INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
IMPUGNAÇÃO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
LEGITIMIDADE
INSTITUIÇÃO FINANCEIRA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
Sumário

Da responsabilidade da relatora (art.º 663º, nº 7 do CPC)
I - Por princípio, o art.º 590º, nº1 do CPC, inserido na regulação da tramitação do processo declarativo comum, não encontra campo de aplicação na regular tramitação do incidente coletivo de verificação e graduação de créditos por apenso a processo de insolvência (ou equiparado).
II – Se aquele incidente for regularmente tramitado, aquando da primeira apresentação dos autos ao juiz foi já cumprido o contraditório relativamente a cada um dos créditos inscritos nas listas (aos termos em que os mesmos foram ou não reconhecidos) e às impugnações às mesmas deduzidas (cfr. arts. 129º, nº 4, 130º, nº 2, 131º, nº 3, 133º e 134º do CIRE), e os autos encontram-se na fase de saneamento (cfr. art.º 136º do CIRE).
III - A dogmática concetual processual e a fase processual a que reporta a previsão do art.º 590º, nº 1 do CPC não permitem qualificar como liminar um despacho proferido na fase de saneamento daquele incidente, na qual, a manifesta improcedência do pedido que nos termos do art.º 590º, nº 1 do CPC seria suscetível de fundamentar o indeferimento liminar da petição, teria que ser formalizada, não como indeferimento liminar mas como improcedência da impugnação.
IV – O julgamento e afirmação da manifesta improcedência do pedido convoca “um critério normativo de evidência” no confronto entre os pressupostos legais da pretensão formulada e os fundamentos de facto e de direito concretamente alegados na petição inicial, independentemente de aqueles virem ou não a ser demonstrados e qualquer que seja a interpretação que se faça dos preceitos legais aplicáveis.
V – A ilegitimidade substantiva ativa configura exceção material perentória inominada, pressupõe que o autor não seja parte ou titular da relação jurídica material controvertida tal qual como a descreve, e respeita ao conhecimento de mérito do pedido.
VI - Tem legitimidade substantiva para reclamar créditos sobre a insolvente com fundamento em responsabilidade aquiliana o credor que identifica os danos a ressarcir com os valores monetários que perdeu ou não lhe foram reembolsados por outros mas por efeito ou consequência de condutas que imputa à insolvente e que qualifica como ilícitas, culposas e causa adequada da perda produzida no seu património.
VII - A procedência da reclamação/impugnação assim deduzida não depende de uma qualquer qualidade ou condição específica do credor relativamente à insolvente e/ou ao direito à indemnização a que sobre esta se arrogue, mas sim do apuramento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual. Dito de outro modo,
VIII - A reclamação de créditos naqueles termos deduzida não tem como quid decidendum uma questão de titularidade do direito de crédito peticionado, mas sim de existência (e reconhecimento) desse crédito.

Texto Integral

Acordam as juízas da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
1. Por requerimento de 31.05.2019 autuado por apenso ao processo de liquidação judicial do Banco Espírito Santo, SA a comissão liquidatária nomeada apresentou as relações dos credores por si reconhecidos e dos não reconhecidos, nesta última incluindo os créditos reclamados pelos aqui recorrentes, a saber, AA e BB, CC, DD e EE, FF, GG e HH, II e JJ, KK e LL, Farmácia do Fermil, Unipessoal, Ld.ª, MM e NN, Farmácia Nova de Monsanto, Ld.ª, OO, PP e QQ, RR, ROPAR– Fabrico de Calçado Ortopédico, S.A., e RICKIPARODI – Moda e Acessórios Profissionais, S.A., SS e TT, UU e VV, NF, Unipessoal, Ld., WW, XX, YY e ZZ, AAA e BBB, CCC e DDD, EEE e FFF, GGG, e HHH. Fundamentou (o não reconhecimento) aduzindo que as relações contratuais das quais emergem os créditos reclamados não foram estabelecidos com o BES mas sim com o Banco Privée Espírito Santo (BPES), cujas condutas não podem ser imputadas ao BES, e não se mostram alegados nem fundamentados os pressupostos de direito e de facto da responsabilidade civil que suportem os créditos indemnizatórios que reclamam com fundamento em responsabilidade pela colocação e divulgação de informação no mercado financeiro pelo BES.
2. Pelos recorrentes foi apresentada impugnação à lista de créditos pugnando pelo reconhecimento dos créditos que reclamaram com fundamento legal no instituto da responsabilidade civil extracontratual e nos arts. 116º-F e 73º a 75º do RGICSF e 483º e 563º do Código Civil. No essencial e para além das condutas que descrevem e imputam aos seus gestores de conta no Banque Privée Esprito Santo (BPES), com exceção dos recorrentes que infra se indicam alegaram que eram clientes do Banco Espírito Santo (BES) e que, por aconselhamento dos seus gestores, entre janeiro de 2012 e novembro de 2013 abriram conta no BPES, sendo que a uns foi dito tratar-se de um Banco do grupo BES e que em caso de falência deste estavam protegidos pelo Fundo de Garantia e Depósitos (FGS), e a outros não foi explicado tratar-se de banco suíço e distinto do BES e que, por isso, não era abrangido por aquele Fundo. Através da conta de cada um no BPES e na sucursal deste em Portugal, entre outubro de 2013 e em janeiro de 2014 foram aí ‘compelidos’ a subscrever ou a aplicar o seu dinheiro em produtos financeiros de risco designados EXS Cash Plus Segregated Eur PF emitido por um fundo denominado EXS Cash Plus[1], e outros produtos (obrigações, Notes, ações) emitidos por empresas do Grupo Espírito Santo (GES), as holdings Espírito Santo Internacional (ESI) e Rio Forte (RF), sendo a primeira (ESI) acionista única da segunda (RF) e acionista maioritária da (sub)holding Espírito Santo Financial Group (ESFG) e, esta, acionista única da sociedade (Espírito Santo Finaciére - ESFIL), detentora do capital social do BPES, e acionista maioritária do BES.
Em 31.12.2012 a ESI informou os investidores que detinha 4,3 mil milhões de euros de ativos e capitais próprios que traduziam uma autonomia financeira na ordem dos 20%, mas a auditoria a que foi sujeita no ultimo trimestre de 2013 revelou ocultação de passivo de 1.331 milhões de euros nas contas de 2012 e capitais próprios no valor negativo de mais de 3 mil milhões de euros, pelo que, sem os recorrentes o saberem mas com o conhecimento do BES, o seu dinheiro foi aplicado numa empresa há muito insolvente, que como tal foi declarada por decisão de 27.10.2014 do Tribunal do Comércio Luxemburgo.
A RF era integralmente detida pela ESI e concentrava os principais ativos do ramo não financeiro do GES, dentro do qual o BES detinha o poder decisório. Em 2012 a RF apresentava capital próprio de cerca de €967 milhões de euros e em 31.12.2013 adquiriu 49,26% do capital da ESFG por valor substancialmente superior ao valor contabilístico e ao valor de mercado das suas ações, e em 2014 a Portugal Telecom (PT) subscreveu papel comercial emitida pela RF no valor de cerca de €900 milhões de euros, aumentado a sua dívida a níveis incomportáveis, com consequente afetação dos respetivos capitais próprios, que passaram a valor negativo de cerca de €2 milhões de euros, e, apesar de saber que não dispunha de condições para pagar os reembolsos do papel comercial emitido, continuou a emiti-lo tendo por base as informações e valores de capitais próprios de 2012.
A ocultação de passivo pela ESI era conscientemente realizada já desde 2008 com conhecimento da administração do BES (III, JJJ e KKK), cujos membros integravam também o conselho de administração da ESI, da ESFG e, um deles, o conselho de administração do BEPS e, apesar de conhecerem a real situação financeira da ESI e da RF(e insolvência), nada fizeram para evitar a comercialização de produtos financeiros por estas emitidos, razão pela qual se imputa ao BES uma participação ativa no esquema fraudulento de financiamento do GES que levou à liquidação das entidades emitentes dos produtos financeiros, com consequente perda de todo o dinheiro investido em produtos financeiros emitidos por empresas do GES.
Em síntese, imputam ao BES a violação de regras de conduta que lhe são legalmente impostas quando os reencaminhou aos recorrentes e/ou a parte dos depósitos que tinham ou teriam feito no BES para o BPES e que, não fosse isso, teriam continuado com os seus depósitos/dinheiro no BES, e ao compactuar ativamente com a ocultação do passivo verificado nas contas da ESI e com as operações realizadas pela RF (de aquisição da ESFG e de emissão de papel para subscrição pela PT) para dessa forma fraudulenta beneficiar as entidades do seu grupo empresarial (GES) relativamente aos interesses dos seus clientes que, entretanto, haviam sido passados para o BPES, sem mais.
Os recorrentes GGG, EEE e FFF, e HHH, alegaram que através das respetivas contas bancárias, no Deutsche Bank este ultimo e no Banco Best Bank os demais, adquiriram ‘Credit Linked Notes (CLN)’ EUR 5Y CLN PT INTERNATIONAL FINANCE (PTIF) que tinham por entidade de referência a Portugal Telecom International Finance BV (PTIF), e que as aplicações/investimentos desta entidade em títulos foram sempre efetuadas na ESI, que era a holding final do Banco Espírito Santo através das suas participações de controlo, direta na ESFG e indireta na BESPAR SGPS, e em fevereiro de 2014 estas aplicações foram substituídas por títulos da RF num negócio ruinoso que com esta celebrou com intermediação do BES - que era acionista da OI e da PT e partilhava com esta dois membros do Conselho de administração, num potencial conflito de interesses na medida em que o BES era o intermediário entre a PT SGPS e o GES entre a PT SGPS e a RF - e com pressão que o BES exerceu sobre a PT SGPS, e sem qualquer comunicação ao mercado sobre a operação e sobre o real estado das suas (GES) empresas, permitindo que aquela continuasse a comercializar valores mobiliários, imputando a perda do dinheiro por eles aplicado naqueles produtos (CLN) a esta participação ativa do BES, que qualificam de esquema fraudulento de financiamento de empresas do GES através da instrumentalização da PT SGPS por via da aprovação, sem os necessários pareceres, da compra de passivos financeiros da RF que, em julho de 2014, não conseguiu reembolsar o capital e juros resultantes da subscrição de €897 milhões de euros em papel comercial desta sociedade e em dezembro é declarada insolvente, o que determinou um elevado prejuízo para a PT SGPS que, por sua vez, comprometeu o seu processo de fusão com  a empresa brasileira OI e provocou em parte o evento de crédito declarado pela ISDA em 2016, concluindo que se o BES não tivesse atuado da forma que atuou teriam visto os seus valores investidos em CLN’s devidamente pagos na respetiva data de maturidade.
3. Em sede de saneamento (parcial) do apenso de reclamação de créditos, sobre as ditas impugnações foi proferida a seguinte decisão:
Pelo exposto, nos termos do disposto no artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 17º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, indefiro liminarmente a impugnação à lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos apresentada pelos credores (…).
4. Inconformados com esta decisão foi apresentado o presente recurso pelos acima identificados credores impugnantes, requerendo a sua revogação na parte em que indefere liminarmente as suas impugnações, “tudo com as demais consequências legais (…).”
Formularam as seguintes conclusões:
I - Vem o presente recurso de apelação interposto do despacho do Tribunal a quo proferido a 12.05.2023, com a referência 425629361, que veio indeferir liminarmente as impugnações à lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos apresentadas pelos apelantes, nos autos do processo de liquidação do Banco Espírito Santo, S.A.
II. O despacho recorrido vem, ao abrigo do artigo 590.º, n.º 1 do CPC, indeferir liminarmente as impugnações dos apelantes com fundamento na falta de legitimidade substantiva ativa.
III. Salvo melhor opinião, o despacho recorrido assenta na errada interpretação e aplicação do direito violando os artigos 590.º, n.º 1 do CPC e o artigo 20.º da CRP.
IV. Neste contexto, o artigo 590.º, n.º 1 do CPC dispõe que “nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º. “
V. Como resulta de uma longa prática judicial dos tribunais portugueses, a manifesta improcedência do pedido é aquela que “se revela inequívoca em face da pretensão apresentada, ainda que resultem provados todos os factos articulados ou, por outras razões, independentemente da prova desses factos, de tal modo que o prosseguimento do processo nos surge como um ato inútil.”
VI. No caso sub judice, os apelantes alegaram, nas suas impugnações, factos que, a ser provados, fundamentam a existência de créditos, de natureza patrimonial, contra o Banco Espírito Santo, S.A., juntaram extensa prova documental e ofereceram prova por declarações de parte e depoimento de parte.
VII. Em face das suas concretas pretensões, não se pode concluir em qualquer das vertentes supramencionadas como configurando a manifesta improcedência, ou seja, nem pelo necessário soçobrar da pretensão apresentada ainda que resultem provados todos os factos articulados, nem pelo seu indeferimento independentemente da prova desses factos.
VIII. Ademais, a alegada falta de legitimidade substantiva dos apelantes não configura causa para o despacho de indeferimento liminar.
IX. Destarte, o artigo 590.º, nº 1 do CPC é bastante claro ao dispor que a petição é indeferida quando se verifique uma de duas situações: (i) O pedido é manifestamente improcedente, ou; (ii) Ocorrem, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de conhecimento oficioso, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.
X. A falta de legitimidade ativa substantiva constitui uma exceção perentória que importa a absolvição do pedido. Conforme aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2018, “a legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa”.
XI. Neste sentido, e relativamente a despacho proferido nos presentes autos, com e referência 420658828, concluiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão proferido a 11.04.2023 que “a carência de legitimidade substantiva não poderá justificar o indeferimento liminar de requerimentos de impugnação da lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos, uma vez que o artigo 590º, nº 1 do CPC não cobre a possibilidade de aquele indeferimento se basear na ocorrência de uma excepção peremptória inominada, como é a legitimidade substantiva ou material.”
XII. Pelo que, inegavelmente, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o artigo 591.º do CPC.
XIII. Para além de violar o artigo 590.º, n.º 1 do CPC, o despacho recorrido obsta a que os apelantes façam valer os seus direitos junto do tribunal, impedindo-os, assim, de aceder a uma tutela jurisdicional efetiva.
XIV. Isto porque o despacho recorrido impede, definitivamente, que os apelantes possam ver os seus direitos apreciados e reconhecidos em sede judicial.
XV. É que, ao contrário do que acontece com uma ação declarativa, os apelantes não podem, face a uma decisão de indeferimento liminar, apresentar nova impugnação. Tratando-se de uma insolvência, a mesma rege-se por regras especiais previstas no Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), sendo de destacar o artigo 130.º, n.º 1 que fixa um prazo de 10 dias para que um interessado possa impugnar a lista de credores reconhecidos com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.
XVI. De facto, os apelantes não podem sequer intentar uma ação para verificação ulterior de créditos já que também aqui, se aplicam prazos preclusivos, conforme prevê o artigo 146.º do CIRE.
XVII. Assim, salvo melhor opinião, é entendimento dos apelantes que a aplicação concreta do artigo 590.º, n.º 1 aos autos, por remissão do artigo 17.º do CIRE, viola o artigo 20.º da CRP.
XVIII. Pelo que, ao abrigo do artigo 204.º da CRP, Tribunal a quo devia se ter abstido da sua aplicação.
Não foram apresentadas contra-alegações.

II - Objeto
Nos termos dos arts. 635º, nº2 e 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso corresponde às decisões por ele impugnadas, é definido pelo objeto destas, delimitado pelo teor das conclusões de recurso e, sem prejuízo das questões que oficiosamente cumpra conhecer, destina-se a reponderar e, se for o caso, a anular, revogar ou modificar as decisões objeto de censura. Não se destina a reexaminar o processo e todas as questões nele suscitadas ou que o mesmo suscita, mas, como se disse, a apreciar do mérito da decisão recorrida. Acresce que o tribunal não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações, mas apenas das questões de facto ou de direito que, não estando cobertas pela força do caso julgado, se apresentem relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o tribunal livre na aplicação e interpretação do direito (cfr. art.º 5º, nº 3 do CPC).
Assim, considerando o objeto do litígio definido pelas impugnações deduzidas pelos recorrentes à lista de credores, o teor da decisão recorrida e a delimitação do objeto do recurso pelas conclusões acima transcritas, pelo presente recurso cumpre apreciar da (in)admissibilidade de indeferimento liminar das referidas impugnações com fundamento em ilegitimidade substantiva ativa dos recorrentes.

III – Fundamentação de Facto
A decisão recorrida não é integrada por decisão de facto porque, na apreciação das impugnações dos recorrentes, o tribunal recorrido não a proferiu.
A apreciação da questão objeto do recurso não demanda outros factos para além das incidências processuais descritas em sede de relatório, para o qual se remete.

IV – Fundamentação de Direito
Está em causa uma decisão de indeferimento de impugnações deduzidas à lista de créditos por credores reclamantes não reconhecidos pela comissão liquidatária, que o tribunal declarou proferir “nos termos do art.º 590º do CPC, ex vi art.º 17º do CIRE.”
Considerando o fundamento legal processual indicado para a prolação da decisão de indeferimento, que o tribunal qualificou como ‘liminar’ – art.º 590º, nº 1 do CPC –, e o juízo conclusivo de direito nela expressado, resulta que o tribunal a quo suportou o indeferimento das impugnações dos recorrentes na manifesta improcedência do pedido e, esta, na ilegitimidade substantiva dos credores impugnantes.
Os recorrentes opõem que:[2] (i) a aplicação do art.º 590º, nº 1 do CPC aos autos viola o art.º 20º da CRP porque, face a uma decisão de indeferimento liminar, veem definitivamente prejudicado o reconhecimento judicial dos seus direitos (de crédito) por estar limitado ao processo de liquidação do BES e aqui precludida a possibilidade de nova impugnação à lista ou de instauração de ação para verificação ulterior de créditos por esgotados os prazos legais para o efeito previstos; (ii) a falta de legitimidade substantiva (dos recorrentes) não configura causa para o despacho de indeferimento liminar por constituir exceção perentória que importa a absolvição do pedido; (iii) em face dos factos que alegaram para fundamentar a existência de créditos contra o BES não se pode concluir pela manifesta improcedência das suas pretensões.  
(i) Anota-se antes de mais que não colhe a alegada violação do art.º 20º do CRP com fundamento na indevida aplicação aos autos do art.º 590º, nº1[3] do CPC na medida em que a decisão de indeferimento liminar de uma ação/petição/requerimento com fundamento na manifesta improcedência do pedido por ele deduzido tem como efeito a preclusão de nova apreciação do pedido no âmbito do mesmo processo, por força do esgotamento do poder jurisdicional e do caso julgado formal nos temos dos arts. 613º, nº 1 e 620º do CPC, ou no âmbito de outra ação/procedimento por força do caso julgado material nos termos do art.º 619º do CPC, restando à parte vencida a possibilidade de requerer a alteração dessa decisão através da sua impugnação por qualquer via legalmente admissível, faculdade que os recorrentes exerceram através dos presentes autos de recurso de apelação e sem constrangimento que decorra do facto de a decisão recorrida ter sido proferida no âmbito dos autos de reclamação de créditos por apenso a processo de insolvência.
(ii) Em parcial abono do alegado pelos recorrentes, mas sem repercussão prática no valor da decisão recorrida e no resultado do presente recurso, cumpre referir que, por princípio, o art.º 590º, nº1 do CPC, inserido na regulação da tramitação do processo declarativo comum, não encontra campo de aplicação na regular tramitação do incidente coletivo de verificação e graduação de créditos por apenso a processo de insolvência (ou equiparado). A apresentação a despacho liminar ali prevista e, assim, o momento ou fase processual por este pressuposta, corresponde ao ato processual imediatamente subsequente à apresentação da petição inicial ou, pelo menos, antes da constituição da relação processual a que esta tenderia através da citação ou notificação dos interessados contra os quais é dirigido o pedido por ela deduzido ou dos que têm legitimidade para o contestar/impugnar. Com efeito, a semântica do vocábulo ‘liminarmente’ remete para o princípio ou início de algo, para o que é introdutório, preliminar ou prévio. No contexto em que aquela norma se insere, remete para o início do processo que é instaurado pela apresentação da petição em juízo, no sentido de circunscrever a prolação do despacho liminar a essa fase do processo pela mera inspeção da petição ou requerimento inicial, antes de desencadear o cumprimento da tramitação processual que a mesma é abstratamente apta a desencadear. Objetivo que no procedimento de reclamação e graduação de créditos por apenso a processo de insolvência é prejudicado pelo facto de na sua regular tramitação a lei prever a primeira apresentação dos autos ao juiz ‘apenas’ no termo da fase equiparável à fase dos articulados, ou seja, depois de apresentadas as listas de créditos e de decorrido o prazo para a impugnação das mesmas e, sendo esta apresentada, depois do termo do prazo para resposta (cfr. arts. 129º a 132º do CIRE). O que equivale a dizer que, sendo regularmente tramitado, aquando da primeira apresentação dos autos ao juiz foi já cumprido o contraditório relativamente a cada um dos créditos inscritos nas listas (aos termos em que os mesmos foram ou não reconhecidos) e às impugnações às mesmas deduzidas (cfr. arts. 129º, nº 4, 130º, nº 2, 131º, nº 3, 133º e 134º do CIRE), e que os autos se encontram já na fase de saneamento (cfr. art.º 136º do CIRE). Ora, de acordo com a legal tramitação que sumariamente se descreveu, a dogmática concetual processual não permite qualificar como liminar qualquer despacho que nesta fase seja proferido, pelo que a manifesta improcedência do pedido que nos termos do art.º 590º, nº 1 do CPC é suscetível de fundamentar o indeferimento liminar da petição, aqui teria que ser corretamente formalizada, não como indeferimento liminar da impugnação, mas, como é avançado pelos recorrentes, como improcedência da impugnação.
(iii) Resta apreciar da bondade da decisão, a aferir pelo confronto dos fundamentos dos créditos reclamados e alegados nas impugnações com os fundamentos da sentença recorrida, atendendo aos termos em que esta foi proferida – sem julgamento/decisão de facto, no pressuposto de tratar-se de uma situação de manifesta improcedência do pedido.
Com efeito, a manifesta improcedência corresponde a juízo operado no confronto entre os pressupostos legais da pretensão formulada e os fundamentos de facto e de direito concretamente alegados na petição inicial, independentemente de aqueles virem ou não a ser demonstrados. Como é referido no acórdão de 22.03.2022 desta Relação, “(…) estamos perante um critério normativo de evidência, sendo esse o comando que o legislador dá ao aplicador, daí que o despacho deva ser proferido em face da simples inspeção da petição inicial; está em causa, fundamentalmente, a salvaguarda do princípio da economia processual, não se justificando o dispêndio dos recursos que o funcionamento da justiça implica nas hipóteses em que, seja por razões de forma, seja por razões de fundo, o processo está votado ao insucesso.[4] Nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa[5], [o]s casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais (…) de tal modo graves que permitem antever, logo nessa fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor (…).//Assim acontece quando seja manifesto que a ação nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação que se faça dos preceitos legais aplicáveis à situação configurada pelo autor (…). Situações, manifestas, que serão residuais posto que, como é referido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 03.12.1998[6], relativamente à previsão do art.º 590º, nº1 “[d]ificilmente, uma petição inicial se enquadra nesta previsão legal que abrange, no fundo, os casos extremos que estão para além de qualquer divergência interpretativa possível das normas aplicáveis à lide tal como o Autor a configura.[7]
Adiantando, e contrariamente ao entendimento do tribunal recorrido, não se nos afigura como evidente a improcedência dos pedidos de reconhecimento dos créditos dos recorrentes com os fundamentos que constam das impugnações por eles deduzidas e, muito menos, que a sua apreciação possa ser feita sem a devida análise, delimitação e descrição de um quadro factual que contemple não só os factos através dos quais os recorrentes concretizam a causa de pedir que invocam e que possam ser considerados assentes/provados, mas também de outros que, com relevo, resultem dos autos e, por via destes, sejam do conhecimento oficioso do tribunal (designadamente, através de elementos documentais aportados aos autos principais ou com outras impugnações apresentadas às listas de créditos). Acresce, e de sobremaneira, que o enquadramento/fundamento considerado pela decisão recorrida não abrange a causa de pedir na qual os recorrentes configuram os direitos de crédito a que se arrogam sobre o BES.
Justificando:
Em sede de fundamentação da decisão recorrida, por referência aos factos alegados pelos reclamantes/impugnantes e acima sinteticamente relatados o tribunal recorrido deles extraiu e considerou, apenas e em síntese, que não foi com o BES mas com outros Bancos (Banque Privée Espírito Santo, S.A., Banco Best, ou Deutshe Bank) que os recorrentes celebraram contratos de intermediação financeira e adquiriram os produtos financeiros que identificam, e que estes produtos não eram do BES mas sim de outras entidades que integravam o GES.
Suportado nesses dados, em sede de enquadramento jurídico a sentença recorrida começou desde logo por antecipar que “não vemos como pode o Banco Espírito Santo, S.A., ser aqui responsabilizado pelos créditos reclamados por estes credores”, mais adiantando que “a existir responsabilidade, esta competiria às entidades que emitiram os aludidos produtos e eventualmente ao Banque Privée Espírito Santo, S.A. [ou ao Banco BEST, SA ou ao Deutsche Bank] que os comercializou, mas nunca ao Banco Espírito Santo, S.A. e que “eventuais responsabilidades criminais de administradores de sociedades do GES têm de ser apuradas em sede de processo crime.
No âmbito de questão suscitada por alguns dos recorrentes, defendendo a sua legitimidade “enquanto titulares da relação material controvertida como ela é configurada pelo autor” (em resposta ao contraditório cumprido nos termos do art.º 3º, nº 3 do CPC), a decisão recorrida concluiu pela legitimidade processual dos recorrentes mas, prosseguindo, invocou a questão da legitimidade substantiva ou ad actum, que referiu respeitar à causa de pedir e ao mérito da causa e, citando acórdão da Relação de Coimbra de 19.12.2006, “às condições subjectivas da titularidade do direito invocado”, definindo-a como “um complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído” e cuja falta dá lugar à ilegitimidade material e conduz à absolvição do pedido.
Com estas considerações de direito e as sobreditas referências de facto – que a final resumiu ao facto de os “impugnantes mantinham uma relação comercial e contratual com o Banque Privée Espírito Santo, S.A. [ou o Banco Best ou o Deutsche Bank], e não com o Banco Espírito Santo, S.A., e foi através daquele[s] que subscreveram os diversos produtos financeiros do Grupo Espírito Santo a que fazem referência nas suas impugnaçõesconcluiu que os impugnantes-recorrentes “carecem de legitimidade substantiva ou material para o efeito, já que não são titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente” e que, assim, “não dispõem de legitimidade substantiva para impugnarem a referida lista de créditos, ou seja, verifica-se uma situação de ilegitimidade substantiva.
Do exposto resulta que para fundamentar a ilegitimidade substantiva a decisão recorrida afirmou que os recorrentes não são titulares de créditos de natureza patrimonial sobre a insolvente, subvertendo assim a apreciação do objeto das impugnações e do pedido que por elas deduziram, precisamente, de reconhecimento dos seus direitos de crédito sobre a insolvente, num raciocínio ou pressuposto circular pelo qual se limitou a afirmar que os recorrentes não são titulares dos direitos de crédito que reclamam porque não são titulares de direitos de crédito sobre o BES,  à margem dos fundamentos que integram a concreta causa de pedir invocada pelos recorrentes. Fundamentos que, factualmente, incluem a celebração de contratos de intermediação financeira e a atividade que na sua execução lhes foi prestada por outros Bancos (através dos quais foi investido/aplicado dinheiro que detinham em contas bancárias por eles ali tituladas e que, contrariamente ao que assumiram e/ou ao que lhes foi expressamente transmitido, não lhes foi total ou parcialmente reembolsado no termo da maturidade dos produtos financeiros que subscreveram/adquiriram nem até ao presente), mas que vai muito além destes factos, num conjunto, complexo, de factos e de valorações jurídicas com as quais fundamentam a responsabilidade que imputam ao BES pela perda ou não reingresso daqueles valores ao respetivo património. Perda/danos patrimoniais que a este imputam, não com fundamento em incumprimento/responsabilidade contratual/obrigacional emergente dos contratos de depósito e de intermediação financeira que celebraram com os outros Bancos, mas todos com fundamento no instituto da responsabilidade civil/aquiliana, no qual expressamente suportam o direito de crédito que a título de indemnização reclamam sobre o produto da liquidanda nos termos dos arts. 483º e 563º do Código Civil, imputando ao BES condutas que, com fundamento legal em normas do Regime Geral das Instituições de Crédito (RGICSF), qualificam como ilícitas, culposas e causais do dano que pretendem ver ressarcido pelo produto da sua liquidação. Em síntese, imputam ao BES a violação de regras e critérios de conduta que lhe são legalmente impostas quando, na qualidade de seus clientes, foram por ele aconselhados/’compelidos’ a abrir conta e a transferirem os seus depósitos e investimentos para o BESP sem que aquele tenha cumprido com o dever de informação a que estava obrigado no âmbito da relação cliente-Banco e que a alguns prestou em erro quanto à nacionalidade daquele Banco (BESP) e ao regime jurídico (Direito interno) pelo qual os seus direitos seriam tutelados em caso de falência, mais alegando que, se essa informação não lhes tivesse sido sonegada, teriam continuado com os seus depósitos/dinheiro no BES e beneficiado da tutela do FGD em caso de falência. Mais lhe imputam a violação de deveres e de critérios legais de conduta relativos ao bom funcionamento do mercado financeiro e que lhe são impostas como interveniente operante no sistema financeiro, ao compactuar ativamente com a ocultação do passivo verificado nas contas da ESI e com as operações realizadas pela RF, de aquisição da ESFG e de emissão de papel para subscrição pela PT, SGPS, e na instrumentalização desta ultima[8] para, dessa forma, que qualificam de esquema de financiamento fraudulento de empresas do GES, e num contexto de conflitos de interesses, beneficiar as entidades do seu grupo empresarial em detrimento dos interesses dos investidores.
Assim, a impugnação deduzida pelos recorrentes não suscita nem nos coloca perante um problema prévio de definição ou apuramento da titularidade do direito que invocam em fundamento do pedido, isto é, de um direito enquanto pressuposto jurídico do direito ou pretensão que reclamam ou pretendem ver reconhecida; não nos coloca perante uma causa de pedir que, a montante do direito à indemnização a que se arrogam, pressuponha a existência de um direito relativamente ao qual caiba apurar ou definir se são ou não os seus titulares[9], sendo certo que o bem de que eram titulares e em que se concretiza o prejuízo que invocam corresponde aos valores monetários que investiram e que não lhes foi reembolsado nem permitido resgatar por falta de liquidez e posterior declaração da situação de insolvência das sociedades emitentes (que os recorrentes imputam à atuação ‘fraudulenta’ do BES, designadamente, por adulteração e omissão de informação a que estava legalmente obrigado, pela canalização de fundos de empresas emitentes do GES com o propósito de beneficiar outras do mesmo grupo, pela permissão de emissão de produtos financeiros por empresas do GES que sabia em situação de insolvência daquelas). O objeto das impugnações antes nos coloca perante casos cujo quid consiste precisamente em apurar se o direito (à indemnização) – e não a titularidade do mesmo - existe nos termos em que o mesmo vem por elas configurado - com fundamento em responsabilidade civil extra-contratual do BES por conduta (por ação e por omissão) que lhe imputam e qualificam como ilícita, culposa e causal dos prejuízos que sofreram –, sendo que a definição da sua qualidade de titulares do direito de crédito tal qual como o configuram nas impugnações e, assim, a resposta num ou outro sentido impõe e só sobrevém da definição da (in)existência do crédito e, esta, da apreciação dos fundamentos de facto e de direito alegados.
Com efeito, nos termos em que vem configurado o pedido, a titularidade do direito de crédito que os recorrentes reclamam nos autos não depende de uma qualquer qualidade ou condição específica de cada um deles relativamente ao BES e/ou ao direito à indemnização a que sobre este se arrogam, mas sim do apuramento dos pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual. Como se concluiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.03.2021, III - Há que distinguir a legitimidade enquanto pressuposto processual (art.º 30.º do CPC), que se afere pelo modo como a relação controvertida é configurada pelo autor, da legitimidade substantiva ou material, que se prende com a titularidade de um direito, respeitando, assim, ao mérito da causa.//IV - Sendo um dos requisitos da responsabilidade civil a violação do direito de outrem (uma das modalidades da ilicitude), é necessário que quem pede que lhe seja paga uma indemnização demonstre ser titular do direito violado, sob pena de se concluir que carece de legitimidade (substantiva) para o efeito. Tratando-se, por exemplo, de uma ação de reivindicação, a condição ou qualidade subjetiva necessária é a de proprietário.[10] Naquele aresto estava em causa pedido de indemnização que foi julgado improcedente por não ter resultado demonstrado que o autor fosse o proprietário dos bens afetados/danificados pelo ato ilícito e culposo alegado em fundamento do pedido de indemnização e, portanto, porque não resultou demonstrado que o autor tenha sido o lesado com aquele ato/conduta.
A ilegitimidade substantiva ativa pressupõe que o autor não seja parte ou titular da relação jurídica material controvertida que alega. Como é referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2018[11]citado pelos recorrentes, tirado no âmbito de ação declarativa de condenação em determinado montante com fundamento em contrato de transporte de mercadorias e contrato de cessão do crédito dele emergente, “(…) estando demostrado que à A. não foi cedido nenhum crédito do cedente sobre a R., aquela não é titular do direito que se arrogou para demandar a R. e portanto não tem legitimidade substantiva, dado que não é titular da relação material controvertida invocada.” No caso, considerando o bem jurídico-patrimonial objeto dos danos que os recorrentes invocam, imputam ao BES e pelos quais pretendem ser ressarcidos, só seria de concluir pela sua ilegitimidade substantiva se, face aos factos alegados e documentados e/ou outros que viessem a ser demonstrados, resultasse ou viesse a resultar não serem eles os titulares/proprietários dos valores monetários e/ou das contas bancárias através das quais foi realizada a subscrição ou a aquisição dos produtos financeiros que identificam porque, nesse caso, não seria na sua esfera jurídica  - mas na esfera jurídica dos titulares dos depósitos e dos investimentos por eles realizados - que se iriam produzir os danos que alegam, de perda daqueles valores monetários, que identificam como o dano sofrido. Assim não sucedendo, a ação só poderá vir a ser julgada improcedente, não com fundamento em ilegitimidade substantiva dos recorrentes, mas sim pela inexistência falta de demonstração do direito que reclamam e, esta, pela não demonstração dos factos que a fundamentam ou, sendo demonstrados, se se entender que os mesmos não preenchem os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana que imputam ao BES e que, por isso, não se constituiu/não existe o direito à indemnização , questão de direito que a decisão recorrida sequer abordou e muito menos justificou. Nesse sentido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.07.2023, ao identificar a ilegitimidade substantiva com a falta de demonstração “de ser o autor o titular do direito que invoca ou o réu o titular da obrigação exigida, que como questão de mérito do pedido depende da alegação e prova por parte do interessado e que tem como consequência a procedência ou improcedência do pedido.”
O que tudo vale por dizer que o tribunal recorrido inverteu a ordem da apreciação que os fundamentos das impugnações demandam ao concluir pela ilegitimidade substantiva dos recorrentes pressupondo a inexistência do direito de crédito reclamado pelos recorrentes, que assumiu e afirmou sem apreciação dos fundamentos de facto e de direito alegados, quando o que o objeto das impugnações impõe aferir é se os recorrentes são ou não titulares do direito à indemnização que reclamam através da apreciação da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil ou aquiliana do BES com fundamentos nos factos em que a suportam, apreciação que não foi operada pelo tribunal recorrido, e que sempre careceria de ser precedida de decisão de facto com descrição dos alegados com relevância para a decisão da causa, salvaguardando todas as soluções plausíveis de direito.
Acresce a irrelevância da referência à inadequação destes autos para o apuramento de responsabilidades de natureza criminal posto que o que vem requerido pelos recorrentes é o apuramento da responsabilidade civil do BES, sendo que, em abstrato, qualquer pessoa jurídica pode constitui-se como sujeito passivo de responsabilização civil e da inerente obrigação de indemnizar nos termos do art.º 483º do Código Civil, responsabilização que a natureza jurídica de instituição financeira/bancária por si só não tem a virtualidade de afastar/rejeitar.
Com o que se conclui que, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, as impugnações não se apresentam como manifestamente improcedentes, nem o objeto das mesmas pode ser apreciado e decidido sem a devida descrição da matéria de facto relevante objeto do enquadramento jurídico convocado para a apreciação dos pedidos por elas deduzidos, o que impõe a revogação da decisão de indeferimento das impugnações apresentadas pelos recorrentes.
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V – Decisão
Em conformidade com o exposto, as juízas desta Relação acordam em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, com consequente prosseguimento dos autos e oportuno conhecimento das impugnações à lista de créditos apresentadas pelos recorrentes.

Considerando a ausência de contra-alegações, sem custas da apelação para além da taxa da justiça já paga com a sua apresentação (cfr. art.º 6º, nº 1 do Regulamento das Custas Processuais).


Lisboa, 27.05.2025
Amélia Sofia Rebelo
Renata Linhares de Castro
Paula Cardoso

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[1] Correspondem estes aos produtos financeiros que os impugnantes-recorrentes PP e RR alegaram ter sido subscrito com o seu dinheiro através das respetivas contas no BPES, e a um dos produtos alegados pelo impugnante-recorrente CCC para além dos emitidos por empresas do GES, mas sem que qualquer um tenha alegado qualquer relação entre aquele produto e as empresas do GES e/ou o BES para além do aconselhamento que neste tiveram para a abertura de conta no BPES assegurando-lhes a aplicação do Fundo de Garantia de Depósitos em caso de falência do BPES.
[2] Alterou-se a ordem pela qual vêm alegados os fundamentos do recurso por conveniência de exposição, sem prejuízo para a sua apreciação.
[3] Sob a epígrafe Gestão processual estabelece que nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º
[4] Processo nº 11437/21.1T8LSB-B. L1, subscrito pela aqui relatora na qualidade de adjunta, desconhecendo-se que tenha sido objeto de publicação.
[5] Código de Processo Civil Anotado, GPS, vol. I, Almedina, 2ª ed., p. 699.
[6] Acórdão tirado no âmbito de ação de investigação de paternidade, de cujo sumário consta “II- O facto de a interpretação de determinada norma ser, sob a perspectiva da constitucionalidade, dominante ou, mesmo, unânime, e num sentido que implica a absolvição do réu, não implica que a petição inicial seja liminarmente indeferida, por causa de manifesta falta de fundamento do pedido, pois nada garante que tal interpretação não venha a ser posta em causa.”
[7] No mesmo sentido, entre outros, acórdão do STJ de 17.12.2020: “(…) conforme tem entendido unanimemente a jurisprudência do Supremo, o conhecimento imediato, total ou parcial, da causa ou de uma excepção peremptória «só poderá ser levado a cabo (… ) quando se conclua, de forma evidente, pela desnecessidade de prosseguir a acção» (cfr. acórdão do STJ de 07-11-2019, revista n.º 878/17.9T8LRA.C1.S1[4]), devendo “os tribunais fazer uso prudente e cauteloso desse poder, não devendo a segurança ser sacrificada à celeridade” (cfr. acórdão do STJ de 18-01-2018, revista n.º 18084/15.5T8LSB.L1.S2).
[8] Os recorrentes subscritores de CLN’s alegam instrumentalização desta entidade de referência (PT, SGPS) por via da pressão e aprovação, pelo BES e sem os necessários pareceres, da compra de passivos financeiros da RF que, em julho de 2014, não conseguiu reembolsar o capital e juros resultantes da subscrição, por aquela sociedade ( PT), de €897 milhões de euros em papel comercial da RF, que é declarada insolvente em dezembro de 2014, o que determinou um elevado prejuízo para aquela sociedade (PT) que, por sua vez, comprometeu o seu processo de fusão com  a empresa brasileira OI e provocou em parte o evento de crédito declarado pela ISDA em 2016, concluindo que se o BES não tivesse atuado da forma que atuou teriam visto os seus valores (investidos em CLN’s) devidamente pagos na respetiva data de maturidade.
[9] Como era o caso, por exemplo, do objeto da decisão apreciada por acórdão da RC de 14.01.2025 - no qual se considerou que “Incumbe ao tribunal decidir em cada ação, se o A. é efetivamente o real titular do direito que invoca, no caso concreto o direito de propriedade sobre um determinado prédio e sobre o muro nele erigido.”; da decisão apreciada por acórdão da RP de 04.10.2021, em que, apesar de se ter concluído pela existência de danos indemnizáveis e imputáveis ao réu, se concluiu pela falta de legitimidade substantiva do autor para o pedido por se ter considerado que aqueles (danos) não se geraram na sua esfera jurídica, “mas na de terceiro, proprietário do imóvel objeto do incêndio, nada podendo obter para si relativamente a reparação/indemnização relativa a imóvel alheio.”; do acórdão do STJ de 12.10.2023 tirado no âmbito de ação para responsabilização do Banco Santander por factos ocorridos no Banif, que, partindo da definição jurisprudencialmente assente de legitimidade substantiva ou material, considerou que “[e]m causa está a qualidade de sujeito (activo ou passivo) da situação jurídica sobre a qual o acto em causa vai exercer o direito” e concluiu pela improcedência do pedido pelo facto de a obrigação de indemnização reclamada, que se constituiu na esfera jurídica do Banif, não ter sido transferida para o ali réu por deliberação do BdP.
[10] Vd. Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. II, fls. 174 e ss.
[11] Cujo ponto I do sumário corresponde ao teor do ponto II do sumário do acórdão do STJ de 29.10.2015 e ao ponto I do sumário do acórdão do STJ de 28.01.2021 que, no âmbito da temática do caso que neste foi objeto de apreciação, conforme sumariado, concluiu que “III – Nestas circunstâncias o cessionário não é titular dos direitos que cabiam ao promitente comprador, já que nunca lhe foram cedidos e consequentemente não tem legitimidade substantiva para demandar os promitentes vendedores, por questões ligadas ao eventual incumprimento do contrato promessa, devendo estes serem absolvidos dos pedidos.