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INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
IMPUGNAÇÃO
COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
DEVEDOR
LEGITIMIDADE
Sumário
Da responsabilidade da relatora, cfr. art.º 663º, nº 7 do CIRE 1. Do teor do art.º 99º, nº 1 do CIRE e dos efeitos da declaração da insolvência sobre o devedor e o respetivo património resulta que no âmbito do processo de insolvência só aos titulares de créditos sobre a insolvência – e já não ao próprio insolvente - é admitido operar a compensação de créditos e, por essa via, produzir a extinção de créditos da insolvente e do contra crédito sobre a insolvência. 2. Com a declaração da insolvência o insolvente perde para o administrador da insolvência os poderes de disposição do respetivo património e é por este substituído e representado em todas as questões patrimoniais que não sejam estranhas à massa insolvente (art.º 81º do CIRE) pelo que, tratando-se o crédito da insolvente de crédito litigioso por não reconhecido pelo credor da insolvência contra o qual aquela declarou extrajudicialmente a compensação antes de ser declarada insolvente, na pendência do processo de insolvência só ao administrador da insolvência assiste legitimidade para o invocar e discutir judicialmente em representação da massa insolvente, com exclusão do insolvente. 3. Nos termos do art.º 130º, nº 1 do CIRE e 30º do CPC, o insolvente só tem legitimidade para deduzir impugnação à lista de créditos a que alude o art.º 129º do CIRE se tiver e justificar um interesse próprio juridicamente relevante no resultado da apreciação do objeto por ela posto em discussão.
Texto Integral
Acordam as juízas da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,
I - Relatório:
1. People Man, Comércio de Vestuário Unipessoal, Ldª apresentou-se à insolvência em 22.03.2024, que foi declarada por sentença de 02.04.2024 que fixou em 30 dias o prazo para reclamação de créditos e foi objeto de publicação em 03.04.2024, e em 26.06.2024 o Sr. administrador da insolvência (AI) remeteu aos autos requerimento para junção das listas dos créditos reconhecidos e dos não reconhecidos, que foi objeto de autuação por apenso (D) em 10.07.2024 como apenso de Reclamação de Créditos (CIRE), seguida da notificação oficiosa ao AI para, com a máxima urgência, introduzir no sistema os credores com NIF e os respetivos mandatários, que aquele cumpriu através de formulário de registo de credores datado de 12.07.2024.
2. Por requerimento de 16.07.2024 a insolvente afirmou que no dia 12.07.2024 teve conhecimento da existência da lista definitiva e da criação do apenso D e requereu o acesso eletrónico ao mesmo e, com fundamento na ausência de notificação da insolvente e dos restantes credores no momento da criação do apenso por parte do AI, mais requereu que a contagem do prazo para impugnação previsto no art.º 130º do CIRE se inicie a partir da disponibilização à insolvente do acesso eletrónico ao referido apenso e respetivo conteúdo.
3. Em 25.07.2024 a insolvente apresentou impugnação à lista de créditos pedindo o não reconhecimento dos créditos reclamados por AC, SA.
Alegou em fundamento que é credora deste credor pelo montante de €450.000,00 com fundamento legal no art.º 227º do Código Civil e a título de indemnização pelos prejuízos e consequente situação de insolvência que por este lhe foram causados com a quebra, sem qualquer justificação, do acordo entre ambas alcançado para transmissão do negócio da insolvente para o credor quando, em vista dessa transmissão, contava já com atos de execução, comunicações aos parceiros comerciais da insolvente e compromissos assumidos por ambas as partes, crédito que a insolvente reclamou à credora através de cartas de 21.02 e 21.03.2024 e que, simultaneamente, declarou compensar parcialmente com os créditos que esta veio a reclamar nestes autos, razão pela qual não devem ser reconhecidos por encontrarem-se extintos por compensação, sem prejuízo de o AI diligenciar pelo recebimento do remanescente no montante de €349.483,36. Requereu depoimento de parte do sócio da credora impugnada, arrolou testemunhas e juntou documentos, incluindo as aludidas cartas.
4. A credora respondeu à impugnação.
Por exceção, arguiu a sua extemporaneidade por apresentada para além do prazo legal para o efeito previsto, mais alegando que o prazo de 15 dias para apresentação da lista de credores pelo AI terminou em 08.05.2024, que por email de 24.05.2024 o AI notificou o relatório e a lista provisória de credores a todos os credores e à insolvente, suas mandatária e gerente, em 26.06.2024 enviou aos mesmos a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, por carta datada de 27.06.2024 e registada rececionada em 01.07.2024 o AI notificou a gerente da insolvente do não reconhecimento do crédito laboral que esta reclamou nos autos, e que este não tem obrigação de notificar a insolvente e credores da criação do apenso. Mais declarou aceitar a confissão da insolvente sobre o valor do seu crédito, correspondente ao reconhecido pelo AI. Por impugnação, refutou o crédito a que a insolvente sobre si se arroga e respetivos fundamentos, por falsos, alegando que: foi a gerente da insolvente quem comunicou ao administrador da credora a sua decisão de até setembro de 2023 encerrar definitivamente os dois estabelecimentos comerciais que detinha; as partes mantiveram negociações informais com o objetivo da credora obter mais informações e aferir do seu interesse e da viabilidade do potencial negócio de aquisição dos estabelecimentos da insolvente que por aquela lhe foi proposto; fez uma proposta de aquisição por determinado valor, que foi recusada pela insolvente e, em resposta ao valor por esta indicado apresentou proposta de valor inferior, que a gerente da insolvente também recusou; contrariamente ao que a insolvente alega não estavam acordadas as mínimas condições necessárias para a celebração de eventual negócio e, feita a avaliação pelas equipas jurídica e financeira da credora, chegaram à conclusão que apresentava riscos para a empresa e foi decidido não efetivar qualquer negócio nem avançar nas negociações. Mais repudiou a responsabilidade ou qualquer contribuição sua para a situação de insolvência que a insolvente lhe imputa alegando que era do conhecimento desta que se encontrava nessa situação há mais de um ano, e realçou o alegado prejuízo que a insolvente alega sem alegar facto ou junta qualquer documento comprovativo de tal montante.
Concluiu em conformidade, arrolou testemunhas, e juntou um documento.
5. A insolvente respondeu à exceção e concluiu pela tempestividade da sua impugnação.
6. Em 22.11.2024 foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos que, em sede de apreciação da impugnação apresentada pela insolvente e da resposta que à mesma foi deduzida pela credora impugnada, considerou que aquela foi regularmente notificada na pessoa da sua sócia única e gerente por carta com registo de 28.06.2024, concluiu que o prazo para impugnação à lista terminou em 15.07.2024 (1º dia útil subsequente ao termo do prazo, em 13.07), e declarou desconsiderar a impugnação por extemporânea.
7. Inconformada, a insolvente interpôs o presente recurso que, conforme ponto I.1. das alegações e ponto A. das conclusões de recurso, “tem por objeto a decisão que recusa a apreciação da impugnação do crédito feita pela ora Recorrente/Insolvente relativamente ao credor AC, S.A., a qual, datada de 22.11.2024 decidiu que perante a patente extemporaneidade da impugnação apresentada pela insolvente, esta não será tida em consideração, encontrando-se prejudicada, por conseguinte, a análise dos termos da resposta à impugnação efectivada pela credora AC, S.A.., requerendo a sua anulação e/ou a sua revogação e, em qualquer caso, a sua substituição por outra que admita a impugnação que deduziu à lista de créditos e determine o seguimento da tramitação processual subsequente.
Formulou as seguintes conclusões:
A. (…)
B. A decisão considerou que a insolvente tinha sido “notificada com cumprimento dos formalismos legais” através da notificação da sua Gerente pela exclusão de um crédito laboral seu da lista definitiva nos termos do n.º 4 do art.º 129, e por isso, a impugnação efectuada pela Insolvente tinha sido extemporânea.
C. Sucede que, a Decisão Recorrida desconsiderou, em absoluto, que a gerente da Insolvente tinha sido notificada, enquanto trabalhadora, tendo essa notificação como conteúdo, APENAS, o não reconhecimento do seu crédito como tal.
D. Desconsiderando que a gerente da Insolvente não foi notificada de qualquer lista, nem de qualquer informação relativa aos créditos reconhecidos pelo Administrador de Insolvência.
E. A Decisão Recorrida desconsidera, também, que a criação do apenso com a lista definitiva no processo, pelo Sr. Administrador de Insolvência, não obstante ter ocorrido no dia 26/06/2024, só ficou disponível para consulta de todos os credores e da Insolvente no citius no dia 12/07/2024.
F. A Decisão Recorrida não teve em consideração a tramitação deste apenso e, por isso, mostra-se, desde logo, ferida de nulidade porque não atentou na notificação feita pelo próprio tribunal ao Administrador de Insolvência para que desse conhecimento do apenso aos credores, nem tomou posição relativamente ao requerimento da Insolvente de 16/07/2024.
G. Além de discordar da Decisão Recorrida, a Requerente entende, ainda, que são inconstitucionais as normas contidas no n.º 4 do art.º 129.º e no artigo 130.º do CIRE, na interpretação que lhes é dada pela Decisão Recorrida.
H. É que a lista definitiva de créditos tinha sido junta ao processo através da criação de um novo apenso, por meio de requerimento do Administrador de Insolvência a 26/06/2024, sem que, no entanto, tenham aí sido identificados todos os intervenientes processuais: a insolvente e os seus credores.
I. O que foi, desde logo, detectado pelo douto tribunal que notificou o Sr. Administrador de Insolvência para proceder à identificação e associação dos mesmos ao apenso de Reclamação de Créditos criado com a junção da lista o que este fez identificando todos intervenientes processuais no apenso que continha a lista definitiva de créditos, o apenso D, em 12/07/2024.
J. Por essa razão, a Requerente apresentou um requerimento no dia 16/07/2024 a expor a questão e requerendo ao douto tribunal que clarificasse, em termos de prazo para impugnação, se o prazo que ia ser considerado era o da disponibilização da lista.
K. Sucede que, não só esse requerimento nunca chegou a ter decisão do tribunal, como a Decisão Recorrida cingiu-se, então, a uma análise sumária e descontextualizada, parcial e injusta da resposta à impugnação efectuada pelo credor (que pugna pela intempestividade, como não poderia deixar de ser) sem ter qualquer consideração, quer pela tramitação processual, quer pela notificação do tribunal para o Sr. Administrador de Insolvência identificar os intervenientes quer pelo requerimento da Insolvente.
L. O Tribunal a quo omitiu, na sua apreciação, a análise deste requerimento e desta situação, bem como não teve em conta a notificação que o próprio tribunal teve de fazer.
M. A referida omissão de pronúncia gera a nulidade nos termos do disposto na alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC e que se deixa expressamente arguida para todos os efeitos legais, podendo constituir fundamento do recurso como previsto no n.º 4 do citado preceito legal, requerendo a Recorrente desde já a sua sanação pelo Tribunal a quo.
N. Ainda que assim não se entenda, à Decisão Recorrida cabia atentar na especificidade da tramitação do aludido apenso. Senão vejamos:
O. O prazo das reclamações de créditos no aludido processo terminou no dia 8/05/2024 e quinze dias após essa data, nos termos do n.º 1 do art.º 129, a 23/05/2024, não foi junta qualquer lista.
P. Apenas no dia seguinte, 24/05/2024, foi junta a lista provisória constante do art.º 155 e o Relatório.
Q. De onde se percebe que os prazos sucessivos previstos no CIRE, e de encadeamento da tramitação expectável em modos que os credores possam antecipar o momento em que devem consultar os autos para analisar da referida junção, não foram seguidos.
R. Até porque, como já foi referido, a junção da Lista Definitiva do art.º 129 aos autos acabou só por vir a ocorrer em 26/06/2024, volvidos 49 dias do termo do prazo para Reclamação de Créditos referido no n.º 1 do art.º 129 já transcrito. (sublinhado e negrito nossos)
S. E, como já se referiu, gerou um apenso novo que não era visível a nenhum interveniente processual
T. O que foi, como já se referiu, detectado pelo douto tribunal que notificou o Sr. Administrador de Insolvência e corrigido pelo Sr. Administrador a 12/07/2024, quando acabando por ser visível para os credores e Insolvente.
U. E visível nem sequer se entende por notificada, foi meramente concedido o acesso ao apenso aos intervenientes processuais e passou a ser visível para estes a existência do mesmo.
V. Apesar de se poder defender que quando são observados os prazos pelo Administrador de Insolvência, a notificação não seria necessária, já que, pelo encadeamento de prazos sucessivos previsto no art.º 129, os credores/intervenientes processuais teriam a possibilidade de antever quando seria a lista de credores junta e diligenciar pela sua consulta, in casu, esses prazos sucessivos não foram respeitados, pelo que não era possível à Insolvente e demais credores anteciparem essa junção.
W. Sendo que, a contar o prazo de impugnação pelo encadeamento de prazos previsto na lei, o prazo de 10 dias para impugnar a lista, contado desde a data da suposta junção da lista, teria terminado em 8/07/2024. Ora, é bom de ver que nesse momento nem sequer constava dos autos qualquer lista.
X. O que se passou nos presentes autos é que tanto a Insolvente como os reclamantes de créditos, mesmo aqueles que foram notificados por carta do não reconhecimento ou reconhecimento em termos diversos do seu crédito (nos termos do n.º 4 do art.º 129), só puderam consultar a lista a partir do dia 12/07/2024, já que as comunicações enviadas por correio aos credores não seguiram com a lista anexa.
Y. O mesmo sucedeu com reclamante de créditos Elsa Salema Quintela, que havia reclamado créditos laborais, na medida em que tinha um vínculo laboral com a Insolvente (que acumulava com o seu cargo de Gerente da Insolvente).
Z. A mesma recebeu, de facto, uma carta que referia que “no âmbito do processo supra identificado, não foi reconhecido o crédito reclamado por V. Exa. Uma vez que, sendo sócia única e gerente da sociedade insolvente não pode considerar-se existir entre V. Exa. E a insolvente a existência de um contrato de trabalho que justificasse a existência dos créditos reclamados.//Atento o exposto, em conformidade com os artigos 130.º e sgts. Do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, poderá V. Exa. Impugnar a lista de créditos reconhecidos, mediante requerimento dirigido ao tribunal.”
AA. Ora, com a aludida comunicação, a trabalhadora Elsa Quintela, que era também Gerente da Insolvente (não havendo, aliás, e ao contrário do decidido pelo Sr. Administrador de Insolvência, qualquer impedimento à acumulação dessas duas qualidades/vínculos) ficou a saber, meramente, que o seu crédito pessoal não tinha sido reconhecido e que podia reclamar do seu não reconhecimento;
BB. Não se podendo aceitar que o prazo para impugnação que se encontrava a correr, de acordo com a interpretação da Decisão Recorrida, terminaria no dia 15/07/2024 (sendo 13/12/2024 um sábado), bem sabendo o tribunal que a lista apenas tinha sido disponibilizada aos intervenientes processuais, mediante ordem do tribunal, a 12/07/2024.
CC. Data a partir da qual a insolvente diligentemente, por não ter sido nunca notificada da lista de créditos – contou o prazo para impugnação do crédito do credor AC, S.A. que se discute neste recurso.
DD. A Decisão Recorrida não faz qualquer sentido na sua interpretação ao que não são alheias as nulidades apontadas. Não se vislumbra e constitui flagrante violação do acesso ao direito e à justiça como se pode entender que está a correr um prazo de impugnação de algo cujo acesso, conhecimento e teor estão vedados aos potenciais impugnantes.
EE. A Decisão Recorrida considera a Insolvente notificada do teor da lista de créditos pela carta remetida pessoalmente à sua gerente, enquanto credora e trabalhadora, com um não reconhecimento do seu crédito laboral e sem qualquer lista anexa ou menção à sua constância dos autos.
FF. E sem que essa lista tivesse sido, efectivamente, disponibilizada para consulta aos intervenientes até ao dia 12/07/2024 como era do conhecimento do tribunal.
GG. Assim, com a aludida comunicação à Gerente, feita a título pessoal e por conta de um crédito laboral, a insolvente não ficou a saber o teor da lista de créditos definitiva, nomeadamente os reconhecimentos relativos aos credores que é o que veio impugnar in casu nem se já havia sido junta aos autos (até porque tal só acabou por estar disponível a 12/07/2024).
HH. Esta notificação foi o que a Decisão Recorrida entendeu ter servido de notificação à insolvente do teor (pasme-se) da lista em termos que permitiriam à insolvente fazer uma impugnação de um crédito de um alegado credor, tendo considerado extemporânea a sua impugnação.
II. Ora, como sobejamente demonstrado, antes da data de 12/07/2027, e não obstante deverem diligenciar por cumprir os prazos legais e perentórios que o CIRE estipula, não era possível aos credores e à Insolvente saberem sequer da existência da referida lista, quanto mais do seu teor, ou seja, do mínimo de informação essencial para poderem exercer os seus direitos.
JJ. Já que o apenso eletrónico por esta gerado não tinha sido “carregado” com todos os intervenientes no processo como era do conhecimento do tribunal, que, e bem, notificou para o Administrador de Insolvência o fazer.
KK. Tudo o que foi devidamente exposto no requerimento da ora Requerente do dia 16/07/2024, com a Ref.ª Citius 39969261, no qual também se requeria que apenas se considerasse iniciada a contagem do prazo para impugnação previsto no art.º 130 do CIRE a partir do momento em que foi dado à Insolvente acesso electrónico ao referido apenso D e respectivo conteúdo.
LL. Nenhum sentido, de resto, faria que o prazo de impugnação estivesse a correr relativamente a uma lista que, nem credores, nem Insolvente, nem mesmo os notificados por carta registada nos termos do n.º 4 do art.º 129, tinham como conhecer. (mesmo que acedessem ao processo, o apenso não lhes era exibido)
MM. Tudo o que é consentâneo com a jurisprudência, da qual é exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo 2422/20.1T8AVR-A.P1 e que a decisão recorrida entendeu “tresler” e considerar que a notificação a que o Administrador de Insolvência procedeu nos termos do nº 4 do art.º 129, tinha sido a “notificação da lista de créditos a todos os que nela se mostrem inscritos” - expressão referida no Acórdão.
NN. No mesmo sentido, versa também o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo 4054/20.5T8VNF-H.G1.
OO. E tudo o que leva a que, até ao dia 30/07/2024 (considerando a presunção de notificação citius prevista no n.º 1 do art.º 248, e acrescendo a hipótese da prática do acto mediante o pagamento de multa prevista no n.º 5 do art.º 139) corresse o respectivo prazo de impugnações.
PP. Pelo que não restam dúvidas de que foi tempestiva a impugnação da aqui Insolvente/Recorrente/Impugnante, porquanto a mesma deu entrada em juízo em 25 de Julho de 2024.
QQ. E que a Decisão Recorrida não tem qualquer consentaneidade, nem com o que se passou no âmbito do presente processo, nem com o quadro legal e jurisprudencial vigente.
RR. E reitera que nem se admite, como pretende a Decisão Recorrida, que o facto de a Gerente ter sido notificada por carta registada do não reconhecimento do seu crédito laboral, constitua qualquer presunção de conhecimento da insolvência do “depósito/carregamento” da lista definitiva nos autos.
SS. Até porque tal não sucedeu, como já se referiu. O Tribunal afirma que a lista de créditos foi notificada a Elsa Quintela por carta registada, quando tal não aconteceu.
TT. Além de que, acrescente-se, o conhecimento, por uma das reclamantes de créditos, que por acaso era a Gerente da Insolvente à data da declaração de Insolvência, de um não reconhecimento de um crédito seu, laboral, não pode substituir a tramitação regular do processo de insolvência, assegurada pelos mandatários da Insolvente, sendo que nem esses mandatários patrocinam pessoalmente a Gerente. Nem, de resto, tal comunicação contém informações relativas a qualquer outro que não o seu crédito em concreto e ainda menos relativo ao reconhecimento dos restantes créditos reclamados nem resulta que a lista tenha, já, sido junta aos autos, violando flagrantemente o disposto no n.º 3 do artigo 219.º do CPC, aplicável ex vi do art.º 17 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
UU. Por fim, e ainda que por absurdo de raciocínio não se admitisse o referido nos artigos anteriores o que por mero dever de cautela e patrocínio se equaciona sem conceder - as notificações no processo quando as partes têm mandatários constituídos devem ser feitas na pessoa dos seus mandatários Conforme dispõe o artigo 247.º do CPC, aplicável ex vi do art.º 17 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
VV. Além de que, pretendendo notificar-se a Insolvente, e admitindo por absurdo que a notificação não devesse ser feita na pessoa do mandatário constituído, sempre se diga que a notificação deveria ter sido feita para a sede social da Insolvente, a do Tribunal competente para a Insolvência, e não para a residência pessoal de uma trabalhadora/gerente, sita em comarca diferente.
WW. Quanto mais não seja, a defender-se ter sido a notificação bem enviada para a residência pessoal daquela que fora a gerente da Insolvente, em comarca diferente, sempre deveria ter-se aplicado, na contagem do prazo, a dilação de 5 dias prevista no artigo 245.º, n.º 1, alínea b), do CPC. Mas sempre, naturalmente, contanto tal notificação contivesse a notificação a lista de créditos passível de impugnação.
XX. São inconstitucionais, por violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, as normas contidas nos artigos 129.º e 130.º, n.º 1 e 2, do CIRE, quando interpretadas no sentido de que, num processo de insolvência em que o Administrador de Insolvência apresentou a juízo a lista de créditos reconhecidos muito após o termo do prazo de 15 dias estabelecido no artigo 129.º, n.º 1, do CIRE, e o fez por criação electrónica de um apenso cujo acesso ou conhecimento não foi dado a qualquer interveniente processual, o prazo de 10 dias para impugnação, pela Insolvente, com mandatário constituído no processo, de um crédito reconhecido constante daquela lista tenha começado a contar na data em que, por carta registada expedida para a residência pessoal de uma trabalhadora que era gerente da Insolvente à data da apresentação à insolvência, e a ela pessoalmente dirigida (e não à empresa insolvente), pessoa essa que havia reclamado, sem constituir mandatário, um crédito de natureza laboral, foi notificada do não reconhecimento do seu crédito, quando essa carta continha apenas a informação de que o crédito laboral reclamado não fora reconhecido e que, como tal, a reclamante poderia impugnar a lista de créditos, sem que a carta tenha ido acompanhada de cópia da lista de créditos reconhecidos ou de qualquer informação sobre o seu conteúdo, e quando só depois de decorridos 14 dias após a expedição dessa carta passou a existência da lista de créditos a poder ser conhecida e a estar acessível para consulta na plataforma citius, através da qual é tramitado o processo.
YY. São inconstitucionais, por violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, as normas contidas nos artigos 219.º, n.º 3, e 247.º do CPC, quando interpretadas no sentido de que, num processo de insolvência, uma carta dirigida pelo Administrador de Insolvência, não à empresa insolvente, mas à pessoa, sem mandatário constituído, que era gerente da Insolvente à data da apresentação da insolvência, e enviada para a morada da casa dela, sita em comarca diferente da sede da Insolvente, comunicando-lhe apenas que o crédito laboral que a mesma reclamou não foi reconhecido e que, como tal, a reclamante pode “impugnar a lista de créditos reconhecidos, por requerimento dirigido ao Tribunal”, sem que a carta tenha sido acompanhada de cópia da lista de créditos reconhecidos ou de qualquer informação sobre o seu conteúdo, e quando só depois de decorridos 14 dias após a expedição dessa carta passou a existência da lista de créditos a poder ser conhecida e a estar acessível para consulta na plataforma citius, através da qual é tramitado o processo, constitui uma notificação validamente feita à Insolvente, sociedade por quotas com mandatário constituído nos autos, para efeitos de início da contagem do prazo de 10 dias para a Insolvente impugnar a lista de créditos reconhecidos, no sentido de conter os elementos necessários à plena compreensão, pela Insolvente, do seu objecto, para exercício do seu direito de impugnação da lista de créditos reconhecidos.
ZZ. É inconstitucional, por violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma contida no artigo 245.º , n.º 1, alínea b), do CPC, quando interpretada no sentido de que, num processo de insolvência, ao prazo de 10 dias previsto no artigo 130.º, n.º 1, do CIRE, para impugnação da lista de créditos reconhecidos pela Insolvente, com sede na mesma comarca do Tribunal em que corre o processo, e com mandatário constituído nos autos, não acresce a dilação de 5 dias por força de a notificação ser feita em comarca diferente da comarca onde corre o processo, quando o Tribunal considerou que o evento que marcou o início da contagem do prazo de 10 dias foi a notificação dirigida à pessoa que era gerente da Insolvente à data da apresentação da insolvência, sem mandatário constituído, expedida para casa da mesma, que é sita em comarca diferente da do Tribunal onde corre o processo, quando tal carta não foi acompanhada de cópia da lista de créditos reconhecidos ou de qualquer informação sobre o seu conteúdo, e quando só depois de decorridos 14 dias após a expedição dessa carta passou a existência da lista de créditos a poder ser conhecida e a estar acessível para consulta na plataforma citius, através da qual é tramitado o processo.
8. Dos autos não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
II – Questão prévia - Da legitimidade da insolvente para a impugnação que deduziu
1. Admitido o recurso e remetidos os autos a este tribunal, pela relatora foi proferido o seguinte despacho: Nos termos do art.º 652º, nº 2, al. b) do CPC, cabe à Relação aferir da verificação de circunstâncias que obstem à apreciação do recurso, no que se inclui o pressuposto processual da legitimidade do recorrente para o pedido que deduziu na ação, relativamente ao qual não foi proferida decisão com trânsito em julgado e que pelo presente despacho se suscita para previamente submeter ao contraditório das recorrente e recorrida nos termos dos arts. 652º, nº 1, al. b) e 655º, nº 1 do CPC.
Cumprida a notificação prevista pelos arts. 652º, nº 2, al. b) e 655º do CPC, a recorrente pronunciou-se no sentido da sua legitimidade para invocar a compensação que fundamenta a impugnação que opõe à verificação do crédito de AC, SA por ter sido por ela operada nos termos do art.º 849º do Código Civil por carta de 22.02.2024, portanto, antes da declaração da sua insolvência, pelo que o que pretende com a apreciação daquela impugnação é a extinção do crédito por ela impugnado por via da compensação que foi por si já realizada, e não que esta seja operada em sede de insolvência, caso em que a legitimidade seria do administrador da insolvência (AI). Mais se pronunciou no sentido da legitimidade da insolvente para impugnar a lista de credores por ser pacífico na doutrina e na jurisprudência que é abrangido pelo termo “qualquer interessado”, citando autores e acórdãos que expressamente o afirmam, e concluindo que aquele “apenas pode impugnar em relação a situações que afectem diretamente os seus interesses, como a inclusão indevida de créditos (como é precisamente o caso).”
2. Fundamentação de Facto
Para além dos fundamentos da impugnação acima relatados, com pertinência ao caso mais se assenta o seguinte facto, obtido através da consulta ao histórico informático dos autos:
a) O processo de insolvência da recorrente prosseguiu para liquidação.
b) Em 22.01.2025 o AI requereu autorização ao juiz da insolvência para contratação de advogado para instaurar ação de indemnização contra a credora AC, SA com fundamento nos factos que a insolvente alegou na impugnação à lista de créditos, pedido que foi deferido por despachos de 14 e 27.02.2025.
3. Fundamentação de Direito
3.1. Pela impugnação que deduziu à lista de créditos reconhecidos a insolvente requereu o não reconhecimento dos créditos reconhecidos pelo AI ao credor AC, SA com fundamento em compensação do crédito desta com crédito a que a insolvente sobre ela se arroga a título de indemnização pela perda de proveitos/receitas de vendas que imputa a conduta negocial daquela (art.º 227º do Código Civil).
Como é sabido, a compensação constitui causa potestativa de extinção de dívidas, correspondente ou equivalente cumprimento das mesmas. No dizer de Menezes Cordeiro“A compensação tem lugar quando o devedor que seja credor do seu próprio credor se libere da dívida à custa do seu crédito, assentando no princípio de que não há qualquer interesse em efectuar uma prestação a repetir posteriormente em cumprimento doutra obrigação.”[1]
Por definição, a compensação supõe desde logo a existência de dois créditos recíprocos. A reciprocidade, ou seja, a existência de crédito e contra-crédito, que o mesmo é dizer, a recíproca qualidade de devedores e credores, é conditio sine qua non do fenómeno legal da compensação. Como segundo requisito legal de verificação da compensação impõe-se que o crédito do autor da compensação seja exigível, entendendo-se esta exigibilidade como a circunstância de estarmos perante uma obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, permite ao credor intentar a correspondente ação e executar o património do devedor, nos termos do artigo 817º do Código Civil[2]. Assim sendo, a exigibilidade reconduz-se a esta faculdade de exigir judicialmente o crédito invocado, que não se confunde com a necessidade de estarmos perante um crédito já reconhecido e assim judicialmente declarado[3]. Em terceiro lugar impõe-se a fungibilidade e homogeneidade das obrigações, ou seja, exige que os dois créditos tenham por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.
A compensação efetiva-se através de declaração ao titular do crédito por ela visado extinguir, e pode ser operada extra-judicialmente ou excecionada no âmbito de oposição a pedido judicial de reconhecimento e condenação no pagamento de crédito (de igual natureza e espécie) independentemente de prévia declaração extra-judicial de compensação. Não tendo sido previamente declarada, “(…) a compensação tem-se por efectivada no momento da defesa por exceção, por ser aí que o devedor declara compensar a sua dívida para com o autor com o crédito que tem sobre este (…).”[4] Porém, como é referido no acórdão da Relação de Coimbra acima citado, “2.- Havendo impugnação do crédito activo, por parte do A., a compensação desse crédito só opera se o mesmo for reconhecido por sentença.//3.- Para efeito do funcionamento do mecanismo da compensação, a exigibilidade judicial do contra-crédito e o reconhecimento judicial do mesmo são realidades distintas, sendo a primeira requisito da declaração de compensação e a segunda condição da sua eficácia.”. Com efeito, nos casos em que a existência do crédito ativo é controvertido, para que a compensação produza os efeitos a que tende exige uma decisão judicial que reconheça a sua existência. Tratando-se de crédito indemnizatório por facto ilícito (em sede de responsabilidade civil contratual ou extracontratual), se não houver aceitação da responsabilidade e consenso entre as partes quanto ao valor indemnizatório, está sempre dependente de decisão judicial que o reconheça e fixe o montante indemnizatório adequado ao dano apurado. Nestes casos, ainda que a compensação tenha sido anteriormente declarada, só com a sentença de reconhecimento do crédito ativo produz os efeitos a que tende, de recíproca extinção de ambos os créditos até ao montante comum a ambos.
Em contexto falimentar a invocação da compensação assume especificidades que acrescem à regulação do instituto prevista no Código Civil (art.º 847º e ss.). Se a compensação for invocada por credor que é simultaneamente devedor da insolvência, a sua admissibilidade depende da acrescida verificação dos requisitos especialmente previstos pelo art.º 99º[5] do CIRE. Resulta a contrario do corpo do nº 1 do art.º 99º (“…só podem compensá-los…”) que a partir da declaração da insolvência a regra é a da inadmissibilidade da compensação, regra que se impõe aos credores da insolvência como forma de garantir o princípio da igualdade entre si. A declaração de insolvência restringe assim a faculdade de os credores da insolvência compensarem os seus créditos com dívidas à massa, condicionando-a aos requisitos previstos pelo art.º 99º do CIRE, com compressão, dessa forma mitigada, do princípio par conditio creditorum. De outro modo, através da admissão da compensação sem outros requisitos que não os exigidos pela lei geral, estaria a permitir-se que o credor, simultaneamente devedor da insolvente, obtivesse parcial satisfação do seu crédito sobre o devedor declarado insolvente por recurso ao ativo ou património deste e à margem do procedimento concursal com os demais credores da insolvente. Na síntese de Hugo Rosa Ferreira, o CIRE passou a admitir[6] a admissibilidade da compensação após a declaração de insolvência apenas nos seguintes casos e condições: “(i) desde que a compensabilidade se verificasse antes da declaração da insolvência; (ii) estando a compensabilidade prevista para depois da insolvência [vg., crédito não vencido à data da declaração da insolvência do devedor], se o crédito activo reunir os pressupostos da compensabilidade antes do crédito da massa.”[7] Restrição que é imposta pelos princípios estruturantes do direito falimentar na medida em que, através da compensação, o credor da insolvência obtém em termos económicos o valor do seu crédito, subtraindo-o ao regime do concurso dos credores que, por regra (e quando muito), apenas lhe asseguraria uma percentagem do mesmo, contrariando a concursualidade e o tratamento paritário dos credores que ao mesmo preside e que constitui o principal objetivo do processo falimentar - a justa distribuição dos insuficientes bens da devedora em crise pelos seus credores. Por outro lado, e como é referido pelo autor acima citado, a admissibilidade ‘condicionada’ da compensação em sede de insolvência consubstancia uma das exceções ao princípio par conditio creditorum que é justificada por princípios de justiça e de equidade.[8]
No caso, na apreciação da questão - da (i)legitimidade da insolvente para a discussão do que requer com os fundamentos da impugnação que deduziu – releva desde logo o facto de não ter impugnado (ao invés, reconheceu) os factos constitutivos do crédito reclamado pela credora AC, SA, e de pretender apenas que este seja considerado extinto por efeito de compensação com crédito a título de indemnização a que se arroga sobre a credora, e, de sobremaneira, a natureza litigiosa do crédito por rejeitada a sua própria existência com impugnação dos fundamentos em que assenta. Questão que se cruza com a temática dos efeitos da declaração da insolvência sobre o devedor e o respetivo património e com a questão dos poderes de representação legal e processual do insolvente pelo administrador da insolvência nos termos previstos pelos arts. 46º e 81º do CIRE.
Como resulta da letra do art.º 99º, nº 1, a admissibilidade da invocação da compensação de créditos no âmbito do processo de insolvência consta ali prevista apenas para os credores da insolvência - os titulares de créditos sobre a insolvência -, segmento restritivo que, a contrario,exclui a possibilidade de a mesma ser operada ou invocada pelo próprio devedor e de, por esta via, produzir a extinção de créditos sobre a insolvência. Máxime se o crédito que invoca for controvertido por não aceite pela parte contra o qual é oposto e de o seu reconhecimento e liquidação estar dependente de discussão e de declaração judicial, como urge ser o caso de direito de crédito a título de indemnização com fundamento em responsabilidade pré-contratual. E assim é - e impunha-se que fosse - na medida em que na pendência do processo de insolvência a discussão judicial de direito de crédito do insolvente sobre terceiro convoca o regime legal especialmente previsto no art.º 81º do CIRE.
Sob a epígrafe Transferência dos poderes de administração e disposição prevê o art.º 81º do CIRE que (…) a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência (nº1), que O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (nº4), e que São ineficazes os actos realizados pelo insolvente em violação do disposto nos números anteriores, (…) (nº6).
Destas normas resulta claro que com a declaração da insolvência o devedor perde para o AI os poderes de disposição dos bens e direitos que integram o respetivo património e que passa a constituir a massa insolvente. Como se referiu no despacho liminar da relatora e aqui se reproduz, a massa insolvente, que nasce com a declaração da insolvência, configura património autónomo de afetação destinado à satisfação do coletivo dos credores da insolvência (cfr. arts. 51º, 172º, nº 1 e 219º do CIRE) e abrange todo o património do devedor à data da declaração da insolvência e os bens e direitos adquiridos na pendência do processo (cfr. art.º 46º, nº 1 do CIRE), substituindo a pessoa objeto de declaração da insolvênciano âmbito das relações jurídicas patrimoniais que sejam suscetíveis de afetar a composição desse património. Como tal, a massa insolvente é sujeito processual de direitos e deveres e titular de interesses próprio, sendo que estes coincidem com o interesse do coletivo dos credores, que é o da máxima integração do acervo dos bens e direitos patrimoniais na massa e a otimização do seu valor em benefício do universo dos credores da insolvência, independentemente de quais venham a ser reconhecidos. Património que, conforme estabelecido pelo citado art.º 81º, passa a ser representado, em exclusivo, pelo AI, que passa a representar o devedor em todas as questões patrimoniais que interessam à massa insolvente. O que vale por dizer que é o AI quem, com exclusão do devedor, passa a deter legitimidade para discutir judicialmente os direitos patrimoniais por este detidos sobre terceiros, cujo exercício passa a pertencer exclusivamente ao AI em substituição do devedor e em representação da massa insolvente por estar em causa um direito de crédito que, em função da atividade processual desenvolvida e do resultado da mesma, pode vir ou não a ser reconhecido em benefício desta e, assim, em benefício dos credores da massa e da insolvência.
Transpondo para o caso, é ao AI nomeado nos autos que assiste legitimidade ativa para invocar, peticionar e discutir em juízo os fundamentos e o reconhecimento do crédito que a recorrente pretende opor à verificação do crédito nela reconhecido ao credor AC, SA, como se disse, por suscetível de influir no acervo dos bens que integram ou podem vir a integrar a massa insolvente e, assim, por contender com o interesse do coletivo dos credores, que é também representado pelo AI, ao qual é legal e exclusivamente deferida a legitimidade processual e material para o discutir e tutelar. Com efeito, da admissibilidade da intervenção do insolvente no âmbito do processo de insolvência nos termos expressamente previstos pelo art.º 81º, nº 5 está excluída a que respeite aos poderes de disposição e/ou de administração dos bens ou direitos que integram ou devam integrar a massa insolvente, no que se inclui a discussão judicial da existência de um crédito da massa insolvente sobre terceiro, do qual a insolvente deixou de ser titular por força da transferência dos seus bens e direitos para a massa insolvente operada ope legis pela sentença de declaração da sua insolvência.
A este resultado não obsta a natureza de exceção da invocação ou oposição da compensação em sede judicial e o facto de, em sede de dispositivo, não lhe corresponder um pedido de declaração do reconhecimento do crédito que a fundamenta. Quer seja invocado apenas para excecionar a compensação, quer seja invocado como fundamento de pedido reconvencional (na parte em que excede o crédito compensado), num ou outro caso é a mesma relação jurídica controvertida e são os mesmos pressupostos constitutivos do direito invocado que são submetidos à apreciação judicial, constituindo este o antecedente lógico e conformador quer do segmento decisório de procedência da compensação, quer do segmento decisório de procedência da reconvenção.
O pedido de reconhecimento da extinção do crédito impugnado por efeito da declaração de compensação que nesse sentido remeteu à credora implica, como é óbvio, que a existência desse crédito seja judicialmente reconhecida no âmbito da apreciação da impugnação e, assim, implica a discussão judicial dos respetivos pressupostos constitutivos, atividade - e respetivo resultado – que deixou de estar na sua disponibilidade por respeitar a direito de natureza patrimonial, cujo exercício, incluindo o judicial, compete exclusivamente ao AI. Como é referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.07.2015, “A exigibilidade do crédito para efeito de compensação – art.º 847.º, n.º 1, al. a), do CC – não significa que o crédito (passivo) do compensante, no momento de ser invocado, tenha de estar já definido judicialmente: do que se trata é de saber se tal crédito existe na esfera jurídica do compensante. (…) O invocado crédito não deixa de ser exigível, muito embora no momento em que é oposto não esteja reconhecido, nem judicialmente, nem pelo credor, o que conduz, inexoravelmente, a uma decisão judicial que os reconheça. (….)Distinta da exigibilidade judicial do crédito, imposta pelo art.º 847º, n.º 1) a) do Código Civil é o respectivo reconhecimento judicial, não obstante só possa operar-se a compensação, caso ambos os créditos venham a ser reconhecidos na acção judicial em que se discutem.”
Considerando a legal substituição processual e material do devedor pelo AI e pela massa insolvente nos termos e âmbito acima expostos e, bem assim, os pressupostos e fins tutelados pelas figuras jurídicas da litispendência e do caso julgado material[9][10], facilmente se antevê que o sistema jurídico não admite que sobre a questão da existência ou inexistência da relação creditícia alegada e invocada pela recorrente possam recair apreciações judiciais em concurso, e muito menos a possibilidade (ainda que em abstrato) de resultados divergentes, através da sua discussão no âmbito de procedimentos judiciais distintos, sendo certo que dos autos consta que o AI requereu autorização para constituição de advogado, que lhe foi concedida, para instauração de ação contra o credor André Sousa, SA pedindo o reconhecimento (e a condenação no pagamento) do direito de crédito invocado pela recorrente.
O que tanto basta para concluir pela ilegitimidade da recorrente para a impugnação que deduziu à lista nos termos/fundamentos/pedido com que a deduziu e, consequentemente, pela inadmissibilidade da mesma, com consequente repercussão na apreciação do mérito deste recurso, que fica prejudicada.
2.2. Sem prejuízo, mas em consonância com o exposto, mais se acrescenta que a legitimidade processual para impugnar a lista de credores prevista pelo art.º 130º, nº 1 do CIRE é genericamente reconhecida a ‘qualquer interessado’, e não por referência à qualidade de parte. Critério - interesse – cuja verificação é aferida caso a caso, por referência às questões submetidas à discussão e apreciação do tribunal e à posição e ao benefício ou prejuízo que das mesmas podem resultar para os autores da impugnação no âmbito do tendencial pluralismo da relação processual constituída na insolvência, que surge particularmente evidenciado na fase de verificação e graduação dos créditos. Critério que neste sentido foi acolhido pelo legislador na regulação do procedimento de verificação e graduação de créditos, do que é manifestação a restrição do nº 2 do art.º 131º do CIRE que, sob a epígrafe Resposta à impugnação, prevê que Se, porém, a impugnação se fundar na indevida inclusão de certo crédito na lista de credores reconhecidos, na omissão da indicação das condições a que se encontre sujeito ou no facto de lhe ter sido atribuído um montante excessivo ou uma qualificação de grau superior à correcta, só o próprio titular pode responder.
Tal qual como se prevê no art.º 30º, nºs 1, 2 e 3 do CPC, é parte legítima quem tem interesse direto em demandar ou em contradizer, interesse que se exprime pela utilidade derivada da tutela jurisdicional que requer ou da que é requerida, considerando-se titular do interesse relevante para efeitos de legitimidade o sujeito da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor. Nas palavras de Teixeira de Sousa[11] “a legitimidade processual é assim a susceptibilidade de ser parte numa acção, aferida em função da relação dessa parte com o objecto daquela acção (...) Visa assegurar que o autor e o réu são os sujeitos que podem discutir a procedência da acção. E esses sujeitos são aqueles que podem ser beneficiados com a decisão de procedência ou de improcedência da causa.” A legitimidade deve assim ser aferida à relação jurídica objeto do pleito e determina-se por referência aos fundamentos da ação e da defesa e à posição do mesmo relativamente a esses fundamentos. Ora, como se disse, com a declaração da insolvência a insolvente perdeu a titularidade dos seus bens e direitos, que passaram a integrar a massa insolvente, e perdeu o direito de exercer judicialmente esses direitos contra os respetivos sujeitos passivos na medida em que foi transferido para o AI em representação da massa insolvente.
Assim, para além do antes exposto (que basta para justificar a ilegitimidade da insolvente para o pedido que deduziu através da impugnação que dirigiu à lista de créditos), logo por referência ao previsto no art.º 130º, nº 1 do CIRE se imporia considerar a insolvente parte ilegítima para a apresentação da impugnação que deduziu à lista na medida em que o processo de insolvência prosseguiu para liquidação e, como é óbvio, não concorre com os credores (designadamente, com o credor AC, SA) ao produto da massa insolvente para satisfação de um qualquer direito patrimonial, nem justificou por qualquer forma a sua legitimidade para impugnar o crédito em questão através da alegação de um interesse objetivo e próprio por ela pretendido tutelar. Tratando-se de pessoa coletiva e de processo de insolvência que prosseguiu para liquidação, como é o caso, logo que ocorra o encerramento do processo e este seja conduzido ao registo a insolvente deixa de existir sem que, até lá, a sua esfera jurídica possa ser afetada pelo resultado da impugnação que deduziu à lista de créditos. O reconhecimento ou não reconhecimento do crédito impugnado pela insolvente só é suscetível de se refletir na esfera jurídica patrimonial desse credor e dos demais credores reconhecidos por serem estes que concorrem entre si à satisfação dos respetivos créditos pelas forças do produto da massa e, nessa medida, afetados pelo passivo que seja ou não reconhecido na insolvência.
Análise que não é contrariada, antes é confirmada, pelo teor do art.º 131º, nº 1 do CIRE que, contrariamente ao que sucede na previsão do art.º 130º, nº1, a par com igual segmento ‘qualquer interessado’, expressa e especificamente mais incluiu o devedor no rol dos legitimados a responder às impugnações que sejam deduzidas à lista de créditos (que, por exclusão do nº 2, serão as restritas às deduzidas por credor por referência ao seu próprio crédito, com fundamento em indevida exclusão ou indevida atribuição de condições, ou por atribuição de montante inferior ou qualificação de grau inferior aos que se arroga). Diferenciação de formulação legal que permite ou legitima assumir que, quando o legislador quis conceder legitimidade ao devedor para se pronunciar sobre a matéria em discussão tão só por assumir posição contrária à manifestada pela impugnação relativamente ao objeto da mesma e, assim, independentemente do seu interesse na decisão do litígio (que o mesmo é dizer, independentemente da suscetibilidade de por ela ser afetado), disse-o expressamente; mais concretamente, atribuindo-lhe legitimidade para responder às impugnações contrárias aos termos em que o AI reconheceu os créditos e, assim, para corroborar a posição deste. Legitimidade que, nesses termos, não lhe reconheceu no âmbito da impugnação à lista; ou seja, não atribuiu ao insolvente o direito, processualmente relevante, de assumir uma posição contrária à assumida pelo AI se dos autos não resultar ou o devedor não alegar um qualquer interesse próprio juridicamente relevante no resultado do objeto em discussão.
Interpretação que não é contrariada pela semântica dos segmentos do acórdão da Relação de Coimbra de 10.05.2011 transcritos pela recorrente no requerimento de resposta ao despacho da relatora, no qual a menção ao insolvente é feita a latere do objeto ali em discussão – da (in)admissibilidade de requerimento de impugnação apresentado por credor relativamente a outro crédito. Ao invés, o segmento onde é referido que o insolvente se inclui no âmbito dos interessados previstos pelo art.º 130º, nº 1 do CIRE[12] é imediatamente precedido de um outro que, precisamente e conforme critério que acima se defendeu, realça que “Genericamente, pode dizer-se que só é interessado quem tem interesse em impugnar. E só tem interesse em impugnar quem fica prejudicado se a sua contestação não for atendida. Pelo que a aferição desse interesse terá que ser feita à luz de cada uma das reclamações e impugnações apresentadas.”.
O mesmo sucede relativamente ao acórdão desta Relação e secção de 03.03.2020, no qual não estava em causa impugnação à lista de créditos apresentada pela insolvente, mas sim a admissibilidade de impugnações apresentadas por credores (que não constavam de qualquer uma das listas de créditos elaboradas pelo AI), e é a propósito desta questão que a referência ao insolvente surge, e ainda assim, no âmbito da citação que a recorrente também transcreveu.[13]
Nenhum dos arestos e doutrina[14] citada pela recorrente aponta para a admissibilidade da impugnação deduzida pelo insolvente à lista de créditos sem que o mesmo tenha interesse juridicamente relevante sobre o resultado da mesma.
Por qualquer uma das vias consideradas – a primeira por referência específica aos fundamentos da impugnação, a segunda por referência aos critérios geral e especial da legitimidade processual e para impugnação da lista de créditos – cumpre declarar a insolvente parte legítima para a impugnação que deduziu à lista de créditos e, consequentemente, declarar prejudicado o conhecimento do objeto do presente recurso.
III - Decisão
Em conformidade com o exposto, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar e declarar a ilegitimidade da insolvente para a impugnação que deduziu à lista de créditos tendo por objeto o crédito de AC, SA e, consequentemente, manter a decisão recorrida (de desconsideração da dita impugnação em sede de verificação daquele crédito), embora com fundamento distinto do por ela considerado, cuja apreciação resulta prejudicada.
Custas a cargo da insolvente (art.º 527º, nº2 do CPC).
Lisboa, 27.05.2025
Amélia Sofia Rebelo
Paula Cardoso
Manuela Espadaneira Lopes
_______________________________________________________ [1] Direito das Obrigações, 1994, 2.º, p. 219. [2] Antunes Varela, “Direito das Obrigações”, Vol. II, pág. 194. [3] Nesse sentido, entre outros, acórdão da RC de 24.02.2015: 1.- Ocorre exigibilidade judicial do contra-crédito (art.º 847º, nº 1, a), do CC) quando ao credor respectivo assiste o direito de exigir em tribunal o cumprimento, seja através de acção executiva, por dispor de título executivo, seja de acção declarativa para reconhecimento da existência e exigibilidade da obrigação.: [4] Hugo Rosa Ferreira, Compensação e Insolvência(em particular na cessão de créditos para titularização), em Direito da Insolvência, Estudos, Coordenação Rui Pinto, Coimbra Editora, fevereiro 2011, p. 34. [5] No nº 1 estabelece que Sem prejuízo do estabelecido noutras disposições deste Código, a partir da declaração de insolvência os titulares de créditos sobre a insolvência só podem compensá-los com dívidas à massa desde que se verifique pelo menos um dos seguintes requisitos: a) Ser o preenchimento dos pressupostos legais da compensação anterior à data da declaração da insolvência; b) Ter o crédito sobre a insolvência preenchido antes do contra-crédito da massa os requisitos estabelecidos no artigo 847.º do Código Civil. [6] Em contraposição com o regime anterior do CPEREF, que deixou de admitir a compensação a partir da declaração da insolvência. [7] Ob. cit., p. 39. [8] Idem, p. 62. [9] Que aqui dispensamos expor por dispensável à economia e compreensão da decisão. [10] Conforme resulta do art.º 581º, nº 3, do CPC, o pedido é o efeito que o autor pretende obter. Em termos latos tanto abrange a providência ou efeito prático pretendido obter, quanto a consequência jurídica cujo reconhecimento é pedido ao tribunal, correspondendo a primeira ao objeto imediato, e a segunda ao objeto mediato da ação. Como é referido por A. Geraldes, P. Pimenta, e L. Sousa, A identidade de pedidos afere-se pela circunstância de em ambas as ações se pretender obter o mesmo efeito prático-jurídico, não sendo e exigir uma adequação integral das pretensões. (CPC Anotado, vol. I, Almedina, 2ª ed., p. 686, nota 5). [11] Em “As partes, o objecto e a prova na ação declarativa”, p. 47. [12] Nestes termos: “(…) num esforço de maior precisão e concretização, tem vindo a boa doutrina (conforme se assinalou no despacho recorrido) a entender e na qual nos revemos – que no conceito de interessados, devem considerar-se, além do insolvente, os credores em relação aos quais exista a possibilidade de conflito com o titular do crédito reconhecido, segundo os termos concretos em que o reconhecimento se verificou.” [13]“Refere Maria do Rosário Epifânio que «[a] expressão “qualquer interessado” parece abranger, desde logo, o próprio devedor (veja-se, a confirmar esta ideia, o art.º 131º, nº1, in fine), o credor cujo crédito reclamado foi indevidamente excluído, o credor cujo crédito foi reconhecido mas com incorreções (valor, natureza, etc), mas também o credor cujo crédito foi devidamente incluído e que se sente prejudicado pela irregular inclusão de outro crédito (seja porque não devia ter sido reconhecido, seja porque o seu montante, natureza estão incorretos).»” [14] “Desde logo, no CIRE Anotado de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, é claro «Assim, interessados devem considerar-se, além do insolvente, os credores em relação aos quais exista possibilidade de conflito com o titular do crédito reconhecido, segundo os termos concretos em que o reconhecimento se verificou» (pp. 527, 3ª edição).” e “Do mesmo modo, no CIRE anotado de Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões se refere «o conceito de interessado inclui o devedor insolvente e os credores, relativamente aos seus créditos ou aos créditos de terceiros.»”