HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
INSOLVÊNCIA
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário

(cf. nº 7, do art.º 663º, do CPC):
I. A habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio por ato entre vivos, prevista no art.º 356º do CPC, tem natureza facultativa, porque o transmitente continua a ter legitimidade ad causam até à habilitação do adquirente, agindo, entretanto, como seu substituto processual – artigo 263º, nº. 1.
II. A admissibilidade da habilitação do adquirente depende da verificação dos seguintes pressupostos: pendência da ação; existência de uma coisa ou direito litigioso; transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da ação, por ato entre vivos e conhecimento da transmissão durante a ação.
III. Quando, no momento da decisão sobre o incidente de habilitação do adquirente, a ação principal já se encontra extinta, em consequência da decisão de encerramento do processo, ao abrigo do disposto no art.º 230º, n.º1, al. a) do CIRE, declarada por sentença transitada, ocorre a impossibilidade de ser atingido o resultado visado com o incidente, que depende da pendência da ação principal para que produza efeitos, não sendo já possível ao cessionário obter o pagamento do crédito que lhe foi alegadamente cedido.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Em 30/01/2024 veio BEIJER REF PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA., pessoa coletiva nº (..), com sede (…), por apenso ao processo n.º811/11.1TYLSB, em que foi decretada a insolvência de Ret – Ar Condicionado, Lda., deduzir incidente de habilitação de cessionário contra DX-POR – CLIMATIZAÇÃO S.A., pessoa coletiva nº (…), com sede (…), alegando para o efeito e em síntese que: em 01 de setembro de 2017, por força da celebração de contrato de compra e venda de ativos e passivos com a sociedade DX-POR – CLIMATIZAÇÃO, S.A., atualmente com a denominação social BE4 - Climatização, S.A., pessoa coletiva nº (...), a requerente adquiriu todos os créditos pertencentes à mesma, pelo que é parte legitima para substituir a credora DX-POR – CLIMATIZAÇÃO, S.A., no processo em que é insolvente RET AR CONDICIONADO, Lda.// À data, todos os Clientes, credores e devedores da Requerente foram devidamente notificados, conforme comunicação que junta/ Termina pedindo a habilitação da Cessionária no lugar da DX-POR – CLIMATIZAÇÃO, S.A. em Portugal.
2. Por despacho de 22/02/2024 (ref. Citius n.º …) foi proferido despacho com o seguinte teor: “Notifique-se a requerente para que, aperfeiçoando o requerimento inicial, demande todos os legitimados a intervir nos autos e identifique os créditos alegadamente cedidos por referência ao respetivo valor e reclamação de créditos deduzida pelo cedente, bem como para que junte o acordo de cessão devidamente traduzido para a língua portuguesa.”, despacho cumprido pela requerente por requerimento de 5/03/2024 e de 12/03/2024 (ref. Citius n.ºs … e …).
3. Em 9/05/2024 foi cumprido o disposto no art.º 356º, n.º 1, a), do Código de Processo Civil, não tendo sido deduzida oposição à habilitação.
4. Em 23/10/2024 foi proferida sentença (ref. Citius n.º …) que terminou com o seguinte dispositivo: “(…) declaro extinta a instância por impossibilidade e inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277º, e), do Código de Processo Civil, ex vi artigo 17º, n.º 1, do CIRE.// Sem custas.// Registe e notifique.”

Não se conformando com o assim decidido, dele interpôs recurso a requerente BEIJER REF PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA., juntando alegações e formulando as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1. O modo normal de extinção da instância é pela sentença de mérito, sendo, por isso, a figura da “impossibilidade” ou “inutilidade superveniente da lide” uma causa anormal de extinção da instância, só devendo ser aplicada quando a lide se torna absolutamente impossível ou inútil por facto superveniente relativo ao sujeito, ao objeto ou à causa na relação substancial que lhe está subjacente.
2. A solução do litígio perde o interesse no primeiro caso por já não ser mais possível “atingir o resultado visado” e no segundo por o resultado “já ter sido atingido por outro meio”.
No caso em apareço,
3. ainda havia um interesse útil na decisão a ser proferida no presente apenso.
4. Tal interesse advém da Habilitante de querer receber o valor a que tem direito no âmbito do rateio final e que tal valor existente não foi pago pelo Administrador de Insolvência por o mesmo aguardar a decisão do presente apenso.
5. Que o pagamento deste crédito rateado ainda pode ser feito.
6. Tal interesse advém ainda em termos contabilísticos e fiscais, em ver-se habilitada.
7. De notar ainda que não foi por culpa da Requerente que a sentença de habilitação de cessionário não tivesse sido proferida antes uma vez que aguardava o desenrolar dos atos da competência do Tribunal a quo.
8. Não pode a Requerente ser prejudicada por atos omissivos do Tribunal a quo.
Assim,
9. não ocorreu inutilidade superveniente da lide porque o escopo visado com a ação ainda não foi atingido por outro meio.
10. Não ocorreu impossibilidade superveniente da lide porque ainda não deixou de ser possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo.
11. A inutilidade superveniente da lide é uma realidade absoluta, não se podendo extinguir a instância nos casos em que a utilidade existe, ainda que mínima ou pouco provável.
12. Pelo que, o Tribunal a quo apreciou mal a questão, e não poderia ter extinguido o presente apenso sem a decisão de mérito por não haver impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
13. Ora, de tudo o que ficou exposto, resulta claro que a sentença recorrida apreciou mal a questão de direito que se lhe deparou, devendo ser dada expressa razão à Recorrente.
14. A Sentença recorrida fez errónea interpretação dos factos e violou o comando do art.º 277º, al. e), do Código Processo Civil.
Termina pedindo que seja revogada a sentença em conformidade.

Não foram apresentadas contra alegações.
Por despacho de 9/05/2025 (ref. Citius n.º…) foi fixado o valor da causa em €30.270,72 nos termos dos arts. 297º e 304ºCPC, ex vi art.17º, n.º 1, CIRE) e foi admitido o recurso nos termos legais.

II. Do Objeto do recurso:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente —artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber:
- da extinção da instância ao abrigo do disposto no art.º 277º, al. e) do CPC em consequência de facto ocorrido na pendência da ação.

III. Fundamentação
De Facto
A factualidade a considerar na motivação de direito é a que consta do relatório deste acórdão que aqui se dá por integralmente reproduzida, relevando ainda os documentos juntos aos autos e as incidências processuais a que se teve acesso por consulta eletrónica do processo que se afiguram relevantes para a decisão da causa nos seguintes termos:
1. Por sentença de 06 de novembro de 2012, transitada em julgado foi declarada a insolvência de Ret - Ar Condicionado, Lda.
2. Em 29/03/2012 realizou-se Assembleia de Credores a que alude o art.º 156º do CIRE, tendo os autos prosseguido para liquidação nos termos do art.º 158.º do CIRE.
4. Foram reclamados créditos por DX-POR – CLIMATIZAÇÃO S.A., pessoa coletiva nº …, com sede (…), no valor em capital de 30.270,72€, o qual foi reconhecido pelo Administrador de insolvência.
5. Em 2/11/2021 foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos no apenso C que reconheceu o crédito reclamado por DX-POR – CLIMATIZAÇÃO S.A. graduando os créditos sobre a insolvente com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, graduo os créditos sobre a insolvente RET – Ar Condicionado, Lda., para serem pagos da seguinte forma, sobre o produto da venda dos bens apreendidos para a massa insolvente:// - em primeiro lugar, os créditos laborais e do Fundo de Garantia Salarial;// - em segundo lugar, o crédito da requerente da insolvência, até ao limite de um quarto do valor dos bens móveis que integrarem a massa insolvente, com o máximo de 500 UC; // após, rateadamente, os créditos comuns; - em último lugar, os créditos subordinados, após pagamento integral dos créditos comuns.// As dívidas da massa insolvente (art.º 51.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), saem precípuas na devida proporção do produto da venda de cada bem nos termos do art.º 172.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. (…)”.
6. Em 11/02/2022 (ref. n.º … do apenso H - Liquidação) o Sr. AI nomeado apresentou informação a que alude o art.º 61º do CIRE informando que as operações de liquidação do processo se mostravam concluídas, na sequência do que foi proferido despacho em 7/03/2022 (ref. n.º …) com o seguinte teor “(…) Tomei conhecimento.// Declaro finda a liquidação.// Oportunamente, arquive.// Remeta os autos principais à conta.// Elaborada a conta, notifique o sr. administrador da insolvência para prestar contas (art.º 62.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), nas quais deverá incluir as custas pagas como despesas da massa insolvente.// Uma vez pagas as custas e julgadas as contas, notifique o sr. administrador da insolvência para, no prazo de 10 dias, querendo, apresentar proposta de distribuição e rateio final (art.º 182.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).// Decorrido aquele prazo, proceda a secção à distribuição e rateio final, nos termos do art.º 182.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, devendo ter em consideração a proposta de distribuição e rateio final caso tenha sido apresentada pelo sr. administrador da insolvência.// Após, notificados os credores do mapa de distribuição e rateio final e nada sendo consignado nos autos, conclua o processo principal a fim de ser declarado o encerramento.”
7. Em 10/02/2023 o Sr. AI apresentou nos autos Mapa de rateio final.
8. Em 08-03-2023, nos termos do nº 4 do art.º 182º do CIRE, procedeu a secretaria à apreciação da proposta de distribuição e de rateio, concluindo-se que este se encontrava devidamente elaborado com os cálculos exatos, achando-se de acordo com a documentação de suporte apresentada e com o determinado na sentença de graduação de créditos.
9. Em 29/06/2023 foi proferido despacho com o seguinte teor: “Notifique-se o mapa de rateio.// Não sendo deduzida qualquer reclamação, notifique-se o Sr. Administrador da Insolvência para que proceda aos pagamentos em conformidade.
10. O mapa de rateio foi publicitado no portal Citius.
11. Em 30/06/2023 foi proferido despacho com o seguinte teor: “(…) Uma vez que não foi deduzida qualquer reclamação, proceda-se como determinado na segunda parte do despacho que antecede.”
12. Em 22/01/2024 foi enviada a Dx-Por - Climatização, SA notificação como seguinte teor: “Assunto: Informação de IBAN para pagamento// Fica deste modo V. Exª notificado, na qualidade de credor, relativamente ao processo supra identificado, para indicar o IBAN a fim de receber a quantia de 669,81 €, valor a seu favor apurado em rateio.// Mais fica notificado que, nos termos do nº 3 do art.º 183º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não sendo o IBAN indicado no prazo de um ano, contado da data do recebimento do presente aviso, prescreve o crédito respetivo, revertendo a quantia a favor do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP.”
13. Em 18/09/2024 o Sr. AI informou nos autos que todos os pagamentos do mapa de rateio final se mostram concluídos, mostrando-se alocados aos autos do saldo da conta bancária insolvente através de Depósito Autónomo de 12/09/2024 o valor de 25.167,70€ resultante do não recebimento do IBAN de sete credores os quais foram notificados em 22-01-2024, nos termos do art.º 183º do CIRE e cujo expediente de notificação foi devolvido com a menção de não reclamado e os outros três credores, entre os quais, a credora DX-Por Climatização, S.A. que, notificados nos termos do art.º 183º do CIRE nada responderam.
14. Em 1/10/2024 (ref. n.º …) foi proferida sentença com o seguinte teor: “Ret – Ar Condicionado, Lda., pessoa coletiva n.º …, com sede (…), foi declarada insolvente por sentença de 6 de Fevereiro de 2012, transitada em julgado.// Os autos prosseguiram para liquidação e partilha do ativo.// Foram apreendidos bens e efetuada a sua integral liquidação, já encerrada.// Foram verificados e graduados os créditos reclamados.// O Administrador da Insolvência prestou contas, as quais foram julgadas corretamente prestadas. Foi efetuado o rateio final, nos termos do disposto no art.º 182º do CIRE, e os pagamentos.// Pelo exposto: 1. Declaro encerrado, após a realização do rateio final, o presente processo em que foi declarada a insolvência de Ret – Ar Condicionado, Lda., nos termos do disposto no art.º 230º, nº 1, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa (CIRE).// 2. Cessam as atribuições do Administrador da Insolvência (art.º 233º nº1, al. b) do CIRE).// 3. Com o registo da presente decisão considerar-se-á extinta a insolvente (art.º 234º n.º 3 do CIRE).// Registe e notifique os credores conhecidos (art.º 230º nº2 do CIRE).// Remeta certidão à Conservatória do Registo Comercial competente, no prazo de 5 dias, nos termos e para os efeitos previstos nos art.ºs 234º n.º 3, 38º n.º 2, al. b) e n.º 6 do CIRE e art.º 9º, al. n) do Código de Registo Comercial, com a menção de que o encerramento se deve à realização do rateio final (art.º 230º n.º 2 do CIRE).”
15. Em 1/10/2024 foi publicado edital e anúncio no portal Citius da sentença referida 14.
16. Mediante acordo celebrado por escrito em 11 de agosto de 2017, que denominaram de Contrato de Compra e Ativos Mediante Trespasse, a requerente Beijer Ref Portugal, Unipessoal, Lda., declarou comprar, na forma trespasse a DX-Por – Climatização, S.A., que declarou vender, o direito e a titularidade desta relativamente a determinados ativos, direitos e responsabilidades do vendedor constantes do Anexo I do referido acordo.
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Fundamentação de Direito
Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou extinto o incidente de habilitação de cessionário deduzido pela apelante por impossibilidade/inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.º 277º, al. e) do CPC.
A decisão sob sindicância entendeu, em súmula, o seguinte:
- a pretensão formulada no âmbito dos presentes autos reconduz-se à habilitação da requerente a intervir em substituição de um credor reclamante de modo a obter, em sua vez e nos autos, o pagamento de crédito reclamado.
- nos autos principais foi efetuado rateio e dado pagamento aos credores, tendo o processo principal sido, em conformidade, encerrado.
- Nos termos do artigo 277º, e), do Código de Processo Civil, a instância extingue-se com a impossibilidade e com a inutilidade superveniente da lide, ou seja, quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, sobrevenha obstáculo legal à manutenção da lide ou a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, nomeadamente porque não é possível dar satisfação à pretensão que se pretende fazer valer no processo ou esta foi satisfeita por outra via.
Em consequência, decidiu-se declarar extinta a instância por impossibilidade e inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277º, e), do Código de Processo Civil, ex vi artigo 17º, n.º 1, do CIRE.
O apelante discordando aduz, em sede recursiva, que:
- a sentença recorrida fez errónea interpretação dos factos e violou o comando do art.º 277º, al. e), do Código Processo Civil.
- havia um interesse útil na decisão a ser proferida no presente apenso que advém da habilitante de querer receber o valor a que tem direito no âmbito do rateio final e que tal valor existente não foi pago pelo Administrador de Insolvência por o mesmo aguardar a decisão do presente apenso.
- que o pagamento do crédito rateado ainda pode ser feito.
- não ocorreu inutilidade superveniente da lide porque o escopo visado com a ação ainda não foi atingido por outro meio.
- Não ocorreu impossibilidade superveniente da lide porque ainda não deixou de ser possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo.
Vejamos.
Em face do relatório supra resulta evidente que, por sentença de 1/10/2024, foi o processo de insolvência declarado encerrado nos termos do disposto no art.º 230º, n.º 1, al. a) do CIRE, decisão que foi notificada aos credores e objeto de publicidade e registo previstos nos arts. 37º e 38º do CIRE, pelo que, à data em que foi proferida a sentença no incidente de habilitação – 23/10/2024 já não se encontrava, efetivamente, pendente – arts. 259º e 277º do CPC ex vi do art.º 17º do CIRE.
Solicitado a Tribunal a resolução de um conflito de interesses, em princípio legalmente protegidos, de imediato nasce uma relação jurídica processual precisando os passos até ser atingido o fim pretendido, isto é, qual dos interesses em conflito prevalece.
Inicia-se, assim, a instância (arts. 150º e 467º, n.º 1 do CPC), consagrando-se no art.º 260º do CPC o princípio da estabilidade de instância, princípio estruturante da lei processual civil portuguesa, que estabelece que após a citação do réu, a causa tende a manter-se a mesma, isto é, estabilizar-se, quer quanto a pessoas, pedido e causa de pedir.
Porém, pode acontecer que a intervenção processual de outras pessoas se venha a tornar necessária por força de situações ocorridas posteriormente à apresentação do caso a Tribunal, o que implica a modificação da instância quanto às pessoas, ou seja, a substituição de alguma das partes na relação substantiva em litígio por sucessão ou por ato entre vivos (cf. art.º 262º, al. a) do CPC), o que constitui uma exceção ao princípio da estabilidade da instância, segundo a qual a instância é suscetível de se modificar quanto às pessoas, ou por via da substituição de alguma das partes na relação substantiva em litígio – cf. Salvador da Costa, in Incidentes da Instância, 2ª Edição, págs. 207-208.
Então, diz-nos o artigo 262º, do Código de Processo Civil: A instância pode modificar-se, quanto às pessoas:
a - Em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio;
b - Em virtude dos incidentes de intervenção de terceiros.
Na hipótese da alínea a) desde logo se incluem os casos de falecimento de uma das pessoas físicas iniciais. Operado o incidente de habilitação, deparamos com uma modificação subjetiva: no lugar da pessoa falecida, encontramos, agora, o seu sucessor. Trata-se de uma modificação obrigatória, que resulta do artigo 270º: “Junto ao processo documento que prove o falecimento ou a extinção de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância, salvo …”.
Nesta mesma alínea estão ainda previstas as transmissões entre vivos da relação substantiva em litígio. Quanto a estas (transmissões), a situação é diversa pois que, como prescreve o artigo 263º, nº 1: “No caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituído”.
O art.º 356.º do Código de Processo Civil, regula o incidente de habilitação do adquirente ou cessionário que tem como finalidade substituir o transmitente da coisa ou direito em litígio, na pendência da causa, pelo adquirente ou cessionário, a fim de com este prosseguir a causa respetiva, prevendo esse mesmo preceito, os termos em que se faz a habilitação.
Assim, junto o título da aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar, podendo, na contestação, impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo.
Ou seja, no âmbito do incidente de habilitação do adquirente ou cessionário, apresentado o respetivo requerimento, a parte contrária é notificada para contestar, podendo na contestação impugnar a validade do ato, com qualquer fundamento de nulidade ou de anulabilidade da lei substantiva ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo, estando a contestação limitada aos factos atinentes à validade formal ou material do ato de cessão ou de transmissão, ou à circunstância de ele apenas visar dificultar a posição do contestante na causa principal (cfr., neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-12-2021, processo 134/10.3TBCTX-D.L1-7, relatora Micaela Sousa).
Assim, para que o cessionário fique habilitado nos processos em que estejam em causa créditos ou direitos por si adquiridos, como é o caso dos autos, é forçoso que haja lugar, nesse processo, ao incidente de habilitação de previsto no art.º 356º do CPC, tal como de resto, no caso de habilitação por falecimento de parte.
Acresce, como ensina Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 1982, Coimbra Editora, pág. 604 e Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, pág. 74 a 76, que a habilitação do adquirente ou cessionário reveste carácter facultativo não sendo, assim, condição indispensável ao prosseguimento da causa. Se a habilitação não for requerida, ou enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituir o transmitente, este continua a ter legitimidade para a demanda até ao final do processo, ou até o adquirente ser admitido a substituí-lo, produzindo a sentença, neste caso, efeitos em relação ao adquirente, salvo os casos excecionados pelo n.º3 do art.º 263º do CPC.
Em idêntico sentido, e face à redação atual do CPC, Abrantes Geraldes e Paulo Pimenta in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 451, escrevendo que: “enquanto nos casos de falecimento de pessoa singular ou extinção de pessoa colectiva (…) o tribunal deve determinar a suspensão da instância para efeitos de habilitação de sucessores, já nos casos de cessão de coisa ou direito ou de outras formas de transmissão, o conhecimento desses factos não exerce influência na tramitação processual.”
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª Edição, Almedina, pág. 523 referem que “mantém-se a legitimidade do transmitente até que o adquirente seja julgado habilitado”, o que se configura como “consequência do caráter facultativo da habilitação por transmissão entre vivos (…)”. Assim, “a partir da transmissão, o transmitente, que já não é titular da situação jurídica transmitida, substitui processualmente o adquirente, seu atual titular, litigando em nome próprio, mas em prossecução dum interesse que só indiretamente é seu”. A facultatividade da habilitação do adquirente ou cessionário “ocorre porque a transmissão do direito em litígio não implica a suspensão da instância, porque o transmitente continua a ter legitimidade ad causam até à habilitação do adquirente, agindo, entretanto, como seu substituto processual – artigo 263º, nº. 1” (cf. Salvador da Costa, in Ob Cit., pág. 239). No mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24/04/2019, processo n.º 4490/16.1T8GMR-A.G1, relator José Alberto Moreira Dias, onde se lê que: “(…) a habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio por ato entre vivos, a que se reporta o art.º 356º do CPC, tem natureza facultativa, dado que a transmissão da coisa ou do direito para terceiro não opera a suspensão da causa pendente, sequer nela tem quaisquer efeitos jurídicos, continuando, reafirma-se, o transmitente a ter legitimidade para a causa até ao seu termo, produzindo a sentença que venha a ser proferida no processo os seus efeitos jurídicos, incluindo o de caso julgado em relação ao terceiro adquirente da coisa ou do direito em litigio, com a já enunciada exceção prevista na parte final do n.º 3 do art.º 263º do CPC.”
Concluindo, como no Acórdão desta Relação de Lisboa de 7/12/2012, supra citado, “(…) enquanto a habilitação com fundamento em morte ou extinção da parte é obrigatória e daí que, inclusivamente, se confira legitimidade para promover o incidente de habilitação a qualquer parte sobreviva da causa pendente ou a qualquer sucessor da parte falecida ou extinta (n.º 1 do art.º 351º do CPC), já a habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou do direito em litígio é facultativa, e apenas dispõem de legitimidade para deduzir o incidente de habilitação o transmitente ou cedente, o adquirente ou cessionário ou a parte contrária (n.º 2 do art.º 356º). Essas pessoas que dispõem de legitimidade para promover o incidente de habilitação do adquirente ou cessionário podem naturalmente promover ou não essa habilitação, conforme os seus interesses. No entanto, caso não o façam, daí não decorre qualquer consequência ao normal prosseguimento da causa e para os efeitos jurídicos da sentença que nela venha a ser proferida (com a já enunciada exceção quanto ao registo).”
No caso, reportando-nos à instância incidental, a apelante figurava como habilitanda, tendo formulado pedido no sentido de ser julgada devidamente habilitada, em substituição do anterior credor DX-POR – Climatização, S.A.
Ou seja, a pretensão que a apelante habilitanda exerceu correspondia a um pedido de substituição processual, a operar no âmbito do art.º 356º, do CPC, relativamente a direito em litígio – reclamação e verificação de créditos, na pendência de processo de insolvência, cujo crédito que detinha sobre a devedora havia sido reclamado pelo alegado cedente/transmitente que era quem figurava como credor reclamante e cujo crédito foi reconhecido pelo AI e devidamente julgado verificado e graduado por sentença de 2/11/2021, ou seja, já após a alegada cessão de créditos.
Em termos substantivos, a cessão de créditos encontra-se regulada nos art.ºs 577º e seguintes do Código Civil que estatui: “1. O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor. 2. A convenção pela qual se proíba ou restrinja a possibilidade da cessão não é oponível ao cessionário, salvo se este a conhecia no momento da cessão.”
O art.º 581º do Código Civil permite excecionalmente a cessão de créditos litigiosos, designadamente, quando a cessão se fizer ao credor em cumprimento do que lhe é devido – cf. alínea c) do aludido normativo legal.
Acrescenta o n.º 1 do art.º 582º do Código Civil, relativamente à transmissão de garantias e outros acessórios, que “na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”, sendo que, no que concerne aos efeitos em relação ao devedor, o art.º 583º do mencionado diploma legal prescreve que: “1. A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite. 2. Se, porém, antes da notificação ou aceitação, o devedor pagar ao cedente ou celebrar com ele algum negócio jurídico relativo ao crédito, nem o pagamento nem o negócio é oponível ao cessionário, se este provar que o devedor tinha conhecimento da cessão”.
No requerimento inicial aperfeiçoado, a habilitanda/recorrente alegou que em 1 de setembro de 2017, celebrou um contrato de compra e venda de ativos e passivos com a sociedade DX-POR – CLIMATIZAÇÃO, S.A., mediante o qual adquiriu todos os créditos a esta pertencentes, incluindo o crédito reclamado por esta última e que foi reconhecido no âmbito dos autos principais, no montante global de 30.270,72€, de modo que é a atual titular do crédito reclamado nos autos supra identificados.
Notificada a parte contrária para contestar, não foi deduzida qualquer oposição.
Como se viu, o tribunal recorrido absteve-se de apreciar o mérito do incidente e declarou a extinção da instância incidental por inutilidade superveniente da lide, por força da extinção da instância da insolvência, relativamente à qual a requerente pretendia passar a figurar como credora ocupando a posição do cedente do crédito reclamado que foi reconhecido e graduado.
Dizem-nos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa in, Ob. Cit, pág. 452 que a admissibilidade da habilitação do adquirente depende da verificação dos seguintes pressupostos: pendência da ação; existência de uma coisa ou direito litigioso; transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da ação, por ato entre vivos e conhecimento da transmissão durante a ação (no mesmo sentido cf. o já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/12/2021 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2/12/2015, processo n.º 691/11.7TYLSB-C.L1-2, Relatora Ondina Alves).
Ora, no caso dos autos, no momento em que foi proferida a sentença impugnada a instância da insolvência encontrava-se efetivamente extinta, facto que na perspetiva da primeira instância determinaria a extinção da instância ao abrigo do disposto no art.º 277º, al. e) do CPC – inutilidade/impossibilidade da lide.
Embora a habilitação da adquirente tenha sido requerida ainda antes de proferida sentença de encerramento na ação principal, a verdade é que aquela foi, entretanto, proferida e transitou em julgado, pelo que, os autos principais - de insolvência - já não se encontram pendentes.
O processo foi encerrado nos termos previstos pela al. a) do n.º 1 do artigo 230.º do CIRE, que dispõe que: “Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento: (…) Após a realização do rateio final (..). A decisão de encerramento foi alvo de notificação e publicação nos moldes previstos pelo seu n.º 2.
Nos termos do artigo 233.º, n.º 1, do CIRE “1 - Encerrado o processo, e sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 217.º quanto aos concretos efeitos imediatos da decisão de homologação do plano de insolvência: a) Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte; b) Cessam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência, com excepção das referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência; c) Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência; d) Os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos.”
Em face dos preceitos expostos, uma vez encerrado o processo, por sentença transitada em julgado, não se verificam os pressupostos do art.º 263º, n.º 1 do CPC, concretamente, a pendência da ação que viabilize a modificação da instância, contexto processual que acarreta a consequência retirada pela primeira instância de que a decisão a proferir não tem qualquer efeito útil, desde logo, porque não é possível dar satisfação à pretensão que se pretende fazer valer no processo, que é o pagamento do crédito que lhe foi alegadamente cedido pelo credor reclamante.
Com efeito, nos termos do art.º 277.º al. e), do CPC, a inutilidade e a impossibilidade superveniente da lide, ocorrem quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou se encontra fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio (neste preciso sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, I Volume, 4ª Edição, pág. 561).
O facto suscetível de determinar a extinção da instância por inutilidade/impossibilidade da lide deve ser superveniente, i.e. de verificação ulterior relativamente à constituição da instância. Como a instância se considera iniciada com a proposição da ação e esta se considera proposta, intentada ou pendente logo que seja recebida pela secretaria a respetiva petição inicial, só o facto ocorrido posteriormente ao recebimento da petição inicial se deve considerar superveniente (artºs 144º e 552º do CPC).
Aplicando esta doutrina ao caso do presente recurso, quando, no momento da decisão sobre o incidente, a ação principal já se encontra extinta, em consequência da decisão de encerramento, declarada por sentença transitada, não há como não concluir pela impossibilidade de atingir o resultado visado, que depende da pendência da ação principal para que produza efeitos.
Ao contrário do que defende nas suas conclusões recursivas, não é já possível ao apelante obter o pagamento do crédito que lhe foi alegadamente cedido, quer porque o AI não se encontra aguardar a decisão do incidente de habilitação, facto que é espelhado nos pontos 12 e 13 do relatório, quer por força do decurso do prazo de um ano a que alude o art.º 183º do CIRE (ver factos 12 e 13 do relatório supra), quer ainda em consequência do trânsito em julgado da sentença de encerramento, conforme decorre claramente do art.º 628.º do CPC, que se traduz, além do mais, na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu (efeito negativo do caso julgado).
O trânsito em julgado fixa o momento a partir do qual a decisão passa a revestir de certeza e de segurança jurídica, como decorre dos artigos 619.º, n.º 1 (alusivo ao caso julgado material) – “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º” – e 620.º, n.º 1 (alusivo ao caso julgado formal) – “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo” –, ambos do CPC.
Note-se que o CIRE sequer prevê qualquer hipótese de renovação da instância insolvencial (sendo que as previstas no CPC não são aplicáveis em face da natureza do processo de insolvência).
No caso, a alegada cedência de créditos ocorreu no ano de 2017, na pendência dos autos de insolvência, não tendo sido promovida por cedente ou cessionário a competente habilitação. Assumindo esta carater facultativo, como se sublinhou, o cessionário manteve a sua legitimidade no processo, atuando como substituto processual do cedente no decurso da sua tramitação, designadamente, quando foi notificado dos atos de liquidação destinados ao pagamento do crédito que havia reclamado (mapa de rateio e pagamentos). Foi igualmente notificado para os efeitos do disposto no art.º 183º do CIRE, nada tendo dito nos autos.
Por sua vez, o apelante, na qualidade de cessionário, desencadeou o incidente de habilitação decorridos mais de seis anos sobre o contrato que serviu de base à habilitação, mostrando-se já em curso os pagamentos aos credores não podendo ignorar, tanto mais que devidamente representado por advogado, que, atento o carater facultativo da habilitação, até ao seu julgamento manter-se-ia a legitimidade processual do cedente, que assim representaria o cessionário no processo.
Nessa conformidade, para obstar ao trânsito em julgado da sentença que declarou encerrada a insolvência da devedora nos termos do disposto no art.º 230º, nº1, al. a), do CIRE, - a qual foi devidamente publicitada (cf. facto 15 do relatório) deveria o apelante ter interposto dela o competente recurso, como terceiro legitimado que é ao abrigo do disposto no art.º 631º, n.º2 do CPC, invocando, precisamente, o seu interesse na decisão do incidente de habilitação em momento anterior ao encerramento do processo, para que pudesse obter o pagamento do crédito que lhe havia sido cedido, no âmbito dos autos de insolvência.
Não o tendo feito, não há como não concluir, como concluiu o Tribunal a quo, pela impossibilidade de atingir o resultado visado com o incidente de habilitação, improcedendo, em consequência, a presente apelação.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 1ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante (art.º 527º do CPC).

Lisboa, 27-05-2025
Susana Santos Silva
Ana Rute Costa Pereira
Manuela Espadaneira Lopes