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FORMA DE PROCESSO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
REMISSÃO
DECISÃO DE FACTO
Sumário
I - O meio processual próprio para a tramitação e apreciação de pedido de responsabilização/condenação do administrador da insolvência e da massa insolvente no pagamento de quantia monetária com fundamento em contrato por aquele celebrado no âmbito da liquidação da massa insolvente, é a ação declarativa e não a via incidental enxertada no processo de insolvência. II – A menção, na decisão que recaiu sobre aquele pedido, de que foram “Compulsados os autos e o acordo ajustado com a massa insolvente”, é absolutamente destituída de conteúdo e de relevância factual e jurídica se do contrato fundamento do pedido não forem extratadas as declarações negociais que dele constam, e se dos autos não foram assinalados e descritos os atos ou factos que o tribunal considerou e valorou para decidir pela improcedência do pedido. III – O dever de fundamentação das decisões, com assento direto no art.º 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e concretização processual geral no art.º 154º do Código de Processo Civil, proíbe a prolação de decisão por simples adesão/remissão para o alegado no requerimento ou na oposição. IV – A exceção à referida proibição exige a verificação dos seguintes requisitos: tratar-se de despacho interlocutório, ausência de oposição ao pedido, e manifesta simplicidade do caso (art.º 154º, nº2, 2ª parte). V – Inclusive nos casos em que ocorra confissão dos factos, o art.º 567º, nº 3 do CPC só aparentemente permite que a sentença se limite à parte decisória na medida em que, ainda que assim o preveja, impõe uma fundamentação sumária do julgado. VI - O Direito só cumpre a sua função reguladora do ‘pedaço da vida’ trazido a juízo quando são conhecidos os factos que o individualizam, identificam e definem, posto que só perante os factos concretos é possível aferir se os mesmos concretizam ou não os pressupostos da hipótese abstratamente prevista pela norma que o caso convoca. VII - Assim, para que a decisão judicial cumpra a sua função na realização da justiça do caso concreto mister é que, antes de mais, seja integrada por descrição/decisão de facto e que esta abranja todos os factos alegados/conhecidos e relevantes para a decisão da causa. VIII - Se os elementos disponíveis nos autos não reúnem condições para o suprimento de omissão de factos alegados relevantes para a apreciação de mérito do pedido, inexistem condições para cumprimento da regra da substituição prevista pelo art.º 662º, nº 2, al. c) do CPC e impõe-se a anulação da sentença em ordem ao apuramento daquele elemento de facto pelo tribunal recorrido. IX - A coadjuvação do administrador da insolvência por terceiros e a eventual aprovação das despesas que dela resulte como dívida da massa insolvente – assim como a condenação da massa no seu pagamento -, exige, por princípio, a prévia concordância da comissão de credores ou, não existindo este órgão, do juiz da insolvência, para a sua contratação (cfr. als. b) e c) do nº 1 do art.º 51º do CIRE).
Texto Integral
Considerando que, por referência ao teor formal da decisão recorrida, a apreciação jurídica que estes autos de recurso suscitam, de natureza processual, não justifica a alocação do coletivo, profere-se decisão sumária.
I - Relatório
1. Dos Articulados
O presente recurso tem por objeto a decisão que incidiu sobre requerimento apresentado no processo principal da insolvência (de AA) por Leiloport, SA, aqui recorrente, peticionando o pagamento, pelo administrador da insolvência (AI) e pela massa insolvente (MI), da quantia de €13.785,88 a título de honorários de encarregada de venda (€6.794,56) e despesas de deslocação (€6.991,32) de que se arroga credora pela prestação de serviços naquela qualidade no âmbito da atividade de liquidação dos imóveis apreendidos para a massa insolvente a cargo dos AI sucessivamente nomeados nos autos, acrescido de €6.069,56 a título de juros vencidos, no montante total peticionado de €19.855,44.
Em fundamento a requerente alegou que cumpre todos os requisitos legais para o exercício da atividade de vendas judiciais e dispõe de meios para desenvolver todas as diligências necessárias no âmbito de cada processo para o qual esteja mandatada, que no âmbito deste processo de insolvência e com a concordância da comissão de credores foi designada para o exercício daquela função pelo 1º AI nomeado nos autos e desenvolveu atividade tendente à venda daqueles bens por negociação particular, com os custos administrativos e os inerentes às diligências que realizou com as deslocações ao local da situação dos bens apreendidos e para os vários fins que descreveu (levantamento de dados dos bens, elaboração de catálogo de venda e de relatórios, apoio na limpeza dos imóveis, e visitas aos mesmos com interessados); que na sequência do decesso do 1º AI[1] nomeado nos autos comunicou ao novo AI[2] o contrato de prestação de serviços que celebrou com o 1º e o relatório atualizado sobre a liquidação; em 14.02.2020 o AI informou que na plataforma e-leilões obteve uma proposta (€110.480,05) que submeteu à consideração da comissão de credores por inferior ao valor mínimo de venda, em 05.03.2020 a requerente apresentou-lhe nova proposta (de €115.000,00), e em 16.03.2020 o AI informou-a que já havia adjudicado os bens, na sequência do que emitiu e enviou ao AI a nota de honorários e despesas, que aquele não pagou, razão pela qual os reclama nos autos para serem fixados pelo juiz do processo nos termos e com fundamento no art.º 17º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), sendo a título de honorários 5% do valor da venda realizada e a título de despesas o custo das deslocações, que discriminou por data e finalidade, à razão de €0,40 por quilómetro.
Juntou documentos (documento epigrafado de Contrato de nomeação da encarregada de venda/Leiloeira subscrito pela requerente na qualidade de 1ª contraente e pelo 1º AI nomeado nos autos na qualidade de 2º contraente, relatório descritivo de diligências e comunicações ao AI realizadas entre 26.10.2017 e 16.03.2020, comunicações eletrónicas que remeteu ao 1º e ao 2º AI, fotos e catálogo de venda dos imóveis, propostas de compra que recebeu e reações dos credores, nota de honorários datada de 16.03.2020 com vencimento em 31.03.2020 que endereçou ao AI em funções com descrição de deslocações (29) em ‘viatura’ desde Aveiro (sede da requerente) ao Cartaxo, local da situação os bens, e descriminação das datas em que foram realizadas (de outubro de 2017 a março de 2020) e custos que às mesmas imputa por km e portagens, e valores detalhados das portagens faturadas à requerente referente a esse período de tempo.
Ordenada a notificação daquele requerimento ao AI para a respeito se pronunciar, confirmou a contratação da requerente pelo 1º AI nomeado e, após a sua nomeação nos autos, a aceitação da continuidade dos seus serviços, mais alegando que em articulação com os credores garantidos e com o conhecimento e colaboração da requerente foi realizada reavaliação dos imóveis e fixados valores mínimos de venda atualizados, que comunicou à requerente em 24.04 e 30.05.2019, que na sequência da não aceitação da proposta de aquisição dos bens obtida e apresentada pela requerente (de €80.000,00) o AI decidiu promover a venda dos imóveis através da plataforma e-leilões, do que deu conhecimento à requerente em 05.11.2019, em 19.12.2019 a requerente apresentou-lhe nova proposta de aquisição (€92.000,00) que não foi aceite por inferior ao valor mínimo de venda fixado, entre 30.12.2019 e 12.02.2020 o AI promoveu a venda dos imóveis na plataforma e-leilões, do que deu conhecimento à requerente em 13.01.2020 e, a pedido desta, em 14.02.2020 comunicou-lhe o resultado do leilão; em 05.03.2020 a requerente comunicou ao AI nova proposta (€115.000,00), ao que este respondeu informando da extemporaneidade da mesma face à adjudicação dos bens operada no âmbito da venda pela plataforma e-leilões, e em 16.03.2020 aquela apresentou-lhe nota de despesas, ao que o AI respondeu que “a massa insolvente não teria qualquer valor a pagar à Leiloport, a título de comissionamento”, remetendo para o teor da comunicação que nesse sentido lhe remeteu, em síntese, porque, “não obstante tenha sido anteriormente nomeada encarregada de venda, deixou de o ser a partir do momento em que, conforme meu email de 05-11-2019, a venda passou a ser promovida através da plataforma e-leilões” e “a adjudicação da venda dos imóveis foi efetuada no âmbito da venda realizada através do portal e-leilões e não pela Leiloport.”
Juntou documentos, correspondentes a comunicações eletrónicas que recebeu da requerente e que a este remeteu.
Ordenada a notificação da resposta do AI à requerente, por esta foi declarado aceitar a confissão ali feita quanto à sua nomeação pelo anterior AI, e continuidade da mesma pelo atual AI, e atividade por si desenvolvida, e reiterou o pedido com fundamento no art.º 17º, nº 6 do RCP nos termos da qual e conforme jurisprudência, os honorários do encarregado de venda nomeado não dependem de efetiva venda.
2. Decisão recorrida
Sobre aqueles requerimentos incidiu a seguinte decisão, cujo teor se transcreve na íntegra: Por requerimento datado de 9 de Agosto de 2024, a Leiloport reclamou o pagamento de uma quantia no valor total de €19.855,44 a titulo de remuneração pelo trabalho desenvolvido enquanto encarregada da venda. Confrontado, por requerimento de 15 de Outubro de 2024, o Sr. Administrador da Insolvência esclareceu que já tinha sido interpelado para proceder ao pagamento da referida quantia, o que recusou por não devida nos termos do acordo ajustado, já que não foi a referida leiloeira a responsável pelas vendas realizadas nos autos. Compulsados os autos e o acordo ajustado com a massa insolvente, subscreve-se a posição assumida pelo Sr. Administrador de Insolvência, improcedendo a pretensão formulada pela requerente.
II – Questões
1. Ainda que inconsequente, anota-se antes de mais que a 1ª instância tramitou como incidente enxertado no processo de insolvência o que deveria ter sido objeto de ação declarativa comum por apenso ao processo de insolvência, posto tratar-se de um pedido de responsabilização/condenação do AI e da massa insolvente no pagamento de cerca de €20.000,00 com fundamento na atuação dos AI nomeados nos autos no âmbito do cumprimento da liquidação da massa insolvente (cfr. art.º 88º, nº 2 do CIRE).
Com relevo para o resultado do presente recurso mais se anota e realça a ausência de decisão descritiva dos factos alegados considerados provados e os não provados, ou seja, de decisão de facto, cuja prolação foi completamente omitida e, por isso, não integra a sentença objeto de recurso.
Como se constata da transcrição supra, para além da referência ao pedido apresentado pela requerente Leiloport e à posição de recusa do pagamento peticionado manifestada pelo AI, a decisão recorrida resume-se ao respetivo dispositivo, de declaração de improcedência da pretensão formulada pela requerente. Omissão que não é colmatada pela mera referência a ‘Compulsados os autos e o acordo ajustado com a massa insolvente’ por absolutamente destituída de conteúdo e de relevância factual e jurídica se, do dito contrato, que integra a causa de pedir invocada pela requerente, não forem extratadas as declarações negociais que dele constam, e se dos autos não foram assinalados e descritos os atos ou factos que o tribunal recorrido considerou e valorou para decidir pela improcedência do pedido e sobre os quais possa incidir a aplicação das regras legais que a sua apreciação convoca para resolução do litígio trazido a juízo pela requerente.
Fundamentos de facto e de direito que foram absolutamente omitidos na decisão recorrida, proferida que foi única e exclusivamente por adesão (‘subscrição’) à posição que sobre o pedido da requerente foi assumida pelo AI, no sentido do seu não reconhecimento, em clara violação do art.º 154º do CPC que, sob a epígrafe Dever de fundamentar a decisão, estabelece que: 1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.//2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
No caso não se verificam qualquer um dos pressupostos que, nos termos do nº 2 citado, admitam a decisão por simples adesão, que se deve ter como solução excecional face ao dever de fundamentação constitucionalmente imposto pelo art.º 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
Assim, a decisão em crise não consubstancia um despacho interlocutório do processo onde foi proferida posto que o pedido dela objeto não tem relação ou conexão direta com a legal tramitação, as partes, e o objeto nuclear do processo de insolvência (de satisfação dos credores da insolvência pelo produto da liquidação do património do devedor), e tanto assim é que, como se referiu, deveria ter sido deduzido e tramitado através de ação própria, autónoma da tramitação do processo de insolvência, ainda que por apenso a este. O pedido, que foi factualmente fundamentado e documentalmente instruído, mereceu a expressa discordância/oposição dos sujeitos processuais contra os quais foi dirigido, e a apreciação dos respetivos fundamentos - de facto e de direito - não se configura de manifesta simplicidade, mais não seja, pelo contexto processual em que o mesmo foi deduzido – no âmbito de um processo de insolvência (lato senso) e por referência à atividade de liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente, que obedece a um regime legal específico e próprio[3], distinto do previsto para o exercício do cargo de agente de execução no âmbito das execuções singulares.
Simplicidade que, para além do acervo factual alegado e documentado, é desde logo afastada pelo teor do contrato de prestação de serviços celebrado com o 1º AI, que prevê com detalhe a contrapartida da requerente pelos serviços que lhe foram contratados e, principalmente, as condições por aquele aceites em benefício da requerente – designadamente, de exclusividade desta na promoção da venda dos imóveis e sanção para a violação da mesma -; pelos montantes em discussão e natureza dos mesmos (honorários, despesas de deslocação e juros); pelo objeto, mais ou menos complexo, da atividade de liquidação da massa insolvente e pela pessoalidade do cargo de AI[4], nos termos do art.º 55º, nº 1 e 2 do CIRE; e pelo regime legal previsto para a coadjuvação do AI por terceiros nos termos do nº 3 daquele artigo. Coadjuvação que, sendo legalmente admitida, exige a prévia concordância da comissão de credores (ou, não existindo este órgão, do juiz da insolvência) para a sua contratação e, assim, para que os encargos (créditos e correspetivas dívidas) com esta gerados possam ser imputados e reconhecidas como dívidas da massa insolvente nos termos das als. b) e c) do nº 1 do art.º 51º do CIRE[5]. Nesta senda mais importa considerar o facto de a requerente ter deduzido o pedido indistintamente contra o AI e contra a massa insolvente e realçar que, embora no âmbito do objeto do processo de insolvência a massa insolvente seja representada pelo AI e atue através da atuação deste no exercício dos poderes-deveres que lhe são legalmente reconhecidos e impostos pela sua nomeação para o cargo[6], essa ‘confusão’ subjetiva cessa perante pedidos de responsabilização de um e/ou de outro por dívidas geradas pelos atos do primeiro praticados naquela qualidade, de AI. A lei não prevê a possibilidade da responsabilização solidária de ambos pelos atos praticados pelo AI nessa qualidade (cfr. art.º 513º do CC) pelo que, por princípio, o apuramento da responsabilidade (civil ou contratual) de um exclui a responsabilidade do outro.
Questões que o pedido da requerente suscita e que afastam a manifesta simplicidade pressuposta pela prolação de decisão por adesão aos fundamentos alegados na oposição, cujo teor, além do mais, não cobre todas as questões suscitadas pela causa de pedir e pelo âmbito subjetivo do pedido na medida em que se limitou a refutar a pretensão da requerente pelo facto de a proposta de aquisição dos imóveis que foi aceite e posteriormente formalizada em escritura publica de compra e venda dos imóveis não ter sido obtida pela requerente, mas sim pelo AI através do recurso à plataforma e-leilões, por via da qual alcançou propostas mais elevadas do que as que durante dois anos e até aí foram apresentadas pela requerente no âmbito da negociação particular[7].
De realçar que, mesmo nos casos de confissão dos factos por efeito legal da ausência de contestação e de manifesta simplicidade da resolução da causa – pressupostos que aqui não se verificam -, pelo art.º 567º, nº 3 do CPC só aparentemente permite que a sentença se limite à parte decisória posto que, ainda assim o preveja, impõe uma fundamentação sumária do julgado.
Numa concretização processual do dever de fundamentação previsto pelo art.º 154º do CPC, sob a epígrafe Sentença dispõe o art.º 607º, nº 3 do CPC que [o] juiz deve discriminar os factos que considera provados (…), e acrescenta o nº 4 que Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência. Conforme palavras legadas pelo mestre Alberto dos Reis, na elaboração da sentença pede-se ao juiz a) Que fixe, em primeiro lugar, os factos da causa (premissa menor); b) Que interprete e aplique depois a lei aos factos (premissa maior); c) Que enuncie, por fim, a decisão (conclusão).[8]
Em clara violação do dever de fundamentação e das regras de estruturação de uma decisão judicial – ainda que a tivesse perspetivado de manifesta simplicidade - a decisão recorrida limitou-se a emitir uma conclusão, desacompanhada de qualquer premissa de facto e de direito juridicamente relevante, legalmente atendível e empiricamente cognoscível através da sua leitura. Ora, o Direito só cumpre a sua função reguladora do ‘pedaço da vida’ trazido a juízo quando são conhecidos os factos em que se concretiza. O Direito só encontra aplicação nos factos, precisamente, os factos que individualizam, identificam e definem o caso a dirimir, os factos que serão juridicamente integrados em sede de apreciação de direito. Assim, para que a decisão de facto cumpra a sua função na realização da justiça do caso concreto, mister é que, antes de todo o mais, seja proferida, e que se apresente completa, no sentido de expressar um juízo sobre todos os factos controvertidos e necessários à decisão da causa, declarando-os provados ou não provados, percetível ou inteligível, no sentido de permitir a compreensão, quer do sentido ou alcance de cada um dos pontos de facto descritos, quer do conjunto destes, e coerente ou isenta de contradições entre cada um dos factos descritos como provados e entre estes e os descritos como não provados. Nas palavras de Tiago Milheiro, o juiz deve [t]er extremo cuidado na sua elaboração e no respeito por estes pressupostos tendo em vista evitar, nomeadamente, repetições de julgamento, que têm efeitos nefastos na imagem dos tribunais pelas partes e cidadãos em geral. A omissão de tais pressupostos inquina a decisão, omitindo-se formalidades impostas por lei que podem influir no exame ou na decisão da causa.[9]Com efeito, no reverso daqueles requisitos a decisão de facto pode apresentar vícios ou patologias que não correspondem a erros de apreciação ou de julgamento de facto.[10] Ao que aqui releva, quando se apresente total ou parcialmente deficiente por não reportar ou não incluir todos ou algum dos factos relevantes para a decisão, ou porque se limita a expressar juízos conclusivos que só cabe extrair na prolação da sentença por recurso a factos reais que, para o efeito, devem constar concretizados na decisão de facto, sendo o pináculo deste vício a completa omissão de decisão de facto. Sem esta a sentença não cumpre a definição de uma base factual necessária, imprescindível, à definição do direito aplicável e à integração e correta integração dos pressupostos normativos dos tipos legais convocados para apreciação e decisão do pedido (indicação e apreciação que, de resto, foi também completamente omitida pela decisão recorrida) e, assim, a garantir uma resolução do caso conforme ao direito. Como é referido por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre em anotação ao art.º 154º do CPC, “[o] nº 2 afasta a fundamentação meramente formal ou passiva, consistente na mera declaração de aderência às razões invocadas por uma parte, exigindo a fundamentação material ou ativa, consistente na invocação própria de fundamentos que, ainda que coincidentes com os invocados pela parte, sejam expostos num discurso próprio, capaz de demostrar que ocorreu uma verdadeira reflexão autónoma.[11]
Na definição das consequências a extrair dos vícios da decisão de facto, sob a epigrafe Modificabilidade da decisão de facto prevê o art.º 662º do CPC que: 1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. 2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) c) Anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; (…). 3. Nas situações previstas no número anterior, procede-se da seguinte forma: (…). c) Se for determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições;
Conforme regra da substituição prevista pelo citado art.º 662º, nº 2, al. c) do CPC, e na interpretação consensual que dela é feita pelo Supremo Tribunal de Justiça, I - As patologias da sentença previstas no artigo 662º, n.º 2 al. c), do CPC, apenas dão lugar à anulação da decisão proferida quando do processo não constem todos os elementos probatórios necessários ao seu suprimento pelo Tribunal da Relação; Ao invés, se estes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder, enquanto tribunal de substituição, à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas.//II - A intervenção do Tribunal da Relação nesse âmbito ocorre a título oficioso, independentemente, portanto, da iniciativa da parte interessada na alteração da decisão de facto, pelo que não são aplicáveis os ónus previstos no art.º 640 do CPC.[12][13].
No caso, ainda que a Relação se pudesse substituir ao tribunal recorrido e sanar o vício da total omissão de fundamentos de facto por recurso aos articulados das partes e aos documentos que com eles juntaram - desde logo quanto à celebração de contrato de prestação de serviços entre a requerente e o 1º AI e descrição das obrigações ou prestações a que por ele cada um se vinculou, e em que condições ou pressupostos de facto, e, eventualmente, também quanto às deslocações levadas a cabo pela requerente (em parte ou na integra em função do que alegou e documentou e em conjugação com outros elementos disponíveis nos autos, designadamente, os relatórios de diligências que apresentou aos AI) -, da consulta ao histórico dos autos principais e respetivos apensos[14] constata-se que deles não constam, não se vislumbram, elementos que permitam aferir se a contratação da requerente foi ou não precedida de autorização da comissão de credores constituída nos autos, elemento que conforme se expôs, é relevante para, se esse for o caso, aferir da imputação daquele contrato e dos encargos/dívidas por ele gerados a cargo da massa insolvente, a cargo do 1º AI ou/e do 2º AI (e neste caso, em que proporção) e, por isso, imprescindível à boa decisão da causa.[15]
Considerando que os elementos disponíveis nos autos (principal e apensos) aos quais esta Relação consegue aceder não reúnem condições para o suprimento da lacuna assinalada, inexistem condições para cumprimento da regra da substituição prevista pelo art.º 662º, nº 2, al. c) do CPC, impondo-se por isso a anulação da sentença nos termos ali também previstos em ordem ao apuramento daquele elemento de facto por suscetível, de sobremaneira, de interferir no resultado da lide[16][17]. Anulação que abrange a decisão recorrida nos exatos termos em que foi proferida na medida em que, como se referiu, nada mais contém para além da conclusão pela improcedência do pedido sem prévia prolação de decisão de facto e sem a mínima apreciação jurídica da causa de pedir alegada e, assim, sem qualquer segmento despojado de vício que cumprisse salvaguardar.
Pelo exposto, no uso dos poderes de rescisão ou cassatórios da Relação impõe-se anular a decisão recorrida e declarar prejudicado o conhecimento de mérito do recurso para apuramento da verificação ou não da autorização da comissão de credores à contratação dos serviços da requerente pelo 1º AI nomeado nos autos, e termos em que o foi, sem prejuízo de outros elementos de facto que se entendam relevantes e/ou permaneçam controvertidos, com subsequente prolação de nova decisão com fixação dos factos julgados assentes ou provados e determinação das normas aplicáveis, julgando a causa conforme for de direito.
Desta decisão resulta prejudicado o conhecimento das questões de mérito suscitadas nas alegações de recurso.
III – Decisão
Por todo o exposto, decide-se anular a decisão recorrida e determinar a ampliação da matéria de facto à alegada nos articulados da requerente e do administrador da insolvência com relevância para o conhecimento de mérito do pedido e da oposição que à mesma foi deduzida, no que se inclui a alegada autorização da comissão de credores à contratação da requerente pelo administrador da insolvência como encarregada de venda dos imóveis apreendidos para a massa insolvente, sem prejuízo de outros factos que o tribunal recorrido entenda relevantes e carecerem de produção de prova, com subsequente prolação de nova decisão integrada por expressa pronúncia sobre todos os factos que com interesse foram alegados, identificando os julgados assentes/provados e os julgados não provados.
As custas da presente apelação recairão a cargo da parte que a final resultar vencida no pedido.
Em 14.05.2025
Amélia Sofia Rebelo
_______________________________________________________ [1] Decesso ocorrido em 06.01.2019 e comunicado aos autos em 14.01.2019. [2] Por despacho de 26.02.2019, notificado ao AI em funções em 28.02.2019 e publicado em 01.04.2019 [3] Conforme sumariamos no acórdão desta Relação de 11.03.2025, A iniciativa e decisão sobre os termos da venda dos bens da massa insolvente, que inclui a fixação do valor base ou do valor mínimo de venda, não são questões a submeter à apreciação, sindicância e autorização judicial posto tratar-se de matéria que não é da competência do tribunal mas, única e exclusivamente, do Administrador da Insolvência [4] A atividade de liquidação da massa insolvente é da competência pessoal do AI, sendo que a retribuição legalmente definida tem como pressuposto (retributivo) a atividade e responsabilidade funcional que legalmente lhe são acometidas. [5]Com relevância na questão, vd.:
- acórdão da Relação do Porto de 20.06.2017 - I - Em sede de prestação de contas do AI, as despesas a reembolsar serão apenas as tidas com a realização de diligências concretas, efectuadas no exercício das suas funções, com referência a cada acto praticado, que tem de ser descriminado e sustentado documentalmente.//II - No que concerne às despesas feitas com os serviços prestados por técnicos ou outros auxiliares, o reembolso das mesmas é possível, mas não basta que o AI se limite a juntar aos autos os documentos comprovativos da realização das respectivas despesas e de presumir que a passividade da comissão de credores é um sinal de aprovação da sua actuação.//III - Pois exige a lei que o AI obtenha a prévia autorização da comissão de credores, e se tal não sucedeu, exige-se que justifique nos autos os concretos motivos por que não obteve essa prévia concordância, v.g. devido a urgência e/ou natureza do acto, e quais as razões por que determinados actos, dada a sua natureza, escapam ao âmbito das tarefas que por lei lhe estão cometidas, daí a necessidade de contratação desse técnico ou outro auxiliar para os realizar. –;
- voto vencido subscrito pela aqui relatora no acórdão desta Relação de 28.01.2020, assim sintetizado – I – A venda por recurso ao leilão eletrónico previsto pelo art.º 164º do CIRE corresponde ao previsto pela Portaria nº 282/2013 de 29 de agosto, e este corresponde ao critério da opção do legislador.//II – A opção por distinta modalidade de venda não constitui um ato discricionário do Administrador da Insolvência, pelo que não cumpre a lei quando decide pela realização da venda através de qualquer outra modalidade ou leilão que não o previsto pela Portaria, exceto se esta modalidade não se revelar a mais adequada, mas o que se impõe seja concretamente justificado, requisito que não é cumprido com referências generalistas que não concretizam nem as vicissitudes dos bens, nem as dos potenciais compradores que justifiquem distinta modalidade de venda.//III - Se claramente a plataforma e-leilões constitui a opção do legislador, sob pena de conduzir a letra morta despida de qualquer jus imperi, impõe-se admitir a sindicância judicial (e até ao segundo grau de jurisdição) de distinta opção do Administrador da Insolvência através da sindicância da justificação que para o efeito apresenta.//IV - Na prática a tutela dos interesses dos interessados, maxime dos credores comuns, que são pagos depois de todos os outros e no grosso dos casos já nada há para distribuir por eles, só conta mesmo com o poder-dever de fiscalização da atividade do Administrador da Insolvência pelo juiz.;
- acórdãos desta Relação de 22.09.2020 - 1 - O Administrador da Insolvência exerce pessoalmente as competências do seu cargo devendo obter, para que possa ser coadjuvado por técnicos ou auxiliares no exercício dessas competências, a prévia concordância da Comissão de Credores ou do juiz, na inexistência desta.//2 - A necessidade de prévia concordância exclui a aprovação tácita, não relevando a ausência de reação dos credores ou do tribunal à comunicação da intervenção de técnicos ou auxiliares pelo Administrador da Insolvência.//3 – Não tendo sido solicitada a prévia concordância, mas tendo os serviços sido prestados, poderá ser admitido o seu pagamento, desde que o Administrador da Insolvência, justifique, em concreto, a não solicitação da prévia concordância e a necessidade e adequação da despesa.- e 26.04.2022 - 6–A não obtenção de prévia concordância pelo Administrador da Insolvência em relação à contratação de auxiliares nos termos do nº 3 do art.º 55º do CIRE não gera ineficácia ou invalidade dos atos praticados por estes, antes sendo, preenchidos os respetivos pressupostos, suscetível de ser enquadrado como justa causa de destituição ou de responsabilidade civil do administrador, e devendo os custos inerentes ser apreciados na prestação de contas nos termos do art.º 62º do CIRE. [6] Os administradores da insolvência são, por força da sua nomeação no processo de insolvência, agentes investidos de poder público - servidores da justiça e do direito - legalmente dotados de poderes-deveres funcionais que exercem em representação e no interesse da massa insolvente, que o mesmo é dizer, no interesse do coletivo dos credores, dispondo dos poderes de atuação necessários e adequados a promover esse interesse, com a qual, por isso, se confunde a atuação da massa insolvente. [7] O que reforça e justifica a bondade da opção do legislador por esta modalidade de venda nos termos previstos pelo art.º 164º, nº 1 do CIRE, com a alteração introduzida pelo DL nº79/2017 de 30.06, cerca de 13 anos decorridos sobre a vigência do CIRE. [8] Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora 1984, vol. V, p. 25. [9]In Nulidades da Decisão da Matéria de Facto, Revista Julgar on line, 2013, p. 15. [10] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª ed., p. 350. [11] Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, Almedina, 4ª ed., p. 329. [12] Acórdão do STJ de 17.10.2019. [13] No mesmo sentido, A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª ed., p. 352-354. [14] Com enfoque no relatório do art.º 155º do CIRE, ata da assembleia de credores para a sua apreciação e requerimentos posteriormente apresentados, e apensos de apreensão e de liquidação. [15] Tanto mais que a atividade de liquidação pessoalmente desenvolvida pelo 2º AI veio a revelar a melhor adequação e aptidão do leilão eletrónico em detrimento da atividade realizada pela requerente ao longo de pelo menos cerca de 2 anos e, assim, a dispensabilidade dos seus serviços de encarregada de venda na obtenção, célere, de melhores propostas de aquisição dos imóveis da massa insolvente e objeto de liquidação nestes autos. [16] De entre os vícios que, nas palavras de João Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, pode padecer a decisão recorrida, sob a epígrafe “Poder de anulação: factos”, incluem, precisamente, “(…) omissão de pronúncia quanto a algum facto controvertido;(…)” (Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL Editora, p. 236-237), o que, por maioria de razão, é válido para as decisões que omita em absoluta a descrição das premissas ou base factual. [17] Nesse sentido, acórdãos da RP de 20.10.2014 e da RG de 18.04.2024 .