INSOLVÊNCIA CULPOSA
INDÍCIOS SUFICIENTES
Sumário

- Elaborado pela Relatora nos termos do art.º 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil (CPC).
1 - Refletiu o n.º 1, do art.º 188º, do CIRE, uma mudança de modelo relativamente ao incidente de qualificação da insolvência, que foi introduzido pela Lei 16/2012, de 20.04, que alterou o anterior paradigma no qual o incidente de qualificação de insolvência era sempre obrigatório.
2 - Importa distinguir entre o requerimento apresentado nos termos do art.º 188º, n.º 1, do CIRE, pelo administrador da insolvência e o parecer eventualmente apresentado pelo mesmo, devidamente fundamentado e documentado, previsto no n.º 6, do mesmo normativo legal.
3 - No caso do n.º 1, do art.º 188º, do CIRE, o que importa analisar é se, na situação em concreto, foram carreados para os autos indícios que determinam a abertura do incidente de qualificação da insolvência.

Texto Integral

Acordam os Juízes da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.

1. Relatório
Forno a Lenha – Comidas Italianas, Lda., apresentou-se à insolvência em 11.11.2024, tendo sido declarada insolvente por sentença datada de 13.11.2024, transitada em julgado.
A sentença que declarou a insolvência da requerente foi proferida nos termos do art.º 39º, n.º 1, do CIRE.
Em 11.12.2024, veio o administrador da insolvência nomeado nos autos apresentar requerimento dizendo, nomeadamente, e pedindo, a final, que:
“Julgam-se assim como preenchidos os pressupostos de qualificação de insolvência culposa constantes do disposto na al. h) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE e alíneas a) e b) do n.º 3 do mesmo preceito legal.
Nos termos do disposto no art.º 188º ex. vi do art.º 191º do CIRE, Requer a V/ Exa, seja aberto o incidente limitado de qualificação da insolvência, indicando-se apenas e por enquanto como afetada por tal qualificação, a gerente da empresa insolvente AA, com domicílio na Rua …, morada esta que deverá alterar a morada que consta dos autos.”
Em 16.12.2024, veio o administrador da insolvência apresentar requerimento dizendo que: “BB, nomeado administrador de insolvência nos presentes autos, vem, INFORMAR V/ Exa, que, na data de hoje, 16-12-2024, o Senhor Dr. CC da empresa de contabilidade Prilva, Lda., veio corresponder ao solicitado, remetendo as peças processuais disponíveis.”
Novo requerimento foi apresentado pelo administrador da insolvência em 20.12.2024, dizendo o mesmo, em síntese, que:
“BB nomeado administrador de insolvência nos presentes autos, vem, INFORMAR V/ Exa, que, na sequência da remessa de documentos da contabilidade pelo Senhor Dr. CC da empresa de contabilidade Prilva, Lda., nada se veio a acrescentar ao parecer de qualificação de insolvência, remetido aos autos em 11-12-2024, considerando que a documentação ora remetida é igual à existente nos autos e na posse deste administrador.
Mantem assim a informação constante do ponto 7 do seu parecer…”.
Aberta vista ao Ministério Público, requereu o mesmo, em 10.01.2025, que se declare aberto o incidente de qualificação da insolvência.
Em 22.01.2025, foi proferida decisão judicial com o seguinte dispositivo “Assim, não resultando dos autos o conhecimento de factos concretos que permitam declarar verificada alguma das situações tipificadas no artigo 186º do CIRE verificando-se assim uma manifesta improcedência por ausência de alegação de factos.”
Inconformado com a decisão proferida, veio o Ministério Público, 10.02.2025, apresentar recurso de apelação, pedindo, a final, que a sentença recorrida seja revogada, e em consequência, substituída por um despacho que declare aberto o incidente de qualificação da insolvência e determine a notificação da empresa de contabilidade para, em prazo a fixar, juntar aos autos os elementos contabilísticos da insolvente, desde 2020 a 2024.
Apresentou conclusões nos seguintes termos:
“1- Em 13-11-2024 foi proferida sentença que declarou a insolvência da requerente, nos termos e para os efeitos do art.º 39.º n.º 1 do CIRE e ninguém requereu o complemento da sentença, nos termos do disposto no art.º 39.º nº 2 do CIRE.
2- Por conseguinte, o incidente de qualificação de insolvência assume carácter limitado e rege-se pelo disposto no art.º 191.º do CIRE, e artigos 188.º e 189.º do CIRE.
3- Da análise da situação tributária da insolvente, o Senhor AI concluiu que:
- desde o ano 2020 a insolvente não entregava IES,
- o último ano em que procedeu à entrega do modelo 22 de IRC foi em 2021, referente ao ano de 2020, tendo apenas declarado prejuízos fiscais dedutíveis,
- em 2019 procedeu à cessação de atividade em IVA, mantendo aberta a atividade quanto a IRC, e manteve atividade até Março de 2024.
4- A empresa de contabilidade, notificada para juntar os elementos de contabilidade da insolvente, nada entregou.
5- Acresce que, a própria insolvente pediu, aquando da sua apresentação à insolvência, que o Senhor AI diligenciasse pela entrega da contabilidade.
6- A falta dos elementos tributários supra referidos pode indiciar, em nosso modesto entender, uma situação de falta de contabilidade, que, a demonstrar-se, configura uma das situações que preenche, de forma inilidível, a qualificação culposa de insolvência, (cf. al h) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE).
7- Também não se pode, desde já, excluir a violação de obrigação de apresentação à insolvência, antes de 2020 ou desde 5 de Agosto de 2023 ou ainda a violação da obrigação de prestação de contas.
8- Também é indicado pelo Senhor AI «apenas e por enquanto» como possível afectada pela qualificação da insolvência a gerente da empresa.
9- Pelo que se impõe a abertura do incidente de qualificação de insolvência e realização de diligências, com vista a concluir-se (ou não) pela qualificação culposa da insolvência.
10- Por tudo o exposto, ao considerar existir uma ausência total de factos e ao indeferir a abertura do incidente de qualificação de insolvência, a sentença recorrida violou o disposto no art.º 191.º do CIRE e ainda os artigos 186.º n.º 1 e 2 al. h) e n.º 3 al. a) e b) do n.º 3 do CIRE e ainda os artigos 188.º e 189.º do CIRE.
11- A sentença recorrida deve ser revogada, e em consequência, ser substituída por um despacho que declare aberto o incidente de qualificação de insolvência e determine a notificação da empresa de contabilidade para, em prazo a fixar, juntar aos autos os elementos contabilísticos da insolvente, desde 2020 a 2024.”
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Não foram apresentadas contra alegações.
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Em 02.04.2025, foi proferido despacho de admissão do presente recurso, de apelação, com efeito devolutivo, ordenando a sua subida imediata, nos próprios autos.
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Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
                       
2. Objeto do recurso
Analisado o disposto nos artºs 608º, n.º 2, aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, 635º, nºs 3 e 4, 639º, nºs 1 a 3 e 641º, n.º 2, al. b), todos do CPC, sem prejuízo das questões que o tribunal deve conhecer oficiosamente e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução a outras, este Tribunal apenas poderá conhecer das questões que constem das conclusões do recurso, que definem e delimitam o objeto do mesmo. Não está ainda o Tribunal obrigado, face ao disposto no art.º 5º, n.º 3, do citado diploma, a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar essas conclusões, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
Considerando o acima referido é a seguinte a questão a decidir no presente recurso:
- Saber se deve ser declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, com a proposta afetação da gerente da insolvente AA.
           
3. Fundamentos de facto
Os constantes do Relatório, que se dão por integralmente reproduzidos e ainda os seguintes resultantes da análise dos elementos dos autos e da prova documental junta ao processo:
1. Forno a Lenha – Comidas Italianas, Lda., apresentou-se à insolvência em 11.11.2024 (petição inicial no processo principal).
2. A referida sociedade foi declarada insolvente por sentença datada de 13.11.2024, transitada em julgado (sentença proferida no processo principal).
3. A sentença que declarou a insolvência da requerente foi proferida nos termos do art.º 39º, n.º 1, do CIRE (sentença proferida no processo principal).
4. A sociedade insolvente indicou, na petição inicial, na qual se apresentou à Insolvência, que teve atividade até março de 2024 (petição inicial).
5. A sociedade insolvente indicou, na mesma petição inicial, que tem um passivo de cerca de 20.000,00 €, sendo 10.000,00 € à Segurança Social e 10.000,00 € à Autoridade Tributária (petição inicial).
6. A sociedade insolvente indicou igualmente, na referida petição inicial, que não dispõe de bens (petição inicial).
7. A sociedade insolvente indicou, na petição inicial citada, que junta como documento nº 4 três últimos IES dos últimos três anos disponíveis e balancete, sendo o acervo contabilístico que dispõe (petição inicial).
8. A insolvente juntou, com a petição inicial, as IES de 2018, 2019 e 2020 e um balancete até março de 2019 (documentos juntos com a petição inicial).
9. Na petição inicial referida a sociedade insolvente requereu que: “A requerente, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 24, n.º 2, b) CIRE, justifica a não apresentação de mais acervo contabilístico, designadamente os três últimos balanços, dado que até à presente data não foi possível obter junto da contabilidade, contando assim com o Administrador Judicial para essa diligência necessária, o que se requer.” (petição inicial).
10. A sociedade insolvente vincula-se com a assinatura da sua gerente, AA (documento n.º 1 junto com a petição inicial nos autos principais).
11. As últimas contas, objeto de depósito na Conservatória de Registo Comercial, da sociedade insolvente, reportam-se ao exercício de 2020, tendo sido objeto depósito em 02.08.2021 (documento n.º 1 junto com a petição inicial do processo principal de insolvência).
12. O administrador da insolvência dirigiu, em 04.12.2024, um email à sociedade Prilva, Contabilidade e Consultoria Fiscal, Lda., na pessoa de CC, pedindo que lhe fossem remetidos os elementos contabilísticos da sociedade insolvente dos anos de 2021 a 2023 e do disponível de 2024 (documento junto nestes autos em 11.12.2024).  
13. Em 06.12.2024, foi renovado o referido pedido, também por email (documento junto nestes autos em 11.12.2024).
14. Em 11.12.2024, foi solicitado novamente o mesmo, por carta registada dirigida à mesma sociedade Prilva, Contabilidade e Consultoria Fiscal, Lda. (documento junto nestes autos em 11.12.2024).
15. Em 10.12.2024, foi informado ao administrador da insolvência, os elementos de acesso ao site das finanças da sociedade insolvente (documento junto nestes autos em 11.12.2024).
16. O último ano em que a sociedade insolvente procedeu à entrega do modelo 22 de IRC foi em 2021, referente ao ano de 2020 (documento junto nestes autos em 11.12.2024).
17. Em 2019 a sociedade insolvente procedeu à cessação de atividade em IVA, mantendo aberta a atividade quanto a IRC (documento junto nestes autos em 11.12.2024).
18. Em 16.12.2024, a sociedade Prilva veio responder ao Administrador da Insolvência nos termos solicitados pelo mesmo, nada mais fornecendo para além dos elementos já disponibilizados anteriormente ao administrador da insolvência (documento junto nestes autos em 16.12.2024).

4. Apreciação do mérito do recurso
Nos termos do art.º 185º, 1ª parte, do CIRE, a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita.
Dispõe, por sua vez, o art.º 186º, nºs 1 e 2, al. d) e 3, que:
“1 – A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 – Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor quando não seja uma pessoa singular quando os seus administradores de direito ou de facto, tenham:
(…)
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Tal como refere Alexandre de Soveral Martins a propósito destes nºs 1 e 2 deste preceito legal:
“… a lei exige que esteja em causa um comportamento de certos sujeitos (o devedor, ou os seus administradores, de direito ou de facto), a existência de dolo ou culpa grave, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência e, por fim, que o comportamento tenha lugar dentro de um certo lapso de tempo.
(…)    
Para auxiliar a tarefa probatória, o CIRE contém o que se pode chamar de duplo sistema de presunções legais. (…) o nº 2 do art.º 186º contém algumas presunções legais de culpa e de causalidade (quanto à criação ou agravamento da situação de insolvência) que não admitem prova em contrário («sempre culposa»).”[1]
É também praticamente uniforme na jurisprudência que, no n.º 2, do art.º 186º, do CIRE, estão em causa presunções juris et de jure, a prova de qualquer uma das situações referidas neste n.º 2, determina a qualificação da insolvência como culposa. Dispensa assim a lei a prova do dolo ou da culpa grave do gerente ou administrador, assim como do nexo de causalidade entre a sua conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, não admitindo estas presunções absolutas prova em contrário, nos termos do art.º 350º, n.º 2, parte final do Código Civil (C.C.) – “Considera-se sempre culposa…”.
No que respeita ao n.º 3, do mesmo preceito, este consagra presunções relativas de culpa grave, presunções ilidíveis, presunções juris tantum, podendo assim ser ilididas mediante prova em contrário, nos termos previstos no art.º 350º, n.º 2, primeira parte, do C.C. - “Presume-se unicamente a existência de culpa grave…”.
Tal como enuncia Catarina Serra, a propósito da alteração do artigo, pela Lei 9/2022, de 11.01, e do aditamento do advérbio “unicamente”, o mesmo “tem o inequívoco propósito de esclarecer que a presunção (relativa) aí consagrada respeita apenas ao requisito da culpa grave e a mais nenhum.”[2] . Resulta assim hoje claro que não prescindiu o legislador da prova do nexo de causalidade exigido pelo n.º 1, do art.º 186º, do CIRE.
Importa, pois, concluir, em primeiro lugar, face ao disposto no n.º 1, do artigo 186º, do CIRE, que são requisitos para que a insolvência seja qualificada como culposa:
- a existência de facto ou factos reportados à atuação ou omissão, pelo devedor ou pelos seus administradores[3], nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
- a culpa qualificada destes, consubstanciada em dolo ou culpa grave;
- a existência de nexo causal entre as referidas atuações e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Quanto ao n.º 2 estabelece o mesmo, como vimos, presunções legais que não admitem prova em contrário de culpa e de causalidade (art.º 350º, n.º 2, parte final do C.C.).
Vejamos em particular a presunção estabelecida na alínea h).
Na referida alínea h) está em causa, em primeiro lugar, como referimos, o incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada.
Importa integrar o conceito indeterminado de incumprimento “em termos substanciais”.
Devemos ter como padrão que essa omissão compromete ou afeta, de modo relevante, as finalidades de manter essa contabilidade organizada, tal como tem sido entendido pela Jurisprudência, designadamente impedindo, impossibilitando ou prejudicando o conhecimento das causas da insolvência ou o agravamento desta[4].
Estando em causa uma sociedade comercial, tem a mesma a obrigação de dispor de contabilidade organizada, nos termos do art.º 123º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC).       
Tal como se enuncia no Acórdão desta mesma secção, de 08.04.2025: “Contabilidade organizada corresponde à escrituração legalmente obrigatória, esta corresponde ao registo contabilístico e este à anotação dos movimentos económicos ou factos contabilisticamente relevantes em ‘livro’/conta própria de acordo com o Sistema de Normalização Contabilística (SNC).”[5]
Esta obrigação visa, desde logo, como decorre da leitura do referido normativo do CIRC, permitir o controlo do lucro tributável.
No que respeita ao nº 3, do art.º 186º, estão em apreciação o dever, por parte dos administradores de direito ou de facto da devedora, de requerer a declaração de insolvência e as obrigações de elaborar contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória de registo comercial.
Assentes estes pressupostos analisemos o disposto no art.º 188º, n.º 1, do CIRE.
Dispõe o mencionado normativo legal que:
“1 - O administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.”
Menciona por sua vez, o art.º 191º, do mesmo diploma legal que:
“1 - O incidente limitado de qualificação de insolvência aplica-se nos casos previstos no n.º 1 do artigo 39.º e no n.º 5 do artigo 232.º e rege-se pelo disposto nos artigos 188.º e 189.º, com as seguintes adaptações:
a) O prazo para o administrador da insolvência ou qualquer interessado alegar o que tiver por conveniente para o efeito da qualificação da insolvência como culposa é, nos casos do n.º 1 do artigo 39.º, de 45 dias contados da data da sentença de declaração de insolvência e, quando aplicável, o prazo para o administrador de insolvência apresentar o seu parecer é de 15 dias;
b) Os documentos da escrituração do insolvente são patenteados pelo próprio a fim de poderem ser examinados por qualquer interessado;
c) Da sentença que qualifique a insolvência como culposa constam apenas as menções referidas nas alíneas a) a c) e e) do n.º 2 do artigo 189.º
2 - É aplicável o disposto no artigo 83.º na medida do necessário ou conveniente para a elaboração do parecer do administrador da insolvência, sendo-lhe designadamente facultado o exame a todos os elementos da contabilidade do devedor.”
Neste caso em concreto, tendo a insolvência sido declarada nos termos do art.º 39º, aplica-se o disposto neste normativo legal.
Sendo assim, aplicando-se o prazo previsto no art.º 191º, n.º 1, al. a), do CIRE, importa antes de mais concluir que o administrador da insolvência cumpriu o prazo previsto neste normativo legal, tendo a insolvência sido declarada em 13.11.2024.
Importa, pois, voltar ao art.º 188º, n.º 1, referido, cabendo analisar em que consiste o juízo de oportunidade concedido por este artigo ao juiz, permitindo-lhe, ou não, declarar aberto o incidente de qualificação de insolvência, salientando-se, em primeiro lugar, que importa distinguir o parecer previsto no art.º 188º, n.º 6 e o requerimento de abertura do incidente, enunciado como já mencionámos no nº 1, do mesmo normativo legal, do CIRE.
Referem Carvalho Fernandes e João Labareda a propósito deste artigo e mais concretamente do seu n.º 1, que está em causa, por parte do juiz, uma “avaliação do mérito (oportunidade!) dos factos alegados”.[6]
Refletiu este n.º 1, do art.º 188º, do CIRE, uma mudança de modelo relativamente ao incidente de qualificação de insolvência, que foi introduzido pela Lei 16/2012, de 20.04, que alterou o anterior paradigma no qual o incidente de qualificação de insolvência era sempre obrigatório.
Na exposição de motivos da proposta de Lei, que veio dar origem a esta Lei 16/2012 (Lei 39/XII), pode ler-se o seguinte: “Outra das novidades consiste na transformação do atual incidente de qualificação da insolvência de carácter obrigatório num incidente cuja tramitação só terá de ser iniciada nas situações em que haja indícios carreados para o processo de que a insolvência foi criada de forma culposa pelo devedor ou pelos seus administradores de direito ou de facto, quando se trate de pessoa coletiva (artigos 36.º, 39.º, 188.º, 232.º e 233.º)”[7].
Ou seja, o que importa aqui analisar é se, no caso em concreto, foram carreados para os autos os referidos indícios, ou nas palavras dos autores citados, a avaliação de mérito dos factos alegados determina ou não abertura do incidente de qualificação de insolvência.
Como se enuncia no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.09.2024, “…do que se trata é apenas da abertura e tramitação do incidente e não da apreciação material dos seus fundamentos, a ter lugar após a fase instrutória, com todas as garantias de defesa, e no âmbito da pertinente decisão jurisdicional, essa sim recorrível nos termos gerais.”
Acrescenta-se ainda no mesmo acórdão que: “Com efeito, no incidente de qualificação da insolvência está em causa a intransigente defesa do interesse público, que importa afincadamente prosseguir e não obstaculizar ou dificultar, no apuramento da responsabilidade dos representantes da sociedade, caso as suas condutas hajam alegadamente promovido, a título culposo, a situação de insolvência da empresa, e desde que seja concretamente exposta nos autos a prática dos actos passíveis de integrar a situação de insolvência culposa.
(…)
segundo o quadro legislativo vigente compete ao tribunal um juízo inicial e prévio sobre a abertura do incidente de qualificação da insolvência que pressupõe unicamente que lhe tenham sido apresentados (neste caso pelo administrador da insolvência) os elementos suficientemente indiciadores da culpa dos responsáveis pela empresa que vem a ser declarada insolvente.”[8]
Feita a análise mencionada no caso em concreto e tendo em consideração todo o referido, a resposta não pode deixar de ser positiva relativamente à existência desses indícios.
Senão vejamos.
Na decisão proferida é mencionado que:
“Analisado o parecer apresentado verifica-se que o Sr. Administrador da Insolvência refere que quem não lhe prestou as informações foi a empresa de contabilidade, que não é a sociedade insolvente. Nada referindo sobre que tenha sido a insolvente que não lhe prestou a colaboração.
Também não demonstra que o A/R a que alude tenha sido entregue, assim como o efectivo recebimento do correio electrónico por parte da mesma empresa.
Acresce que não também não constam do parecer factos que integrem a alínea h) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE e alíneas a) e b) do n.º 3 do mesmo preceito legal. Apesar das informações colhidas da análise dos IES, nada é alegado conforme exige o artigo 186.º, n.º 3 do CIRE, ou seja, que da conduta do administrador resultou a criação ou agravamento da situação de insolvência, antes se requerendo ao Tribunal que se notifique a empresa de contabilidade para apurar se há ou não factos que preencham a qualificação.”
Importa, em primeiro lugar, referir que o administrador de insolvência, em momento algum do seu requerimento, refere a falta de colaboração da insolvente, como aliás se menciona na decisão, nada alegando no que respeita à alínea i), do art.º 186º, do CIRE, não estando aqui em apreciação o disposto na enunciada alínea.
No que concerne à alínea h), está em causa, como vimos, o incumprimento, em termos substanciais, da obrigação da insolvente de manter a contabilidade organizada. E esta obrigação é claramente da insolvente e não de uma qualquer empresa de contabilidade, como resulta claro do disposto no art.º 123, do CIRC, já referido. O mesmo quanto aos deveres de apresentar e depositar as contas previstos na alínea b), do art.º 186º, n.º 3, do CIRE.
Importa ter aqui em consideração, no que concerne as estas últimas obrigações, o disposto no art.º 65º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), que prevê o dever de apresentar contas, sendo que esse dever recai sobre os gerentes ou administradores das sociedades comerciais que estiverem em funções ao tempo da apresentação.
Quanto ao dever de depositar as contas, importa verificar o disposto no n.º 1, do art.º 70.º, do CSC, conjugado com os artºs 3.º, n.º 1, alínea n), 15.º, n.º 1, e 42.º, todos do Código de Registo Comercial (CRC), estando as sociedades comerciais por quotas, como é o caso, obrigadas a efetuar o depósito das contas anuais na Conservatória do Registo Comercial até ao 15º dia, do 7º mês posterior à data do termo do exercício económico.
Tratando-se de um ato de administração da sociedade, este dever cabe aos gerentes e administradores da sociedade.
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei 8/2007, de 17.01, esta é uma das obrigações integradas no IES (art.º 2º, n.º 1, al. c).
Se é certo que como se elenca no já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 08.04.2025 “a elaboração da contabilidade e elaboração das contas anuais são realidades e obrigações distintas, que não se confundem entre si. O que existe é uma relação de dependência da segunda em relação à primeira na medida em que não é possível elaborar as contas anuais (que sejam o reflexo da situação da empresa no termo de cada ano) sem que tenha sido iniciada, elaborada e encerrada a contabilidade referente a esse mesmo ano.”[9], importa concluir que, no caso, face aos elementos carreados pelo administrador de insolvência relativamente à não entrega das IES posteriores a 2020, que existem claros indícios  de que a sociedade insolvente não terá cumprido, “em termos substanciais”, a sua obrigação de manter a contabilidade organizada, desde logo face à possibilidade de uma ausência completa da contabilidade organizada. O mesmo, quanto à ausência de prestação e depósito das contas da sociedade, embora é certo que importará complementar o referido quanto a esta questão, com a alegação de factualidade respeitante à presunção de causalidade da criação ou agravamento da situação de insolvência.
Quanto ao incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência, previsto no art.º 186º, n.º 3, al. a), do CIRE, importa ter em consideração que o prazo para cumprimento da obrigação de apresentação à insolvência, previsto no art.º 18.º, n.º 1, do CIRE, esteve suspenso entre 09.03.2020 e 05.07.2023, por força do disposto, sucessivamente: no art.º 7.º, n.º 6, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redação introduzida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril; no art.º 6.º-A, n.º 6, al. a), da mesma Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redação introduzida pela Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio; no art.º 6.º-B, n.º 6, alínea a), da mesma Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro e no artigo 6.º-E, n.º 7, alínea a), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril.
Cumpre assim ter em consideração que estará em causa, na espécie, sempre um prazo para cumprimento desta obrigação situado entre 06.7.2023 e a data da declaração de insolvência, no caso, 13.11.2024 e também aqui uma necessidade de alegação de factos respeitantes à presunção de causalidade da criação ou agravamento da situação de insolvência, prevista no art.º 186º, n.º 1, do CIRE.
No entanto, também aqui alguns indícios resultam do parecer do administrador da insolvência apresentado: o facto de, em 2019, a sociedade ter procedido à cessação de atividade em IVA, mantendo aberta a atividade quanto a IRC., tendo no entanto a sociedade mantido a sua atividade até março de 2024; a inexistência de bens e a existência de um passivo da sociedade no valor de 20.000,00 €, nos termos referidos na petição inicial, sendo o mesmo reportado a dívidas ao Instituto de Segurança Social e à Autoridade Tributária.
Ou seja, importa concluir, face a todo o referido, que, ao contrário do que se entendeu na decisão proferida pelo tribunal a quo, e nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado, existem, no caso, elementos suficientemente indiciadores da culpa dos responsáveis pela empresa que veio a ser declarada insolvente, que permitem, no juízo de oportunidade previsto no art.º 188º, n.º 1, declarar aberto o incidente de qualificação de insolvência com caráter limitado com afetação da administradora da insolvente.
Importa ainda não esquecer que declarado aberto este incidente cumpre também ao Ministério Público emitir o seu parecer, podendo igualmente o juiz, ao abrigo do princípio do inquisitório previsto no art.º 11º, do CIRE fundar a sua decisão em factos não alegados pelas partes, nomeadamente aqui considerando a factualidade que resulta do processo principal de insolvência.
Assiste assim razão ao recorrente nesta parte, procedendo o recurso apresentado.
Quanto à requerida notificação da empresa de contabilidade para, em prazo a fixar, juntar aos autos os elementos contabilísticos da insolvente, desde 2020 a 2024, resulta do requerimento junto pelo administrador da insolvência em 16.12.2024, que a referida sociedade respondeu, ainda que posteriormente, às solicitações do administrador da insolvência. Não se impõe assim ordenar a referida notificação.
As custas deverão ser suportadas pela massa insolvente, tendo-se em consideração o disposto no art.º 303º, do CIRE (artºs 663º, n.º 2, 607º, n.º 6, 527º, nºs 1 e 2, 529º e 533º todos do CPC.).

5. Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto e consequentemente revoga-se a decisão proferida, determinando-se a abertura do incidente de qualificação de insolvência com caráter limitado com afetação de AA.
Custas pela massa insolvente.
Notifique e registe.
           
Lisboa, 27.05.2025
Elisabete Assunção
Renata Linhares de Castro
Isabel Maria Brás Fonseca
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[1] Um Curso de Direito da Insolvência, Volume I, 4ª edição revista e atualizada, Almedina, págs. 548 e 549.
[2] Revista Julgar, 48, As alterações ao CIRE introduzidas pela Lei, n.º 9/2022, de 11.01, Almedina, pág. 20.
[3] Importando atender aqui ao disposto no art.º 6º, do CIRE.
[4] Entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.03.2025, Proc. n.º 1724/23.0T8AMT-B.P1, Relator Artur Dionísio Oliveira, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2021, Proc. n.º 421/19.5T8GMR-A.G1.S1, Relator Pinto de Almeida, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Proc. n.º 1119/24,8T8FNC-C.L1-1, Relatora Amélia Sofia Rebelo, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª edição, Quid Juris, Sociedade Editora, págs. 685 e 686.
[7] Cf. pág. 6, disponível em: https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=36647
[8] Proc. n.º 6215/22.3T8VNF-G.G1.S1, Relator Luís Espírito Santos, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Cf. nota 5.