INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
VERIFICAÇÃO DO PASSIVO
PROVA DOCUMENTAL
Sumário

I – Ao contrário do anterior modelo processual do Inventário em que as diligências destinadas à verificação e aprovação do passivo tinham lugar na Conferência de Interessados (cf. art. 1353º, nº 3 do CPC de 1961 na redação do DL 329-A/95), no novo regime do inventário, implementado pela Lei nº 117/2019 de 13 de Setembro, antecipou-se, em regra, o momento da eventual controvérsia acerca da verificação do passivo, para a fase dos articulados (como resulta do disposto no art. 1104º, nº 1, al. e), do n.C.P.Civil).
II – Na modalidade do inventário para separação de bens [no caso de penhora de bens comuns do casal], o nº3 do art. 1135º do n.C.P.Civil determina expressa e literalmente que só podem ser aprovadas dívidas que estejam devidamente documentadas.
III – No caso de se considerar que a prova documental é insuficiente para demonstrar a existência de uma dívida da herança, devem atuar-se os princípios do inquisitório e da cooperação, no segmento em que se ligam com a área da prova.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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                                                                       *

         Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                     *

            1 - RELATÓRIO

           Por apenso à execução que era movida por “A..., Unipessoal, Lda.” a AA, BB, requereu inventário para separação de meações contra a dita executada e seu cônjuge,  para o qual ele Requerente veio a ser nomeado cabeça de casal.

O processo seguiu os seus regulares termos, designadamente com a apresentação da relação de bens, contemplando ativo e passivo, sendo que ulteriormente a mesma veio a figurar com o seguinte concreto teor (cf. reqº de 14.04.2022):

«ACTIVO

Bens Imóveis

Verba Um

Prédio Urbano, sito na Rua ..., ..., lugar e freguesia de ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...42 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...75, ao qual atribui o valor de €160.897,17

PASSIVO

Verba Dois

Divida do património conjugal ao Cabeça de Casal BB a título de pagamento à Banco 1..., C.R.L., Processo Executivo nº 549/13...., no valor de 52.407,87€

Verba Três

Divida do património conjugal ao Cabeça de Casal BB a título de pagamento ao Credor B..., S.A., Processo Executivo nº 120/12...., no valor de 38.288,50€

Verba Quatro

Divida do património conjugal ao Cabeça de Casal BB a título de pagamento ao Credor C..., Limitada, no valor de 5.500,00€

Verba Cinco

Divida do casal ao Banco 2..., no âmbito do contrato de crédito à habitação, garantido por hipoteca que incide sobre a verba Um, valor em divida 106.829,39€

Verba Seis

Divida da Cônjuge mulher à empresa A..., Unipessoal, Lda, com sede na Rua ..., ..., ... ..., valor do crédito 18.456,47€»

                                                           *

A Requerida não apresentou qualquer reclamação a essa relação de bens, ao invés do credor/exequente “A..., Unipessoal, Lda.”, o qual, notificado dela, em 08.02.2024 apresentou reclamação, pedindo a eliminação das verbas nos 2 e 3 do passivo.

A esta reclamação respondeu o requerente/cabeça de casal, em 22.02.2024, justificando a relação de bens em causa e pugnando pela sua manutenção, sendo que para prova do alegado indicou 3 testemunhas.

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           Em 07/06/2024 pela Exma. Juiz de 1ª instância foi proferido despacho de apreciação e decisão dessa reclamação, com o seguinte concreto teor:

«I. Requerimento de 8-02-2024 – A credora A..., Unipessoal, Lda. veio reclamar da relação de bens apresentada em 25-01-2024, pedindo a eliminação das verbas n.º 2 e 3 do passivo.

Dispõe o artigo 1085.º, n.º 2, alínea b), do CPC que os credores da herança podem intervir num processo de inventário pendente nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos.

Por outro lado, o artigo 1106.º, n.º 1, estabelece que “as dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas”, e o artigo 1111.º, n.º 3, que “aos interessados compete ainda deliberar sobre o passivo e a forma do seu pagamento”.

Por último, o artigo 1135.º, n.º 3, que regula a separação de bens nos casos de penhora de bens comuns do casal, estipula que “só podem ser aprovadas dívidas que estejam devidamente documentadas”.

No caso dos autos, a credora pretende insurgir-se contra a inclusão de duas verbas do passivo na relação de bens.

Contudo, a credora carece de legitimidade para o efeito (nomeadamente para impugnar outras verbas do passivo), conforme resulta do artigo 1106.º, n.º 1, que reserva tal impugnação aos interessados diretos (sendo que, neste caso, mais nenhuma reclamação foi efetuada).

Como tal, a reclamação em apreço deve ser indeferida, não obstante salientar-se que na deliberação a efetuar pelos interessados na conferência só poderão ser aprovadas dívidas que estejam devidamente documentadas.

Face ao exposto, indefiro a reclamação apresentada pela credora A..., Unipessoal, Lda..

Notifique.

*

II. Para realização da conferência de interessados, neste Tribunal, designo o dia 27 de junho de 2024, às 14h30 – artigo 1110.º, n.º 2, alínea b), do CPC.

Objeto da conferência: realização das finalidades previstas no artigo 1111.º, n.º 2, do CPC e eventuais licitações, nos termos do artigo 1133.º, n.º 1, do CPC.

Notifique, nos termos do artigo 1110.º, n.º 4 e 5, do CPC.»

                                                                       *

           Por reqº de 1.10.2024, subscrito por cabeça de casal e interessada, os mesmos vieram comunicar que haviam acordado em aditar uma verba do passivo na relação de bens[2],  que haviam aprovado a totalidade do passivo relacionado na Relação de Bens e que vinham corrigir o valor da verba cinco[3], finalizando com um acordo de partilha dos bens entre ambos, nos concretos termos explicitados.

                                                                       *

Na Conferência de Interessados, realizada no dia 12.12.2024, concretamente no que à questão do passivo diz respeito, valor do passivo ao Banco 2... e acordo de partilha encontra-se consignado o seguinte:

«(…)

Pela Mm. ª Juiz de Direito foi proferido despacho quanto ao passivo, no qual apenas aprovou a verba 5 da relação de bens apresentada no requerimento de 1-10-2024, por apenas esta se encontrar documentada, tenho sido o crédito reconhecido na sentença proferida no apenso de reclamação de créditos. Esclareceu ainda que a dívida exequenda (verba 6) da mesma relação de bens não é uma dívida comum do casal (mas uma dívida do cônjuge mulher), pelo que não deve constar do passivo comum.

***

Pedida que foi a palavra pela Il. Mandatária do Credor Banco 2..., pela mesma foi comunicado que ao dia de hoje, encontram-se em dívida ao seu constituinte o montante de 98.977,03€ (noventa e oito mil, novecentos e setenta e sete euros e três cêntimos), valor que foi aceite pelos demais e que será o que fica a constar da relação de bens.

*

Dada a palavra à Il. Mandatária do Cabeça de Casal, a fim de a mesma se pronunciar quanto à escolha do bem, tendo a mesma referido não estar neste comento em condições de o fazer, face à alteração que antecede quanto ao passivo e que alterou os termos do acordo alcançado entre as partes, uma vez que necessita falar com o seu constituinte e tal não é possível ocorrer neste momento, tendo solicitado que a presente diligência fosse adiada para nova data.

Concedida a palavra aos Ils. Mandatários, a fim de os mesmos se pronunciarem quanto ao requerido, pelos mesmos não foi referido nada terem a opor.

*

De seguida pela Mm. ª Juiz de Direito foi proferido o seguinte:

DESPACHO

Atento o requerido, existindo concordância das partes, bem como conciliação de agendas, designo o próximo dia 20 de Dezembro de 2024, pelas 11.30H para continuação da presente conferência.

(…)»

                                                           *

Dizendo-se inconformado com o «despacho proferido na conferência de Interessados, de 12.12.2024, de determinação dos bens a partilhar, não podendo o recorrente concordar com o mesmo na parte em que apenas foi aprovada a verba 5 da relação de bens apresentada no requerimento de 1.10.2024», veio o dito Cabeça de Casal BB interpor recurso de apelação, admitido com subida imediata e efeito meramente devolutivo, cujas alegações rematou com as seguintes conclusões:

«1- Vem o presente Recurso interposto, ao abrigo do disposto no artigo 1123º, nº2, alínea b), do douto despacho proferido na conferência de Interessados, de 12.12.2024, de determinação dos bens a partilhar, não podendo o recorrente concordar com o mesmo na parte em que apenas foi aprovada a verba 5 da relação de bens apresentada no requerimento de 1.10.2024.

2-O qual se circuncreve às seguintes questões:

Da nulidade do despacho por falta de fundamentação

Da existência do passivo mencionado na relação de bens

3-Entendeu o Tribunal “a quo”, no que respeita à relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, apenas aprovar a verba 5 da relação de bens, por entender que apenas esta se encontrava documentada.

4-O douto despacho nada refere relativamente às restantes verbas do passivo mencionadas na relação de bens.

5- Foi apresentada relação de bens corrigida, na qual foram relacionadas as verbas do passivo que foram liquidadas pelo cabeça de casal, já no decurso dos presentes autos, como divida ao cabeça de casal, tendo sido juntos os documentos comprovativos da extinção das instâncias.

6-A interessada AA, não apresentou qualquer reclamação contra a relação de bens, tendo aceite a mesma.

7-O credor A..., Lda, veio apresentar reclamação contra a relação de bens corrigida.

8-O cabeça de casal apresentou resposta à reclamação e indicou testemunhas.

9-Sobre este requerimento não recaiu qualquer despacho, nem foram ouvidas as testemunhas indicadas.

10-Na conferência de interessados realizada em 12.12.2024, foi proferido despacho quanto ao passivo, no qual apenas aprovou a verba 5 da relação de bens apresentada no requerimento de 01.10.2024, por apenas esta se encontrar documentada.

11-O douto despacho é omisso na sua fundamentação quer de facto quer de direito no que respeita à não aprovação das verbas 2,3,4 e 7 da relação de bens.

12-O douto despacho, que ora se recorre, é nulo porque não se encontra devidamente fundamentado.

13-Tendo ainda o Tribunal deixado de se pronunciar sobre questões que deveria apreciar, nomeadamente quanto ao requerimento apresentado em 22.02.2024, no qual foi indicada prova testemunhal, não tendo havido pronúncia sobre o mesmo.

14-O douto despacho é nulo, nos termos do artigo 615º, nº1, al. b) do CPC, aplicável aos despachos por força do artº 613º, nº3 do mesmo diploma, por ausência de fundamentação, o que constitui nulidade, conforme disposto no artigo 195º do CPC, que agora se invoca para todos os efeitos legais.

15-O douto despacho violou o disposto no artigo 615º, nº1, al. b) do CPC.

TERMOS EM QUE

Com o douto suprimento, deve o presente recurso ser julgado procedente, devendo o douto despacho, proferido em 12.12.2024, ser declarado nulo e, assim ser revogado.

E, só assim, se fará a tão acostumada JUSTIÇA!!! » 

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            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

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           Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

           - nulidade da decisão recorrida [por alegadas falta de fundamentação (cf. art. 615º, nº1, al. b) do n.C.P.Civil) e de pronúncia]?;

            - desacerto da decisão que apenas aprovou a verba 5 da relação de bens, por entender que apenas esta se encontrava documentada?

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é a que consta do relatório que antecede.

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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 – Questão da nulidade da decisão recorrida [por alegadas falta de fundamentação (cf. art. 615º, nº1, al. b) do n.C.P.Civil) e de pronúncia]:

Consabidamente, nos termos do disposto no art. 615º, nº1, al.b) do n.C.P.Civil, a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

Sendo certo que este regime se aplica, com as necessárias adaptações, aos despachos (cf. art. 613º, nº 3 do n.C.P.Civil).

Ora, temos presente o corrente entendimento de que a sentença só é nula por falta de fundamentação quando seja de todo omissa relativamente à fundamentação de facto ou de direito.

Sem embargo, importa ter em conta o mais completo e rigoroso entendimento quanto a este particular, que é o de que também e ainda ocorre essa nulidade “quando a fundamentação de facto ou de direito seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial[4].

Consequência da inobservância deste dever de fundamentação será então a nulidade da decisão recorrida, que não especificou os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – cfr. arts. 615º, nº 1, al. b) e 613º, nº 3 do n.C.P.Civil.

Mas será que na decisão sob recurso conclusivamente se expôs a convicção a que se chegou, com base em premissas não explicitadas ou cujo sentido não fosse apreensível?

Não ocorreu isso de todo!

Muito antes pelo contrário: a Exma. Juíza a quo, foi muito expressa e clara em sustentar o entendimento de que apenas aprovava a verba 5 da relação de bens (apresentada no requerimento de 1-10-2024), por apenas esta se encontrar documentada, isto é, ficou perfeitamente apreensível que só essa verba do passivo era aprovada e que tal se devia a só essa verba se mostrar documentada!

Por outro lado, o que se denota é que o Requerente/recorrente discorda da interpretação e aplicação que da lei foi feita.

Só que isso é outro patamar da questão…, sendo certo que a ter havido erro de julgamento, tal será aquilatado nesta instância de recurso, sendo essa a função primordial do recurso interposto e a que este Tribunal está interpelado, o que o mesmo cumprirá face à “motivação” que foi enunciada nas decisões e que constitui o percurso lógico-jurídico das mesmas.

Apreciação essa de que se tratará na sequência.

Passando agora à apreciação da outra vertente da nulidade – a da falta de pronúncia.

Embora o Requerente/recorrente não tenha indicado a norma legal atinente – que seria a al. d) do art. 615º, nº1 do n.C.P.Civil – parece-nos inquestionável que está aqui em causa a invocação da alegada falta de pronúncia quanto ao requerimento que o mesmo havia apresentado de “resposta” à reclamação à relação de bens apresentada pelo credor “A..., Unipessoal, Lda.”, a saber, o seu requerimento através do qual justificou a relação de bens em causa e pugnou pela sua manutenção, sendo que para prova do alegado indicou 3 testemunhas (que não foram “ouvidas”).

Que dizer?

Quanto a nós, que não assiste qualquer razão ao Requerente/recorrente.

É que a reclamação à relação de bens em causa foi apreciada e decidida pelo despacho datado de 07/06/2024 [cf. Relatório supra], o qual foi no sentido do indeferimento dessa reclamação, face ao que, natural e logicamente, ficou prejudicada a apreciação e produção de prova apresentada pelo Requerente/recorrente.

Não houve assim qualquer omissão de pronúncia, antes ocorreu a simples e determinante razão de que esse requerimento apresentado pelo Requerente/recorrente ficou prejudicado na sua apreciação.

Termos em que, sem necessidade maiores considerações, improcede esta arguição de nulidade.

                                                           *

4.2 – O Requerente/recorrente pugna ainda pelo desacerto da decisão que apenas aprovou a verba 5 da relação de bens, por entender que apenas esta se encontrava documentada.

Que dizer?

Em nosso entender – e releve-se o juízo antecipatório! – assiste-lhe razão nesta parte, pois que, na verdade, compulsados os autos e apensos, se verifica existir “documentação”.

Mas antes de afrontarmos essa questão, importa começar por assentar alguns pressupostos dogmáticos nesta matéria, e que desde logo contendem com a tempestividade/legalidade da decisão recorrida no momento temporal [na Conferência de Interessados] em foi tomada.

Senão vejamos.

O novo regime do processo de inventário[5]  alterou de modo radical o arquétipo deste tipo de processo, aproximando-o da ação declarativa, dando-se agora relevo ao princípio da auto responsabilidade das partes.

Com efeito, este processo passou a conter três fases, sendo a primeira destinada aos articulados, onde se insere a sua instauração através de uma petição inicial, com a alegação de factos e apresentação de documento e elementos essenciais, bem como a oposição, impugnação e reclamação, sujeita a resposta dos demais interessados.

Daqui decorre que o processo de inventário é hoje uma verdadeira ação, obrigando a que os interessados concentrem os “meios de defesa” no articulado que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova, sob pena de preclusão.

Assim temos que o art. 1104º do n.C.P.Civil concentra as reclamações contra a relação de bens no âmbito da oposição ao inventário, pelo que a verificação do passivo se inicia ainda na fase dos articulados: ao realizar-se a conferência de interessados, nos termos do artigo 1111º do mesmo n.C.P.Civil, já têm que estar efetuados a verificação e o reconhecimento do passivo.

Neste sentido já foi doutamente sublinhado que «[D]e harmonia com o modelo do processo de inventário trazido pela lei nova, recai sobre os interessados diretos na partilha, na subfase de oposição, um ónus de impugnação, não apenas relativamente à composição do ativo, mas também do passivo, i.e., das dívidas que se mostrem relacionadas, com a cominação de que, não o fazendo nesse momento processual, a dívida se tem, em regra, por reconhecida (art.º 1104.º, n.º 1, c), n.º 1, do CPC).», e bem assim que «Por isso que a nova lei suprimiu o segmento normativo da lei anterior que se reportava à aprovação do passivo, pelo que o único objecto admissível da deliberação dos interessados é, agora, somente, a forma de pagamento do passivo e de cumprimento dos demais encargos da responsabilidade da herança. Na conferência de interessados deixou, assim, de estar em causa a decisão sobre o reconhecimento da existência e do valor da dívida – mas apenas o modo de satisfação dessa dívida e de cumprimento de qualquer outro encargo pelo qual a herança responda (art.º 1111.º, n.º 3, do CPC).»[6]

Aliás, em sintonia com o vindo de dizer, preceitua-se expressamente no art. 1106º, nº1 do n.C.P.Civil que «[A]s dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 574º, devendo a sentença homologatória da partilha condenar no respetivo pagamento.» [com destaque da nossa autoria].

Recorde-se que no anterior modelo processual de inventário as diligências destinadas à verificação e aprovação do passivo tinham lugar na conferência de interessados (cf. art. 1353º, nº 3 do CPC de 1961, na redação do DL 329-A/95).

Sendo que foi precisamente visando obstar aos inconvenientes para a celeridade e a economia da tramitação do inventário gerados com tal modelo, que o atual regime antecipou, em regra, o momento da eventual controvérsia acerca da verificação do passivo, para a fase dos articulados, de modo a propiciar uma discussão escrita das partes acerca das dívidas controvertidas, respetivos fundamentos e pertinentes meios probatórios, como, aliás, resulta do disposto no art. 1104º, nº 1, al. e), do n.C.P.Civil.[7]

Ora se assim é, ao realizar-se a Conferência de Interessados [cfr. art. 1111º do n.C.P.Civil], a verificação e o reconhecimento do passivo constituem tarefas já concluídas no processo seja porque não foi impugnado por nenhum dos interessados, seja porque, tendo sido impugnada, foi proferida decisão judicial que o reconheceu.

Donde, apenas fica relegado para o momento da conferência, já não a aprovação do passivo, mas somente a deliberação sobre a forma e o momento do cumprimento dos encargos anteriormente verificados.

Nesta linha de entendimento já foi doutamente sustentado que «[O] novo regime antecipa para a subfase da oposição (art.ºs 1104º e 1107º) ou para a audiência prévia (art.º 1109º) e para o, incluindo o reconhecimento do passivo (art.º 1106º). Esta solução levou a não reproduzir algumas normas que constavam subsequente despacho de saneamento (art.º 1110º, n.ºs 1 e 2) a discussão e resolução de todas as questões susceptíveis de influir na partilha do CPC/61, nas quais se regulavam algumas deliberações a serem tomadas na conferência de interessados (cf. Art.º 1335, n.ºs 3 e 4, CPC/61): a deliberação sobre a aprovação do passivo (…) Assim, deixa de ocorrer na conferência de interessados a aprovação do passivo, dado que esta já se verificou na fase dos articulados, em consequência do estabelecimento de um ónus de impugnação dos créditos que se mostrem relacionados ou reclamados e dos demais encargos da herança (...) Por isso o que está em causa neste momento processual [conferência de interessados] não é já uma decisão acerca do reconhecimento da existência e montante do débito – questão, em princípio, já consolidada nas fases dos articulados e do saneamento -, mas tão somente uma deliberação acerca da forma prática de satisfação das dívidas e de cumprimento dos demais encargos da herança.»[8]

Sucede que a decisão recorrida, in casu, de não aprovação das restantes verbas do passivo [excluindo a verba nº 5], foi tomada na Conferência de Interessados.

Não obstante não o ter sido no momento temporal prescrito juridicamente nos termos vindos de expor, o que é certo é que não se extrai daí que haja uma verdadeira e definitiva impossibilidade de a decisão ser tomada nos autos, pois que «(…) esta decisão tem de emergir, sendo que vale aqui o provérbio de que «mais vale tarde do que nunca»»[9].

                                                           ¨¨

Assente isto, vejamos agora do (des)acerto da decisão em si.

Já se adiantou que assistia razão nesta parte ao cabeça de casal/recorrente.

Mas aprofundemos este entendimento e vejamos qual a solução a dar à situação.

De recordar desde logo quanto a esta modalidade do inventário para separação de bens [no caso de penhora de bens comuns do casal], que a lei determina que «[S]ó podem ser aprovadas dívidas que estejam devidamente documentadas» [cf. nº3 do art. 1135º do n.C.P.Civil].

Mas o que é que se entende por “dívidas documentadas”?

Importa ter presente que a dívida pode exigir prova documental ad substantiam ou ad probationem, ou a dívida nem sequer exigir esse tipo de prova.

Naturalmente que se não exigir, podem ser valorados documentos que não tenham essa natureza, e que eventualmente constituam um critério seguro para o juiz decidir, ou, pelo menos, constituir um princípio de prova para o efeito.[10]

Ora se assim é, já se está a ver que a decisão neste particular implica uma tarefa mais ou menos complexa, mas sempre envolvendo um critério de avaliação e ponderação caso a caso, no contexto da qual o Juiz não está nem pode estar inibido de, em vista do esclarecimento, promover diligências oficiosamente ou produzir prova pessoal [ouvir as partes em declarações, inquirir testemunhas], destinada a completar, interpretar ou esclarecer os resultados decorrentes da prova documental.

Neste sentido também se pronunciou douto aresto, ao sublinhar o seguinte:

«A exigência da prova documental, não é, contudo, nos termos gerais, inibidora da utilização, pelo juiz, dos seus poderes inquisitórios no domínio da prova, caso não seja exigível documento ad substantiam ou ad probationem; o juiz, pode, portanto, determinar, por exemplo, a produção de provas pessoais – como a testemunhal ou por declarações de parte – destinadas a interpretar, esclarecer ou completar os resultados da prova documental (art.º 411.º do CPC ). (…) Por último, caso – contra o que se disse – se julgasse a prova documental insuficiente para demonstrar a existência da dívida, nem por isso se justificaria, sem mais, a remessa dos interessados para os meios judiciais comuns. Nesta hipótese, teria inteira justificação a atuação dos princípios do inquisitório e da cooperação, no segmento em que se ligam com a área da prova, apontados».[11]

O que, aliás, representa posição que nos parece ter ainda maior cabimento no âmbito dos inventários na sequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, face às especialidades que lhe são inerentes.

Na verdade, o inventário da separação de meações comporta, a par das dívidas a terceiros e créditos sobre estes, as compensações de patrimónios (comum e próprios), as dívidas entre os cônjuges, ou seja entre os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, pelo que, da relação de bens, terão de constar não só as posições ativa e passiva do património comum em relação a terceiros como as compensações entre património comum e próprios e bem assim as dívidas recíprocas dos cônjuges (se não tiverem sido saldadas ao longo da vida conjugal), isto pela simples razão de que não tendo ocorrido esse pagamento, é no momento da partilha do património comum que tal deve ocorrer, donde, é para tal é necessário que a relação de bens contemple esses créditos ou compensações.

Ademais, ainda que mais diretamente em anotação ao regime previsto nos arts. 1106º, nº 3, e 1093º, n.º 1, do n.C.P.Civil, já nos foi ensinado o seguinte:

«O n.º 3 continua a atribuir uma importância determinante à prova documental, dado que a decisão do juiz acerca da dívida impugnada exige que os documentos apresentados forneçam um critério decisório suficiente e permitam uma pronúncia segura sobre a dívida. Se tal não suceder, nomeadamente quando se trate de relações creditórias cujos factos constitutivos se não conseguem demonstrar através de prova documental, o juiz deve abster-se de decidir o litígio acerca do débito controvertido e remeter os interessados para os meios comuns (cf. art. 1093.º, n.º 1). A exigência da prova documental não deve inibir o exercício pelo juiz dos seus poderes inquisitórios em matéria probatória (art. 411.º), desde que essa exigência não seja feita ad substantiam ou ad probationem. Assim, o juiz pode determinar a realização de diligências probatórias de outra natureza, designadamente a inquirição de testemunhas e as declarações de parte, se as considerar indispensáveis para completar, interpretar ou esclarecer os resultados decorrentes da prova documental[12] [com destaque da nossa autoria]

O que tudo serve para dizer que, num processo como o vertente, se é certo que não era possível verificar-se passivo sem que existisse prova documental que o suportasse – por força do disposto no artigo 1106º, nº 3, do n.C.P.Civil! – tal não impedia que o tribunal recorresse a outros meios de prova que complementassem a prova documental.

Revertamos então estes ensinamentos ao caso ajuizado.

Desde logo se constata que em contraste com a justificação singela e linear da decisão recorrida – no sentido de que apenas a verba 5 da relação de bens era aprovada porque apenas esta se encontrar documentada – existem nos autos e apensos “documentos” relativos às outras dívidas.

Vejamos:

- a dívida relativa ao pagamento à Banco 1... (verba Dois), relativamente à qual correu termos o Proc. de Exec. nº 549/13.... (valor de € 52.407,87), tem uma declaração de extinção pelo pagamento, da respetiva Agente de Execução, em anexo ao reqº do cabeça de casal de 25.01.2024;

- a dívida relativa ao pagamento à “B...” (verba Três), relativamente à qual correu termos o Proc. de Exec. nº 120/12...., também tem uma declaração de extinção pelo pagamento, da respetiva Agente de Execução, em anexo ao reqº do cabeça de casal de 25.01.2024, sendo certo que esta dívida (pelo valor de € 40.513,91) foi reconhecida na sentença de graduação de créditos proferida em processo apenso;

- a dívida relativa à “C...” (verba Quatro), relacionada pelo valor de € 5.500, tem uma declaração junta aos autos pelo respetivo credor, por reqº de 7.12.2023,  noticiando que «o crédito foi integralmente recuperado, pelo que nada mais temos a reclamar»;

- a dívida à empresa “A..., Unipessoal, Lda” (verba Seis) corresponde ao reclamado pelo Exequente/processo principal apenso, o qual goza do correspondente título executivo;

- a dívida por prestações pagas ao Banco 2... desde Janeiro/2022 a Junho/2024 (verba Sete) encontra arrimo nas várias “declarações” de redução do montante de que o próprio Banco 2... se afirmava credor (verba Cinco)[13], e que foi juntando aos autos ao longo do processo, em atualização desse montante, a última dos quais, aliás, foi operada na própria Conferência de Interessados.

A esta luz, salvo o devido respeito, a decisão recorrida não pode ser confirmada/sancionada.

A aprovação ou não reconhecimento do passivo deve ser feita verba a verba, na ponderação unitária de cada situação, naturalmente em função de se a particular dívida exige prova documental ad substantiam ou ad probationem (ou, em contraponto nem sequer exige esse tipo de prova), e bem assim, naturalmente, valorando os documentos existentes que não tenham essa natureza, sendo disso caso.

De referir que se a Exma. Juíza a quo concluir que não existem nos autos elementos suficientes para de tal se convencer em definitivo – atenta a álea em direito probatório concedida – então terá de convidar os interessados a apresentarem prova complementar e/ou esclarecerem as situações.

Sem prejuízo, naturalmente, de a Exma. Juíza a quo oficiosamente diligenciar pelo esclarecimento que tiver por mais conveniente, nomeadamente consultando os processos executivos que terão corrido termos no mesmo Tribunal, sendo disso caso.

Tudo isto lhe é imposto pelos princípios jurídicos que enformam a atividade do julgador, como explicitado em douta síntese, a saber «(…) de harmonia com o princípio do inquisitório, o tribunal deve ordenar, mesmo ex-offício, relativamente aos factos de que lhe é licito conhecer, toda as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição da controvérsia (art.º 411.º do CPC). Por sua vez, o princípio da cooperação – que no tocante ao tribunal assume a nítida feição de poder-dever ou de um dever funcional - tem por fundamentos finais a incremento da eficiência do processo e a promoção da descoberta da verdade e estende-se igualmente à importante área da prova. É assim que – na sequência do direito do Tribunal à coadjuvação de outras entidades - todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, facultando o que for requisitado – v.g. um documento - e praticando os atos que forem determinados (art.ºs 202.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, 417.º, n.º 1, e 436.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Qualquer destes princípios é aplicável, por inteiro, ao processo de inventário.»[14]

Procede nestes termos o recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida, devendo na 1ª instância proceder-se a nova Conferência de Interessados em ordem a, no particular do Passivo relacionado nos autos, decidir sobre a sua aprovação ou rejeição, com interpelação dos presentes em ordem a eventuais esclarecimentos, sendo disso caso, sem prejuízo da realização de quaisquer outras diligências oficiosamente tidas por necessárias e da validação complementar de elementos probatórios que as partes, por si ou a convite do Julgador, vierem a juntar aos autos.

                                                           *

5 - SÍNTESE CONCLUSIVA (…)

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

           Pelo exposto, decide-se a final, na procedência do recurso interposto, revogar a decisão recorrida, devendo na 1ª instância proceder-se a nova Conferência de Interessados em ordem a, no particular do Passivo relacionado nos autos, decidir sobre a sua aprovação ou rejeição, com interpelação dos presentes em ordem a eventuais esclarecimentos, sendo disso caso, sem prejuízo da realização de quaisquer outras diligências oficiosamente tidas por necessárias e da validação complementar de elementos probatórios que as partes, por si ou a convite do Julgador, vierem a juntar aos autos. 

            Custas pelos interessados, na proporção dos quinhões.

                                Coimbra, 27 de Maio de 2025

                                                           Luís Filipe Cravo

                                                         Carlos Moreira

                                                         Fernando Monteiro


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Carlos Moreira
  2º Adjunto: Des. Fernando Monteiro

[2] Onde devia passar a figurar como:
«Verba Sete
Crédito do Cabeça de Casal referente às prestações pagas exclusivamente por este ao Banco 2... desde Janeiro/2022 a Junho/2024, no montante de 16.383,94€»
[3] «(…) no sentido de passar a constar 99.067,21€, valor atual em dívida ao Banco 2...»
[4] cf., “inter alia”, o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 17-04-2012, no processo nº 1483/09.9TBTMR.C1, acessível in www.dgsi.pt/jtrc, o qual não obstante proferido no quadro do pré-vigente C.P.Civil entendemos que mantém plena atualidade face ao n.C.P.Civil.
[5] Na sequência da reintrodução do processo de inventário no Código de Processo Civil e da sua rejudicialização, revogou-se o RJPI e aprovou-se o Regime do Inventário Notarial (RIN) [artos 2º e 10º da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro).
[6] Assim no acórdão do TRC de 10/25/2022, proferido no proc. nº 995/20.8T8FIG-A.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[7] Cfr. M. TEIXEIRA DE SOUSA / C. LOPES DO REGO / A.,ABRANTES GERALDES / P. PINHEIRO TORRES, in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, a págs. 90-91.
[8] Vide, neste sentido, os autores citados na obra e local referidos na precedente nota, ora a págs. 104.
[9] Assim no acórdão deste TRC de 06.02.2024, proferido no proc. nº 4851/20.1T8CBR.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc, aliás, de que foi Relator o aqui Exmo. 1º Adjunto.
[10] Mais aprofundadamente sobre esta operação, vide o acórdão do TRG de 27-06-2024, proferido no proc. nº 2165/21.9T8VNF.G1, acessível em www.dgsi.pt/jtrg.
[11] Trata-se do acórdão do TRC de 25.10.2022, proferido no proc. nº 995/20.8T8FIG-A.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[12] Trata-se mais uma vez dos autores citados nas precedentes notas [8] e [9], em mesma obra e local, ora a págs. 94. 
[13] Recorde-se, a única verba reconhecida pela decisão recorrida.
[14] Citámos mais uma vez o acórdão do TRC de 25.10.2022, proferido no proc. nº 995/20.8T8FIG-A.C1, aludido na precedente nota [12].