NULIDADE
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
DIREITO À PROVA
GESTÃO PROCESSUAL
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DESPACHO LIMINAR
Sumário

(art.º 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil).
I. Quando em causa está a nulidade assente na omissão dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e resultando do art.º 613º, n.º 3 do Código de Processo Civil que tal causa de nulidade é aplicável aos despachos, não se poderá olvidar que tal sucede “com as necessárias adaptações”. Ou seja, se ao juiz se impõe, quando profere um despacho, que nele sejam considerados todos os factos alegados pelas partes e relevantes para prolação da decisão, daí não decorre a imposição de respeito pelo específico formalismo que se reclama de uma sentença.
II. Sendo os factos relevantes alegados em defesa do indeferimento liminar do pedido de exoneração matéria documentada nos autos e que, assentando sobre a suposta realização de contratos, encontraria naquele meio de prova a sua base probatória fundamental, nenhuma censura merece a opção do julgador de considerar que os autos dispõem de todos os elementos necessários à apreciação da questão, tornando desnecessária a realização de outras diligências probatórias, dispensando, em consequência, a produção de depoimento de parte que, sem cumprimento das exigências legais, havia sido requerida. Tal atuação contém-se nos limites dos poderes de gestão processual e integra uma admissível limitação do direito à prova.
III. Quando o prejuízo causado aos credores não seja outro que não o decorrente da impossibilidade de cumprimento das obrigações e da declarada insolvência, inexistindo elementos com base no quais se possa afirmar que, caso os devedores, pessoas singulares não titulares de empresa, se tivessem apresentado mais cedo à insolvência, qualquer específico prejuízo teria sido evitado ou seria de menor dimensão, não se verifica a causa de indeferimento liminar de exoneração do passivo prevista na al. d), do n.º1 do art.º 238º do CIRE.

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
1. AA e BB, casados entre si, apresentaram-se à insolvência em 17-07-2024, pedindo que fosse declarada a sua insolvência, com concessão de exoneração de passivo restante.
Alegaram, em síntese, que se encontram impossibilitados de cumprir as obrigações vencidas e vincendas, vivendo exclusivamente do salário da requerente, já objeto de penhora na proporção de um terço; têm uma filha menor e vivem em casa arrendada.
Anexaram documentos, entre os quais, como documentos n.º 7 e n.º 10, os mapas da Central de Responsabilidades de Crédito junto do Banco de Portugal, relativo a 30-04-2024, com informação comunicada pelas instituições referente aos devedores.

2. Em 19-07-2024 foi proferida sentença que declarou a insolvência dos requerentes, dispensou a realização da assembleia de aprovação do relatório a que alude o art.º 156º do CIRE e consignou que o Sr. Administrador de Insolvência deveria juntar aos autos, no prazo de 60 (sessenta) dias, o relatório e seus apensos, devendo notificar os credores e o devedor da referida junção, concedendo o prazo de 10 (dez) dias para se pronunciarem, se oporem ou requererem o que for tido por conveniente, entendendo-se em caso de silêncio que concordam com as propostas ali constantes, pronunciando-se no relatório quanto ao pedido de exoneração, o mesmo fazendo os demais interessados após notificação do mesmo.

3. Em 03-09-2024 o Sr. Administrador de Insolvência juntou aos autos o relatório a que alude o art.º 155º do CIRE, assinalando que os créditos reclamados e relacionados ascendem a 334.741,02€, sendo o rendimento do insolvente marido variável e o da insolvente mulher de 1.300,00 EUR ilíquidos. Deu parecer favorável à exoneração do passivo restante, consignando que:
- Dos documentos analisados, incluindo reclamações de crédito, (o Insolvente não juntou o modelo 3 de IRS relativo a 2021 a 2023 que não foi entregue juntamente com a peça processual), nada existe que nos permita concluir que a falta de apresentação mais atempada foi praticada com dolo, em qualquer das suas vertentes, ou que tenha agravado a situação dos credores (à exceção dos juros, sendo já abundante a jurisprudência dos tribunais superiores que desconsideram os juros);
- O Insolvente não alienou património colaborou em tudo e o seu registo criminal foi junto aos autos;
- Os incumprimentos conhecidos são de montantes consideráveis, não revelando por si só, uma necessidade objetiva de apresentação mais célere ao presente processo;
- Pelo que, face ao exposto, é em nossa opinião, a eventual falta de apresentação nos ditos seis meses, não deve relevar nesta sede.
2. Das condições pessoais do Insolvente:
- O Insolvente apresentou-se ao processo em 17 de julho de 2024, sendo o seu agregado familiar constituído só por si, segundo informação prestada já insolvente;
- Tem os seguintes rendimentos mensais:
- O rendimento líquido em média, mensal, atual da Requerente é de 1.300,00€ (mil e trezentos euros), líquidos e do Requerente é em média (nos últimos seis meses), 600,00€ (seiscentos euros mensais).
Os Requerentes têm as seguintes despesas mensais:
- Despendem a quantia mensal de 380,00 € com renda de casa;
- Cerca de 100,00 € em serviços de eletricidade, água e gás,
- Cerca de 70,00 em serviços de telecomunicações;
- E aproximadamente 50,00 € em medicação regular do Requerente,
- A que acrescem ainda as despesas de alimentação, deslocação e vestuário do agregado familiar.
3. Do montante do rendimento disponível:
- Entendemos também que, tendo em conta o agregado familiar dos Insolventes, composto por ambos, por estes devem ser entregues ao futuro fiduciário, todas as quantias que, em cada mês, excedam o montante de dois salários mínimos praticados no Arquipélago dos Açores durante doze meses no ano, ou seja, todos os rendimentos, dos catorze meses a dividir por doze, no caso da Requerente, no caso do cônjuge engloba todos os rendimentos do ano civil.
Concluiu propondo que o crédito reclamado pela sociedade “Verdade Temática Mediação Imobiliária, Ldª” seja considerado comum e sob condição, não relevando em sede de processo de insolvência e que seja encerrado o processo, sem prejuízo do pedido de exoneração do passivo restante apresentado e da sentença de graduação de créditos, caso venha a ser deferido o requerimento de exoneração do passivo restante.

4. Notificados do relatório do Sr. Administrador de Insolvência vieram:
- o credor Banco Santander Totta, S.A., em 13-09-2024, opor-se ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante;
- a credora “Verdade Temática – Mediação Imobiliária, Ldª”, em 18-09-2024, opor-se à exoneração do passivo restante.
Esta última alegou que os insolventes têm, já há muito tempo, perfeito conhecimento da sua situação de insolvência, não correspondendo à verdade que ficaram surpreendidos com a ação instaurada pela credora requerente, quando essa ação foi instaurada em 19-03-2023, tendo os insolventes sido citados no dia 08-01-2024, conforme documentos que junta; a sua situação de insolvência era anterior à instauração da ação, cuja decisão não transitou em julgado; os créditos identificados no requerimento inicial em relação à Abanca têm datas de vencimento que remontam a dezembro de 2022 e fevereiro de 2023; os créditos vencidos titulados pelo Banco Santander Totta encontram-se em incumprimento desde fevereiro e março de 2023, pelo que em março de 2023 os insolventes já estavam em incumprimento generalizado das suas obrigações; a acumulação de dívidas vencidas não impediu os insolventes de contraírem novo crédito pessoal com a Cofidis em 09-03-2023, em incumprimento desde 10-10-2023; este último crédito foi contraído em ocasião em que os insolventes já acumulavam 18 dívidas a diferentes instituições financeiras no valor total de 26.922,25 €, tendo em incumprimento um valor total de 19.886,29 €; os insolventes tinham ainda dois empréstimos celebrados com a Credibom para aquisição de duas viaturas, celebrados em ocasião em que se encontrava em incumprimento o crédito automóvel que já tinham. Em março de 2023 os insolventes sabiam que se encontravam em situação de insolvência atual, não se apresentando à insolvência e contraindo mais créditos pessoais em ocasião em que sabiam não conseguir pagar aqueles que já se encontravam em incumprimento, prejudicando os credores e agravando o estado de insolvência.
Concluiu pedindo o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante e indicando, para prova do alegado, o depoimento de parte dos insolventes, juntando dois documentos.

5. Em 16-10-2024 foi proferido despacho que declarou encerrado o processo por ausência de massa insolvente para satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente e ordenou a notificação dos insolventes para se pronunciarem quanto ao requerimento da credora Verdade Temática.

6. Em 30-10-2024 vieram os insolventes tomar posição, alegando, no essencial, que não contraíram um novo crédito com a Cofidis em 09-03-2023, antes correspondendo essa data à de renegociação dos créditos então pendentes com aquela instituição, de modo a diminuir o valor da prestação mensal, que decresceu, conforme documento que juntam; negam ter contraído crédito pessoal em 10-10-2023, sendo o rendimento médio do casal, na época, de cerca de 1.900,00 €, que lhes permitia, com dificuldade, ir regularizando as dívidas; a instauração de ação executiva, com penhora de parte do salário da insolvente e a instauração da ação em que a credora Verdade Temática pedia a condenação dos requerentes no pagamento da quantia de 250.000,00 €, bem como o crescente receio de procedência dessa ação, criaram nos requerentes a consciência da sua situação de insolvência, que conduziu a que, em 17-06-2024, tenham formulado pedido de proteção jurídica com vista à apresentação à insolvência, o que fizeram dias após o deferimento do pedido. Não dissiparam ou alienaram qualquer património, nem se verifica qualquer causa de indeferimento.
Concluem pedindo que o pedido de exoneração do passivo seja liminarmente deferido.

7. Foi determinada a junção aos autos das reclamações de créditos, o que foi efetuado pelo Administrador de Insolvência em 05-12-2024.
Após despacho de 09-01-2025, veio o Administrador de Insolvência, em 10-01-2025, juntar a reclamação de créditos apresentada pela Cofidis, S.A., originariamente omitida.
Da reclamação anexa ao requerimento de 10-01-2025, resulta que a Cofidis, S.A. reclama um crédito emergente de proposta contratual datada de 06-03-2023, referente a pedido de financiamento de “Crédito Pessoal - Reestruturação de Dívida”, cujo documento anexam.

8. Em 28-01-2025 a credora Credibom dirigiu requerimento aos autos, alegando que tem vindo a interpelar os insolventes para procederem à entrega do veículo de matrícula ..-MN-.., a cuja aquisição se destinou o contrato de crédito contraído pelos insolventes e em relação ao qual não foi pretendido o cumprimento pelo Sr. Administrador de Insolvência, pedindo a notificação do insolvente para diligenciar pela entrega do veículo com cominação de cessão antecipada da exoneração do passivo restante por violação dos deveres que lhes estão inerentes.

9. A credora Verdade Temática juntou aos autos, em 19-02-2025, comprovativo do trânsito em julgado da decisão que condenou os insolventes, pedindo que o valor do crédito por si reclamado “seja atualizado para o montante que resulta da condenação do insolvente naquele processo, nomeadamente para o valor de 20.000,00 € a título de capital, acrescido dos juros legais devidos desde o dia 15 de julho de 2024 até efetivo e integral pagamento e que, na presente data, se computam em 480,00 €, num total de 20.480,00 € a que devem acrescer os juros vincendos até efetivo e integral pagamento”.

10. Em 28-02-2025 foi proferido o seguinte despacho:
“Dispõe o artigo 233.º, número 6, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas que «sempre que ocorra o encerramento do processo sem que tenha sido aberto incidente de qualificação por aplicação do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 36.º, deve o juiz declarar expressamente na decisão prevista no artigo 230.º, o carácter fortuito da insolvência».
Decorrido que se mostra o prazo a que alude o artigo 188.º, nº 1, do CIRE, declaro o carácter fortuito da presente insolvência.
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Do Pedido de Exoneração do Passivo Restante
Os insolventes AA e BB requereram a exoneração do passivo restante, alegando reunir os pressupostos de que a lei faz depender para a sua concessão, declarando vincular-se às obrigações que decorrem daquele instituto.
O Administrador de Insolvência emitiu parecer no sentido de que deve ser proferido despacho inicial de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante.
O Banco Santander Totta, S.A., pugnou pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, sem, contudo, invocar qualquer fundamento.
A credora Verdade Temática, Mediação Imobiliária, Lda., pugnou pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Sustentou, para o efeito, que os insolventes não se apresentaram à insolvência no prazo que 6 meses a contar da data a partir da qual não podiam ignorar estar em tal situação; que, ao invés de o fazerem, contraíram empréstimo junto da Cofidis, S.A., que a atuação dos insolventes revela culpa no agravamento do estado de insolvência, com prejuízo para os credores.
Mais recentemente veio o Banco Credibom requerer que a falta de entrega, pelos insolventes, de veículo, com reserva de propriedade a seu favor, seja tida em consideração para efeitos de cessação antecipada da exoneração do passivo restante1.
Os demais credores não se pronunciaram.
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Por estarem os autos revestidos dos elementos necessários, não se vislumbrando necessária a realização de outras diligências probatórias, cumpre apreciar e decidir.
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Dispõe o artigo 235.º, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas que «se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste».
O instituto da exoneração do passivo restante constitui uma medida de proteção do devedor, permitindo-lhe que se liberte do seu passivo, caso este não satisfaça todas as suas dívidas na pendência do processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento. Não obstante, considerando que o perdão de dívidas ao devedor atinge interesses legítimos dos seus credores, o legislador consagrou um elenco de obrigações que o insolvente deverá satisfazer e que se encontram enumeradas no artigo 239.º, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas.
Do mesmo modo, consagrou um conjunto de pressupostos de cuja verificação faz depender a concessão do instituto em apreciação.
Tais requisitos encontram-se expressamente previstos no artigo 238º nº 1, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas.
Como vem sendo sufragado pela jurisprudência maioritária, o pedido de exoneração só é liminarmente indeferido se dos autos resultar factualidade suscetível de preencher as hipóteses previstas naquele preceito legal.
A este propósito denote-se:
- que o pedido de exoneração do passivo foi apresentado pelos insolventes tempestivamente [cfr. artigo 238º, nº 1, alínea a) do CIRE].
- Inexistem nos autos elementos que indiciem o fornecimento, pelos insolventes, de informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza [cfr. artigo 238º, nº 1, alínea b) do CIRE].
- os insolventes não beneficiaram da exoneração do passivo restante nos 10 [dez] anos anteriores à data do início dos presentes autos de insolvência [cfr. artigo 238º, nº 1, alínea c) do CIRE].
- considerando a posição assumida pela credora Verdade Temática, Mediação Imobiliária, Lda., cumpre debruçar-nos, em particular, na alínea d) do citado preceito legal, segundo a qual «o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica».
Donde, tratando-se de insolvente não sujeito a apresentação obrigatória à insolvência, o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante depende da verificação cumulativa de três requisitos: falta de apresentação à insolvência, que acarretou prejuízo aos credores, sabendo o insolvente ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
A demonstração de tais pressupostos compete aos credores ou ao Administrador de Insolvência.
No caso vertente, não resulta dos autos que os insolventes sejam titulares de empresa, pelo que não teriam o dever se apresentar [cfr. artigo 18.º, n.º 2, do CIRE].
Não obstante, resulta das reclamações de créditos apresentadas e do alegado pelos insolventes na sua petição inicial que, relativamente a grande parte dos seus créditos, aqueles entraram em incumprimento no ano de 2023, sendo que apenas se apresentaram à insolvência em 17.07.2024.
Não obstante, como se disse, não basta a apresentação tardia dos devedores à insolvência.
Impõe-se, ainda, que o retardamento na apresentação à insolvência tenha acarretado prejuízos aos credores.
A este respeito, para demonstração do apontado pressuposto, a credora Verdade Temática, Mediação Imobiliária, Lda. sustentou que os insolventes, estando já em situação de insolvência, contraíram novos empréstimos, concretamente junto da COFIDIS, S.A.
Ora, da leitura da reclamação de créditos apresentada pela COFIDIS, S.A., resulta que os insolventes outorgaram, de facto, em 06.03.2023, contrato de crédito com tal entidade.
Todavia, da leitura do contrato em apreço, ressalta que aquele teve por objeto a restruturação de crédito que os devedores já haviam contraído junto de tal entidade.
Dito por outras palavras, os devedores não contraíram novo crédito, tendo, outrossim, renegociado débito já existente.
Não podemos, pois, concordar que, com esta renegociação, os devedores contribuíram para o agravamento da sua insolvência e, nessa medida, que tal tenha implicado prejuízos para os devedores.
A credora Verdade Temática, Mediação Imobiliária, Lda. sustenta que, pelo menos desde março de 2023, os devedores estavam em situação de insolvência.
Porém, não imputa aos devedores qualquer atuação, em momento posterior a tal marco temporal, que nos permita concluir que contribuíram para o agravamento da sua situação e para o prejuízo dos credores.
Denote-se que os créditos contraídos junto da Credibom, para aquisição de veículos, remontam, de harmonia com o mapa de responsabilidades do Banco de Portugal, a 07.04.2022 e 03.06.2022.
Acresce que a mera acumulação de juros não preenche o conceito de prejuízo para os credores.
Veja-se, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.11.2013, relatado por António Ferreira de Almeida, acessível para consulta em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler- se que «a verificação de «prejuízo para os credores» não decorre automaticamente da tardia apresentação do pedido de insolvência, devendo ser apurado em cada caso, com afastamento terminante de qualquer tipo de presunção. Não constitui presunção de prejuízo para os credores a acumulação de juros de mora, já que, no atual regime da insolvência, se continuam a contar mesmo depois da apresentação. Não há assim prejuízo que, automaticamente, decorra do retardamento na apresentação, competindo antes aos credores do insolvente e ao administrador da insolvência o ónus da prova de um efetivo prejuízo que se não presume».
Assim, ainda que se conclua pela verificação da situação de insolvência para além dos seis meses anteriores à sua apresentação, não existem elementos que permitam concluir que, em consequência de tal incumprimento, os credores viram prejudicada a respetiva situação creditória, no sentido de assim verem dificultada a satisfação dos seus créditos.
Pelas razões supra vertidas, não se vislumbra nos autos factualidade que indicie a existência de culpa dos insolventes na criação ou agravamento da sua situação de insolvência nos termos do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [cfr. artigo 238º, nº 1, alínea e) do CIRE].
- os insolventes não foram condenados, por sentença transitada em julgado, pela prática de algum dos crimes previstos e punidos pelos artigos 227º a 229.º, do Código Penal, nos 10 anos anteriores à instauração destes autos ou posteriormente, conforme resulta do Certificado de Registo Criminal por último junto aos autos [cfr. artigo 238º, nº 1, alínea f) do CIRE].
- a ausência de notícia de incumprimento, pelos insolventes, do dever de informação e colaboração que para eles resultam do presente Código, no decurso do processo [cfr. artigo 238º, nº 1, alínea g) do CIRE].
A falta de colaboração apontada pelo Banco CREDIBOM, por não entrega do veículo, pelos insolventes, sobre o qual alega ter reserva de propriedade não integra, para efeitos do incidente em apreço, o conceito de falta de colaboração, considerando, além do mais, que os autos foram já declarados encerrados por insuficiência de bens e a posição assumida pelo Administrador de Insolvência quanto ao contrato sobre qual versa tal veículo.
- não foi proposto e, por isso, inexiste plano de insolvência ou de plano de pagamentos aprovados.
Em face do supra exposto, mostrando-se reunidos os pressupostos, admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes e, em consequência, determino que, durante os três anos subsequentes, designado período de cessão, o rendimento disponível que os insolventes venham a auferir se considera cedido ao Fiduciário.
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DA CESSÃO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL
Vaticina o artigo 239.º, número 2, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas que «o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade neste capítulo designada fiduciário».
O número 3 da citada norma define o que deve integrar o rendimento disponível, afirmando- se que são todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: «a) dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional; iii)
Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor».
Importa, pois, fixar o rendimento indisponível, no confronto com o qual, em cada momento, é quantificado o rendimento disponível objeto de cessão.
Com interesse para a decisão a proferir, destacamos os seguintes factos:
1. AA, nascido em 14.05.1990 e BB, nascida em 08.08.1991 contraíram, em 21.12.2015, casamento civil, sem convenção antenupcial.
2. CC., nascida em 02.05.2019, é filha de AA e de BB
3. BB aufere mensalmente retribuição base de € 990,00 e AA exerce funções de mediador imobiliário, auferindo remuneração variável, em função dos imóveis vendidos.
4. Os devedores relacionaram os seguintes encargos mensais:
- € 380,00 – renda com habitação;
- € 100,00 – serviços de eletricidade, água e gás;
- € 70,00 - serviços de telecomunicações;
- € 50,00 – medicação.
Na seleção de tais factos, o Tribunal socorreu-se dos documentos juntos aos autos e do teor do relatório apresentado pelo Administrador de Insolvência que não mereceu censura da parte dos insolventes e dos credores.
Na apreciação das necessidades dos devedores, ponderou-se, por um lado, que possuem encargo com a sua habitação e, por outro lado, que têm filha, menor de idade, o que acarreta, desde logo, encargos com o seu acompanhamento médico, escolar, para além das despesas com a alimentação, higiene e vestuário do agregado.
Assim, determina-se que o rendimento disponível dos insolventes objeto da cessão ora determinada, seja integrado por todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título, com exclusão do montante correspondente a 2 [dois] salários mínimos regionais, acrescido de 50% de [1] um salário regional, uma vez comprovado que mantêm a cargo a sua filha. (…)”

11. Inconformada com o despacho referido em I.10, veio a credora VERDADE TEMÁTICA, MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., em 18-03-2025, interpor o presente recurso, pedindo que o despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo seja declarado nulo ou, caso assim não se entenda, seja tal despacho substituído por decisão que indefira esse pedido.
Formula, para o efeito, as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objeto o douto Despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes aqui recorridos que padece de duas nulidades, bem como de erro na aplicação do Direito;
2. Do douto Despacho recorrido não consta a identificação dos factos que foram dados como provados ou como não provados, aos quais foi aplicado o Direito, o que resulta na sua nulidade, nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea b) do CPC;
3. De igual forma, o Despacho não se pronunciou quanto à produção da prova requerida, sendo também por isso nulo esse Despacho nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea b) do CPC;
4. Pelo que, deve o Despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante ser declarado nulo, com todas as consequências legais, ordenando-se a realização de julgamento com a respectiva, produção da prova requerida ou a prolação de despacho respeitando o disposto no artigo 615º, n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil (aplicável por via do artigo 613º. n.º 3 do CPC).
5. Na verdade, os insolventes tinham perfeito conhecimento da sua situação de insolvência atual, pois que já há muito tempo que sabiam que não tinham quaisquer condições para solver as suas obrigações;
6. Isto é, quando “renegociaram” uma das suas dívidas em março de 2023, os insolventes que já tinham um total de 18 dívidas a diferentes instituições financeiras, referentes a créditos pessoais, linhas de crédito, créditos automóveis e cartões de crédito, num passivo total de 26.922,25 €;
7. Sendo que, desse montante, como acabamos de ver, já estava em incumprimento um total de 19.886,29 €, ou seja 74 % do seu passivo que, nessa altura, já não conseguiam liquidar;
8. Ora, perante este evidente estado de insolvência atual os insolventes não se apresentaram à insolvência;
9. Sendo que, entretanto, tinham ainda dois empréstimos automóveis celebrados com a Credibom, S.A. para:
a. Adquirir uma viatura da marca Citroen, modelo C3 (6.775,74 €);
b. Adquirir (menos de dois meses depois) um Mercedes, Modelo GLA200 … (14.897,09 €).
10. A atitude desastrosa dos insolventes em adquirir viaturas que sabiam que não conseguiam pagar e recorrendo a mais créditos pessoais quando não conseguiam pagar os que já têm estavam em incumprimento, em muito prejudicou os aqui credores, mas, principalmente, agravou o seu estado de insolvência;
11. Ora, entender-se que a oportunidade de dar um “fresh start” aos insolventes admite casos como este em que os insolventes sabiam perfeitamente da situação insustentável que estavam a criar ao celebrarem todos aqueles créditos que, com os seus poucos rendimentos, simplesmente nunca conseguiriam pagar, é premiar esta conduta;
12. Isto é, a situação de insolvência dos aqui recorridos não só foi criada por eles mesmo, como foi agravada por esta atitude de continuar a aumentar seu passivo sem quaisquer perspetivas sérias de melhorar a sua situação – antes pelo contrário – num acumular de dívidas propositado para agora, simplesmente, se verem exonerados de todas elas, sendo que é este o prejuízo que criaram a todos os seus credores.

12. Os insolventes/recorridos, em 07-04-2025, apresentaram contra-alegações, pugnando pela negação de provimento ao recurso interposto, formulando as seguintes conclusões:
1 Inconformada com o douto despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos Insolventes, interpôs a Recorrente o presente recurso, pugnando, primeiro, pela nulidade do aludido despacho, e, depois, pela substituição desse despacho por outro que indefira aquele pedido. Ressalvado o respeito devido, cremos, todavia, não lhe assistir razão.
2 Das pretensas nulidades do despacho proferido.
Em sede de despacho liminar, a decisão a proferir não versa sobre o mérito da concessão do benefício da exoneração do passivo restante, mas tão-só pela aferição das condições de admissibilidade do próprio pedido, no âmbito do qual, o juiz verificará a ocorrência de alguma das circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 238.º do C.I.R.E.
3 Devidamente compulsado o despacho proferido, verifica-se que o Tribunal a quo identificou quais os fundamentos de facto e de direito em que se fundou para decidiu pela procedência do pedido de exoneração do passivo restante (vejam-se as páginas 2 a 6).
4 De igual modo, o despacho recorrido não deixou de se pronunciar sobre a prova requerida pela Recorrente. No entanto, por considerar dispor de todos os elementos necessários à decisão liminar sobre o pedido de exoneração, dispensou-a.
5  Por tudo o exposto, não enferma o despacho proferido de qualquer das nulidades invocadas pela Recorrente.
6  Da admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Sustenta também a Recorrente dever o pedido de exoneração do passivo restante ser indeferido, quer pela não observância do dever de apresentação à insolvência no prazo de seis meses, quer pela existência de culpa dos devedores na criação ou agravamento da concreta situação de insolvência.
Uma vez mais, porém, não lhe assiste razão.
7 Com efeito, constata-se que a apresentação à insolvência não era uma imposição legal para os Insolventes (porquanto não eram titulares de empresa),
8 E que a Recorrente não concretiza qual o alegado prejuízo que o retardamento na apresentação à insolvência lhe causou a si e aos demais credores.
9  Por outro lado, não corresponde à verdade que o rendimento mensal dos Devedores, no ano de 2023, totalizasse apenas 900,00 € (o rendimento da Requerente ascendia a 1.300,00 € e o do Requerente era de, aproximadamente, 600,00 €),
10 Nem que os estes tenham contraído novo crédito junto da COFIDIS em 09.03.2023 (ao invés, de modo a diminuir o valor das prestações mensais e num derradeiro esforço de cumprirem com as suas obrigações, renegociaram nessa data os créditos pendentes).
11 Importa ainda evidenciar que, ao contrário do que pretende a Recorrente fazer crer, os créditos contraídos pelos Devedores junto da CREDIBOM remontam a 07.04.2022 e 03.06.2022, e não em março de 2023 ou a data posterior.
12 Assim, e como doutamente decidido no despacho recorrido, “não se vislumbra nos autos factualidade que indicie a existência de culpa dos insolventes na criação ou agravamento da sua situação de insolvência”, nem “existem elementos que permitam concluir que (…) os credores viram prejudicada a respetiva situação creditória” em consequência da suposta não observância do dever de apresentação à insolvência no prazo de seis meses seguintes à verificação dessa situação.
13  Por tudo o aduzido, forçoso é concluir que nenhuma censura merece o despacho recorrido, devendo, por isso, ser o recurso interposto julgado totalmente improcedente.

13. Por despacho de 30-04-2025, o Mm.º Juiz a quo pronunciou-se quanto às nulidades invocadas pela recorrente, concluindo pela sua não verificação.
Foi admitido o recurso como apelação, com subida imediata em separado e efeito devolutivo (despachos de 30-04-2025 e 02-05-2025).
*
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar.

II.
Dado que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação das recorrentes, sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso (artigos 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil), identificam-se, como questões a decidir:
i. apreciar se o despacho inicial que admitiu o pedido de exoneração do passivo se encontra ferido de nulidade;
ii. em caso negativo, apreciar se os elementos reunidos nos autos fundamentam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo apresentado pelos insolventes.

III.
Os factos a considerar para apreciação do objeto do recurso correspondem aos enunciados no relatório (ponto I).

IV.
i. Nulidades do despacho recorrido.
Invoca a apelante que o despacho recorrido admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo sem identificar como provados ou não provados os factos alegados, quer pelos insolventes, quer pela apelante no requerimento em que pugnou pelo indeferimento liminar do pedido.
Em segundo lugar, considera a apelante que o despacho recorrido é nulo por não fundamentar o motivo pelo qual dispensou a produção de prova requerida pela apelante, quando importava aferir do conhecimento dos insolventes sobre a sua situação de insolvência, bem como do seu conhecimento da ausência de expectativas que a sua situação fosse melhorar, sendo estes os critérios dos quais depende a concessão do instituto de exoneração do passivo.
Entende, por isso, a apelante que, quer por não ter sido realizada a prova que foi requerida, sem que houvesse qualquer fundamentação para tanto, quer por não serem especificados os factos que justificaram a decisão, o despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil.

Preceitua o invocado art.º 615º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil – aplicável aos despachos por força do disposto no art.º 613º, n.º 3 do mesmo diploma -, que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Importa, em primeiro lugar, não perder de vista que a análise incide sobre o despacho inicial mencionado no art.º 239º do CIRE, que não se confunde com a decisão final de exoneração prevista no art.º 244º do CIRE.
Contudo, prevendo o art.º 238º do CIRE um conjunto de causas que determinam o indeferimento liminar, sendo quase todas elas dependentes de prova, este despacho liminar não se traduz numa genérica apreciação de pressupostos puramente processuais, antes reclamando que estejam reunidos nos autos elementos objetivos – essencialmente documentais – que permitam ao juiz aferir se, no caso concreto, o devedor reúne as condições necessárias para beneficiar do instituto.
No caso concreto, pugnou a apelante pela rejeição liminar do pedido invocando a verificação da previsão da al. d) do n.º1 do art.º 238º, correspondente àquela que maior debate e controvérsia jurisprudencial tem gerado, segundo a qual o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Entende a apelante que o tribunal recorrido, por um lado, desconsiderou os factos por si alegados, não os elencando como provados ou não provados e, por outro lado, não se pronunciou quanto à prova por si requerida, que se destinaria a demonstrar aqueles factos, encontrando-se, por isso, interligada a apreciação das questões.
Convirá ter presente que estamos na presença de um despacho, não de uma sentença, não lhe sendo aplicável a previsão do art.º 607º do Código de Processo Civil, que reclama uma específica estrutura decisória, que passaria, designadamente e por efeito da aplicação do seu n.º 3, pela discriminação dos factos que o tribunal julga provados e não provados.
Quando em causa está a nulidade assente na omissão dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e resultando do art.º 613º, n.º 3 do Código de Processo Civil que tal causa de nulidade é aplicável aos despachos, não se poderá olvidar que tal sucede “com as necessárias adaptações”. Ou seja, se ao juiz se impõe, quando profere um despacho, que nele sejam considerados todos os factos alegados pelas partes e relevantes para prolação da decisão, daí não decorre a imposição de respeito pelo específico formalismo que se reclama de uma sentença.
Se a prolação do despacho que dá início ao incidente impõe que o juiz verifique a inexistência de motivo para indeferimento liminar do pedido – art.º 237º, al. a) do CIRE – e se esses motivos se encontram elencados no art.º 238º do mesmo diploma, terá que se considerar suficiente a fundamentação de facto que, analisando os factos alegados em suporte da verificação de uma concreta causa de indeferimento liminar (no caso, a al. d) do n.º1), os enuncia e aprecia no corpo decisório do despacho.
Acresce, no que constitui um entendimento pacífico e consolidado, que só a absoluta falta de fundamentação de facto pode gerar a nulidade da decisão, não bastando uma fundamentação insuficiente ou deficiente. Citando Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [Manuel de Processo Civil, 2ª edição, p. 687], “(…) Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.

Tanto quanto resulta do requerimento dirigido pela apelante aos autos manifestando a sua oposição à admissão do incidente – I.4 do relatório -, devidamente delimitados pelo objeto do recurso, alegou aquela que:
- já há muito tempo que os insolventes têm perfeito conhecimento da sua situação de insolvência atual;
- os insolventes foram citados para a ação instaurada pela apelante (base do crédito condicional que lhe foi reconhecido) em 08-01-2024, não podendo invocar que aquando da apresentação do requerimento inicial haviam sido surpreendidos pela mesma;
- o seu estado de insolvência é anterior, já que em março de 2023 estavam em incumprimento generalizado das suas obrigações;
- apesar disso, em 09-03-2023, contraíram um novo crédito com a Cofidis, em incumprimento desde outubro de 2023;
- optaram os insolventes, estando já em insolvência atual, por agravarem a sua situação, tendo entretanto contraído outros dois empréstimos automóveis com a Credibom, adquirindo duas viaturas;
- os insolventes recorreram a mais créditos pessoais quando não conseguiam pagar os que já têm estavam em incumprimento, o que em muito prejudicou os credores e agravou o seu estado de insolvência.

Analisado o despacho recorrido, verifica-se que nele foram analisados cada um dos pressupostos de indeferimento liminar e que, após esclarecer que sobre os devedores pessoas singulares não titulares de empresas – como sucede com os insolventes - não recai o dever de apresentação à insolvência (art.º 18º, n.º 2, al. b) do CIRE), o Mm.º Juiz a quo apreciou o concreto fundamento de indeferimento liminar invocado pela apelante, enunciando os seus requisitos (falta de apresentação à insolvência, que acarretou prejuízo aos credores, sabendo o insolvente ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica), concretizando em que medida os factos alegados pela apelante em suporte da atuação de agravamento da situação dos credores não correspondia à verdade documentada, essencialmente contrariando a suposta contratação de novos créditos numa fase em que os insolventes estariam já em situação de insolvência atual.
Em suma, os factos relevantes alegados pela apelante em suporte da verificação de uma causa de indeferimento liminar do pedido de exoneração foram individualmente apreciados, estando plasmados na fundamentação da decisão, ainda que, como se refere, a esta decisão não se imponha a estrutura de uma sentença.
O despacho refere “(…) da leitura da reclamação de créditos apresentada pela COFIDIS, S.A., resulta que os insolventes outorgaram, de facto, em 06.03.2023, contrato de crédito com tal entidade. Todavia, da leitura do contrato em apreço, ressalta que aquele teve por objeto a restruturação de crédito que os devedores já haviam contraído junto de tal entidade. Dito por outras palavras, os devedores não contraíram novo crédito, tendo, outrossim, renegociado débito já existente. Não podemos, pois, concordar que, com esta renegociação, os devedores contribuíram para o agravamento da sua insolvência e, nessa medida, que tal tenha implicado prejuízos para os devedores. A credora Verdade Temática, Mediação Imobiliária, Lda. sustenta que, pelo menos desde março de 2023, os devedores estavam em situação de insolvência. Porém, não imputa aos devedores qualquer atuação, em momento posterior a tal marco temporal, que nos permita concluir que contribuíram para o agravamento da sua situação e para o prejuízo dos credores. Denote-se que os créditos contraídos junto da Credibom, para aquisição de veículos, remontam, de harmonia com o mapa de responsabilidades do Banco de Portugal, a 07.04.2022 e 03.06.2022 (…) Assim, ainda que se conclua pela verificação da situação de insolvência para além dos seis meses anteriores à sua apresentação, não existem elementos que permitam concluir que, em consequência de tal incumprimento, os credores viram prejudicada a respetiva situação creditória, no sentido de assim verem dificultada a satisfação dos seus créditos”.
Não existe, assim, qualquer omissão de fundamentação de facto, tendo sido expressamente enunciados no contexto da decisão recorrida os factos relevantes alegados pela apelante, inexistindo, em consequência, a nulidade invocada.

Restará verificar se, ao optar o Sr. juiz a quo por considerar que os autos se encontravam revestidos de todos os elementos necessários para prolação de despacho liminar, declarando não ser necessária a realização de outras diligências probatórias, terá incorrido em nulidade, violando o direito da apelante à produção de prova.
O despacho em questão, em termos gerais autorizado pela previsão do art.º 6º, n.º 1 do Código de Processo Civil (aplicável ao processo de insolvência por força do art.º 17º, n.º 1 do CIRE) – dever de gestão processual -, tem, naturalmente, que ser compatibilizado com os direitos das partes, designadamente o direito à prova.
A doutrina e a jurisprudência são unânimes na aceitação do entendimento de que não impende sobre o devedor o ónus de prova dos requisitos previstos no n.º1 do art.º 238º, do CIRE, cabendo aos credores ou aos interessados a demonstração de que tais requisitos não se verificam [ver, por todos, na doutrina, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3ª edição, p.855 e, na jurisprudência, Acórdão do TRP de 25.02.2025, proc.º 1252/24.6T8STS.P1, rel. Márcia Portela, disponível na base de dados da DGSI, que cita diversa jurisprudência no sentido indicado].
Nessa medida, invocando a apelante um conjunto de factos que considerou serem suporte do preenchimento da previsão do art.º 238º, n.º 1, al. d) do CIRE, sobre a mesma impendia o ónus de prova da sua verificação.
Como refere Nuno Lemos Jorge [Direito à Prova: Brevíssimo Roteiro Jurisprudencial, Revista Julgar, n.º 6, 2008, pgs. 99/100], realçando a evidência de que a garantia do direito à prova é outra face da garantia do direito subjetivo, “(…) Sem a possibilidade de provar os factos constitutivos de um direito, a previsão deste não passará de uma boa intenção do legislador. Dito de outro modo, o direito à tutela jurisdicional efectiva contido no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) implica o direito à prova, que engloba a possibilidade de propô-la e produzi-la”.
Nesta sede, defende a apelante que, não obstante reconhecer que o incidente pode ser sumariamente decidido quando o juiz entenda, fundadamente, que é dispensável a produção de prova, “neste incidente, importava aferir do conhecimento dos insolventes sobre a sua situação de insolvência, bem como do seu conhecimento da ausência de expectativas que a sua situação fosse melhorar, sendo estes os critérios dos quais depende a concessão deste instituto. Pelo que, era instrumental a produção de prova quanto a esta questão que foi alegada pelos insolventes e impugnada pela aqui recorrente, para que se pudesse dar como provado uma coisa ou outra”.
Contudo, inexistindo no caso concreto uma obrigação dos devedores, pessoas singulares, se apresentarem à insolvência (vertente em que seria autonomamente relevante, como fundamento de indeferimento liminar, aferir em que momento tomaram conhecimento da sua situação de insolvência), o que se impunha à apelante alegar e provar era que os devedores se abstiveram dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica (al. d) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE).
A esse respeito, alegou a apelante que em março de 2023 os insolventes se encontravam em incumprimento generalizado das suas obrigações num montante total de 19.886,29 € e, não obstante essa situação de insolvência, celebraram um novo contrato de crédito com a Cofidis em 9 de março de 2023, no montante de 4.112,11 €, em incumprimento desde 10-10-2023, tendo entretanto contraído, em acréscimo, dois empréstimos automóveis com a Credibom, para: a) Adquirir uma viatura da marca Citroen, modelo C3 (6.775,74 €); b) Adquirir (menos de dois meses depois) um Mercedes, Modelo GLA200 (14.897,09 €), sendo a não apresentação à insolvência no prazo de 6 meses conjugada com esta atuação de prosseguimento na contratação de crédito e aumento do passivo a causa de prejuízo para os credores e de agravamento do estado de insolvência.
Para cumprimento do ónus de prova que lhes competia, indicou a apelante, na parte final do seu requerimento, que para prova do alegado requeria “o depoimento de parte dos insolventes”.
A requerente, ora apelante, pretendendo provar a matéria por si alegada com base em confissão dos insolventes, não deu cumprimento ao disposto no art.º 452º, n.º 2 do Código de Processo Civil, indicando logo, de forma discriminada, os factos (concretos) sobre os quais haveria de recair o depoimento de parte. Essa discriminação constitui o único meio que permite ao juiz verificar se o objeto do depoimento é admissível, isto é, se incide sobre matéria passível de confissão, o que reclama que se esteja na presença de factos desfavoráveis ao depoente (art.º 352º, do Código Civil).
Acresce que os únicos factos (relevantes) em que a requerente fez assentar a verificação de uma atuação dos insolventes que, pela via da não apresentação imediata à insolvência, conduziu ao agravamento da situação de insolvência e ao subsequente prejuízo para os credores, traduzem-se na alegada contratação de novos empréstimos em ocasião em que acumulavam passivo em situação incumprimento.
Estes factos, reportando-se à ocasião temporal em que os insolventes terão celebrado novos contratos de créditos, exigem, essencialmente, prova documental, que o Mm.º Juiz a quo cuidou de reunir no processo, ordenando a junção aos autos das reclamações de créditos, insistindo, em 09-01-2023, pela junção da reclamação de créditos apresentada pela Cofidis (mencionada pela aqui apelante como base da conduta censurável dos insolventes), que havia sido omitida – documento que foi notificado à apelante (ref:ª Citius 58598156, de 14-01-2025) -, tendo posteriormente conjugado os elementos documentais com os mapas de responsabilidades do Banco de Portugal, reportados a 30-04-2024 e anexos à petição inicial como docs. n.º 7 e n.º 10.
Ora, sendo os factos essenciais objeto de prova matéria documentada nos autos, limitando-se o requerimento de prova da requerente/apelante à pretensão de obtenção de produção de prova por depoimento de parte dos insolventes (confissão), sem cumprimento da imposição legal de discriminação dos factos a que os mesmos deveriam depor e estando em causa um incidente de carácter urgente, não nos merece censura a decisão do Mm.º Juiz a quo de, entre optar por convidar a requerente a vir discriminar os factos a que pretendia ver prestado o depoimento de parte (previsivelmente a incidir sobre matéria já infirmada por documentos) ou optar por considerar, no uso dos seus poderes de gestão processual, que os autos reuniam os elementos necessários à apreciação da questão de apreciação liminar do incidente, dispensando acrescidas diligências probatórias, atuou com respeito pelos poderes legais que lhe são conferidos, obstando a desnecessárias dilações.
A requerente/apelante não suportou os factos relevantes – prejuízo dos credores causado pelo atraso na apresentação à insolvência – em documentos que formalizassem as supostas contratações prejudiciais aos credores, não impugnou qualquer dos documentos que infirmavam os factos por si alegados – designadamente do teor da reclamação de créditos da Cofidis -, do mesmo modo que não rebate nesta sede esses mesmos factos, mencionados no despacho recorrido como suporte da conclusão jurídica.
Como se refere no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-09-2023 (proc.º n.º52/20.7T8PVL-A.G1, rel. Pedro Maurício, disponível nesta ligação), “a relevância jurídica dos meios de prova constitui uma condição da sua própria pertinência e deve ser verificada em função dos «interesses concretos» em causa na respectiva acção. Já não serão admissíveis todos os meios de prova que se apresentem como irrelevantes (impertinentes) para a concreta causa a decidir, ou seja, todos aqueles que, atento o objecto do litígio em causa, se assumem como desnecessários ao apuramento da verdade material porque são insusceptíveis de acrescentar qualquer elemento probatório que se repercuta no desfecho da lide (não tem um mínimo de influência na decisão), seja porque dizem respeito a factos que já se mostram devidamente comprovados, seja porque respeitam a factos que não constam do elenco a apurar na causa (não integram os «factos necessitados de prova»). (…) Relembre-se que, também no âmbito da admissibilidade das provas, vigora o princípio da limitação dos actos consagrado no art.º 130º do C.P.Civil de 2013, do qual decorre que não é lícito realizar no processo actos inúteis”.
Acresce o já mencionado art.º 6º, n.º1 do Código de Processo Civil, que faz impender sobre o juiz um dever de direção ativa do processo, providenciando pelo seu andamento célere, recusando o que se revele impertinente ou dilatório, adotando os mecanismos de agilização processual e encaminhando o processo para o seu fim útil, que é a prolação da decisão, assegurado que esteja o respeito pelas garantias das partes.
Perante o exposto, no caso concreto, sendo os factos relevantes alegados pela requerente/apelante em defesa do indeferimento liminar do pedido de exoneração (relação causa/efeito entre o atraso dos insolventes na apresentação à insolvência e o prejuízo daí decorrente para os credores) matéria documentada nos autos e que, assentando sobre a suposta realização de contratos, encontraria naquele meio de prova a sua base probatória fundamental, nenhuma censura nos merece a opção do Mmº. Juiz a quo de considerar que os autos dispunham de todos os elementos necessários à apreciação da questão, tornando desnecessária a realização de outras diligências probatórias, dispensando, em consequência, a produção de depoimento de parte que, sem cumprimento das exigências legais, havia sido requerida pela apelante, o que se situa dentro da admissível limitação do direito à prova.
Não se verifica, em consequência, a nulidade arguida.

ii) Existência de fundamento para indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo.
Entende a apelante que, em qualquer caso, os factos reunidos nos autos são por si demonstrativos da existência de fundamento para indeferimento liminar do pedido de exoneração.
Vejamos.
O instituto da exoneração do passivo restante, previsto no CIRE entre o conjunto de disposições específicas da insolvência de pessoas singulares, tem o seu princípio geral estabelecido no art.º 235º do referido diploma, que permite que seja concedida ao devedor pessoa singular “a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste”.
Tal instituto correspondeu a uma novidade introduzida pelo CIRE, referindo-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º53/2004, de 18 de março – ponto 45 -, que o código “conjuga de forma inovadora o principio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores pessoas singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”.
Ficou consagrado no nosso sistema jurídico o princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência.
Em obediência a esta ideia de que o benefício em questão se destina às pessoas singulares de boa-fé, o CIRE consagrou no art.º 238º um conjunto de fundamentos determinativos do indeferimento liminar do pedido que, com exceção da previsão da alínea a), concretizam situações em que a atuação do devedor contraria essas mesmas exigências de boa-fé, retirando-lhe a prerrogativa de se poder considerar merecedor do benefício em questão, em parte dos casos por evidenciar total indiferença perante os interesses dos credores.
Situa-se entre essas previsões a aqui invocada pela apelante – alínea d) – que estabelece (repete-se) que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Ou seja, no caso concreto, em que não existe qualquer elemento que indicie que os devedores eram titulares de empresa, sendo, por isso, pessoas singulares sobre as quais não impendia um dever de apresentação à insolvência (art.º 18º, n.º 2, al. a) do CIRE), o indeferimento liminar com apoio na citada alínea d) pressupunha que se pudesse objetivamente concluir que os devedores: 1. se tinham abstido de se apresentarem à insolvência nos seis meses subsequentes à verificação da situação de insolvência se verificar; 2. com prejuízo para os credores; 3. sabendo ou não podendo ignorar, com culpa grave, que não existiam perspetivas sérias de melhoria da sua situação económica.
Em suma, exige-se um comportamento dos devedores que revele uma contribuição direta para agravar a situação de insolvência, ao invés de, acautelando esse agravamento e protegendo os interesse dos credores, se apresentarem em tempo razoável à insolvência num momento em que estavam em perfeitas condições de percecionar que sua situação financeira não iria sofrer quaisquer alterações favoráveis.
A propósito desta alínea e do debate que em torno da mesma se foi suscitando na jurisprudência, Catarina Serra [Lições de Direito da Insolvência, 2º edição, p. 617 a 619] questiona quando pode considerar-se que há prejuízo para os credores, referindo que “(…) para que a norma se aplique, deverá exigir-se, desde logo, que se verifique um nexo de causalidade entre a não apresentação atempada à insolvência e o prejuízo para os credores. O conhecimento ou desconhecimento com culpa grave, por parte do devedor, da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica deverá ser visto, por sua vez, como a circunstância que faz com que os outros dois factos assumam relevância qualificada”, impondo-se que os requisitos, sem prejuízo da sua autonomia, sejam lidos de forma articulada.
Existe uma perfeita consciência coletiva de que o sobre-endividamento das pessoas singulares está intimamente ligado às facilidades existentes na concessão de crédito ao consumo, sendo a resistência à crescente pressão de consumo da sociedade moderna algo que reclama um esforço acrescido na gestão da vida financeira.
Por outro lado, perante os primeiros sinais de dificuldades de cumprimento de pequenos créditos contraídos, gerou-se, principalmente em fases de crise económica ou de maior pressão inflacionista, uma prática irrefletida – muitas vezes sob promoção das instituições financeiras – de contratação de novos créditos para pagamento dos créditos já vencidos, criando uma bola de neve de crescente endividamento que, em dado momento, atinge o seu inevitável ponto limite. Nestes casos em que, ainda que se possa falar de irreflexão ou menor ponderação, não se pode considerar que existe uma qualquer má-fé ou consciência de que se poderá vir a causar prejuízo a credores, o instituto da exoneração de passivo encontra o seu espaço privilegiado de aplicação, permitindo um recomeço, sem a pressão constante da dívida, sendo o objetivo de não reiteração da atuação do consumidor algo que se espera alcançar, designadamente pelo impedimento de recurso ao benefício da exoneração do passivo a qualquer insolvente que haja beneficiado do mesmo nos 10 anos anteriores à data de início do processo de insolvência (art.º 238º, n.º1, al. c) do CIRE).
A propósito da oportunidade da função de exoneração quando em causa esteja um devedor pessoa singular titular ou não titular de empresa, refere Catarina Serra [op. cit., p. 613] que “(…) o recurso ao crédito por parte dos particulares tem vindo a crescer mas sempre serão diversas a motivação para o recurso ao crédito e a função que o crédito desempenha em ambas as situações. No crédito ao consumo existem particularidades que são completamente estranhas ao crédito comercial, como, por exemplo, as ofertas de crédito (solicitations to take credit). São distintos, em suma, os grupos de interesses económicos envolvidos e merecedores de tutela numa e noutra situação”.

Os argumentos essenciais da apelante em suporte da conclusão de que os insolventes/apelados não reúnem as condições para que possa ser admitido o pedido de exoneração são:
- os devedores, quando renegociaram uma das suas dívidas em março de 2023, já tinham um total de 18 dívidas a diferentes instituições financeiras, referentes a créditos pessoais, linhas de crédito, créditos automóveis e cartões de crédito, num passivo total de 26.922,25 €, estando em incumprimento um total de 19.886,29 €, que já não conseguiam liquidar;
- perante tal quadro evidente de insolvência, não se apresentaram à insolvência;
- contraíram entretanto dois empréstimos automóveis com a Credibom para aquisição de viaturas, agravando o seu estado de insolvência;
- a situação de insolvência dos aqui recorridos foi não só foi criada por eles mesmo, como foi agravada por esta atitude de continuar a aumentar seu passivo sem qualquer perspetivas sérias de melhorar a sua situação.

Não se compreende, no entanto, qual o suporte documental em que a apelante sustenta tais afirmações, tendo em conta que a própria faz menção aos documentos 7 e 10 anexos à petição inicial, isto é, aos mapas da Central de Responsabilidades do Banco de Portugal.
Ainda que se assumisse como assente que em março de 2023 os insolventes já se encontravam impossibilitados de cumprir as suas obrigações, esse facto, por si só e como já vimos, não tem relevância enquanto causa de indeferimento liminar, face à ausência de dever de apresentação à insolvência.
A globalidade dos créditos em incumprimento por parte dos devedores corresponde a montantes mutuados inferiores a 5.000,00 €, referentes a créditos ao consumo, crédito automóvel ou cartões de crédito, sendo o início das situações de incumprimento essencialmente situado entre o final de 2022 e o início de 2023.
A afirmação de que em 9 de março de 2023 os insolventes, ignorando a sua situação de insolvência, terão contraído um novo crédito junto da Cofidis é contrariada pelo contrato anexo à reclamação de créditos desta, que claramente evidencia que os insolventes procuravam reestruturar o crédito vencido e não contrair um novo crédito, manifestando uma intenção de reunir condições para solver as suas responsabilidades, em direta oposição à imputada conduta orientada por uma irresponsável intenção de agravamento do passivo.
Note-se, mais uma vez, que o teor do documento que clarifica o objetivo do contrato se encontra anexo à reclamação de créditos da Cofidis e foi notificado à apelante.
Entende ainda a apelante que o tribunal ignorou o facto de “entretanto” terem os insolventes celebrado dois empréstimos automóveis com a Credibom, quando a única fonte de informação referente a tais empréstimos (não documentados pela apelante e expressamente negados pelos insolventes em resposta ao requerimento dirigido por aquela ao processo) corresponde ao elenco de responsabilidades de crédito da Central de Responsabilidades do Banco de Portugal (doc. 7 anexo à petição inicial) e identifica tais contratos como celebrados em abril e junho de 2022, como se menciona na decisão recorrida.
Os factos em que a apelante suporta a atuação culposa dos devedores que, pela via do atraso na apresentação à insolvência, terão causado prejuízo aos credores são contrariados pelos elementos objetivos de prova reunidos nos autos.
No mais, em relação à reiterada menção de que os insolventes terão sido citados para a ação declarativa instaurada pela apelante em janeiro de 2024, tal citação não traduz, por si mesma, a constituição de qualquer dívida. Note-se que na ação era pretendida a condenação dos insolventes no pagamento de uma quantia de valor superior a 250.000,00 €, tendo o crédito sob condição reclamado pela apelante sido fixado em 263.604.04 € (entretanto atualizado para 20.480,00 € por efeito da decisão final da ação – I.9 do relatório). Mais do que o conhecimento da propositura da ação, será o receio de que a mesma proceda que poderá consolidar nos devedores a consciência da impossibilidade que teriam de, mantendo os mesmos rendimentos, poderem cumprir com as suas obrigações, dada a agravada circunstância de a devedora ter sofrido penhora parcial do seu vencimento (doc. 8 anexo à petição inicial).
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.04-2021 (processo n.º519/20.7T8STS-D.P1, rel. Miguel Baldaia Morais, disponível nesta ligação), «O “prejuízo” que a norma tem em vista na sua previsão é um dano distinto ou acrescido, que resulte precisamente da não apresentação à insolvência e se some aos danos que independentemente desta sempre ocorreriam. Um dano que sobrevenha de um comportamento censurável do devedor, traduzindo um desprezo pela posição dos credores e que dificulte mais a posição destes no que tange à obtenção do pagamento (…)».
No caso em apreço, não há qualquer indício de que os devedores, no período de seis meses subsequente àquele em que estariam em condições de ficar cientes da impossibilidade de cumprimento dos créditos vencidos, hajam contraído novos créditos ou praticado quaisquer atos de dissipação de património passíveis de reduzir as possibilidades efetivas de ressarcimento dos seus credores.
A jurisprudência citada pela apelante em apoio da sua pretensão é coerente com o fica dito.
Da fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 8651/21.3T8VNG-D.P1, datado de 30-01-2024 e citado pela apelante, resulta que se estava perante uma situação em que o devedor “não se coibiu de, cerca de um ano antes da declaração de insolvência, praticar três atos que redundaram no prejuízo dos credores, ao subtrair do seu património pessoal as aludidas viaturas em beneficio dos seus familiares próximos”, negócios que vieram a ser objeto de resolução em favor da massa insolvente.
Do mesmo modo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 2891/16.4T8VIS.C1, datado de 07-03-2017, apreciava-se uma situação de facto em que o devedor se encontrava em situação de insolvência entre setembro e novembro de 2011 e se apresentou à insolvência em 31-05-2016, tendo, nesse período, continuado a contrair débitos pessoais, assumindo por duas vezes responsabilidades pessoais por dívidas de uma sociedade de que era legal representante, constituiu-se devedor de IUC referente aos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015 e contratou serviços cujo preço não liquidou, não extinguiu a sociedade de que era legal representante, apesar de esta ter cessado a sua atividade em data anterior ao ano 2012, permitindo que esta fosse onerada, ao longo dos anos subsequentes, por um conjunto de dívidas ao Estado que, por decisões de reversão proferidas contra o devedor, vieram a responsabilizá-lo pessoalmente.
Nas situações descritas, o atraso na apresentação à insolvência por parte dos devedores deu causa direta e clara a prejuízos para os seus credores, não tendo a factualidade que está na base da citada jurisprudência qualquer semelhança com a situação dos aqui apelados.
No caso concreto, se podemos concluir que a dimensão acumulada de passivo vencido em confronto com os rendimentos dos devedores evidencia a sua situação de insolvência, não existe qualquer elemento que objetivamente reflita uma atuação subsumível a qualquer das alíneas do n.º1 do art.º 238º do CIRE, designadamente pela via da persistência na contratação de créditos em ocasião em que se encontravam impossibilitados de cumprir as suas obrigações.
Em suma, o prejuízo causado aos credores não é outro que não o decorrente da impossibilidade de cumprimento das obrigações e da declarada insolvência, inexistindo elementos com base no quais se possa afirmar que, caso os insolventes se tivessem apresentado mais cedo à insolvência, qualquer específico prejuízo teria sido evitado ou seria de menor dimensão.
Deste modo, não se verifica qualquer circunstância que justifique o indeferimento liminar do pedido de exoneração, impondo-se manter a decisão recorrida, improcedendo o recurso interposto pela apelante.
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V.
Nos termos e fundamentos expostos, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto e, em consequência, em manter integralmente a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante (art.º 527º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
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Lisboa, 27-05-2025
Ana Rute Costa Pereira
Fátima Reis Silva
Susana Santos Silva