I - Conforme decorre do disposto no artigo 113º, nº 14, do C. P. Penal, existe um regime de comunicabilidade de prazos entre os arguidos, do qual resulta que o ato pode ser praticado por todos ou por cada um dos arguidos “(…) até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar”.
II - Assim, o que releva para efeitos da aplicação do disposto no nº 14 do artigo 113º do C. P. Penal ao prazo para requerer a abertura da instrução é o termo do prazo e não o respetivo início.
III - Ou seja, nos casos em que os prazos para os arguidos requererem a abertura de instrução não correm em simultâneo, não pode um arguido beneficiar do prazo de outro arguido que não estava a correr por ainda se não ter iniciado.
3. Admitido o recurso, o Ministério Público veio apresentar resposta em que pugna pela sua improcedência e consequente manutenção do despacho recorrido, concluindo, para tanto, do seguinte modo:
- A jurisprudência do Supremo do Tribunal de Justiça é clara ao indicar que a abertura de instrução apenas pode ser requerida até ao fim do prazo que terminar em último lugar quando os vários prazos estejam a correr em simultâneo (Acórdão n.º 3/2011).
- O arguido foi notificado da acusação em 27 de outubro de 2022, pelo que, de acordo com a referida jurisprudência fixada, o mesmo não pode beneficiar do prazo ainda não iniciado dos arguidos não notificados da acusação, inexistindo fundamento legal para considerar o prazo iniciado a partir do despacho que ordena a remessa dos autos à distribuição, sendo certo que, segundo a mencionada jurisprudência do STJ, o prazo do arguido teve início com a sua própria notificação e há muito que se encontra ultrapassado.
- Salvo melhor opinião, não tem, assim, aplicação o disposto no artigo 113.º, n.º 14 do CPP, ex vi artigo 287.º, n.º 6, do mesmo diploma, aplicável apenas aos prazos a correr (“até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar”), tal como decidido pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do CPP, veio, quanto à matéria que constitui o objeto do presente recurso, manifestar a concordância com os termos da resposta do Ministério Público na primeira instância.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o recorrente veio apresentar resposta em que reafirma a posição invocada no recurso.
6. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre agora decidir.
*
II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do CPP que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
As conclusões devem, pois, traduzir de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, vertidas no corpo da motivação, sendo elas que definem o âmbito dos recursos, delimitando as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar[1], sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[2].
Assim, atentas as conclusões apresentadas, cumpre decidir se o requerimento de abertura da instrução (RAI) do arguido M é extemporâneo, o que depende da resposta a dar à questão de saber qual o prazo para requerer a abertura de instrução que lhe aproveita, num caso como o presente, em que existe uma pluralidade de arguidos e alguns deles não foram notificados da acusação, prosseguindo o processo para julgamento, nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 5 do CPP, e se existe fundamento para divergir da jurisprudência que a este respeito foi fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão n.º 3/2011.
*
2. O despacho recorrido e os elementos dos autos com relevância para o presente recurso.
2.1. O despacho proferido pelo tribunal a quo tem o seguinte teor (transcrição):
“Fls. 5779 a 5784:
Veio o arguido M requerer a abertura de instrução, por requerimento apresentado em 10/09/2024.
Sustenta, quanto à tempestividade do requerimento apresentado, que a acusação lhe foi notificada por carta simples com prova de depósito, depositada no recetáculo postal do seu domicílio em 22/10/2022 (referência citius 10624423), considerando-se, assim, notificado em 27/10/2022.
E que três dos arguidos ainda não se mostram notificados da acusação, pelo que o tempo para o mesmo requerer a abertura de instrução apenas terminará quando terminar o prazo para contestação por parte desses arguidos.
Podendo aproveitar o prazo desses arguidos, mas desconhecendo quando esses arguidos são notificados, deverá o prazo para requererem a abertura de instrução começar a contar tão só quando o Mº Pº proferir despacho a determinar a remessa dos autos à distribuição, por apenas aí saberem que não irão ser efetuadas mais diligências para localizar os arguidos não notificados.
Assim, in casu, apenas em 05/07/2024, quando o Mº Pº ordenou a remessa dos autos à distribuição, devendo ser a partir desse momento que se inicia o prazo do requerente para requerer a abertura de instrução.
Cumpre apreciar (atendendo a que os autos se encontram em fase de julgamento, a tempestividade do requerimento deve ser conhecida pelo juiz de julgamento, sob pena de a qualquer momento e independentemente de fundamento legal, poder qualquer arguido escolher que autos que se encontrem em fase de julgamento sejam remetidos à fase de instrução, bastando que para tal e ainda que há muito tivesse decorrido o prazo para requererem a abertura de instrução, viessem requerer a mesma, o que em processos como o presente poderia implicar uma impossibilidade de realização do julgamento; ainda que não caiba ao juiz de julgamento apreciar os fundamentos do requerimento de abertura de instrução, da exclusiva competência do JIC, já lhe cabe conhecer da tempestividade do requerimento de abertura de instrução apresentado na fase de julgamento, com vista a decidir acerca da remessa ou não dos autos à fase de instrução).
O prazo para o arguido requerer a abertura de instrução é de 20 dias (art. 287º, nº 1, al. a) do C. P. P.), sendo contínuo (art. 138º, nº 1 do C. P.C., ex vi do art. 104º, nº 1 do C. P. P.) e interrompendo-se em período de férias judiciais (art. 103º, nº 1 e 2, este a contrario do C. P. P.).
Nos termos do disposto no art. 113º, 13 do C. P. P., “Nos casos expressamente previstos, havendo vários arguidos ou assistentes, quando o prazo para a prática de actos subsequentes à notificação termine em dias diferentes, o acto pode ser praticado por todos ou por cada um deles até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar”.
A abertura de instrução é um dos casos expressamente previstos na lei (art. 287º, nº 6 do C.P.P.).
O STJ já foi chamado a pronunciar-se, com força obrigatória geral, sobre a interpretação do nº 13 do art. 113º do C. P. P. (à data nº 12 do art. 113º), tendo, por Acórdão nº 3/2011, de 10/02/2011, fixado a seguinte jurisprudência:
«I – O despacho do Ministério Público a ordenar o prosseguimento do processo nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do CPP, é um despacho de mero expediente e, por isso, não carece de ser notificado aos sujeitos processuais, nomeadamente aos arguidos já notificados da acusação, podendo estes requerer a abertura da instrução no prazo de 20 dias a contar dessa notificação, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, do CPP. II — Havendo vários prazos para esse efeito, a correr em simultâneo, ainda que não integralmente coincidentes, a abertura de instrução pode ser requerida por todos ou por cada um deles, até ao fim do prazo que terminar em último lugar, nos termos dos artigos 287.º, n.º 6, e 113.º, n.º 12, ambos do mesmo diploma.»
Como pode ler-se nesse aresto, “quando a lei consagra no n.º 1 do artigo 287.º que a abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento, e, no n.º 6, que é aplicável o disposto no n.º 12 do artigo 113.º, não deixa de considerar a existência de um prazo peremptório, sem violação de direitos dos sujeitos processuais, nomeadamente do exercício do direito de defesa. Deduzida a acusação, podem os arguidos requerer a abertura de instrução (artigo 287.º, n.º 1, alínea a), do CPP). Não a requerendo, o processo seguirá para a fase de julgamento (artigo 311.º, n.º 2, do CPP).
O n.º 12 do artigo 113.º do CPP pressupõe que todos os arguidos foram notificados da acusação, pois que se algum deles o não foi, apesar da notificação obedecer ao disposto no n.º 6 do artigo 283.º do CPP, e uma vez que não há lugar à notificação edital da acusação, prosseguirá o processo, sem prejuízo, do não notificado poder ficar sujeito ao disposto no artigo 334.º do CPP se for esse o caso, ou às regras conducentes à declaração de contumácia nos termos do artigo 335.º e segs. do CPP. O n.º 6 do referido artigo 283.º, ao ser caso expressamente previsto, de harmonia como n.º 12 do citado artigo 113.º, significa que havendo vários arguidos ou assistentes, quando o prazo para a prática de actos subsequentes à notificação termine em dias diferentes, o acto pode ser praticado por todos ou por cada um deles, até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar, pressupondo assim, que se encontre a decorrer o prazo de requerimento de abertura de instrução de cada arguido notificado da acusação (ou de cada assistente, no caso de notificação do despacho de arquivamento), de forma que os prazos em curso possam confluir no último prazo a decorrer, iniciado após a (última) notificação da acusação (ou do despacho de arquivamento no caso de vários assistentes), antes de terminar o prazo de 20 dias relativamente a qualquer deles, iniciado após a respectiva notificação da acusação (ou do despacho de arquivamento quanto aos assistentes), isto é, pressupõe uma situação de simultaneidade de prazos a decorrer.
A partir do momento em que cada arguido é notificado da acusação, mantém-se a estabilidade da instância quanto a ele, sem prejuízo de poder beneficiar, por força do n.º 12 do artigo 113.º do CPP, do termo do prazo que ocorrer em último lugar — advindo da última notificação da acusação efectuada — se o seu prazo se encontrar ainda a decorrer. Se o prazo de 20 dias tiver terminado antes, já não pode beneficiar deste prazo que ocorrer em último lugar precisamente porque o seu prazo terminou antes de o último prazo se ter iniciado. Quando o artigo 287, n.º 6, do CPP manda aplicar o disposto no artigo 113.º, n.º 12, do mesmo diploma não está a referir -se àquele que, já notificado da acusação e com o prazo a decorrer, permitiu a preclusão da faculdade de requerer a abertura da instrução. Outrossim, refere -se aos prazos que, embora com terminus em datas diferentes, se encontram ainda a decorrer”.
In casu, já vimos que o arguido foi notificado da acusação em 27/10/2022, pelo que, de acordo com a referida jurisprudência fixada pelo STJ, o mesmo não pode beneficiar do prazo ainda não iniciado dos arguidos não notificados da acusação, inexistindo fundamento legal para considerar o prazo iniciado a partir do despacho que ordena a remessa dos autos à distribuição, sendo certo que de acordo com a referida jurisprudência fixada pelo STJ, o prazo do arguido se iniciou com a sua própria notificação e há muito que se encontra ultrapassado.
Não tem, assim, aplicação o disposto no art. 113º, nº 13 do C. P. P., ex vi do art. 287º, nº 6 do mesmo diploma legal, aplicável apenas aos prazos a correr (“até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar”), tal como decidido pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência.
O regime dos recursos de fixação de jurisprudência mostra-se plasmado nos arts. 437º a 448º do C. P. P.
De acordo com o art. 445º, nº 3 do C. P. P., “a decisão que resolve o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão”.
A este respeito, pode ler-se no Ac. TRC de 14-01-2015 :
“Quando a lei, no nº 3 do art. 445º do C.P.P., determina que os tribunais que divirjam da jurisprudência fixada pelo S.T.J. devem fundamentar as divergências certamente quererá um mais em relação ao dever geral de fundamentação da decisão, que estando já previsto noutras normas não careceria de específica consagração caso o objetivo fosse o mesmo.
Quando a lei diz que as divergências com a decisão do S.T.J. que fixa jurisprudência têm que ser fundamentadas quer dizer que terão que ser usados argumentos novos, relevantes, nunca anteriormente ponderados. Donde resulta que não cumpre as exigências legais da fundamentação da divergência a invocação de argumentos já anteriormente usados e que nunca mereceram acolhimento”.
In casu, não só porque se concorda com a Jurisprudência fixada, como porque não se vislumbram argumentos/fundamento novos, que não tenham sido ponderados na decisão, é manifesto que não poderia este tribunal não aplicar o Acórdão.
Face ao exposto, por extemporâneo, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido M (art. 287º, nº 3 do C. P. P.).
Notifique”.
2.2. Por sua vez, e para o que importa agora considerar, dos autos resultam assentes as seguintes incidências:
2.2.1. Em 1 de agosto de 2022, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos A, V, P, M, J, S, imputando-lhes a prática dos crimes indicados supra em I-1 (relatório do presente acórdão), para onde remetemos (acusação junta aos autos sob as ref.as Citius 125208518 e 125479864).
2.2.2. No despacho de acusação, ao se pronunciar, a final, sobre o estatuto coativo dos arguidos, o Ministério Público, além de requerer a aplicação de outras medidas de coação, determinou que os arguidos A, S e V prestem termo de identidade e residência (TIR), quando for apurado o seu paradeiro (ref.as Citius 125208518 e 125479864).
2.2.3. No dia 24 de outubro de 2022, por via postal simples com prova de depósito, foi remetida carta para notificação ao arguido M, de que foi deduzida acusação e que dispõe do prazo de vinte dias para requerer, querendo, a abertura da instrução, nos termos do artigo 287.º do CPP, tendo o depósito na caixa do correio do destinatário ocorrido a 27 de outubro de 2022 (ref.as Citius 125988973 e 10624423).
2.2.4. Na mesma data, foi remetida carta registada ao Mandatário do arguido M para notificação do despacho de acusação (ref.ª Citius 125990392).
2.2.5. No dia 24 de outubro de 2022, por via postal simples com prova de depósito, foi remetida carta para notificação ao arguido P, de que foi deduzida acusação e que dispõe do prazo de vinte dias para requerer, querendo, a abertura da instrução, nos termos do artigo 287.º do CPP, tendo o depósito na caixa do correio do destinatário ocorrido a 26 de outubro de 2022 (ref.as Citius 125988972 e 10614166), sendo que, na mesma data, para os mesmos fins de notificação, foi remetida carta registada ao seu defensor (ref.ª Citius 125990391).
2.2.6. No dia 24 de outubro de 2022, por via postal simples com prova de depósito, foi remetida carta para notificação à arguida S, de que foi deduzida acusação e que dispõe do prazo de vinte dias para requerer, querendo, a abertura da instrução, nos termos do artigo 287.º do CPP, tendo o depósito na caixa do correio da destinatária ocorrido a 26 de outubro de 2022 (ref.as Citius 125988804 e 10614068), sendo que, na mesma data, para os mesmos fins de notificação, foi remetida carta registada ao seu defensor (ref.ª Citius 125990196).
2.2.7. No dia 24 de outubro de 2022, por via postal simples com prova de depósito, foi remetida carta para notificação ao arguido N, de que foi deduzida acusação e que dispõe do prazo de vinte dias para requerer, querendo, a abertura da instrução, nos termos do artigo 287.º do CPP, tendo o depósito na caixa do correio do destinatário ocorrido a 26 de outubro de 2022 (ref.as Citius 125988975 e 10624453), sendo que, na mesma data, foi remetida carta registada ao seu defensor, para o mesmo fim de notificação (ref.ª Citius 125990395).
2.2.8. Não se mostrando os arguidos A, W e V ainda notificados da acusação, em 5 de julho de 2024, o Ministério Público proferiu despacho a ordenar a remessa dos autos à distribuição para julgamento no Juízo Central Criminal de Faro, nos termos do disposto nos artigos 283.º, n.º 5 e 277.º, n.º 3 do CPP (ref.ª Citius 132852897).
2.2.9. Os autos foram remetidos à distribuição em 8 de julho de 2024 e, em 18 de julho de 2024, foi proferido despacho de saneamento do processo e recebimento da acusação, no qual a Mma. Juíza presidente determinou que a notificação dos arguidos A e V, nos termos do disposto nos artigos 311.º-A e 311.º-B do CPP, fosse também da faculdade de requererem a abertura de instrução em relação à acusação contra eles deduzida, porquanto os referidos arguidos não se mostram dela notificados e, relativamente ao arguido W, fez constar que, por ora, também não resulta dos autos que tenha sido notificado da acusação, já que embora fls. 5527 conste como aceite, desconhece-se se chegou ao poder deste arguido, inexistindo, por outro lado, qualquer informação quanto à carta rogatória expedida para a sua notificação (ref.as Citius 12667646 e 132993168).
2.2.10. Em 10 de setembro de 2024, o arguido M veio apresentar requerimento para a abertura da instrução, no qual, a título de questão prévia relativa à tempestividade desse requerimento, veio invocar o seguinte:
“1. Em 01-08-2022, em sede de encerramento do inquérito, foi deduzida Acusação pelo Ministério Público que imputa ao arguido a alegada prática de:
a) 83 crimes de burla qualificada, como cúmplice (p. e p. pelos artigos 218º n.º 2 al. b) e 217º n.º 1, do C.P.);
b) 1 crime de branqueamento, como co-autor (p.e p. pelo artigo 368º-A n.º 2 do C.P.);
c) 1 crime de associação criminosa (p. e p. pelo artigo 199º n.º 1 do C.P.).
2. A Acusação foi notificada ao Arguido por via postal simples com prova de depósito, depositada no receptáculo postal do seu domicílio em 27-10-2022 (cfr. referência Citius 10624423), com indicação de que dispunha do prazo de 20 dias para, querendo, abrir a instrução nos termos do artigo 287º do C.P.P.
3. Bem assim, foi a defesa do arguido notificada da Acusação em 27-10-2022 (cfr. Referência Citius 125990392) para o mesmo fim.
4. Com efeito, dispõe o artigo 287º n.º 1 do C.P.P., que a instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento.
5. Resulta igualmente do artigo 113º n.º 10 do C.P.P., que a notificação da Acusação deve ser feita ao arguido e ao seu defensor, sendo que a prática do acto processual subsequente se conta a partir da notificação feita em último lugar, a qual aproveita, caso existam, aos demais arguidos dos autos.
6. Quer isso significar que, independentemente do decurso do prazo para abertura de instrução que se iniciou com as notificações ao Arguido Requerente e seu mandatário (acima identificadas), sempre pode este aproveitar-se do prazo daquele que tenha sido notificado em último lugar para o mesmo efeito.
7. Ou seja, o prazo de que o Arguido dispõe para, querendo, abrir instrução só terminará quando terminar o prazo para o efeito concedido ao co-arguido ou defensor notificado em último lugar.
8. Sucede que, não obstante o ora Arguido ter conhecimento de que, pelo menos, três dos co-arguidos não foram ainda notificados da Acusação (o que significa que aquele ainda dispõe de prazo para, querendo, abrir instrução), foi a defesa notificada do despacho do Tribunal de julgamento que procede ao recebimento e saneamento dos autos nos termos do artigo 311º do C.P.P., assim dando início à fase de julgamento.
9. Isto quando, como vimos dizendo, o ora Arguido ainda tinha – e tem – a faculdade de deduzir a instrução, tempestivamente.
10. Consultado o processo, constata-se que, antes da prolação do referido despacho do tribunal, o Ministério Público, em 05-07-2024, ordenou a remessa dos autos para julgamento ao abrigo dos artigos 283º n.º 5 e 277º n.º 3, do C.P.P. – despacho que não foi notificado a nenhum dos intervenientes processuais destes autos.
11. Salvo melhor entendimento, tal despacho deveria ter sido notificado aos arguidos e respectivas defesas, precisamente por determinar a remessa definitiva dos autos para a fase de julgamento.
12. Não obstante, ainda assim – e sabendo que há jurisprudência que entende que tal despacho é de mero expediente e, por isso, não tem de ser notificado aos arguidos – sempre terá de considerar-se que o mesmo corresponderá, então, ao novo marco temporal a partir do qual os arguidos ainda podem fazer uso do prazo previsto para a abertura de instrução.
13. Com efeito, tal despacho do Ministério Público consiste no abdicar das tentativas de notificação dos arguidos que ainda não foram notificados da acusação, determinando o prosseguimento dos autos para julgamento, assim coarctando ao ora arguido a possibilidade legal de se aproveitar do prazo que esses arguidos teriam para desencadear essa fase processual (plasmado no artigo 113º n.º 10 do C.P.P.).
14. Como tal, não havendo registo de que esses arguidos tenham sido notificados da acusação (o que desencadearia o seu prazo para a abertura de instrução e o qual aproveitava aos demais), não podem, sem mais, os restantes arguidos notificados ficar impossibilitados de, de repente, abrir a instrução que sempre poderiam ter requerido caso tais notificações tivessem efectivamente ocorrido.
15. É, pois, só no momento em que tem conhecimento de que o Ministério Público não irá esperar pelas notificações dos arguidos ainda não notificados, que o ora arguido e os demais tomam conhecimento de que o prazo que seria àqueles concedido para abrir a instrução – e que lhes aproveitaria – não se iniciou (pela remessa dos autos para julgamento).
16. Como tal, não podem os demais arguidos ficar prejudicados e ver precludido o seu direito a abrir instrução – oportunidade e prazo que sempre teriam se aqueles tivessem sido efectivamente notificados – em virtude de o Minsitério Público ter decidido abdicar, em despacho surpresa, de tais notificações.
17. Nessa medida, só pode considerar-se que é precisamente a partir desse momento, isto é, do despacho do MP de 05-07-2024, que se iniciam os 20 dias previstos para a abertura de instrução – prazo que aproveita a todos os arguidos.
18. Face ao exposto, o presente Requerimento para abertura de Instrução, apresentado no vigésimo dia após a prolação do despacho do Ministério Público (em 05-07-2024), é tempestivo, devendo, assim, ser recebido nos termos dos artigos 287º n.º 1 e 113º n.º 10 do C.P.P.” (ref.ª Citius 12825289)”.
2.2.11. Em 25 de setembro de 2024, a Mma. Juíza presidente proferiu o despacho recorrido, transcrito supra em 2.1., no qual rejeitou o requerimento de abertura da instrução do arguido M, por extemporaneidade (ref.ª Citius 133448999).
*
3. Apreciando.
3.1. No despacho recorrido o tribunal a quo entendeu que o requerimento de abertura da instrução do arguido M, aqui recorrente, foi apresentado quando já havia decorrido o prazo para o fazer, previsto no artigo 287.º, n.º 1 do CPP, interpretado em conformidade com a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 3/2011, de 10 de fevereiro de 2011[3].
Com efeito, tendo sido notificado da acusação em 27 de outubro de 2022, de acordo com a referida jurisprudência fixada o arguido não pode beneficiar do prazo ainda não iniciado dos arguidos não notificados da acusação, inexistindo, por outro lado, fundamento legal para considerar que, em tais casos, o prazo se conta a partir do despacho que ordena a remessa dos autos à distribuição, pelo que, tendo aquele tido o seu início com a notificação da acusação a M, quando o arguido apresentou o requerimento para a abertura da instrução, há muito que o correspondente prazo se encontrava ultrapassado.
Tal como resulta da jurisprudência fixada, o disposto no artigo 113.º, n.º 14 do CPP, ex vi artigo 287.º, n.º 6, do mesmo diploma, é aplicável apenas aos prazos a correr (“até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar”).
Concluindo-se, assim, no despacho recorrido que é manifesto que o tribunal a quo não podia não aplicar o Acórdão n.º 3/2011, não só porque se concorda com a jurisprudência nele fixada, mas também porque não se vislumbra existir argumentos ou fundamentos novos que não tenham sido ponderados na decisão do Supremo Tribunal de Justiça e que devam agora ser considerados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 445.º, n.º 3 do CPP.
Discordando deste entendimento, o recorrente M vem dizer que a interpretação dos artigos 287.º, n.º 6 e 113.º, n.º 14, ambos do CPP, segundo a qual, para o arguido poder beneficiar do prazo de coarguido que termine em último lugar, o seu prazo ainda tem de se encontrar em curso, faz com que, na prática, em casos como o dos presentes autos, em que existem arguidos que não prestaram TIR, cujo paradeiro ainda é desconhecido, torna impossível qualquer coarguido poder beneficiar do prazo daqueles, sendo, por isso, inconstitucional por violação dos artigos 2.º, 20.º, n.º 1, 32.º, n.os 1 e 5 e 111.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP). Trata-se de um sentido interpretativo que viola a interdependência e separação de poderes na medida em que o órgão judicial, sem qualquer apoio no elemento literal, histórico ou mesmo finalístico, sob o manto da interpretação, cria um novo preceito, arrogando-se em legislador. E viola também os direitos de defesa do arguido, uma vez que a lei cria uma expectativa legítima que se encontra expressamente positivada, no sentido da tempestividade do exercício do apontado direito, sendo que o encurtamento de prazo para a abertura da instrução conseguido pela interpretação inconstitucional representa, além do mais, a denegação do acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
O recorrente sustenta, assim, que, segundo dispõe o CPP, havendo vários arguidos, qualquer um deles pode ir esperando pela notificação do último para, ocorrendo esta, requerer a abertura da instrução usando o prazo do derradeiro.
A existência de coarguido no processo, que além do mais prestou TIR, é suscetível de criar expectativas, legais e legítimas, de tempestividade no exercício do direito na situação em causa. O recorrente contava com a notificação do coarguido como ato de extensão do (seu) prazo, porque a lei o prevê, expressamente, ou seja, era-lhe legítimo confiar nesse prazo “alargado” e, como tal, não pode ficar prejudicado pelo facto de o Ministério Público não ter logrado efetuar a referida notificação.
O argumento “novo” que parece não ter sido cogitado no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2011 é, pois, o de que a possibilidade de abertura de instrução pelos demais arguidos, a contar do despacho do Ministério Público, nos termos do artigo 283.º, n.º 5 do CPP, fica esvaziada de conteúdo útil caso se entenda e interprete, como faz o tribunal a quo, que o aproveitamento do prazo em último lugar, por parte de arguido notificado, só pode ocorrer se o seu prazo de 20 dias ainda não tiver terminado, isto é, pressupondo uma situação de simultaneidade de prazos a decorrer.
Vejamos.
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Conforme dispõe o artigo 287.º, n.º 1 do CPP, a abertura da instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento.
Por sua vez, o n.º 6 do mesmo normativo estabelece que é aplicável o disposto no n.º 14 do artigo 113.º
Ora, segundo preceitua o artigo 113.º, n.º 14 do CPP, nos casos expressamente previstos, havendo vários arguidos ou assistentes, quando o prazo para a prática de atos subsequentes à notificação termine em dias diferentes, o ato pode ser praticado por todos ou por cada um deles até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar.
Ou seja, conforme decorre da norma do artigo 113.º, n.º 14, existe um regime de comunicabilidade de prazos entre os arguidos do qual resulta que o ato pode ser praticado por todos ou por cada um dos arguidos “(…) até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar”.[4]
Versando especificamente sobre o prazo para requerer a abertura da instrução em caso de impossibilidade de notificação da acusação a outros coarguidos, o Acórdão n.º 3/2011 fixou seguinte jurisprudência:
«I – O despacho do Ministério Público a ordenar o prosseguimento do processo nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do CPP, é um despacho de mero expediente e, por isso, não carece de ser notificado aos sujeitos processuais, nomeadamente aos arguidos já notificados da acusação, podendo estes requerer a abertura da instrução no prazo de 20 dias a contar dessa notificação, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, do CPP.
II – Havendo vários prazos para esse efeito, a correr em simultâneo, ainda que não integralmente coincidentes, a abertura de instrução pode ser requerida por todos ou por cada um deles, até ao fim do prazo que terminar em último lugar, nos termos dos artigos 287.º, n.º 6, e 113.º, n.º 12, ambos do mesmo diploma».
Conforme se assinala na fundamentação deste aresto uniformizador, “a partir do momento em que cada arguido é notificado da acusação, mantém-se a estabilidade da instância quanto a ele, sem prejuízo de poder beneficiar, por força do n.º 12 [hoje, n.º 14] do artigo 113.º do CPP, do termo do prazo que ocorrer em último lugar – advindo da última notificação da acusação efetuada – se o seu prazo se encontrar ainda a decorrer.
Se o prazo de 20 dias tiver terminado antes, já não pode beneficiar deste prazo que ocorrer em último lugar precisamente porque o seu prazo terminou antes de o último prazo se ter iniciado.
Quando o artigo 287, n.º 6, do CPP manda aplicar o disposto no artigo 113.º, n.º 12 [hoje, n.º 14], do mesmo diploma não está a referir-se àquele que, já notificado da acusação e com o prazo a decorrer, permitiu a preclusão da faculdade de requerer a abertura da instrução.
Outrossim, refere-se aos prazos que, embora com terminus em datas diferentes, se encontram ainda a decorrer.
Caso não se entendesse a interpretação da norma do artigo 113.º, n.º 12 [hoje, n.º 14], do CPP como referente à simultaneidade de prazos em curso, tornar-se-ia inútil o disposto no artigo 287.º, n.º 1, do CPP, pois que bastaria notificar-se cada arguido da data em que o último arguido dela foi notificado para que se iniciasse então o prazo para ser requerida a abertura da instrução quanto a todos eles, ou por cada um deles, ou, por outro lado, face à existência da norma do artigo 287.º, n.º 1, do CPP, viriam a ser beneficiados todos os arguidos, menos o último notificado, de um prazo duplo”.
Ainda na senda do entendimento acolhido pela mesma jurisprudência uniformizadora, o prazo de 20 dias para requerer a abertura da instrução, previsto no artigo 287.º, n.º 1 do CPP, é um prazo perentório que, como tal, estabelece o momento até quando o ato pode ser praticado, assumindo-se o prazo como “o período de tempo dentro do qual pode ser levado a efeito (terminus intra quem)”, tendo presente que a fixação (legal ou judicial) deste tipo de prazos funciona como instrumento de que a lei se serve em ordem a levar as partes a exercer os poderes-ónus de que são titulares, segundo um determinado ritmo. Tratando-se de um prazo perentório, para efeitos de aplicação da norma do n.º 14 do artigo 113.º do CPP releva, pois, o seu termo e não o seu início.
Assim, quando o artigo 287.º, n.º 1 do CPP estabelece um prazo certo e determinado para ser requerida a abertura da instrução, a lei acolhe os princípios da perentoriedade e improrrogabilidade do prazo em processo penal (assentes em razões de interesse público, ínsitas à natureza deste ramo do direito adjetivo), bem como o da celeridade processual, na dimensão do processo justo, ou seja, objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, conforme previsto nos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 2 da CRP.
No mesmo sentido, quando o n.º 1 do mesmo artigo estipula que a abertura da instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento, e o n.º 6 estabelece que é aplicável o disposto no n.º 14 do artigo 113.º, a lei não deixa de considerar a existência de um prazo perentório, sem violação de direitos dos sujeitos processuais, nomeadamente os de defesa.
Aliás, neste particular, há que ter em conta o Acórdão n.º 2/96, de 6 de dezembro de 1995[5], pelo qual o Supremo Tribunal de Justiça, perante a questão de saber se ao prazo que o artigo 287.º, n.º 1 estabelece para o arguido requerer a abertura da instrução acresce ou não a dilação prevista no Código de Processo Civil, fixou jurisprudência no sentido de que, não reconhecendo lacuna no regime dos prazos do CPP, “a disciplina autónoma do processo penal em matéria de prazos prescinde da figura da dilação, pelo que a abertura da instrução tem de ser requerida no prazo perentório previsto no n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal”.
Em suma, a partir da notificação da acusação, cada arguido tem o prazo de 20 dias para requerer a abertura da instrução, sem prejuízo de poder beneficiar, quanto ao terminus do referido período para a prática do ato, do disposto no artigo 113.º, n.º 14 do CPP. O que naturalmente não equivale a que, notificado o arguido da acusação e depois de decorrido o prazo de 20 dias para este requerer a abertura da instrução, sem que o tenha feito, se inicie um novo prazo (de 20 dias) para tal fim, sempre que um coarguido seja notificado da acusação ou, então, caso resulte infrutífera a notificação da acusação ao(s) coarguido(s), um novo prazo deva ter o seu começo com o despacho do Ministério Público a ordenar o prosseguimento dos autos, nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 5 do CPP.
Aqui chegados.
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Ao contrário do que se invoca no recurso, a interpretação segundo a qual a norma contida no artigo 113.º, n.º 14 do CPP pressupõe que se mostrem a correr, concomitantemente, os diversos prazos para requerer a abertura da instrução, é a consentânea com a letra e o espírito subjacente à criação da norma, de acordo com as regras interpretativas plasmadas no artigo 9.º do Código Civil.
Quanto à letra da lei, o legislador é claro ao expressar que o ato pode ser praticado “até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar”, o que só pode querer significar que os prazos já se iniciaram e estão simultaneamente a correr, embora com terminus em datas diferentes.
No que toca ao espírito, ou seja, o pensamento do legislador, alinhado com a unidade do sistema jurídico, que tem na Constituição o garante da harmonia e coerência axiológico-normativa, é de referir que, conforme se pode ler na fundamentação do Acórdão n.º 3/2011, o artigo 113.º, n.º 14 do CPP assume-se neste contexto como uma norma que visa permitir aos arguidos uma defesa conjunta sem, todavia, impor essa solução, atendendo a que o juiz só declarará aberta a instrução quando se mostrar esgotado o respetivo prazo, suscetível de ser temporalmente diferenciado em resultado de notificações da acusação efetuadas em momentos distintos, bem podendo os arguidos querer exercer a defesa conjunta ou, não querendo, só após o decurso do prazo que ocorrer em último lugar, estará o juiz em condições de delimitar o objeto da instrução, perante as posições processuais apresentadas por cada requerente e, assim, formar um juízo sobre o conjunto de atos de instrução que “entenda dever levar a cabo”, nos termos estatuídos no artigo 289.º, n.º 1 do CPP.
Nenhum direito fica, pois, tolhido, nem esta solução implica atraso para qualquer diligência que não poderá ser iniciada sem que o prazo de 20 dias concedido a todos os arguidos notificados se mostre efetivado, de modo a que possam «todos, ou cada um deles», como diz a lei, praticar o ato até ao último dia do último prazo ainda em curso, ou seja, «até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar».
Ora, tal só pode significar que, sendo uma norma que regula o terminus de um prazo perentório, ela opera em prazos já iniciados (no caso, em resultado de a acusação ter sido notificada aos respetivos arguidos) e, tendo por referência o seu curso, atua para harmonizar múltiplos termos que, em circunstâncias normais, ocorreriam em datas diferentes.
A interpretação acolhida no Acórdão n.º 3/2011, aprovado por unanimidade, tem, pois, a seu favor o facto de se tratar da solução que decorre dos critérios constantes do artigo 9.º do Código Civil, fruto de uma interpretação que, embora não se cinja à letra da lei, é nela que se apoia e funda o ponto de partida em direção ao sentido que nos dá o pensamento do legislador, presumindo-se que este o soube exprimir corretamente, dentro dos limites e tendo em vista a unidade e coerência do sistema jurídico.
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3.2. Conforme já foi dito, no despacho recorrido o tribunal a quo, seguindo a jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2011, entendeu que o requerimento de abertura da instrução foi apresentado pelo recorrente quando já havia decorrido o prazo de que dispunha para o fazer, nos termos previstos no artigo 287.º, n.º 1 do CPP, com referência ao artigo 113.º, n.º 14 do mesmo diploma.
Como é sabido, o recurso de fixação de jurisprudência, que surge regulado no primeiro capítulo do Título II, Livro IX, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Dos recursos extraordinários” (artigos 437.º a 448.º), serve a finalidade específica de evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores, assegurando deste modo a uniformização da jurisprudência.[6]
A decisão é tomada em conferência, pelo pleno das secções criminais (artigo 443.º do CPP), e o acórdão que fixa jurisprudência é publicado na 1.ª Série do Diário da República (artigo 444.º, n.º 1 do CPP).
Segundo dispõe o artigo 445.º, n.º 1 do CPP, a decisão que resolver o conflito tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto e nos processos cuja tramitação tiver sido suspensa nos termos do artigo 441.º, n.º 2, sem prejuízo da reformatio in pejus (artigo 403.º, n.º 3, com referência ao artigo 409.º, ambos do CPP).
Dispondo ainda o artigo 445.º, desta feita no n.º 3, que a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.
Contudo, não basta uma qualquer fundamentação divergente sobre a jurisprudência fixada pelo acórdão uniformizador, para se afastar a sua observância, nos termos do sobredito n.º 3, pois os artigos 446.º e 447.º do CPP deixam logo antever outro sentido, ao estabelecer que:
“1- É admissível recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo.
2- O recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.
3- O Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada” (artigo 446.º).
“1- O Procurador-Geral da República pode determinar que seja interposto recurso para fixação da jurisprudência de decisão transitada em julgado há mais de 30 dias.
2- Sempre que tiver razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada, o Procurador-Geral da República pode interpor recurso do acórdão que firmou essa jurisprudência no sentido do seu reexame. Nas alegações o Procurador-Geral da República indica logo as razões e o sentido em que jurisprudência anteriormente fixada deve ser modificada” (artigo 447.º, n.os 1 e 2)”.
Assim, se é certo que a jurisprudência fixada pelo acórdão que resolveu o conflito não é obrigatória para os tribunais judiciais, certo é também que estes só se podem afastar da sua aplicação se fundamentarem as divergências relativamente ao decidido e fixado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Quer isto dizer que, quando o artigo 445.º, n.º 3 do CPP estabelece que devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada, os tribunais judiciais não podem “limitar-se ao desacato da jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer relevante argumento novo não ponderado ainda ou sem percepção de alteração notória nas concepções ou da composição do Supremo, v.g., através de arestos publicados, baseando essa divergência tão-somente na convicção de que aquela não é a melhor solução legal”.[7]
Donde “os tribunais só devem divergir da jurisprudência uniformizada quando haja razões para crer que ela está ultrapassada (que carece de reexame), isto é, tendo em conta os seguintes critérios: a) o tribunal tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador, suscetível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada; b) se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na atualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou, finalmente, c) a alteração da composição do STJ torne claro que a maioria dos juízes das secções criminais deixou de partilhar fundadamente da posição fixada”.[8]
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Ora, salvo o devido respeito, no caso em apreço o recorrente não apresentou qualquer argumento novo relevante, não equacionado ainda, nem indicou qualquer perceção de alteração notória no sentido de se mostrar ultrapassada a ponderação feita no Acórdão n.º 3/2011, pelo que se torna evidente a ausência de razões para divergir da jurisprudência nele consagrada.
Aliás, como se pode ler na sua fundamentação, o aresto que fixou jurisprudência versa precisamente sobre o cômputo do prazo que, à luz do artigo 113.º, n.º 14 do CPP, o arguido já notificado da acusação tem para requerer a abertura da instrução, quando está em causa um processo com pluralidade de arguidos no qual não se logrou notificar a acusação a um ou mais de um deles.
Os argumentos invocados pelo recorrente apoiam-se, no essencial, em jurisprudência anterior à prolação do Acórdão n.º 3/2011 e que corresponde, precisamente, a uma das posições divergentes no âmbito do conflito que determinou a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça. Os fundamentos dessa jurisprudência (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 6 de fevereiro de 2007[9]) e a posição nela propugnada foram, assim, objeto de ponderação no Acórdão n.º 3/2011, que não os acolheu e fixou jurisprudência em sentido diverso.
No fundo, subjacente à interpretação a uniformizar estava, pois, a questão factual relativa ao despacho proferido pelo Ministério Público a ordenar o prosseguimento dos autos, nos termos do artigo 283.º, n.º 5 do CPP, em processo com vários arguidos, por ineficácia de procedimentos de notificação da acusação a algum ou alguns deles, tendo o acórdão fundadamente rejeitado o entendimento de que, sem esse despacho, não poderá iniciar-se o prazo para o arguido já notificado da acusação requerer a abertura da instrução, prazo esse cujo cômputo está sujeito ao regime do artigo 113.º, n.º 14 do CPP.
De resto, como se assinala no aresto uniformizador, o referido despacho do Ministério Público não é um despacho inovador, pois sujeita-se aos ditames do processo, nem afeta garantias de defesa ou se destina a acautelar quaisquer expectativas processuais, nomeadamente relacionadas com o exercício do direito de defesa. Trata-se, pois, de um despacho que não cria nem afeta direitos materiais ou processuais, consistindo num despacho de expediente que se limita a ordenar os termos legais estatuídos no artigo 283.º, n.º 5 do CPP, “prosseguindo o processo quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes”.
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De referir que esta Relação tem sido chamada a pronunciar-se sobre a questão de saber se ao arguido aproveita o prazo de que outro arguido dispõe para requerer a abertura da instrução, que não estava a correr, por ainda se não ter iniciado, e, ao que se conhece, até à data a resposta é a do acolhimento do sentido interpretativo decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, por se mostrar evidente a falta de fundamentação relevante para divergir da jurisprudência uniformizada do Acórdão n.º 3/2011.
É o que sucede com os Acórdãos de 16 de abril de 2013 (proferido no processo n.º 890/04.8TAFAR-A.E1, sendo relator João Amaro), de 26 de setembro de 2017 (proferido no processo n.º 48/15.0GBTVR.E1, sendo relator António Condesso), e, mais recentemente, com o Acórdão de 22 de outubro de 2024 (proferido no processo n.º 305/19.7T9LLE-A.E1, sendo relatora Anabela Simões Cardoso).
Entendimento que também subscrevemos e que, por tudo quanto acima ficou exposto, nos leva a concluir, reiterando o já afirmado, que o recorrente não apresentou qualquer argumento novo relevante, que ainda não tenha sido equacionado, nem indicou qualquer perceção de alteração notória no sentido de se mostrar ultrapassada a ponderação feita no Acórdão do STJ n.º 3/2011, pelo que se torna evidente a falta de fundamentação relevante para se divergir da jurisprudência uniformizada ali acolhida, a qual deve, por conseguinte, ser aplicada ao presente caso.
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3.3. Por fim, o sentido interpretativo uniformizado, nos termos acima expostos, com base no qual foi proferida a decisão recorrida de considerar que, no caso em análise, o prazo de que o arguido M dispunha para requerer a abertura da instrução já havia decorrido quando este apresentou o respetivo requerimento, não tem como consequência a violação de princípios ou normas constitucionais invocadas no recurso.
Não se descortinam razões para concluir que a interpretação segundo a qual, para o arguido poder beneficiar do prazo de coarguido que termine em último lugar para requerer a abertura da instrução, o seu prazo ainda tem de estar em curso, é inconstitucional por violação dos artigos 2.º[10], 20.º, n.º 1[11], 32.º, n.os 1 e 5[12] e 111.º, n.º 1[13] da CRP.
Com efeito, contrariamente ao que sustenta o recorrente, a interpretação resultante da jurisprudência fixada não viola a interdependência e separação de poderes, consagrada no artigo 111.º, n.º 1 da CRP, uma vez que, como já se explanou, na interpretação que conjugadamente fez do disposto nos artigos 283.º, n.º 5, 287.º, n.º 6 e 113.º, n.º 14 do CPP, o Supremo Tribunal de Justiça situou-se dentro dos limites ditados pelos critérios plasmados no artigo 9.º do Código Civil, não tendo “criado um novo preceito, arrogando-se em legislador”.
De resto, como também já foi dito, sendo o prazo de requerimento de abertura da instrução um prazo perentório, o que releva para efeitos do n.º 14 do artigo 113.º do CPP é o seu termo, terminus intra quem, e não o seu início, relativamente aos coarguidos notificados da acusação, não se podendo, pois, exigir à lei mais do que ela consente. Caso não se entendesse a interpretação da norma do artigo 113.º, n.º 14 do CPP como referente à simultaneidade de prazos em curso, o disposto no artigo 287.º, n.º 1 do CPP tornar-se-ia inútil, uma vez que bastaria notificar cada arguido da data em que o último arguido foi notificado da acusação para que se iniciasse então o prazo para ser requerida a abertura da instrução quanto a todos eles, ou por cada um deles.
Por outro lado, o sentido interpretativo fixado não contende com os direitos de defesa do arguido, não se divisando que, no caso em análise, ao requerer, em 10 de setembro de 2024, a abertura da instrução, M tenha agido ao abrigo de uma expectativa legítima, expressamente plasmada na lei de estar a exercer tempestivamente um direito para o qual havia sido regularmente notificado por via postal simples com prova de depósito remetida a 24 de outubro de 2022, no âmbito da notificação que lhe foi feita da acusação, não tendo, assim, sofrido qualquer “encurtamento” do prazo para a abertura da instrução que redundasse em denegação do acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Acresce que, como se assinalou na fundamentação do Acórdão n.º 3/2011, ao nível dos direitos de defesa, consagrados no artigo 32.º, n.º 1 da CRP, bem como do inerente direito de acesso aos tribunais e tutela jurisdicional efetiva, assegurado pelo artigo 20.º da CRP, como o arguido, se quiser requerer a abertura de instrução para infirmar a acusação, tem que o fazer no prazo de 20 dias a contar da data em que esta lhe for notificada, nos termos do artigo 287.º, n.º 1 CPP, a notificação da acusação acaba, por ser, ela própria, uma importante garantia de defesa (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 583/99, de 20 de outubro), sendo certo que «somente a privação ao arguido da faculdade de requerer a abertura da instrução não pode ser considerada compatível com as garantias de defesa asseguradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 54/2000, de 3 de fevereiro).
Assegurando, assim, a notificação da acusação ao arguido o exercício do direito de este requerer a abertura da instrução, através prazos perentórios e curtos para dar início a uma fase que «não pode prolongar-se indefinidamente», mas que também não pode «retirar a possibilidade de fazer a comprovação de que a acusação não tem fundamento», é de concluir que a interpretação acolhida no aresto uniformizador não configura uma afronta aos direitos e princípios consagrados nos artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.os 1 e 5 da CRP.
Como também não põe em crise os valores do Estado de direito democrático que o artigo 2.º da CRP expressamente tutela.
Improcedendo, deste modo, a inconstitucionalidade invocada no recurso.
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III – Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmam o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 513.º, n.os 1 e 3 do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa).
Évora, 03 de junho de 2025
Helena Bolieiro
Maria José Cortes
Renata Whytton da Terra
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[1] Na doutrina, cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113. Na jurisprudência, cf., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág.242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193.
[2] Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28 de dezembro de 1995.
[3] Acórdão publicado no Diário da República n.º 29/2011, Série I, de 10 de fevereiro de 2011.
[4] Cf. Acórdão da Relação de Évora, de 16 de abril de 2013, proferido no processo n.º 890/04.8TAFAR-A.E1 (relator João Amaro), disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>, como, aliás, todos os acórdãos mencionados no texto sem indicação expressa de proveniência.
[5] Acórdão publicado no Diário da República n.º 8/1996, Série I-A, de 10 de janeiro de 1996.
[6] Cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, págs. 361 a 366.
[7] Cf. António Henriques Gaspar et al., Código de Processo Penal Comentado (anotação ao artigo 445.º, por António Pereira Madeira), 2.ª ed., Almedina, 2016, pág. 1486.
[8] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque (org.), Comentárito do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (anotação ao artigo 445.º por José Damião da Cunha e Paulo Pinto de Albuquerque), vol. II, 5.ª ed., Universidade Católica Editora, 2023, pág. 747.
[9] Acórdão proferido no processo n.º 2969/06-I (relator António João Latas).
[10] Artigo 2.º (Estado de direito democrático): “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
[11] Artigo 20.º (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva), n.º 1: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
[12] Artigo 32.º (Garantias de processo criminal) n.os 1 e 5: “1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. (…) 5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.
[13] Artigo 111.º (Separação e interdependência), n.º 1: “Os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição”.