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OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
ESPECIAL CENSURABILIDADE OU PERVERSIDADE
MILITAR DA GNR
CRIME PÚBLICO
Sumário
I - A atuação do arguido, neste caso concreto, perpetrada dentro do posto da GNR, ao desferir uma “chapada” nas costas de um militar da GNR, quando este, devidamente uniformizado, se encontrava a preencher os “talões” do alcoolímetro, de costas para si, não implica, perante as demais circunstâncias provadas, a existência de especial censurabilidade ou perversidade, de molde a justificar a qualificação do crime de ofensa à integridade física praticado. II - A ação em causa não está conexionada com qualquer profundo desrespeito do arguido pela autoridade policial, ou com um especial desprezo para com a função da vítima, porquanto a própria vítima, em julgamento, não asseverou a violência da agressão, sendo certo ainda que o militar em questão não sofreu quaisquer dores ou ferimentos (“caiu” sobre a mesa - e não ao chão - por ter sido apanhado “desprevenido” e não pela força exercida pelo arguido com a “chapada” desferida nas suas costas). III - Atendendo a que a agressão física incidiu sobre um militar na GNR, no exercício das suas funções, o crime cometido (ofensa à integridade física simples) reveste natureza pública (artigo 143º, nº 2, do Código Penal), não admitindo desistência da queixa.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo Comum Singular n.º 596/22.6GBGDL, por aplicação do n.º 3 do artigo 16.º do CPP, com intervenção do tribunal singular, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal Juízo Local Criminal de Grândola, submetido a julgamento por acusação do MP, foi o arguido R:
- Condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, a título doloso, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (n.º 1 do artigo 292.º e do n.º 1 do artigo 69.º, do CP), na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de 7,00 (sete euros), perfazendo o montante total de 700 € (setecentos euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses;
- Absolvido da prática como autor material de um crime de ofensa à integridade física qualificada (cf. n.º 1 do artigo 143.º, alínea a) do n.º 1 do artigo 145.º e alínea l do n.º 2 do artigo 132.º ex vi n.º 2 do artigo 145.º do CP).
O Tribunal a quo decidiu, ainda, homologar a desistência de queixa apresentada e, em consequência declarou extinto o procedimento criminal contra o arguido por crime de ofensa à integridade física simples, por ilegitimidade superveniente do Ministério Público para a promoção da ação penal, nos termos do disposto nos artigos 51.º, n.ºs 1 e 2 do CPP.
2. Do recurso 2.1. Das conclusões do Ministério Público
Inconformado com a decisão o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição): “1. O Tribunal a quo deu como provado que o arguido colocou-se por trás do militar P e desferiu-lhe uma chapada com a mão esquerda aberta nas costas, no momento em que este se encontrava a preencher os talões emitidos pelo alcoolímetro e que atuou com propósito de ofender o corpo deste e bem sabendo que o mesmo era um agente das forças de segurança no exercício de funções, resultado que representou e concretizou. 2. Não obstante, entendeu o Tribunal a quo que a factualidade dada como provada se subsume à prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, pelo que homologou a desistência de queixa apresentada pelo militar P, nos termos da disposições conjugadas dos artigos 113.º, n.º 1, 116.º, n.º 2 e 143.º, n.º 2, do Código Penal, e dos artigos 49.º, n.º 1, e 51.º, n.º 2, 2ª parte, do Código de Processo Penal. 3. Salvo devido respeito, que é muito, não podemos concordar com entendimento explanado na sentença recorrida, na medida em que a ofensa foi praticada no interior do posto da GNR, que o arguido surgiu por trás do guarda P, impedindo toda e qualquer hipótese de defesa, e que lhe desferiu uma chapada com a mão esquerda nas costas. 4. Tudo conjugado, parece-nos que a conduta do arguido revela uma atitude profundamente rejeitável, que à luz dos valores socialmente aceites, é particularmente desvaliosa, e que, como tal, preenche os elementos objetivos e subjetivos do crime de ofensa à integridade física qualificada. 5. Consideramos assim que o Tribunal a quo violou o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1 al. a), e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal. 6. Mas ainda que assim não fosse, e que o Tribunal a quo entendesse, como parece entender, que os factos se subsumem à prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, nunca poderia ter homologado a desistência de queixa. 7. E assim é porque, nos termos do disposto no artigo 143.º, n.º 2, do Código Penal, o crime de ofensa à integridade física simples, quando cometido contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas, reveste natureza pública, sendo legalmente inadmissível a desistência de queixa. 8. Pelo que, ao homologar a desistência de queixa apresentada, ao invés de condenar o arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, o Tribunal a quo violou o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1 e 2, 113.º e 116.º, n.º 2, do Código Penal, e 48.º, 49.º, 51.º, n.º 1 e 2, 2ª parte, do Código de Processo Penal. Nestes termos e pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência: a) Deve o arguido R ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1 al. a), e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal; b) Caso assim não se entenda, deve o arguido R ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal”.
2.2. Das contra-alegações do arguido
Respondeu o arguido defendendo o acerto da decisão recorrida, quanto às questões suscitadas pelo MP concluindo nos seguintes termos (transcrição): “1ª-A douta sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada. 2ª-Na mesma é feita uma exposição suficiente dos motivos de facto e de direito que levaram o Tribunal a quo a proferir a douta sentença ora em crise, tendo sido feita uma correta subsunção dos factos ao direito. 3ª-Bem andou o Tribunal a quo a considerar que a conduta do arguido é subsumível no tipo legal do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº1 do Código Penal, e não no artigo 145º deste diploma legal. 4ª-Daquela conduta não resultaram dores, nem lesões, ou qualquer afetação para o militar P. 5ª-O Tribunal a quo, analisou detalhada e criticamente o contexto em que a atuação do arguido se desenrolou, e, bem assim, todo o circunstancialismo envolvente, vindo a concluir que a conduta do mesmo não é reveladora de especial censurabilidade ou perversidade, porquanto o mesmo não agiu de forma profundamente rejeitável, nem da sua atuação revelou uma personalidade vil, que se determine uma culpa agravada 6ª-Operada a alteração da qualificação jurídica dos factos aquando da prolação de sentença, o crime pelo qual o arguido se encontrava inicialmente acusado deixou de configurar o tipo de ofensa à integridade física qualificada passando a estar-se perante um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º do Código Penal. 7ª-Este tipo de ilícito criminal reveste natureza semi-pública, razão pela qual o Tribunal a quo não pode deixar de fazer a reapreciação da desistência apresentada pelo militar P, a qual foi objeto de homologação, ademais porque o arguido à mesma não se opôs (artigo 116º, nº2 do Código Penal), sendo a sobredita desistência válida e juridicamente relevante. 8ª-A douta sentença ora em crime não merece qualquer censura, não padecendo dos vícios/erros apontados. Termos em que, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se inalterada a decisão recorrida. (…)”.
2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer, no sentido de ser julgada a procedência do recurso interposto pelo MP, com o seguinte teor: “(…) a razão está, por inteiro, com o nosso Ex.mo Colega junto da 1ª instância. * Com efeito, o disposto no nº 2 do artº 143 do C.P. alterado por força da Lei 100/2001 de 25.08, estabeleceu um carácter público do crime em apreço quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções e por causa delas[1]. Nessa específica circunstância, não podia a Mme Juiz “a quo” “converter” a ofensa corporal sofrida em simples, admitir a desistência de queixa formulada e absolver o arguido da prática do crime. * Cumpre realçar que como resulta à saciedade dos autos, os factos em apreço tiveram lugar no interior do posto da GNR de Alcácer do Sal quando o militar daquela corporação militarizada, devidamente uniformizado, se encontrava a preencher os talões do alcoolímetro e o arguido que se encontrava atrás do militar (falha de segurança inadmissível e extremamente perigosa bem reveladora da falta de preparação do militar envolvido que podia, no extremo, ser desarmado) lhe desferiu a chapada. Aliás o ponto 6 dos factos dados como provados é crstalino: “ 6…Após a realização do teste de alcoolemia nas instalações do Posto, quando o guarda P estava a preencher os talões emitidos pelo alcoolímetro, o arguido colocou-se por trás deste e desferiu uma chapada com a mão esquerda aberta nas costas do Guarda P …”. Resulta, de forma manifesta que o militar se encontrava no (pleno) exercício das suas funções. O tipo de crime em apreço atenta a formulação legal tem natureza pública sendo irrelevante a manifestação de vontade do militar. * Nesta conformidade, não dispõe de base legal o entendimento da Mme Juiz “a quo” ao homologar a desistência de queixa apresentada e absolver o arguido da prática do crime. * Assim sendo e atento tudo o que se deixou exposto deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, conceder provimento ao recurso apresentado pelo MºPº e revogar a sentença proferida, na parte em que homologou a desistência de queixa e, em consequência, o arguido R ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1 al. a), e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal. (…)”.
2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso as questões de direito a conhecer são as seguintes: 2.1. Saber se deve a sentença ser revogada na parte em que absolveu o arguido da prática um crime de ofensa à integridade física qualificada (artigo 143.º, n.º 1. alínea a), artigo 145.º, n.º 1 e alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º ex vi n.º 2 do artigo 145.º do CP) e se deve ser condenado pela prática do referido crime; 2.2. Ou em alternativa a não se entender preenchida a qualificativa da especial censurabilidade e perversidade do agente se os factos devem ser subsumidos à prática de um crime de ofensa à integridade física simples (artigo 143.º, n.º 1 do CP), não sendo admissível a desistência de queixa apresentada pelo ofendido, o militar P, e em consequência deve a homologação dessa desistência ser revogada por erro de julgamento quanto ao direito aplicado.
3. Apreciação 3.1. Da decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida. 3.1.1. Factos provados na 1.ª Instância
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição): “1. No dia 5 de novembro de 2022, pelas 01:05, na Rua das Pitas, em Grândola, o arguido R, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca BMW, com a matrícula (…..), nesta via em sentido contrário ao legalmente estabelecido por sinalização vertical. 2. Nas circunstâncias de modo e lugar atrás descritas, o Guarda P e a Guarda M, devidamente identificados e com o fardamento em vigor da Guarda nacional Republicana, foram no encalce da viatura conduzida pelo arguido e na Avenida António Inácio da Cruz, em Grândola, deram ordem de paragem à viatura conduzida pelo arguido. 3. No decorrer da fiscalização, o arguido efetuou o teste de pesquisa de álcool no sangue através de ar expirado em aparelho qualitativo, tendo acusado uma TAS de 2,33 g/l. 4. Face a este resultado, o Guarda P e a Guarda M informaram o arguido de que teria que se deslocar com estes ao Posto Territorial da GNR de Alcácer do Sal para realizar o teste de alcoolemia quantitativo de ar expirado. 5. Realizado o teste supra aludido nas instalações do Posto Territorial de Alcácer do Sal, apurou-se que nas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas em 1. e 2., o arguido conduziu um veículo com um teor de álcool no sangue de, pelo menos 2,024 g/l, correspondente à TAS registada de 2,13 g/l, deduzida a margem de erro legalmente prevista. 6. Após a realização do teste de alcoolemia nas instalações do Posto, quando o guarda P estava a preencher os talões emitidos pelo alcoolímetro, o arguido colocou-se por trás deste e desferiu uma chapada com a mão esquerda aberta nas costas do Guarda P. 7. Com a conduta descrita em 6., o arguido atuou com o propósito de ofender o corpo do Guarda P, bem sabendo que estava perante um agente das forças e serviços de segurança no exercício de funções, resultado que representou e concretizou. 8. O arguido sabia que o Guarda P e a Guarda M eram militares da GNR, tanto mais que os mesmos trajavam a farda daquela polícia, e que nas circunstâncias de tempo referidas se encontravam no exercício de funções. 9. Com a conduta descrita em 1. a 5. o arguido conhecendo as características do veículo e da via pública por onde circulava, sabia que, antes de iniciar a condução do veículo automóvel, havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que lhe determinaram um teor de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l não se abstendo, ainda assim, de conduzir tal veículo. 10. Com a conduta supra descrita em 6. O arguido atuou com propósito concretizado de molestar o corpo do Guarda P, a quem ofendeu o corpo, bem sabendo que estava perante agente das forças e serviços de segurança no exercício de funções, resultado que representou e concretizou. 11. Em tudo o acima descrito o arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas são punidas por lei. Mais se provou que: 12. O arguido é divorciado, tem três filhos a seu cargo e que vivem consigo, sendo que dois deles estudam em Lisboa. 13. Aufere cerca de 2.800,00€ (dois mil e oitocentos euros). 14. O arguido tem casa própria, da qual paga mensalmente 500,00 €, a título de empréstimo bancário. 15. Tem ainda um empréstimo 500,00 € (quinhentos euros) respeitante a uma viatura. 16. O arguido paga as despesas relativas à alimentação e alojamento e propinas dos filhos que estudam em Lisboa o que perfaz uma total de 1.200,00 € mensais. 17. É licenciado em engenharia. 18. Confessou integralmente e sem reservas os factos de que se encontrava acusado e mostrou-se arrependido. 19. O arguido é uma pessoa considerada na comunidade em que se insere e caracterizado como uma pessoa educada, cordata, respeitadora e sociável. 20. O arguido tem um trajeto profissional estável e estruturado no decorrer do seu percurso vivencial e é referenciado como um profissional diligente e dedicado, encontrando-se atualmente a frequentar uma pós-graduação em Lisboa. 21. O arguido não tem antecedentes criminais.”.
3.1.2. Factos não provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou não se terem provado quaisquer outros factos com interesse para a presente causa nomeadamente que (transcrição): “A. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o Guarda P sentiu dores e caiu ao solo.”.
3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido
O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma (transcrição parcial): “O Tribunal fundou a sua convicção sobre a factualidade dada como provada e não provada conjugando e entrecruzando os vários meios de prova, designadamente as declarações prestadas em sede de audiência pelo arguido os depoimentos das testemunhas e a prova documental junta. (…) Sobre os factos não provados, cumpre dizer que foi produzida prova testemunhal bastante, tendo-se atendido ao depoimento prestado pelo agente P o qual revelou que sentiu o embate da chapada desferida pelo arguido sobre as suas costas, mas que não sentiu dores, tendo por força do mesmo caído sobre a mesa, não pela força exercida pelo arguido, mas porque foi apanhado desprevenido. (…) Quanto à personalidade do arguido relevaram os depoimentos das testemunhas ouvidas, A e J, os quais, não obstante os laços de amizade demonstrados, depuseram de forma espontânea, coerente e séria, todos descrevendo o arguido como pessoa considerada na comunidade em que se insere, bem-educada, culta, amiga e um profissional dedicado. Ambas as testemunhas asseveraram que o arguido não é uma pessoa agressiva ou descontrolada e que se sente preocupado com os factos de cuja prática vem acusado. (…)”.
3.1.4.Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma (transcrição parcial): “(…) O arguido vem a acusado da prática em autoria material e na forma consumada, e em concurso efetivo de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, (…) e de um crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 143.º, alínea a) do n.º 1 do artigo 145.º e alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º ex vi n.º 2 do artigo 145.º, todos do Código Penal. Do crime de condução de veículo em estado de embriaguez: Dispõe o n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal que [q]uem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. (…) Do crime de ofensa à integridade física qualificada: Quanto ao tipo legal ora em causa, este se encontra previsto, na sua forma matricial no n.º 1 do artigo 143.º do Código Penal, de acordo com o qual [q]uem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Este tipo legal protege o bem jurídico, integridade física da pessoa humana e tem como elementos constitutivos, a ofensa do corpo – enquanto afetação significante do bem-estar físico – ou da saúde – enquanto afetação do normal funcionamento das funções corporais – de outrem, independentemente da dor ou sofrimentos causados. Relativamente ao seu elemento subjetivo, da construção do tipo legal e da sua conjugação com o estabelecido no artigo 13.º do Código Penal, conclui-se ser este um crime cuja realização passa pela existência de dolo por parte do agente em qualquer das suas modalidades - direto, necessário ou eventual - definidas no artigo 14.º do Código Penal. De mencionar ainda que o crime em apreço é, do ponto de vista da atuação do agente, um crime material e de dano, ou seja, um crime para cuja consumação importa a efetiva lesão do bem jurídico protegido, fazendo-se a imputação desse resultado – em termos de causalidade – à conduta do agente. Importa também ter em conta que o artigo 145.º do Código Penal tipifica o crime de ofensa à integridade física qualificada, prescrevendo a alínea a) do n.º 1 do mesmo preceito que [s]e as ofensas forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido (…) com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º. O n.º 2 do mesmo artigo acrescenta que [s]ão suscetíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º, entre as quais se encontram a prática do facto contra agente das forças ou serviços de segurança. No preceito o legislador utiliza a técnica dos exemplos padrão, de acordo com a qual o simples preenchimento de uma das hipóteses do tipo orientador não é suficiente para que se proceda à qualificação e exige-se, além deste preenchimento, que as circunstâncias que rodearam uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. A qualificação não é uma consequência automática do preenchimento de uma das hipóteses do tipo orientador e radica antes num especial conteúdo da culpa do agente que tem, necessariamente que ficar demonstrado. Com efeito, pode dar-se o caso de a conduta do agente preencher qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas e nem por isso de poder concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente. Convoca-se aqui o entendimento plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 28 de junho de 2023, (processo n.º 371/19.5TODM.E1 n www.dgsi.pt), no qual se expõe que [c]erto setor da doutrina e jurisprudência vem defendendo que, quando se tratem de ofensas insignificantes, deverão ser excluídas do tipo de crime do artigo 143.º do Código Penal, por não terem dignidade para lesar o bem jurídico protegido pela incriminação em apreço. Perfilhamos este entendimento. Com efeito, como se refere no Acórdão da RC de 24/05/2023: «III - Para preencher o tipo objectivo do crime de ofensa à integridade física é admissível qualquer meio de ofender o corpo ou a saúde desde que se verifique, como resultado, a lesão do corpo ou da saúde de alguém com alguma expressão ou significado, isto é, é necessário que o dano produzido pela acção do agente seja juridicamente apreciável. IV - Não adquirem dignidade penal, sob o ponto de vista do bem jurídico tutelado, as situações em que ocorre ausência de consequências da agressão ou em que estas sejam insignificantes. Para o mesmo Tribunal, [e]m determinadas situações para se poder aferir se a atuação do agente para com o sujeito passivo, tem, ou não, relevância bastante para lesar o bem jurídico tutelado pelo crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143º n.º 1 do CP, não se poderá perder de vista o contexto e circunstancialismo em que ocorreu. O preenchimento do tipo legal do crime de ofensa à integridade física qualificada previsto no artigo 145º do Código Penal, pressupõe a verificação de uma lesão da integridade física simples (artigo 143º) (…) sendo necessário, ainda, que a conduta do agente revele uma censurabilidade ou perversidade acrescida, a qual poderá decorrer das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132º, entre outras. Revertendo aos factos provados, (…) O arguido conduzia o supra referido veículo com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos 2,024 g/l, correspondente à TAS registada de 2,13 g/l, deduzida a margem de erro legalmente prevista. O arguido, sabendo que se tratava de via pública, quis conduzir o referido veículo, sabendo que o não podia fazer por ter ingerido bebidas alcoólicas que lhe determinavam a TAS com que foi encontrado. Estão, pois, verificados os elementos objetivos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, dado que o arguido conduziu um veículo automóvel na via pública, sob a influência do álcool, com uma taxa de alcoolemia superior a 1,20 g/l. E o seu elemento subjetivo, sendo de concluir que o arguido agiu com dolo direto, uma vez que de forma livre e voluntária conduziu o veículo após ter ingerido bebidas alcoólicas bem sabendo que com a sua conduta praticava um facto ilícito típico criminal. Do acervo factual assente decorre (…) que após a realização do teste de alcoolemia nas instalações do Posto, quando o guarda P estava a preencher os talões emitidos pelo alcoolímetro, o arguido colocou-se por trás deste e desferiu uma chapada com a mão esquerda aberta nas costas do Guarda P, tendo este, como consequência direta e necessária da conduta do arguido, caído sobre a mesa. Com tal conduta o arguido atuou com o propósito de ofender o corpo do Guarda P, bem sabendo que estava perante um agente das forças e serviços de segurança no exercício de funções, resultado que representou e concretizou. Decorre como não provado que a conduta do arguido provocou dores no corpo do Guarda P. Ante os atos infligidos pelo arguido ao Guarda P este constitui-se como autor material de um crime de ofensa à integridade física tal como previsto no artigo 143.º do Código Penal e já acima descrito. Cumpre, todavia, aferir se o contexto de atuação do arguido permite concluir ter este atuado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, com referência aos exemplos-padrão previstos na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, n.º 2 ex vi do n.º 2 do artigo 145.º, do Código Penal, não se bastando tal preenchimento com simples facto de o arguido ter atingido um militar da GNR, no exercício das suas funções. Ora, atentos os contornos concretos da conduta do arguido – dos quais não se apurou terem resultado consequências físicas para ofendido - não fica demonstrado e não permite afigurar que seja de tal modo grave aquela conduta que reflita uma postura do arguido radicalmente distanciada dos valores que norteiam a sociedade em que se insere ou uma atitude profundamente rejeitável por esta, e inclusivamente que revele uma personalidade má ou desvirtuosa do arguido, nem uma maior intensidade da culpa do arguido que implique o repúdio pela sociedade. Por outras palavras, considerado o acervo factual tecido este não permite concluir da especial censurabilidade ou perversidade exigidas para qualificar o crime de ofensas à integridade física praticado pelo arguido. Assim, entende-se que não se encontram preenchidos os pressupostos para a condenação do arguido pelo crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 143.º, alínea a) do n.º 1 do artigo 145.º e alínea l do n.º 2 do artigo 132.º ex vi n.º 2 do artigo 145.º, todos do Código Penal, pelo que, deve o mesmo ser punido pelo crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido no n.º 1 do artigo 143.º do Código Penal. Tal importa uma alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos do disposto no artigo 358º, n.º 1 e n.º 3, do Código de Processo Penal, a qual foi comunicada em sede de acta de leitura de sentença, conforme consta dos autos. Ora, resulta da acta da audiência de discussão e julgamento que o ofendido apresentou desistência de queixa, à qual não houve oposição por parte do arguido e do Ministério Público. À data da apresentação da desistência de queixa apenas foi valorada a mesma no que concerne ao crime de injúria, uma vez que os restantes se tratavam de crimes de natureza pública. Ora, a alteração da qualificação jurídica ora efectuada, implica também ela uma reapreciação da desistência de queixa apresentada, porquanto estamos agora perante um crime de natureza semi-pública. Dispõe o artigo 116º, n.º 2 do Código Penal , que o queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença em 1ª instância. Atendendo a que o crime em causa admite a desistência, que provêm de quem tem legitimidade, é tempestivo, e não houve oposição do arguido, homologo a desistência de queixa apresentada, nos termos do artigo 51º, do Código de Processo Penal (…) II – Escolha e Medida concreta da pena Feito, pela forma descrita, o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar. A todo o facto-ilícito-típico corresponde uma reação penal pela qual a sociedade expressa o seu juízo de desvalor sobre os factos e a conduta realizada por quem viola os comandos legais do ordenamento penal, estando a mesma refletida no respetivo tipo legal: - O crime de condução de veículo em estado de embriaguez é punido com uma pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. Escolha da pena: Admitindo o tipo legal previsto no artigo 292.º do Código Penal, a aplicação, em alternativa de duas penas principais, cumpre antes demais proceder à determinação da espécie de pena que concretamente irá ser aplicada, atendendo ao princípio geral que resulta da conjugação do estabelecido nos artigos 40.º e 70.º, do Código Penal, da preferência de penas não privativas da liberdade, pelo que deve ser aplicada a pena de multa sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. O artigo 70.º do Código Penal fornece o critério a seguir ao fixar que [s]e ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Por sua vez o n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal determina que [a] aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Atentas as disposições enunciadas, dado que a aplicação de penas tem por objetivo a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, serão sempre e apenas considerações de prevenção geral e especial, e nunca a retribuição da culpa, a decidir da possibilidade de, em cada caso concreto, preferir uma ou outra reação penal. Significa isto que a aplicação da pena de multa se deve revelar suficiente, para no caso concreto, satisfazer as necessidades de prevenção geral – a reafirmação da validade da norma penal violada com a prática do crime, de manutenção da confiança da comunidade no funcionamento do sistema jurídico-penal e de restabelecimento da paz e segurança jurídica - e também as necessidades de prevenção especial – de socialização do agente e ou de advertência individual). Incidindo sobre as exigências de prevenção geral positiva que se fazem sentir, estas são elevadas, senão vejamos, O crime de condução de veículos em estado de embriaguez – é dos crimes que mais vezes é julgado nos tribunais portugueses e relativamente aos quais são elevadíssimas as situações de reincidência - é consensualmente havido como um fator de agravamento dos riscos inerentes à atividade da condução e como um dos mais determinantes agentes de produção de acidentes de trânsito, na medida em que a embriaguez determina o entorpecimento dos sentidos, a perda dos reflexos exigidos para uma boa condução e o amortecimento da acuidade da visão e da atenção, sendo que o risco de envolvimento em acidente mortal aumenta rapidamente à medida que a concentração de álcool no sangue se torna mais elevada, com uma TAS de 0,50g/l aumentando 2 vezes e com uma TAS de 1,20g/l aumentando 16 vezes. Acresce que, a condução sob a influência do álcool tem contribuído decisivamente para o aumento da sinistralidade estradal, sendo de todos conhecido o lugar cimeiro que Portugal ocupa nesta matéria. Apesar de as exigências de prevenção geral serem elevadas, as exigências de prevenção especial são baixas porquanto o arguido não tem antecedentes criminais, assumiu uma postura totalmente colaborante em sede de julgamento, confessando a totalidade dos factos, quanto a estes fazendo um verdadeiro juízo crítico e de autocensura. O arguido encontra-se social e profissionalmente integrado. Ante o tecido entende-se que a pena de multa é adequada a satisfazer as exigências preventivas que no caso se fazem sentir. Da determinação da medida da pena: Resta, assim, determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido tendo em atenção o disposto no artigo 71.º do Código Penal. Para tanto, atende-se ao modo de atuação do arguido e à intensidade dolosa demonstrada. Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que [a] determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Assim, a determinação da concreta medida da pena aplicável tem como critérios a culpa do arguido e as exigências de prevenção, geral e especial, que cabem no caso concreto, atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado, deponham a favor ou contra o arguido, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa. Para além disso, embora tendo como limite a medida da culpa do arguido considerar-se-á a necessidade de prevenir a prática de futuros crimes. De realçar que, conforme consagra o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, [a] lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Como tal, o espaço possível de resposta às necessidades de reintegração social dos agentes é o que se define entre aquele mínimo imprescindível à prevenção geral positiva e o máximo consentido pela sua culpa, tendo sempre subjacente o princípio da necessidade, adequação e proporcionalidade da pena, consagrado no citado normativo constitucional. Ora in casu, importa valorar que nada resultou apurado quanto à existência de qualquer circunstância minimamente atendível que possa ter presidido à atuação do arguido. No que respeita ao grau de ilicitude dos factos releva a elevada TAS com que o arguido conduzia, atendendo a que, para a generalidade dos condutores de veículos, acima de 0,5 g/l trata-se de uma taxa relativamente à qual a lei veda a condução de veículos na via pública, sendo o veículo em causa dos potencialmente mais perigosos, nomeadamente quando comparado com uma bicicleta ou um ciclomotor, atenta a sua dimensão e velocidades atingíveis, características estas que aumentam exponencialmente o seu potencial danoso e a sua perigosidade. No que concerne ao dolo verifica-se quanto a esta conduta a modalidade mais intensa de dolo direto. Depõem portanto em desfavor do arguido a premência das exigências de prevenção geral, considerado o perigo de sinistralidade rodoviária associado à condução de veículos em estado de embriaguez, o local e a forma como o arguido conduzia, dentro da localidade, numa via em sentido contrário ao legalmente estabelecido por sinalização vertical, a TAS elevada com que conduzia, sendo que o risco de acidente seria elevado, e o dolo com que atuou, dolo direto, a forma mais grave de culpa. Militam a favor do arguido a sua integração social e profissional, a confissão dos factos e a postura por este mantida em audiência de julgamento, no sentido da verbalização de arrependimento e expressando juízo crítico da sua conduta, bem como a ausência de antecedentes criminais. Tudo isto visto e ponderado, julgo adequado e suficiente condenar o arguido: - Quanto ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de 100 dias de multa. * No que respeita ao quantitativo diário, quanto às pessoas singulares, os n. os 1 e 2 do artigo 47.º do Código Penal preveem, respetivamente que [a] pena de multa é fixada em dias, de acordo com o critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360 e que [c]ada dia de multa corresponde a uma quantia entre €5 e €500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. Assim, a pena de multa tem que implicar um sacrifício económico palpável, apenas sendo de equacionar a aplicação do seu liminar mínimo em situações excecionais de fraquíssima capacidade económica. Considerando a factualidade provada quanto aos rendimentos do arguido e seu agregado e respetivos encargos – mormente quanto ao sustento dos filhos, dois dos quais estudantes universitários – julga-se adequado e suficiente fixar o quantitativo diário a pagar pelo arguido em 7,00 € (sete euros). * Da pena acessória aplicável ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crime previsto nos artigos 291.º e 292.º. do Código Penal. No caso dos autos, vimos já que o arguido deve ser punido pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, cumprindo ora aferir da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor. Cumpre atender nas considerações tecidas supra em sede de determinação da medida da pena de multa e a propósito das exigências de prevenção geral e especial que in casu se fazem sentir, bem como no facto de a pena acessória ter em vista sobretudo prevenir a perigosidade do agente, patenteada no exercício da condução por um condutor alcoolizado, o que potencia o elevado índice de sinistralidade rodoviária. Por tudo o exposto e por se julgar adequado e suficiente, condena-se o arguido, para além da pena de multa supra já determinada, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses.”.
3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público
Cumpre agora conhecer as questões colocadas pelo recorrente e assinaladas em II, ponto 2. deste Acórdão.
Com base na factualidade dada como provada e não provada, considerou o Tribunal a quo que os factos se subsumem à prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do CP e homologou a desistência de queixa apresentada pelo ofendido, o militar P, nos termos da disposições conjugadas dos artigos 113.º, n.º 1, 116.º, n.º 2 e 143.º, n.º 2 do CP e dos artigos 49.º, n.º 1 e 51.º, n.º 2, 2.ª parte do CPP.
As razões da discordância do MP fundam-se na circunstância de, na sua ótica, os factos dados como provados e não provados, consubstanciarem a prática do crime de ofensa à integridade física qualificada (artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do CP).
Depois o recorrente considera que mesmo a não se entender assim, nunca poderia o Tribunal a quo ter homologado a desistência de queixa apresentada pelo militar P, pois nos termos do disposto no artigo 143.º, n.º 2 do CP, o crime de ofensa à integridade física simples, quando praticado na pessoa de agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas, reveste natureza pública.
O fundamento do presente recurso cinge-se, assim, ao erro de julgamento quanto ao direito aplicado (artigo 412.º, n.º 2 do CPP).
3.2.1.Do crime de ofensa à integridade física qualificada
O Tribunal começou por desqualificar o crime de ofensa à integridade física qualificada (cf. n.º 1 do artigo 143.º, alínea a) do n.º 1 do artigo 145.º e alínea l do n.º 2 do artigo 132.º ex vi n.º 2 do artigo 145.º do CP) e subsumir a factualidade apurada ao tipo de ofensa à integridade física simples.
A sentença recorrida, efetivamente, deu como provado que o arguido, após a realização do teste de álcool no posto da GNR, desferiu uma chapada com a mão esquerda aberta nas costas do guarda P, no momento em que o mesmo se encontrava a preencher os talões emitidos pelo alcoolímetro.
Entendeu, todavia, que os contornos da conduta do arguido, nomeadamente, o facto de o ofendido não ter sofrido lesões, não permitiriam concluir pela especial censurabilidade ou perversidade exigidas para qualificar o crime de ofensa à integridade física simples.
O artigo 143.º, n.º 1 do CP estabelece que “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Por sua vez, dispõe o artigo 145.º, n.º 1, al. a) do CP que se as ofensas à integridade física simples forem produzidas em circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente este é punido com pena de prisão até quatro anos.
A título exemplificativo prescreve o n.º 2 do artigo 145.º do CP, serem suscetíveis de revelar especial censurabilidade do agente as circunstâncias previstas no artigo 132.º, n.º 2, na qual se insere, a alínea l), o caso de a ofensa ter sido perpetrada contra militar no exercício das suas funções ou por causa delas.
Atenta a factualidade dada como provada não foi colocada em causa, nem sequer pelo arguido, encontrarem-se preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo base do crime de ofensa à integridade física simples (artigo 143.º, n.º 1 do CP), embora o militar ofendido não tenha sofrido lesões ou dor (cf. facto não provado sob a alínea a)).
A dúvida suscitada pelo recorrente reside em saber se atentas as circunstâncias da prática das ofensas as mesmas eram suscetíveis de revelar uma especial censurabilidade e perversidade.
O Tribunal a quo concluiu pela negativa com fundamento nos “contornos concretos da conduta do arguido – dos quais não se apurou terem resultado consequências físicas para ofendido” e daí não ter ficado demonstrado nem permitir “afigurar que seja de tal modo grave aquela conduta que reflita uma postura do arguido radicalmente distanciada dos valores que norteiam a sociedade em que se insere ou uma atitude profundamente rejeitável por esta, e inclusivamente que revele uma personalidade má ou desvirtuosa do arguido, nem uma maior intensidade da culpa do arguido que implique o repúdio pela sociedade. Por outras palavras, considerado o acervo factual tecido este não permite concluir da especial censurabilidade ou perversidade exigidas para qualificar o crime de ofensas à integridade física praticado pelo arguido”.
Na ótica do MP o simples facto de o arguido ter desferido uma chapada nas costas de um militar da GNR, por si só, não era suficiente para essa conduta ser suscetível de configurar a prática do crime de ofensa à integridade física qualificada (artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1 alínea a), e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do CP), antes se impondo uma análise e apreciação dos factos à luz do caso concreto.
O MP considera que teria sido necessário atender-se às demais circunstâncias do caso e verificar se dessa conjugação resultava uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, e na positiva ser de operar a qualificação do artigo 145.º, n.º 1 alínea a), e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do CP
Para o MP analisando as circunstâncias em que foi praticado o crime de ofensa à integridade física simples sobre o ofendido P, conforme resulta da factualidade dada como provada pela sentença recorrida, importava salientar ter o arguido sido fiscalizado numa operação rodoviária, na sequência da qual, e em virtude de ter acusado uma TAS superior a 1,2 g/l em aparelho quantitativo, foi conduzido ao posto territorial da GNR de Alcácer do Sal, a fim de realizar o teste em aparelho qualitativo.
Já na esquadra, após a realização do dito teste, o arguido colocou-se por trás do guarda P e desferiu-lhe uma chapada com a mão esquerda aberta nas costas, no momento em que este se encontrava a preencher os talões emitidos pelo alcoolímetro tendo atuado com o propósito de ofender o corpo deste, bem sabendo que o mesmo era um agente das forças de segurança no exercício de funções.
Para o MP a especial censurabilidade da conduta do arguido não se resumiria ao facto de a ofensa ter sido praticada na pessoa de um militar da GNR, devidamente fardado e identificado, no exercício e por causa das suas funções, mas ainda nas circunstâncias por si enumeradas:
- A ofensa ter sido praticada no interior do posto da GNR;
- O arguido ter-se colocado por trás do militar, impedindo toda e qualquer hipótese de defesa;
- A conduta ter sido praticada quando o militar se encontrava a preencher os talões emitidos pelo alcoolímetro, após o arguido ter efetuado o teste do álcool.
Conclui, então, o MP pela necessária agravação do crime de ofensa à integridade física, decorrente de o grau de culpa do agente ser maior, mais intenso, e, como tal, apto a gerar na comunidade um maior repúdio.
A questão colocada é a de saber se, no caso desta concreta ofensa à integridade física, as circunstâncias fazem operar a qualificativa do crime base, em virtude de a culpa do agente ser tão intensa e o ato produzido em circunstâncias reveladoras de uma especial censurabilidade ou perversidade que é apto a gerar na sociedade uma forte rejeição ou repúdio.
Sendo ao nível da culpa do agente que há de ser apreciada a questão, não pode, todavia, o Julgador alhear-se pura e simplesmente das consequências produzidas (desvalorizadas pela própria vítima) quando para além do mais o arguido estava alcoolizado com uma taxa de álcool no sangue de 2,33 g/l no sangue. É que, no caso concreto, tal taxa de alcoolemia, não afastando a imputabilidade do agente, não podia deixar de lhe ter alterado a capacidade de alcance do comportamento contra fáctico perpetrado, afastado da personalidade evidenciada pelo arguido no seu dia a dia e percecionada pela comunidade no qual se mostra inserido, ou seja, em contra fluxo, como decorre da restante matéria dada como comprovada como se passará a explanar.
A elevada taxa de sangue apresentada pelo arguido à data dos factos (2,024 g/l) aliada à circunstância de o arguido:
- Ser pessoa bem considerado pela comunidade na qual se mostra inserido e por ela caracterizado como pessoa educada cordata respeitadora e sociável (facto provado sob o ponto 19.);
- Ser licenciado em engenharia (facto provado em 17.);
- Encontrar-se inserido em um projeto profissional estável e estruturado, ser referenciado como um profissional diligente e dedicado (facto provado sob o ponto 20.);
- Não ter antecedentes criminais (facto provado sob o ponto 21.);
- Ter três filhos a seu cargo provendo ao seu sustento (factos provados em 12. e 16.);
- Ter confessado integralmente e sem reservas os factos e mostrar-se arrependido (facto provado em 18.),
não apontam, de todo, para uma personalidade vil do agente.
A essas circunstâncias acresce o posicionamento da própria vítima que desvalorizou o ato perpetrado ao salientar não ter sofrido qualquer dor, dando a entender que a chapada desferida não o foi com intensidade e manifestando inclusive desistir da queixa.
Assim, embora, não seja colocado em crise pelo recorrente ou pelo arguido estarem preenchidos objetivamente e subjetivamente os elementos do crime base de ofensa à integridade física simples no caso concreto não surge como sustentável subsumir o comportamento do arguido ao preenchimento da qualificativa da alínea l), do n.º 2 do artigo 132.º do CP, pois a sua atuação não pode qualificar-se como enquadrada em circunstâncias especialmente censuráveis e/ou perversas.
É que embora mereçam censurabilidade as circunstâncias, descritas pelo MP, nas quais as ofensas foram perpetradas, as mesmas não podem ser classificadas como refletindo uma atitude profundamente desvaliosa do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores vigentes na sociedade. Nem a conduta concreta empreendida é reveladora de uma atitude sentida como profundamente rejeitável pela sociedade, quando a própria vítima assim não o entendeu perante uma chapada dada nas costas com intensidade não elevada, que nem sequer causou dor ou lesões ao militar, e quando o arguido se encontrava fortemente alcoolizado adotando um comportamento agressivo, mas sem respaldo na conduta usualmente apresentada perante a comunidade, no qual se mostra inserido.
Analisando a conduta concreta do arguido esta revela sem dúvida uma atitude censurável em relação ao comportamento normal por parte dos cidadãos e à luz dos valores socialmente aceites, mas não se pode afirmar que tenha sido particularmente desvaliosa ao ponto de ser subsumida à qualificativa daquela alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º do CP.
Na situação em apreciação a censurabilidade da ação não surge como conexionada com qualquer comprovado profundo desrespeito do arguido pela autoridade policial, ou com um “especial desprezo para com a função da vítima”[2]. A audácia da atuação do arguido perpetrada dentro do posto da GNR ao desferir uma chapada nas costas do militar quando este, devidamente uniformizado, se encontrava a preencher os talões do alcoolímetro de costas para si, não pode deixar de ser explicado pelo estado elevado de alcoolemia do arguido, que embora não o tornado inimputável em conjugação com os factos apurados em julgamento e dados como provados, permitem chegar a tal conclusão.
Na verdade, o arguido revela, para além de uma situação pessoal, social, familiar e económica estável, tratar-se de uma pessoa considerada na comunidade por ser educada, cordata, respeitadora e sociável. Depois, não tinha antecedentes criminais, mostrou-se arrependido, ato considerado sincero pelo Julgador em primeira instância, e assumiu integralmente e sem reservas os factos perpetrados, contrariados apenas pela forma como a vítima os relatou e desvalorizou - levando a que o Tribunal tivesse inclusive conduzido aos factos não provados a matéria constante da acusação com o seguinte teor: “Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o Guarda P sentiu dores e caiu ao solo.”, o que não deixa de corroborar a ideia que a comunidade formou sobre o agente.
Acresceria que a própria vítima, em julgamento, não asseverou a violência da agressão tal como se encontrava descrita na acusação, quando afirmou “não sentiu dores, tendo por força” do embate da chapada nas costas “caído sobre a mesa, não pela força exercida pelo arguido, mas porque foi apanhado desprevenido” e inclusive desistiu da queixa.
Duas das testemunhas ouvidas sobre a personalidade do arguido asseveraram não o conhecerem como pessoa agressiva ou descontrolada (cf. motivação da decisão assinalada em II., ponto 3.1.3. deste Acórdão).
A qualificativa encontra-se afastada não apenas pelo facto de não se ter provado que o militar tenha sofrido dores ou ferimentos, o que, diga-se de passagem, terá sucedido porque a chapada não terá sido desferida com a intensidade descrita na acusação, mas ainda com base em todo o circunstancialismo atrás exposto a que não pode ser alheio ao próprio sentimento expresso pela vítima de desvalorização do ato, independentemente da sua maior ou menor experiência no exercício das funções de militar da GNR.
Na verdade, como já salientado, da acusação constava um facto que enrobustecia a subsunção da atuação do arguido à qualificativa, ou seja, que como consequência direta e necessária da pancada desferida o militar da GNR sentiu dores e caiu ao solo, o que significaria que a chapada dada nas costas teria sido desferida com uma força considerável. Esta materialidade foi, todavia, conduzida aos factos não provados, e dos provados apenas consta que, quanto ao resultado produzido na pessoa da vítima, a atuação do arguido “ofendeu o corpo” do Guarda P.
Depois há que atentar ao próprio sentimento revelado pela vítima ao afirmar não ter sentido dores e que caiu sobre a mesa por ter sido apanhado desprevenido e não pela força exercida pelo arguido.
As circunstâncias concretas reveladas no caso em apreciação não revelam, pois, o conceito de especial censurabilidade ou perversidade do agente ínsito na alínea l) no n.º 1 do artigo 132.º do CP. Em todo o caso, embora improcedendo o recurso neste segmento, o legislador não deixou de sancionar as ofensas perpetradas sobre um elemento/órgão de polícia criminal, como se explanará em seguida.
3.2.2.Das ofensas à integridade física simples
O ordenamento jurídico penal deve ser interpretado como um todo e mesmo não sendo a situação concreta enquadrável na qualificativa da alínea l, do n.º 2 do artigo 132.º do CP, por se concluir não ser especialmente censurável a atuação do agente, ainda assim o legislador não deixou de reforçar a proteção penal devida aos órgãos de polícia criminal no exercício das suas funções por força de um outro mecanismo legal.
É que ao atribuir ao crime natureza pública, não acolhendo a possibilidade de o fazer depender de queixa para ser deduzida acusação, a lei visa proteger não só o bem jurídico “integridade corporal e da saúde da pessoa humana” como a “autoridade pública”, crucial para a proteção da ordem e da estabilidade do Estado.
A função em que a autoridade policial se encontra investida e o respeito devido à força pública não pode ser permeável ao desrespeito e desvario dos cidadãos, sob pena de se colocar em causa a sua própria autoridade e os fundamentos do Estado.
Situações como as descritas não podem deixar de ser sancionadas, pois são tudo menos insignificantes traduzindo o desrespeito por um órgão do Estado a quem incumbe manter a ordem e a tranquilidade públicas, a segurança e a proteção das pessoas e dos bens e prevenir a criminalidade em geral.
Ou seja, não é por as circunstâncias que rodearam o cometimento do crime não serem, na situação concreta, de molde a preencherem a qualificativa da alínea l) do artigo 132.º, n.º 2 do CP que a atuação descrita não deve deixar de ser punida criminalmente pelo tipo base, mesmo como quando no caso ocorreu desistência de queixa.
Quando a ofensa cometida é direcionada contra agentes da força pública no exercício das suas funções ou por causa delas, o n.º 2 do artigo 143.º do CP impede a homologação da desistência da queixa apresentada pela vítima. Ou seja, o tipo de crime em apreço atenta a formulação legal tem natureza pública, sendo irrelevante a manifestação de vontade do militar/vítima.
Com efeito, um dos princípios estruturantes do processo penal português é o princípio da oficialidade, ínsito no artigo 219.º, n.º 1 da CRP e no artigo 48.º, n.º 1 do CPP, nos termos dos quais o exercício da ação penal pertence ao Ministério Público, a quem compete promover o processo penal.
Nos termos daquele princípio, e salvo as limitações decorrentes da existência dos crimes de natureza semipública e particular, o exercício da ação penal compete ao Ministério Público e é independente da vontade e atuação dos particulares, caso esteja em causa um crime de natureza pública.
Atento o disposto no artigo 143.º, n.º 2 do CP, o procedimento criminal pelo crime de ofensa à integridade física simples depende de queixa, salvo quando a ofensa for cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas.
Significa isto que, em regra, o crime de ofensa à integridade física simples reveste natureza semipública e a exceção a essa regra ocorre nos casos em que a ofensa seja praticada contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções e por causa delas.
A conduta do arguido, praticada dentro do posto da GNR ao desferir uma chapada nas costas do militar quando este, devidamente uniformizado, se encontrava a preencher os talões do alcoolímetro de costas para o agente é, tudo menos insignificante, e no caso concreto é punida criminalmente, tendo o legislador considerado assim o reclamarem os alicerces do Estado de direito e a credibilidade e consideração devida à autoridade pública.
Nesses termos, encontrava-se vedado ao Tribunal a quo homologar a desistência de queixa apresentada pelo referido militar, porquanto a mesma não é legalmente admissível.
Ao invés, deveria ter condenado o arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física simples.
Assim, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto ao direito aplicado por violação das disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1 e 2, 113.º e 116.º, n.º 2, do CP e 48.º, 49.º, 51.º, n.º 1 e 2, 2ª parte do CPP.
Tendo ocorrido uma indevida homologação da desistência da queixa (pois o crime em causa é público e não semipúblico) a questão que se coloca é a de saber se o processo deve, ou não, ser “reenviado” à 1.ª instância para escolha e determinação da medida concreta da pena.
Julgamos que a situação é semelhante à transformação de uma sentença absolutória (da 1.ª instância) numa condenação pela Relação.
Assim, apesar de não ter havido propriamente uma “decisão absolutória” na 1.ª instância (mas sim a homologação indevida de uma “desistência da queixa”), a questão é equivalente à procedência de um recurso com alteração da matéria de facto, em que a “decisão absolutória” (proferida em 1.ª instância) passa para decisão condenatória (proferida na Relação).
Na situação de transformação de uma decisão absolutória a jurisprudência dividia-se:
- Uma das posições entendia ser de determinar a baixa dos autos à 1.ª instância com vista à prolação de sentença para fixação da pena da condenação (mesmo que os factos necessários constassem da sentença absolutória), sob pena de postergação de um grau de jurisdição;
- Outra das posições entendia que o Tribunal da Relação tinha de escolher e determinar a medida concreta da pena (conquanto tivesse ao seu dispor os factos atinentes às condições de vida do arguido - como acontece no presente caso).
O diferendo jurisprudencial foi solucionado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2016, de 22-02 (“Fixação de jurisprudência”), que decidiu:
“Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder a determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4 do Código de Processo Penal”.
Assim, em conformidade com o teor do referido AUJ, em tudo semelhante ao colocado neste recurso, caberá à Relação escolher a pena, determinar a sua medida concreta e proceder ao necessário cúmulo jurídico, o que se fará em seguida.
3.2.3.Escolha da espécie e da medida concreta da pena pela prática do crime de ofensa corporal simples e medida da pena única
O arguido cometeu o crime de ofensa à integridade física simples punível com pena de prisão de 1 mês até 3 anos de prisão ou pena de multa de 10 dias a 360 dias (cf. artigos 143.º, n.º 1, 41.º, n.º 1 e 47.º do CP).
Dando como reproduzida parte da fundamentação de direito utilizada na sentença recorrida a propósito do crime de condução de veículo em estado de embriaguez dir-se-á que as exigências de prevenção geral são elevadas, pois tem-se tornado cada vez mais comuns os crimes cometidos contra agentes das forças de segurança. Com efeito, à medida que a sociedade se vai tornando mais exigente quanto ao cumprimento por parte daqueles agentes das regras estatutárias em que o uso da força surge apenas como medida última, excecional, não é tolerável ter uma fração da população a aproveitar-se disso para agredir, humilhar, ameaçar tais agentes, convicta de que nada lhe acontece. Cabendo aos tribunais dar uma resposta firme quanto às consequências a que se expõe quem não respeita a autoridade em que tais agentes estão investidos.
Em contraponto, as exigências de prevenção especial são muito baixas, porquanto o arguido não tem antecedentes criminais, assumiu uma postura totalmente colaborante em sede de julgamento, confessando a totalidade dos factos, quanto a estes fazendo um verdadeiro juízo crítico e de autocensura (revelando-se arrependido), encontra-se social e profissionalmente integrado.
Ante o referido entende-se que a pena de multa é adequada a satisfazer as exigências preventivas que no caso se fazem sentir.
Resta, assim, determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido tendo em atenção o disposto no artigo 71.º do CP.
Neste âmbito ter-se-á em consideração que o arguido atuou com dolo direto, ou seja, na modalidade mais intensa de dolo, e as circunstâncias do caso, abordando um militar no exercício das suas funções por trás, dentro da esquadra da GNR, desferindo-lhe uma palmada nas costas.
Militam a favor do arguido a sua integração social e profissional, a confissão dos factos e a postura por este mantida em audiência de julgamento, no sentido da verbalização de arrependimento e expressando juízo crítico da sua conduta, bem como a ausência de antecedentes criminais, o facto de a vítima não ter sofrido dores nem mazelas nem pretender a punição criminal do arguido.
Tudo isto visto e ponderado, julga-se adequado e suficiente condenar o arguido quanto ao crime de ofensas corporais simples numa pena de 120 dias de multa.
No respeitante ao quantitativo diário adere-se aos fundamentos explanados em 1.ª instância, que não foram objeto de recurso, julgando-se adequado e suficiente fixar o quantitativo diário a pagar pelo arguido em 7,00 € (sete euros).
Em relação à pena única a sua determinação deve obedecer às regras aplicáveis ao concurso, estabelecidas no artigo 77.º do CP.
O elemento aglutinador dos dois crimes em concurso, que serve para determinar a pena unitária, consiste, pois, na personalidade do agente, sendo em função e com referência a esta que se realiza a relacionação de cada um dos factos individualmente considerados e de todos eles entre si, de forma a se identificar a gravidade do ilícito global, definindo-se, assim, se estamos perante uma tendência criminosa, caso em que a acumulação de crimes deve constituir uma agravante dentro da moldura do concurso ou se, pelo contrário, tal acumulação é uma mera ocorrência ocasional que não radica na personalidade.
Neste contexto, mostra-se também relevante a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
No caso a moldura do concurso é constituída pelo mínimo de 120 e o máximo de 220 dias de multa.
No caso, na análise que se faz da "gravidade do ilícito global”, tendo em conta a conexão existente entre os dois ilícitos praticados, é de atentar à natureza e grau de gravidade das condutas cometidas, existindo uma clara relação entre os crimes em acumulação, essencialmente porque o ato perpetrado sobre o agente da autoridade é decorrência da intervenção de fiscalização que levava a cabo, no âmbito da qual foi o arguido detetado a conduzir veículo automóvel sob a influencia do álcool, o que, se não diminui, também não intensifica as exigências de prevenção especial a considerar na fixação da dosimetria concreta da pena única.
Assim, tudo sopesado, crê a Relação que a pena única de 200 dias de multa à taxa diária de 7 € num total de 1.400 €, se revela ainda ajustada, porquanto respeita o limite da culpa e assegura na devida proporção as necessidades de prevenção geral e especial identificadas no caso, em conformidade com os critérios ditados pelo artigo 77.º, n.ºs 1 e 2 do CP, mantendo-se no remanescente a decisão proferida em 1.ª instância.
III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos: 1. Concede-se parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, revoga-se a sentença recorrida, e em concreto o despacho homologatório da desistência de queixa, condenando o arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física simples (artigo 143, n.º 1 do CP) em 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de 7 € (sete euros) e em cúmulo jurídico com o crime de condução de veículo em estado de embriaguez (cuja pena foi fixada em 100 dias de multa à taxa diária de 7 €) na pena única de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de 7 € (sete euros), num total de 1.400 € (mil e quatrocentos euros) mantendo-se no remanescente a decisão proferida. 2. Sem custas.
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 03 de junho de 2025
Beatriz Marques Borges
Maria José Cortes
Fernando Pina
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[1] Vide nota 22, pag. 441, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2ª edição actualizada, Lisboa, 2010.
[2] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Penal: À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 3.ª edição atualizada. Universidade Católica Editora. P.517. ISBN 978-972-54-0489-8.