Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
PODERES DO JUIZ
NULIDADE
Sumário
I - O Juiz de Instrução pode recusar a sua concordância à suspensão provisória do processo com o fundamento de que as injunções e regras de conduta propostas pelo Ministério Público são insuficientes para satisfazer as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir, apoiando-se em razões de diversa ordem, nomeadamente ponderando o nível da culpa, o nível da ilicitude, e, bem assim, a necessidade de tutelar os bens jurídicos protegidos pela incriminação. II - O Ministério Público, discordando a posição do Juiz de Instrução ao não aceitar a suspensão provisória do processo, e sendo esse despacho irrecorrível, por força da jurisprudência fixada no A.U.J. nº 16/2009, de 24-12-2009 (o qual refere que “a discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do nº 1 do artigo 281° do Código de Processo Penal, não é recorrível”), veio rodear tal proibição, arguindo uma nulidade do despacho e forçando esse mesmo Juiz de Instrução a proferir novo despacho sobre a matéria, despacho este relativamente ao qual, formalmente, já não estaria vedada a interposição de recurso. III - No entanto, tratou-se apenas de “forçar” uma formalidade, já que aquilo que o Ministério Público pretende, do segundo despacho proferido pelo Juiz de Instrução, atento o requerimento que lhe deu origem, é precisamente a nulidade do primeiro, e, consequentemente, a alteração da decisão de fundo, isto é, que o Juiz de Instrução decida no sentido da suspensão provisória do processo, como pretendia desde o início, independentemente da opinião daquele Magistrado sobre o caso concreto.
Texto Integral
Acordam, em conferência, as Juízas que integram a 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO 1.1. Nos autos de inquérito que, com o n.º 212/21.3GBPTM, correm termos no Departamento de Investigação e Ação Penal – 1.ª Secção de Portimão, e no qual se investiga a prática de um crime de violência doméstica, o magistrado do Ministério Público entendeu ser de aplicar à arguida D a Suspensão Provisória do Processo, para vigorar pelo período de 12 meses, impondo-lhe as seguintes injunções:
- Entregar a quantia de € 5 000,00 à assistente C, durante o período da suspensão.
- Entregar a quantia de € 500,00 à APAV, durante o período da suspensão.
*
Remetidos os autos ao Juízo de Instrução Criminal, o senhor Juiz de Instrução Criminal proferiu despacho, datado de 2 de abril passado, de não concordância com a suspensão provisória do processo proposta pelo Ministério Público.
Tal decisão tem o seguinte teor (transcrição): Da não concordância com a aplicação do instituto de S.P.P. Compulsada a factualidade, verificamos que entre os factos imputados à arguida se encontra uma agressão física relevante, mormente a que se mostra descrita no facto 7. A concordância do JIC com a aplicação do instituto de S.P.P. não é um acto automático, tendo o Tribunal não só o poder, mas também o dever de analisar as concretas circunstâncias do caso, nomeadamente ao nível da culpa e da ilicitude. Face à nossa experiência judiciária, verificamos um aumento contínuo do número de crimes de violência doméstica. Entendemos que perante tal aumento e sendo notório que estamos perante um dos mais relevantes flagelos criminais da actualidade, compete ao Tribunal adequar, dentro dos poderes conferidos pela CRP e pela Lei e sempre com integral respeito pelos direitos dos sujeitos processuais, as concretas medidas a adoptar. Quer na intervenção jurisdicional em sede de inquérito, quer na intervenção na fase de instrução, temos vindo a rejeitar a concordância com a aplicação da S.P.P. sempre que o crime de violência doméstica tiver implícita violência física relevante, sendo tal o nosso critério objectivo para não transformar um flagelo criminal num flagelo ainda de maior dimensão, competindo aos órgãos de soberania a intervenção séria e robusta dentro das competências estabelecidas. Tal equivale a dizer que quer ao nível da culpa quer ao nível da ilicitude, não concordamos que exista uma qualquer diminuição relevante. Ao invés, a necessidade de tutelar os bens jurídicos das vítimas e a necessidade de ressocialização apontam para um juízo desfavorável quanto ao sucesso da aplicação da SPP, devendo os autos prosseguir os seus termos com dedução de acusação pública, formalismo que entendemos ser mais adequado às condições do caso. Destarte, decido não concordar com a aplicação da suspensão provisória do processo. Notifique.
*
Nessa sequência, e por requerimento entrado nos autos em 7 de abril de 2025, o Ministério Público veio arguir a nulidade de tal despacho, com fundamento no disposto no art.º 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, alegando que o senhor Juiz de Instrução extravasou as competências que lhe estavam acometidas, lançando mão da não verificação de pressupostos inaplicáveis ao caso concreto, ao não dar a sua concordância à suspensão provisória do processo.
*
Por decisão de 10 de abril de 2025, foi julgada improcedente a arguida nulidade, nos seguintes termos (transcrição): Promoção do M.P. de 7.4.2025 com a referência 136011236 (arguição de nulidade) Tomei conhecimento. Veio o detentor da acção penal arguir a nulidade do despacho proferido pelo Tribunal no qual não concordámos com a suspensão provisória do processo, alegando em suma apertada que fizemos “tábua rasa” do disposto no n.º 8 do art.º 281.º do C.P.P. Cumpre decidir. Da leitura dos argumentos do Digno Magistrado do M.P. parece evolar que, em todos os processos em que seja aplicada a mencionada norma estaria o JIC obrigado a concordar com a SPP, interpretação da norma legal que nos parece que não teria outro destino que não uma manifesta inconstitucionalidade, violando desde logo o princípio da independência dos Tribunais. Lê-se na mencionada norma que “8 - Em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1”. Da leitura da norma evola de forma muito clara que a suspensão provisória do processo em processos em que o M.P. impute o crime de violência doméstica (na sua forma não agravada) depende sempre de concordância, quer do juiz quer do arguido. Nem poderia ser, quanto à concordância do Tribunal, de maneira diversa, sob pena de se subverter totalmente o espírito do instituto e de se transformar o Tribunal num autómato judicial. Note-se que, em rigor material, poderia o Tribunal limitar-se a dizer “Não concordo”. Nesse caso não só o despacho era legalmente admissível como cumpriria plenamente o disposto no n.º 8 do art.º 281.º do C.P.P. Mas o Tribunal, ciente da sua responsabilidade, fez questão de dizer por que motivo não concorda. E reitera, neste sede, todos esses fundamentos. Em suma, o Tribunal não concordou com a SPP, decisão que pode livremente adoptar e, ainda que não fosse legalmente obrigado a fazê-lo, explanou por que motivo. Não padece assim o despacho de qualquer tipo de vício processual. Destarte, indefiro a nulidade arguida pelo detentor da acção penal.
*
1.2. Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, pretendendo a sua revogação e substituição por outra que declare a nulidade que havia arguido em relação ao despacho de 10 de abril de 2025, nos termos dos art.ºs 119.º, alínea e) e 122.º, do Código de Processo Penal, formulando no termo da motivação as seguintes CONCLUSÕES (transcrição):
“1. Em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, versa o artigo 281.º, n.º 8, do Código de Processo Penal, que são requisitos da aplicação da Suspensão Provisória do Processo em processos como o em apreço, além da necessária concordância do Juiz de Instrução e do arguido, a existência de requerimento livre e esclarecido da vítima, solicitando a aplicação do instituto, a ausência de condenação anterior do arguido por crime da mesma natureza e a ausência de aplicação anterior de Suspensão Provisória do Processo por crime da mesma natureza. 2. No presente inquérito, colhidos que foram indícios suficientes da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, pela arguida D na pessoa da assistente C, requerida que foi, por esta, de forma livre e esclarecida, a aplicação da Suspensão Provisória do Processo, e obtida a concordância daquela, que não tinha averbadas no seu CRC condenações por crime de idêntica natureza e não havia beneficiado anteriormente da aplicação deste instituto, foram os autos remetidos ao Mmo. Juiz de Instrução do Tribunal a quo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 281.º, n.º 1 e n.º 8, do Código de Processo Penal. 3. Sucede que, por despacho de 02-04-2025, expressou o Mmo. Juiz de Instrução do Tribunal a quo a sua não concordância com a aplicação nos presentes autos da Suspensão Provisória do Processo. 4. Contudo, fundamentou tal discordância no que cremos ser a verificação de graus de culpa e de ilicitude elevados (ou, pelo menos, não relevantemente diminuídos), nada sendo aduzido quanto aos pressupostos da Suspensão Provisória do Processo descritos no acima referido n.º 8, do artigo 281.º, do Código de Processo Penal, donde se intui que nada haveria a apontar à sua verificação em concreto. 5. Ora, ao estribar a sua decisão de discordância com a aplicação da Suspensão Provisória do Processo em pressupostos inaplicáveis ao caso que lhe foi apresentado, extravasando, dessa forma, as competências que estavam acometidas, incorreu o Mmo. Juiz de Instrução do Tribunal a quo na nulidade prevista no artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, relativa à violação das regras de competência do tribunal. 6. Tendo sido por nós invocada, a 07-04-2025, a nulidade acima referida, e em conformidade com o disposto no artigo 122.º, do Código de Processo Penal, requerida a substituição daquele despacho por outro que, considerando verificados os pressupostos da Suspensão Provisória do Processo previstos no artigo 281.º, n.º 8, também do Código de Processo Penal, desse concordância à aplicação deste instituto, foi, então, proferido o despacho recorrido. 7. Porém, ao invés de considerar verificada a nulidade arguida, entendeu o Mmo. Juiz de Instrução do Tribunal a quo que a mesma seria de indeferir. 8. Todavia, ainda que no despacho recorrido o Mmo. Juiz de Instrução tenha aventado que a sua decisão de discordância se inseria na amplitude do poder de decisão do Juiz de Instrução quanto à concordância com a aplicação da Suspensão Provisória do Processo, nota-se que, em abono da verdade, não se pronunciou efectivamente acerca da nulidade arguida, nada sendo referido sobre o extravasamento das competências que lhe estavam acometidas. 9. Destarte, ao proferir o despacho recorrido, fundamentando o indeferimento da nulidade invocada nos moldes supra condensados, violou, pois, o disposto nos artigos 119.º, alínea e), 122.º e 281.º, n.º 8, do Código de Processo Penal. 10. Pois bem, atenta a violação dos referidos normativos legais, deve o despacho recorrido ser substituído por outro que declare a nulidade do despacho de não concordância com a aplicação ao caso concreto da Suspensão Provisória do Processo, por violação das regras de competência do tribunal, com todos os efeitos legais daí advindos e previstos no mencionado artigo 122.º do Código de Processo Penal.”
*
1.4. Nesta Relação, a Exa. Procuradora Geral Adjunta pugnou pela procedência do recurso interposto.
Cumpre apreciar e decidir.
**
II - FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir
Conforme entendimento pacífico, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto do recurso submetido à apreciação do tribunal de recurso, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que seja ainda possível conhecer.
Face às conclusões apresentadas pelo recorrente da respetiva motivação, extraímos uma única questão a decidir: determinar se o despacho recorrido deve ser substituído por outro que declare a nulidade do despacho de não concordância com a aplicação ao caso concreto da Suspensão Provisória do Processo, por violação das regras de competência do tribunal, com todos os efeitos legais daí advindos e previstos no mencionado art.º 122.º do Código de Processo Penal.
*
2.2.Apreciação do recurso
A única questão a decidir é a de determinar se o despacho recorrido deve ser substituído por outro que declare a nulidade do despacho de não concordância com a aplicação ao caso concreto da Suspensão Provisória do Processo, por violação das regras de competência do tribunal, com todos os efeitos legais daí advindos e previstos no mencionado art.º 122.º do Código de Processo Penal.
Entende o recorrente que o JIC fundamentou, erradamente, a discordância da suspensão provisória do processo na verificação de graus de culpa e de ilicitude elevados (ou, pelo menos, não relevantemente diminuídos), nada sendo aduzido quanto aos pressupostos da Suspensão Provisória do Processo descritos no acima referido n.º 8, do art.º 281.º, do Código de Processo Penal, donde se intui que nada haveria a apontar à sua verificação em concreto.
Mais refere que, ao estribar a sua decisão de discordância com a aplicação da Suspensão Provisória do Processo em pressupostos inaplicáveis ao caso que lhe foi apresentado, extravasando, dessa forma, as competências que estavam acometidas, incorreu o senhor Juiz de Instrução do Tribunal a quo na nulidade prevista no art.º 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, relativa à violação das regras de competência do tribunal.
Cumpre apreciar e decidir.
A eficiência do processo penal, entendida no sentido de eficiência para a concretização dos seus fins, isto é, realização da justiça e paz social, levou o legislador a estabelecer, no que respeita à pequena criminalidade, espaços de consenso a par de espaços de conflito (cf. ponto 6, b) do Preâmbulo do Código de Processo Penal), contando-se entre os primeiros, como procedimento alternativo de justiça negociada, a suspensão provisória do processo.
O instituto da suspensão provisória do processo que consiste, basicamente, em, existindo indícios suficientes do cometimento do crime pelo arguido, o inquérito não terminar com a dedução da acusação antes ficando suspenso durante um certo período, com a sujeição do arguido a injunções e regras de conduta fixadas pelo Ministério Público com a concordância do juiz, encontra-se previsto nos art.ºs 281.º e 282.º, do Código de Processo Penal [no que respeita à fase de inquérito].
Dispõe o art.º 281.º, do Código de Processo Penal:
“1 - Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza;
d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
e) Ausência de um grau de culpa elevado; e
f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.
2 - São oponíveis ao arguido, cumulativa ou separadamente, as seguintes injunções e regras de conduta:
a) Indemnizar o lesado;
b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c) Entregar ao Estado, a instituições privadas de solidariedade social, associação de utilidade pública ou associações zoófilas legalmente constituídas certa quantia ou efetuar prestação de serviço de interesse público;
d) Residir em determinado lugar;
e) Frequentar certos programas ou actividades;
f) Não exercer determinadas profissões;
g) Não frequentar certos meios ou lugares;
h) Não residir em certos lugares ou regiões;
i) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas;
j) Não frequentar certas associações ou participar em determinadas reuniões;
l) Não ter em seu poder determinados animais, coisas ou objetos capazes de facilitar a prática de outro crime;
m) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso.
3 - Em processos por crime de corrupção, de recebimento ou oferta indevidos de vantagem ou de criminalidade económico-financeira, é sempre oponível à arguida que seja pessoa coletiva ou entidade equiparada a injunção de adotar ou implementar ou alterar programa de cumprimento normativo, com vigilância judiciária, adequado a prevenir a prática dos referidos crimes.
4 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, tratando-se de crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, é obrigatoriamente oponível ao arguido a aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos com motor.
5 - Não são oponíveis injunções e regras de conduta que possam ofender a dignidade do arguido.
6 - Para apoio e vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta podem o juiz de instrução e o Ministério Público, consoante os casos, recorrer aos serviços de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades administrativas.
7 - A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é susceptível de impugnação.
8 - Em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.”.
No regime regra, a suspensão provisória pode ser da iniciativa do Ministério Público ou pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente e depende da verificação cumulativa, dos seguintes pressupostos (art.º 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal):
- Concordância do arguido e do assistente;
- Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
- Ausência de aplicação anterior da suspensão provisória por crime da mesma natureza;
- Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
- Ausência de um grau de culpa elevado; e
- Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta deem resposta suficiente às exigências de prevenção;
- Concordância do juiz de instrução.
O que confere carácter consensual a esta modalidade de justiça restaurativa é a necessária concordância, quanto à sua aplicação, quer do arguido, quer do assistente.
Nenhuma justificação é exigível para as respetivas declarações de vontade, sendo bastante a simples afirmação de concordância com a suspensão, mas esta concordância deve abranger a totalidade da decisão de suspensão (cf. Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, obra coletiva, 2014, Almedina, p. 984).
Ao lado do regime geral, a lei prevê regimes especiais de suspensão provisória, para determinados tipos legais, entre eles, para o crime de violência doméstica não agravado pelo resultado [crime objeto dos autos].
No regime aplicável a este crime, compete à vítima, independentemente de ter ou não a qualidade de assistente, a iniciativa de desencadear o processo, mediante requerimento livre e esclarecido, e depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos (art.º 281.º, n.º 8, do Código Processo Penal):
- Concordância do arguido;
- Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
- Ausência de aplicação anterior da suspensão provisória por crime da mesma natureza;
- Concordância do juiz de instrução.
Aqui chegados, a questão fulcral do presente recurso é a de saber se ao estribar a sua decisão de discordância com a aplicação da suspensão provisória do processo em pressupostos inaplicáveis ao caso que lhe foi apresentado, extravasando, dessa forma, as competências que estavam acometidas, incorreu o senhor juiz de instrução do Tribunal a quo na nulidade prevista no art.º 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, relativa à violação das regras de competência do tribunal.
A concordância do juiz de instrução (quanto à suspensão provisória do processo) não estava prevista no projeto do Código de Processo Penal, tendo sido imposta pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87, que, fazendo notar um défice de intervenção jurisdicional na versão do art.º 281.º constante do projeto – preceito que permitia ao Ministério Público impor injunções e regras de conduta ao arguido, sem o aval de um juiz –, determinou a sua inconstitucionalidade.
Como refere o Conselheiro Maia Costa, na declaração de voto constante do AUJ n.º 16/2009, 24 de dezembro [que fixou jurisprudência no sentido que que “A discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, não é passível de recurso”], a “concordância do juiz de instrução criminal (JIC) a que se refere o n.º 1 do art.º 281.º, do Código de Processo Penal não é paralela à concordância exigida às partes (arguido e assistente) para a viabilização da suspensão provisória do processo, a qual não é mais do que a simples expressão das suas vontades, enquanto pessoas livres e autónomas.
A intervenção do JIC, enquanto garante das liberdades, terá em conta não só a verificação dos pressupostos formais da suspensão [enunciados no corpo e nas alíneas a) a d) do n.º 1 do citado artigo], como também os pressupostos materiais [alíneas e) e f) do mesmo número, e n.º 3 do mesmo artigo].
O JIC, concordando ou discordando, não exprime uma vontade pessoal, livre, ou incondicionada, antes está vinculado aos pressupostos de natureza material e de política criminal que estão subjacentes à criação do instituto da suspensão provisória do processo. Ele decide se estão ou não verificados os pressupostos formais e materiais de aplicabilidade da suspensão. Por isso, a «concordância» não é um mero «pressuposto formal», antes constitui materialmente uma decisão jurisdicional.
Funcionando embora como pressuposto do despacho do MP, é a “concordância” do JIC, que constitui uma autorização que confere àquele a legitimidade constitucional para determinar a suspensão. Ao autorizar a suspensão, o JIC outorga ao subsequente despacho do MP aquele suplemento de jurisdicionalidade que o legitima materialmente, tratando-se de um verdadeiro acto decisório do juiz.”.
E embora na génese da afirmação da necessidade constitucional de controlo jurisdicional tivesse estado a intervenção do juiz, configurado, em primeira linha, como “juiz das liberdades” – o garante dos direitos, liberdades e garantias, em particular dos cidadãos confrontados com um processo de investigação criminal – logo se reconheceu que a intervenção judicial não está limitada à constatação dos pressupostos meramente formais, e deve abranger, também, a verificação dos conceitos abertos nela inscritos e, nomeadamente:
i) Ausência de um grau de culpa elevado;
ii) Previsibilidade de que o conjunto das injunções responda às exigências de prevenção.
A questão está em saber se o senhor juiz de instrução, tal como o fez, poderia fundamentar a sua decisão de não concordância com a suspensão provisória do processo recorrendo àqueles pressupostos e, em caso negativo, se com tal fundamentação extravasou a sua competência, os seus poderes, no caso do crime de violência doméstica, incorrendo na prática de uma nulidade, por violação das regras de competência do tribunal, com todos os efeitos legais daí advindos e previstos no mencionado art.º 122.º, do Código de Processo Penal.
A al. e) do art.º 119.° (sob a epígrafe “nulidades insanáveis”), do Código de Processo Penal, estipula que:
“Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.° 2, do artigo 32.°; “.
Por seu lado, o art.º 122.°, do mesmo código (sob a epígrafe “efeitos da declaração de nulidade”) estatui que:
“1 - As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.
2 - A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.”
Ora, in casu, salvo melhor opinião, não se verifica a nulidade prevista nos supra transcritos.
O senhor juiz de instrução criminal, no caso em apreço, considerou que:
“Face à nossa experiência judiciária, verificamos um aumento contínuo do número de crimes de violência doméstica. Entendemos que perante tal aumento e sendo notório que estamos perante um os mais relevantes flagelos criminais da actualidade, compete ao Tribunal adequar, dentro dos poderes conferidos pela CRP e pela Lei e sempre com integral respeito pelos direitos dos sujeitos processuais, as concretas medidas a adoptar.
Quer na intervenção jurisdicional em sede de inquérito quer na intervenção na fase de instrução, temos vindo a rejeitar a concordância com a aplicação da S.P.P. sempre que o crime de violência doméstica tiver implícita violência física relevante, sendo tal o nosso critério objectivo para não transformar um flagelo criminal num flagelo ainda de maior dimensão, competindo aos órgãos de soberania a intervenção séria e robusta dentro das competências estabelecidas.
Tal equivale a dizer que quer ao nível da culpa quer ao nível da ilicitude, não concordamos que exista uma qualquer diminuição relevante.”
Na redação do preceito, ao ser introduzido como requisito para o decretamento da suspensão pelo Ministério Público da concordância do juiz, o âmbito da verificação incumbida a este, em ordem a manifestá-la ou recusá-la tem sido várias vezes questionado, surpreendendo-se dois entendimentos na jurisprudência dos tribunais superiores.
Um, minoritário, que restringe a intervenção do juiz de instrução à verificação de questões que contendem com direitos fundamentais do arguido, estando-lhe vedada a avaliação dos indícios do inquérito com vista a apurar a intensidade do grau de culpa e a conformidade das injunções e deveres de conduta determinados pelo Ministério Público.
Outro, largamente maioritário, pronuncia-se no sentido de que o juiz de instrução pode recusar a sua concordância à suspensão provisória do processo com o fundamento de que as injunções e regras de conduta propostas pelo Ministério Público são insuficientes para satisfazer as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir, apoiando-se em razões de diversa ordem, conforme se colhe dos excertos a seguir transcritos (sendo nossos os sublinhados que não constam nos textos originais):
“(…) ao Juiz de Instrução incumbe verificar a existência dos pressupostos da suspensão do processo e entre eles necessariamente formular um juízo sobre a adequação das injunções e regras de conduta às necessidades de prevenção que se fazem sentir no caso. É essa única interpretação que o normativo no segmento “ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir” consente.
Por conseguinte, não tem apoio na letra da lei o entendimento restritivo expresso na conclusão 1) de que: “O consentimento judicial à suspensão provisória do processo justifica-se pela necessidade de evitar a aplicação de injunções ou regras de conduta arbitrárias ou desproporcionais.
(…) no actual figurino processual penal a intervenção do juiz de instrução não se queda apenas pela prática de actos ou autorização para a pratica de actos que podem colidir com direitos, liberdades e garantias está também prevista nomeadamente em actos que exigem operações que “na essência se aproxima muito do trabalho próprio do juiz” como assinala José Souto Moura [Apontamentos de direito processual penal, III Vol. - Aulas teóricas dadas ao 5º ano, 1994/1995”, coordenadas por Teresa Pizarro Beleza, pag. 83.], em que “o Ministério Público pode ser chamado a decidir-se por uma determinação concreta da competência, por uma suspensão, ou por um arquivamento do processo em caso de isenção ou dispensa de pena.”. ”[3 - ibidem], tendo sido justamente por isso que se introduziu na versão final do Código (…) a concordância do juiz de instrução que assim exerce um controle jurisdicional imediato dessa actividade do Ministério Público. (…).
Neste quadro está fora de cogitação a invocada usurpação de poderes.
(…)
A matriz acusatória do processo caracteriza-se, no plano da estrutura e articulação das fases do processo, pela separação de poderes entre o órgão acusador e órgão que julga os factos o que co-determina por sua vez o principio da acusação. (…).
Ora, nessa medida o mecanismo previsto no art.º 281º, representa uma excepção ou pelo menos um limite a esse princípio de acusação uma vez que está delineado justamente como alternativa à acusação. No entanto, o núcleo essencial do princípio permanece respeitado na medida em que o MP investiga e imputa factos e propõe verificados os requisitos a suspensão provisória do processo, dependendo a mesma da concordância de outra entidade diferente (juiz), que não intervém na investigação e muito menos na imputação de factos.” [acórdão do TRP, de 01.07.2009, proc. n.º 287/09.3PBMTS-A.P1].
A suspensão provisória do processo oferece-se, pois, com uma decisão do Ministério Público, sujeita, no entanto, à concordância do juiz de instrução.
Qual o sentido e alcance desse juízo de concordância? O assentimento do juiz de instrução traduz-se numa concordância tecnicamente vinculada. Ou seja, confrontado com a decisão do Ministério Público de suspender provisoriamente o processo nos termos do art.º 281.°, do Código de Processo Penal, o juiz de instrução criminal deverá indagar se estão reunidos os pressupostos em que aquela decisão necessariamente se deve fundar, verificando:
- Se o crime indiciado é punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão;
- Se existe concordância do arguido e do assistente;
- Se o arguido não foi anteriormente condenado por crime da mesma natureza;
- Se o arguido ainda não foi objeto de suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza;
- Se não há lugar a medida de segurança de internamento;
- Se a culpa não reveste um grau elevado;
- Se é legítimo o juízo de prognose relativamente à eficácia das concretas exigências de prevenção; e
- Se as injunções e regras de conduta a impor não ofendem a dignidade do arguido.
Pode o juiz discordar da suspensão provisória do processo por entender que a culpa do arguido é elevada e que é previsível que as injunções propostas não responderão, eficazmente, perante as exigências de prevenção geral e as demandas de prevenção especial?
Considerada a situação em abstrato, a resposta só pode ser uma: não só pode, como deve.
É precisamente para que o juiz controle a legalidade da suspensão provisória do processo que a lei impõe a obtenção da sua concordância, sendo certo que esta se impõe a partir do momento em que se verifiquem os pressupostos apontados na lei. E entre esses pressupostos contam-se a inexistência de uma culpa de grau elevado – portanto, uma culpa que não exceda a mediania – e o juízo de adequação das injunções e regras de conduta às concretas exigências de prevenção, previstos nas alíneas e) e f) do n.º 1, do art.º 281.°, do Código de Processo Penal.
Precisamente porque se trata de uma imposição legal conformadora da intervenção judicial no controle da legalidade da suspensão provisória do processo, não vemos que ocorra inconstitucionalidade na interpretação que assim o entende [ fundada na violação do princípio do acusatório].
Incumbe, pois, ao juiz de instrução, na fase de inquérito, ou ao juiz de julgamento, em processos sumário ou abreviado, sindicar e, como tal, examinar e controlar judicialmente o despacho do Ministério Público no sentido da suspensão provisória do processo.
Essa decisão do juiz não é meramente formal, antes “materialmente jurisdicional” [Fernando Pinto Torrão, A Relevância Político-Criminal da Suspensão Provisória do Processo, Coimbra: Almedina, 2000, p. 196 e 197], traduzindo-se numa “expressão da administração da justiça” [Fernando Torrão, ob. cit., p. 193] – tarefa dos tribunais – art.º 202.º n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tanto mais que estão em causa atos que se prendem com direitos fundamentais e que conduzem a maiores ou menores restrições desses mesmos direitos [também acórdão do TRP, de 18.03.2009, no processo 1856/08.4PBMTS.P1].
Nessa medida, impõe-se ao juiz verificar se estão preenchidos todos os pressupostos (formais e materiais) de que depende a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo.
Só assim o juiz dispõe das condições necessárias para poder avaliar se a suspensão provisória do processo é ou não arbitrária, se as injunções e regras de conduta são ou não proporcionais ou se, por exemplo, podem ofender a dignidade do arguido.
A independência, imparcialidade e autonomia da atuação judicial passa pela análise de cada caso concreto e pela avaliação dos pressupostos da suspensão provisória do processo: só assim o juiz conseguirá alcançar um juízo de concordância ou discordância que não seja em si mesmo arbitrário.
A intervenção do juiz de instrução, enquanto garante das liberdades, terá em conta, como acima se disse, não só a verificação dos pressupostos formais da suspensão [enunciados no corpo e nas alíneas a) a d), do n.º 1, do citado art.º 281.º], como também os pressupostos materiais [alíneas e) e f) do mesmo número e do mesmo artigo].
O juiz de instrução, concordando ou discordando, não exprime uma vontade pessoal, livre, ou incondicionada, antes está vinculado aos pressupostos de natureza material e de política criminal que estão subjacentes à criação do instituto da suspensão provisória do processo.
Funcionando embora como pressuposto do despacho do Ministério Público, é a concordância do juiz de instrução que constitui uma autorização que confere àquele a legitimidade constitucional para determinar a suspensão. Ao autorizar a suspensão, o juiz de instrução outorga ao subsequente despacho do Ministério Público aquele suplemento de jurisdicionalidade que o legitima materialmente, tratando-se de um verdadeiro ato decisório do juiz.
E no que se refere aos crimes de violência doméstica não agravado pelo resultado, e aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravado pelo resultado, que tratam especificamente os n.ºs 8 e 9, do art.º 281.°, do Código de Processo Penal?
É que, como se pode ler nos citados números, a lei apenas remete para os pressupostos previstos nas alíneas b) e c), do n.º 1, diferenciando-se do n.º 1, do art.º 281.°, que refere “sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:”.
É aqui que se estriba, pois, a pretensão do recorrente no recurso interposto quando refere que o senhor juiz de instrução extravasou as suas competências ao invocar o disposto nas alíneas e) e f), do n.º 1, do art.º 281.°, do Código de Processo Penal, estando-lhe vedado, no crime de violência doméstica, de recorrer a tais pressupostos [vide conclusões 1., 4. e 5. da motivação de recurso]:
“Em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, versa o artigo 281.º, n.º 8, do Código de Processo Penal, que são requisitos da aplicação da Suspensão Provisória do Processo em processos como o em apreço, além da necessária concordância do Juiz de Instrução e do arguido, a existência de requerimento livre e esclarecido da vítima, solicitando a aplicação do instituto, a ausência de condenação anterior do arguido por crime da mesma natureza e a ausência de aplicação anterior de Suspensão Provisória do Processo por crime da mesma natureza.
Contudo, fundamentou tal discordância no que cremos ser a verificação de graus de culpa e de ilicitude elevados (ou, pelo menos, não relevantemente diminuídos), nada sendo aduzido quanto aos pressupostos da Suspensão Provisória do Processo descritos no acima referido n.º 8, do artigo 281.º, do Código de Processo Penal, donde se intui que nada haveria a apontar à sua verificação em concreto.
Ora, ao estribar a sua decisão de discordância com a aplicação da Suspensão Provisória do Processo em pressupostos inaplicáveis ao caso que lhe foi apresentado, extravasando, dessa forma, as competências que estavam acometidas, incorreu o Mmo. Juiz de Instrução do Tribunal a quo na nulidade prevista no artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, relativa à violação das regras de competência do tribunal.”
Ora, com todo o respeito, não vemos qual seja o fundamento legal e muito menos constitucional deste entendimento.
Isto porque, em termos estritamente jurídico-legais, inexiste norma legal que restrinja os fundamentos da discordância do juiz de instrução relativamente à suspensão provisória do processo, seja qual for o crime.
Ora se, com fundamento nas diversas alíneas, no n.º 1, do art.º 281.º, do Código de Processo Penal, o senhor juiz de instrução pode proferir um despacho de discordância do instituto da suspensão provisória do processo, não faria sentido não poder discordar do mesmo, estando em causa crimes de violência doméstica não agravado pelo resultado, e contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravado pelo resultado, crimes alegadamente mais graves (puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, como é o caso dos crimes previstos no art.º 172.º, n.º 1, 175.º e 176.º, n.º 2, do Código Penal) do que os cabíveis no n.º 1, do citado preceito.
Quando as normas previstas nos n.ºs 8 e 9, do art.º 281.º, do Código de Processo Penal, se referem às alíneas b) e c), do n.º 1, deste preceito legal, só podem referir-se aos pressupostos formais e já não materiais, previstos nas alíneas e) e f), do n.º 1, do art.º 281.°, que podem e devem ser analisados em qualquer decisão de concordância/discordância da suspensão provisória do processo. Não faria sentido de outro modo. Eles estão lógica e valorativamente implícitos na ponderação do interesse da vítima.
Neste sentido vai Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., p. 765], referindo-se à norma prevista no n.º 8, do citado art.º 281.º: “os requisitos da culpa não elevada e da adequação das injunções e regras de conduta não podem deixar de ser aplicáveis também neste caso, embora o legislador os tenha omitido (contra Rui do Carmo, 2008: 329 e 330, e Sónia Fidalgo, 2008, b: 291, que defendem uma solução contraditória com a opção político-criminal da reforma do CP de 2007).
Como se lê no acórdão deste TRE, de 30.09.2014 (disponível em www.dgsi.pt), em que foi relator Renato Barroso:
O “interesse público que condiciona o juízo de concordância ou não concordância do JIC em relação à proposta do M.P. de suspensão provisória do processo, abarca, necessariamente, todos os elementos que a constituem, quer formais, quer materiais, desde a existência de indícios de crime e respectiva punibilidade, à dimensão e natureza das injunções e regras de conduta promovidas, cabendo-lhe ainda aferir, em concreto, se as mesmas atentam contra a dignidade pessoal do arguido ou atingem o núcleo dos seus direitos fundamentais.
Mas a norma em causa (als. e) e f) do nº1 do artº 281.º do CPP), igualmente exige que o JIC apure se os autos revelam uma inexistência de um grau elevado de culpa e se é previsível que as injunções propostas responderão, eficazmente, perante as exigências de prevenção geral e as demandas de prevenção especial.
Estes conceitos, de natureza algo aberta, como acertadamente se diz no mencionado aresto de fixação de jurisprudência, exigem uma avaliação jurisdicional, de ponderação do grau de culpa, de aferição do juízo de censura, de apreciação da própria dimensão do desvalor social da acção e das necessidades em sede de prevenção especial, que não só justificam como impõem que o JIC, no âmbito da sua vinculação pública como juiz dos direitos, liberdades e garantias, não dê a sua concordância à proposta de suspensão provisória do processo, quando entender que algum daqueles vectores não se mostra suficientemente verificado, o que, naturalmente, consubstanciará a ausência de preenchimento da totalidade dos pressupostos exigidos pelo art.º 281 do CPP.”.
Foi o que sucedeu no caso concreto, em que o senhor juiz de instrução – bem ou mal, não importa para o presente caso, na medida em que neste não se aprecia o decidido quanto à discordância da suspensão provisória do processo, mas apenas se aprecia se o despacho recorrido está ferido de nulidade – fundamentou as razões pelas quais, em sua opinião, não se verificava a previsão da alínea c), do n.º 1, do art.º 281.º, do Código de Processo Penal, pelo que, e neste conspecto, não deu o seu acordo à pretendida suspensão provisória do processo.
Sendo naturalmente discutível – como o são todas as decisões judiciais – não se verifica qualquer nulidade do despacho em causa, na medida em que o mesmo se traduz na exigência decorrente do citado comando legal, de aferição jurisdicional da globalidade dos pressupostos da suspensão provisória do processo, nos quais se inclui, como é evidente, o teor da alínea e), do seu n.º 1.
No mesmo sentido, quanto à natureza e limites da intervenção do juiz de instrução nesta matéria, veja-se o acórdão do TRG, de 05.03.2018, disponível em www.dgsi.pt.
Neste se pode ler, aliás, numa similitude à dos presentes autos, que:
«Por outro lado, temos que o recorrente, não se contentando com a posição do Juiz ao não aceitar a suspensão provisória do processo, e sendo esse despacho irrecorrível, por força da Jurisprudência fixada no acórdão n.º 16/2009, de 24/12/2009, o qual refere que "a discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do nº l do artigo 281° do Código de Processo Penal, não é recorrível", veio rodear tal proibição, forçando esse mesmo Juiz de Instrução a proferir novo despacho sobre a matéria, despacho este a que, formalmente, já não estaria vedada a interposição de recurso.
No entanto, tratou-se apenas de forçar uma formalidade, já que o que o recorrente pretende do segundo despacho proferido pelo Juiz, atento o requerimento que lhe deu origem, é precisamente a nulidade do primeiro, e, consequentemente, a alteração da decisão de fundo, isto é, que o juiz decida no sentido da suspensão provisória do processo, como pretendia desde o início, independentemente da opinião daquele Magistrado sobre o caso concreto.»
Decorrentemente, só podemos concluir pela inverificação da nulidade arguida pelo recorrente, Ministério Público, e consequente falência do recurso, não cabendo sindicar a correção dos concretos fundamentos nos quais, no caso, assentou a discordância do senhor juiz de instrução, não só porque isso implicaria a apreciação de um despacho que não foi objeto de recurso, como o recurso do mesmo nem seria admissível face à jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 16/2009 e já aludida.
Pelo exposto, o recurso terá de improceder.
*
IV – DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, as Juízas que integram a 2.ª subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique.
**
Évora, 03 de junho de 2025 (o presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelas suas signatárias – art.º 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal)