar com a mencionada arma. VIII. Minutos depois, os arguidos passaram pela porta da discoteca, fazendo-se transportar no veículo Audi, conduzido pelo arguido A; nesse momento o arguido E efectuou um disparo para o ar com a referida arma. IX. Os arguidos não são detentores de licença de uso, porte e transporte de armas. X. Os arguidos bem sabiam que não eram detentores de qualquer licença de uso, porte e transporte de armas, bem sabendo que o uso, porte e transporte de armas exige a posse dos documentos e licenças emitidos por autoridade competente. XI. O arguido E quis deter, transportar e utilizar a arma de fogo acima referida, bem conhecendo as características e as qualidades da mesma e bem sabendo que não se encontrava autorizado a deter, transportar ou utilizar aquela ou qualquer outra arma de fogo, não obstante, não se inibiu de praticar a conduta, efectuando inclusivamente disparos para o ar, o que logrou e quis. XII. O arguido E agiu consciente, livre e voluntariamente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
* * * XIII. O arguido A trabalha em decoração de lojas, auferindo sensivelmente € 1.500 por mês. XIV. O arguido A tem dois filhos, o mais velho com seis anos de idade e a mais nova com meses de idade. XV. O arguido A vive com a namorada e a filha do casal. XVI. A namorada do arguido não trabalha. XVII. O arguido A regista o seguinte antecedente criminal:
Por decisão de 2018 de Tribunal Judicial do Reino de Espanha o arguido foi condenado pela prática, em 06/12/2018, de um crime de injúria ou resistência a um representante da autoridade pública
* * * XVIII. O arguido E estudou até ao 9º ano, tendo obtido formação profissional na área de serviço de bar e mesa. XIX. O arguido começou a trabalhar após concluir os estudos, aos 18 anos de idade, altura em que emigrou para o Reino Unido, onde residiu com uma tia. Trabalhou em produção de eventos e posteriormente na restauração. XX. Após regressar a Portugal, aos 20 anos de idade, o arguido permaneceu cerca de um ano desempregado. XXI. O arguido vive com os pais e um irmão em casa dos pais. XXII. O arguido, desde há três anos, trabalha habitualmente durante os meses de época alta, sensivelmente Maio a Setembro, num bar. XXIII. Presentemente o arguido está desempregado. XXIV. Quando o arguido integra o mercado de trabalho o seu vencimento é depositado na conta bancária da mãe, que faz a gestão desses rendimentos. XXV. Quando integra o mercado de trabalho o arguido estrutura o seu quotidiano em torno da vida laboral. XXVI. O arguido tem uma filha bebé, nascida em 2024, que reside com a mãe. XXVII. O arguido E não regista antecedentes criminais.
Factos não provados
Ficou por provar todo o restante teor da acusação. Designadamente, não se provou: a) Que o arguido A manuseou a arma de fogo, ou com ela teve qualquer contacto, ou que tinha conhecimento que a mesma era transportada no seu veículo; b) Que o arguido A agiu sabendo que a sua conduta era proibida por lei e, ainda assim, não se coibiu de a adoptar.
B.1. Aplicação da lei da amnistia
Solicita o recorrente a aplicação da Lei nº38-A/2023 de 02/08, denominada Lei da Amnistia.
Tal lei veio instituir o perdão e amnistia de algumas infracções e penas por ocasião da Jornada Mundial da Juventude realizada em Portugal, mas como medida excepcional de clemência que é, concedida pelo Estado, aplica-se apenas a situações que se consideram de menor gravidade.
Daí que, a própria Lei estabeleça limites à sua aplicação, quer no tocante ao perdão de penas, quer no que respeita às infracções penais amnistiáveis, fixando o limite máximo da pena em 1 ano de prisão ou 120 dias de multa.
O recorrente mostra-se condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo Artº 86 nº1 al. c) da Lei nº 5/2006, em conjugação com o disposto no Artsº2 nº 1 als. p) e s) e 3 al. e), e 3º nsº1 e 6 do mesmo diploma legal.
Assim sendo, tendo em conta que a moldura penal do tipo legal de crime é de pena de prisão de 1 a 5 anos, ou multa até 600 dias, não é, à situação dos autos, aplicável a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, por força do seu Artº 4, que limita essa aplicação a crimes que, em abstracto, não sejam puníveis com pena de prisão superior a 1 um ou a 120 dias de multa.
Nesta medida e sem necessidade de considerações complementares, torna-se claro que o recorrente não poderá beneficiar da pretendida amnistia, razão pela qual, o recurso terá de improceder, neste domínio.
B.2. Nulidade na utilização, como meio de prova, das imagens de videovigilância e a respectiva violação do tecido constitucional
Alega o recorrente, em suma, que não existindo no processo prova documental de que “as câmaras de videovigilância se encontravam registadas” (licenciadas pela CNPD),”nem tampouco… que tenham sido obtidas com autorização judicial”, tal prova é nula, não podendo ser considerada, afirmando depois, em contraposição e perentoriamente, que tais equipamentos não obedecem à legislação regulamentar e, que, por isso, a sua utilização viola direitos constitucionalmente garantidos.
Nos termos do Artº 125 do CPP, são admissíveis todas as provas que não sejam proibidas por lei, sendo que as proibições de prova são verdadeiras limitações, ou prescrições de limite, à descoberta da verdade material.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 2008, 4ª edição, vol. II, pág. 138, “É manifesto que com a proibição de prova se pode sacrificar a verdade, já que a prova proibida, seja qual for a causa da proibição, pode ser de extrema relevância para a reconstituição do facto histórico, pode mesmo ser a única. Um facto pode ter de ser julgado como não provado simplesmente porque o meio que o provaria não pode ser utilizado no processo, porque é um meio de prova proibido e, por isso, não admissível para formar a convicção do julgador. Simplesmente (…) não se propõe a busca da verdade absoluta e por isso não se admite que a verdade possa ser procurada, usando de quaisquer meios, mas tão-só através de meios justos, ou seja, de meios legalmente admissíveis.”.
Consequentemente, a proibição de prova originará, sempre, uma proibição de valoração de prova (outros casos previstos na lei processual penal dirigem-se apenas à proibição de valoração de prova originariamente obtida de forma legal).
Como bem refere o MP na sua resposta:
“A lei processual penal, no artigo 118º, reporta-se ao princípio da legalidade que consagra no domínio da violação ou inobservância das suas disposições, ressalvando expressamente do regime das nulidades as normas relativas a proibições de prova. O artigo 126.º do Código de Processo Penal, traduzindo o artigo 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa, disciplina nos seus nºs 1 e 2, as provas absolutamente proibidas e no nº 3, as provas relativamente proibidas. As primeiras nunca podem ser utilizadas e as segundas podem ser utilizadas nos casos previstos na lei, ou seja, desde que respeitadas as regras estabelecidas na lei para a intromissão nos direitos tutelados, isto é, desde que respeitadas as regras da sua admissibilidade.
O artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Outros direitos pessoais”, dispõe que “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.
No direito à imagem está implícito, designadamente, o direito de cada um a não ser fotografado ou filmado sem o seu consentimento. A própria lei fundamental, no seu artigo 18.º, n.º 2, admite a restrição dos “direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
A Lei nº 34/2013, alterada pela Lei n.º 46/2019, de 8/07, que alterou o regime do exercício da actividade de segurança privada e da autoprotecção, tem por objecto e âmbito o estabelecimento do regime do exercício da actividade de segurança privada e da organização de serviços de autoprotecção, bem como a adopção de medidas de segurança por entidades públicas ou privadas, com vista à protecção de pessoas e bens e à prevenção da prática de crimes (cfr. art. 1º). De acordo com a referida Lei pode ser utilizado como material e equipamento de segurança quaisquer sistemas ou dispositivos de segurança para a prevenir a entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou suscetíveis de provocar atos de violência no interior de edifícios ou locais de acesso vedado ou condicionado ao público, bem como a controlar o acesso de pessoas não autorizadas, a detetar a prática de furtos e a capturar, registar e visualizar imagens de espaço protegido-«, cfr. art. 2º, al. h).
A Lei nº 58/2019, de 8/08, assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento, e do Conselho de 27/04/2016, relativo à protecção das pessoas singulares, relativamente ao tratamento dos seus dados pessoais e à livre circulação desses dados no território nacional, enunciando o seu art. 19º os locais onde as câmaras de videovigilância não podem incidir.
Contudo, esta Lei nº 58/2019 não define a licitude ou ilicitude da recolha ou utilização das imagens, sendo que a existência ou inexistência da licença concedida pela Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) para a colocação de câmaras de videovigilância só poderá integrar um desrespeito pela legislação de protecção de dados.
Por sua vez, a Portaria 292/2020, de 18/12, regula os procedimentos de registo dos sistemas de videovigilância, previstos no art. 28º da Lei 34/2013, de 16/05.
Na verdade, a jurisprudência tem reconhecido a validade de gravações por sistemas de videovigilância, mesmo não cumprindo os formalismos legais de uso, nomeadamente, em estabelecimentos comerciais, nas partes comuns de um prédio constituído em regime de propriedade horizontal, na garagem coletiva de um prédio de apartamentos, no interior de habitação, pelos legítimos utilizadores de tais espaços, visando a defesa dos seus bens pessoais e patrimoniais, na entrada de um prédio particular, captando imagens da via pública e da entrada comum de um prédio, na receção de um estabelecimento hoteleiro.
Citamos, por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20-09-2017, Processo n.º 167/15.3PBVFX.C1, in www.dgsi.pt, nos termos do qual:
“Tem sido entendimento da jurisprudência que não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, designadamente quando sejam enquadradas em lugares públicos, visem a protecção de interesses públicos, ou hajam ocorrido publicamente. Será, por isso, considerada criminalmente atípica, a obtenção de fotografias ou de filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento, designadamente quando as mesmas estejam enquadradas em lugares públicos (no sentido de poderem ser acedidos por qualquer pessoa, ainda que do domínio privado) visem a realização de interesses públicos ou que hajam ocorrido publicamente. É que a captação de imagens de um eventual suspeito, em tal circunstância, constitui um meio necessário e apto a repelir a eventual agressão ilícita da propriedade do ofendido. Aliás, o próprio artigo 79º, nº 2 do Cód. Civil prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem exigências de polícia ou de justiça, o que, naturalmente, também deverá ser considerado extensível ao direito penal, face à sua natureza fragmentária e ao seu princípio de intervenção mínima. Consagrando o princípio de que o ordenamento jurídico deve ser encarado no seu conjunto, dispõe o artigo 31º, n.º 1 do Cód. Penal, que o facto não é criminalmente punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. Quer isto dizer que as normas de um ramo do direito que estabelecem a licitude de uma conduta têm reflexo no direito criminal, a ponto de, por exemplo, nunca poder haver responsabilidade penal por factos que sejam considerados lícitos do ponto de vista civil. A justa causa apenas poderá ser afastada pela inviolabilidade dos direitos humanos, designadamente, a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral das pessoas, como seja o direito ao respeito pela sua vida privada. Por maioria de razão se deverá estender ao direito penal o preceituado neste último segmento normativo, face à natureza fragmentária daquele ou ao seu correspondente princípio de intervenção mínima, resultante do artigo 18º, nº 2, da Constituição. Ora, a citada norma do Cód. Civil, não só afasta a ilicitude dos artigos 199º do Cód. Penal e 167º do Cód. Proc. Penal, como também não é inconstitucional, uma vez que, embora comprima o direito à reserva da vida privada, não o faz de uma forma de todo intolerável. (…) Acresce que, a obtenção de imagens nas circunstâncias em apreço também não constitui qualquer crime de devassa contra a vida privada (previsto no artigo 192º) ou de devassa por meio de informática (do artigo193º, ambos do Cód. Penal), uma vez que com estes ilícitos pretende-se tutelar apenas o núcleo duro da vida privada e mais sensível de cada pessoa, como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas, o que não é manifestamente o caso da situação que nos ocupa. As imagens do arguido não foram registadas no contexto da esfera privada e íntima deste, (…). O que é constitucionalmente protegido é, apenas, a esfera privada e íntima do indivíduo. Sucede que, a gravação não contende nem com uma nem com outra (…). O que se pode concluir dos argumentos de toda a jurisprudência exposta é que a utilização de câmaras de vigilância por particulares no sentido da protecção de pessoas e bens é lícita desde que não abranja espaços destinados à vida estritamente privada dos cidadãos (caso em que poderia estar em causa o cometimento do crime de devassa da vida privada do artigo 192º do CP e que constitui o limite da licitude da captação de imagens por particulares) sendo lícita a utilização das imagens assim obtidas como meio de prova de ilícito criminal, independentemente de terem sido captadas com o conhecimento do visado, de autorização do mesmo, ou de esses sistemas de vigilância terem sido aprovados pela CNDP, ou a utilização dos respectivos dados”.
Nesta medida e mesmo que o sistema em causa não esteja licenciado pela CNPD, ou que ainda falte o seu parecer, quando as filmagens estão enquadradas em lugares públicos (e não em local privado ou parcialmente restrito) e visem a realização de interesses públicos, designadamente prevenção criminal, dado que existe justa causa nesse procedimento, até por exigências de eficiência da justiça, o que afasta a ilicitude da sua captação, tanto mais que não são atingidos dados sensíveis da pessoa visionada, que é vista a circular em local público.
Vertendo ao caso concreto, teremos, então, de concluir que a obtenção de imagens (do arguido) através das câmaras colocadas no interior e no exterior do estabelecimento de diversão nocturna, não correspondem a qualquer método proibido de prova, pois existe justa causa para a sua obtenção e utilização como meio de prova, como é o caso de documentar a prática de uma infracção criminal, e não diz respeito ao núcleo duro da vida privada da pessoa visionada.
Concluímos, assim, que as imagens em causa constituem prova válida, podendo e devendo ser valoradas em conjunto com a demais prova produzida.
Por outro lado, desta conclusão não existe qualquer violação do normativo constitucional, como aliás tem sido reafirmado por esta instância (Cfr, entre outros, arestos nsº 634/93, 1182/96 e 187/2001)
Improcede, nesta medida, também aqui, o recurso.
B.3. Violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo
(……………………………).
3. DECISÃO
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade das questões suscitadas, em 3 UC, ao abrigo do disposto nos Arts 513 nº 1 e 514 nº 1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.
xxx Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.