VENDA DE IMÓVEL
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
CASA DE HABITAÇÃO
FIEL DEPOSITÁRIO
DESOCUPAÇÃO
RECURSO A FORÇA PÚBLICA
Sumário

I- O facto de a lei determinar, nos termos do artigo 756.º, n.º 1 al. a) do CPC, para onde remete o artigo 150.º n.º 1 do CIRE, que no processo de insolvência seja nomeado fiel depositário, de um dos imóveis apreendidos, o insolvente que nele tenha a sua habitação, não impede que, havendo fundamento justificado, o mesmo possa ser afastado e substituído, com inerente entrega efetiva do aludido imóvel à AI.
II- Competindo à AI nomeada nos autos, no prudente exercício das suas funções, diligenciar por essa entrega e recurso à força policial, se a mesma se afigurar necessária, não padece de qualquer ilegalidade o despacho que tal permite, tanto mais quando resulta dos autos a total falta de colaboração da apelante, que nele permanece, dificultando o acesso ao mesmo e, assim, a sua venda para satisfação dos credores.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-/ Relatório
1. Banco Comercial Português, S.A., intentou ação especial de insolvência contra Herança Aberta por Óbito de AA…, falecido com última residência conhecida na Rua (…).
2. Por sentença proferida em 02/06/2022, foi declarada a insolvência da Herança Aberta por Óbito de AA…, representada pela cabeça de casal BB…, com residência na mesma morada do falecido, na Rua (…), sentença que veio a ser confirmada por decisão de 04/08/2022 deste tribunal da Relação.
3. Em 15/07/2022 foi junto auto de apreensão de bens imóveis (Apenso A), constituído por 16 verbas, sendo um prédio misto (verba 1), oito urbanos (verbas 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9) e sete rústicos (verbas 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16).
4. Após várias vicissitudes nos autos, com vista à localização dos bens apreendidos para a massa, e iniciada a liquidação (apenso B), foi, já nesse apenso, em 16/01/2024, proferido o seguinte despacho:
«Quanto às verbas 3, 4, 5, 6, 7, 8, 13, 14 e 15 do Auto de Apreensão:
Notifique a cabeça de casal e os demais herdeiros da Insolvente Herança aberta por óbito de AA…, para, em 10 dias, prestarem informação acerca da localização exata dos imóveis apreendidos nos presentes autos, sob as verbas nºs 3, 4, 5, 6, 7, 8, 13, 14 e 15 conforme já foram notificados e para o efeito requereram prazo que já foi concedido, advertindo para as consequências da falta de colaboração com o Tribunal, nomeadamente a sua condenação em multa. Notifique».
5. Por email de 31/01/2024, foi solicitado prazo adicional de 30 dias com vista àquela localização, pela Cabeça de Casal, e herdeiros CC… e DD…, sob a alegação, mais uma vez, de dificuldades em obter a localização exata de tais verbas.
6. Em 05/02/2024, foi concedido o requerido prazo de 30 dias e foi ordenada a notificação da AI de tal requerimento.
7. Em requerimento de 15/02/2024, dando informação sobre o estado da venda/liquidação, a Sra. AI consignou que:
«Quanto às verbas 3, 4, 5, 6, 7, 8, 13, 14 e 15 do Auto de Apreensão:
▪ Como os legais representantes da herança ainda não vieram prestar as informações solicitadas junto deste Tribunal no sentido de informarem a localização exata dos supra referidos bens, a ora signatária através de requerimento enviado à Câmara Municipal de Sintra, requereu que lhe fossem facultadas as plantas de localização relativamente às verbas 12, 13, 14 e 15 do Auto de Apreensão – cfr. doc. nº 4 que se anexa, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos;
▪ Por email datado de 17.01.2024, foi solicitado o pagamento dos emolumentos (€ 15,60), para enviar a informação pretendida e disponível. – cfr. docs. nº 5, 6 e 7 que se anexam, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos;
▪ Na posse das plantas de localização, a ora signatária no passado dia 5 de fevereiro/2024, deslocou-se àqueles imóveis, tendo conseguido localizar os mesmos, procedendo ao seu registo fotográfico – cfr. docs. nºs 8 a 11 que se anexam, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos;
▪ Além disso até encontrou indicações de números de telemóveis, numa edificação de cimento, cuja foto se junta, números que pertencem um à Sr.ª DD…. e outro ao falecido AA…, o qual deve ter ficado na posse da cabeça de casal, uma vez que não se encontra desligado.
▪ De qualquer forma significa que os herdeiros sabiam perfeitamente qual a localização dos imóveis (rústicos), não queriam é que a ora signatária os encontrasse.
▪ Quanto aos urbanos, nesse mesmo dia 5 de Fevereiro, dirigiu-se à porta da Cabeça de casal, a Sra. BB…, que após a ora signatária se ter identificado com sendo a Administradora de Insolvência da Herança Aberta por Óbito de AA…, a mesma chamou de imediato a filha, a Sr.ª DD…, chegando à fala com a ora signatária, que mais uma vez referiu não saber a localização de nenhum dos imóveis, dizendo já ter apresentado em tribunal pedido de prorrogação, tendo de seguida entrado dentro da habitação.
▪ Acontece que a ora signatária, não tendo ficado satisfeita com a informação, dirigiu-se a uma vizinha que apareceu, perguntando-lhe se conhecia o falecido AA.., e se sabia se as casas em frente lhe pertenceriam. A resposta foi imediata e concisa: a habitação na qual a cabeça de casal se encontrava era um dos urbanos e bem assim todas as que se encontravam a seguir. A ora signatária em face desta informação foi batendo em todas as portas até que numa delas apareceu um individuo de nome PS.., que perguntado quem era e a que titulo se encontrava ali, pelo mesmo foi referido que era inquilino da Sr.ª BB..., e que pagava € 350,00 por mês, sem contrato e sem recibo. Via-se que o mesmo estava um pouco receoso.
▪ Foi também referido que as outras casitas (porque são pequenas) também estão ocupadas, mas que os seus ocupantes estariam a trabalhar.
▪ Também o prédio misto se encontra naquele mesmo local, mas encontra-se fechado com cadeado, não tendo aparecido ninguém para abrir o mesmo, pelo que a ora signatária necessita de lá voltar para tomar posse dos imóveis, para o que precisa de levar ferramentas e pessoal, a não ser que agora já não se recusem a mostrar e a entregar a posse dos mesmos.
▪ Através dos vizinhos a ora signatária também tomou conhecimento que os herdeiros estariam a esconder diversas alfaias agrícolas no referido prédio misto pelo que a ora signatária para tomar posse do mesmo terá de proceder ao seu arrombamento. – cfr. docs. nºs 112 a 16 que se anexam, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos;
▪ A ora signatária irá já anunciar a venda dos prédios rústicos localizados.».
8. E por requerimento apresentado também no mesmo dia 15/02/2024, a AI, apelando novamente ao descrito em 6., e alegando que os herdeiros identificados, têm, de má-fé, ocultado aquilo que sabiam desde a primeira notificação que lhes foi efetuada, nenhuma razão havendo para qualquer prorrogação de prazo, informou que agendou dia e hora para voltar ao local e tomar posse dos imóveis (urbanos).
9. Por email de 13/03/2024, os identificados herdeiros insistem nas dificuldades de localização, pugnando pela sua boa fé, ao que a Sra. AI respondeu dizendo saber já a localização dos aludidos imóveis, pretendendo apenas que os mesmos, para não recorrer à força pública, lhe sejam entregues pelos herdeiros de forma pacifica e voluntária, livres de pessoas e bens, até porque encontram-se cedidos a terceiros sem para tal exista qualquer autorização.
10. Em 04/04/2024, alegando que os herdeiros se recusam a colaborar na entrega pacífica dos imóveis, a AI veio solicitar autorização de recurso à força policial, para a tomada de posse dos imóveis apreendidos com a consequente mudança de fechaduras.
11. Em 22/04/2024, o mandatário dos herdeiros veio aos autos alegar a insistência e pressão da AI para que identificasse os prédios, argumentando depois que, como a mesma bem sabe, os imóveis encontram-se arrendados, não podendo pôr os inquilinos “na rua” com a mudança de fechaduras, “como quem dá cá aquela palha, pois os inquilinos têm direitos, não podendo o Tribunal ser conivente com estes “desvarios”, não devendo assim ser autorizado o recurso à força policial como pretendido pela Sra. Administradora, impondo-se a sua substituição, por não ter idoneidade para continuar com a sua missão, o que requereu.
12. Em 13/05/2024, a AI pronunciou-se e requereu que a cabeça de casal fosse notificada para apresentar os contratos de arrendamento existentes, para aferir da validade dos mesmos, se são passíveis de resolução, e quais os montantes recebidos pela cabeça de casal desde a data da insolvência, a fim de se requerer a sua entrega à massa, devendo tais valores ser apreendidos. Por outro lado, alega, se os contratos forem efetivamente válidos, é por demais evidente que as rendas terão de passar a ser depositadas à ordem da massa insolvente. Após tal, ponderar-se-á então o pedido da força policial para tomada de posse dos imóveis, mas depois de serem os mesmos verificados, haverá que proceder à sua avaliação a fim de serem colocados à venda.
13. Por despacho de 15/05/2024, foi ordenada notificação da cabeça de casal para no prazo de 10 dias juntar aos autos os contratos de arrendamento existentes, e informar quais os montantes recebidos desde a data da insolvência até à presente data, conforme requerido pela Sr.ª Administradora da Insolvência.
14. Foi solicitada prorrogação do prazo em 27/05/2024 e, por despacho de 29/05/2024, foi determinada a notificação do Ilustre Mandatário dos herdeiros do requerimento por estes apresentado, dando conta que os mesmos dirigem requerimentos diretamente ao Tribunal encontrando-se representados por mandatário, concedendo o prazo de 15 dias requerido para juntarem os contratos de arrendamento em falta.
15. Por despacho de 03/07/2024, foi ordenada a notificação do Ilustre Mandatário dos herdeiros representantes da Herança Aberta por Óbito de AA…, para juntar aos autos os contratos de arrendamento relativos às verbas apreendidas, no prazo de 10 dias, advertindo-se para as consequências da falta de colaboração com o Tribunal, nomeadamente a condenação em multa.
16. E, por despacho de 01/10/2024 foi decidido que:
«No que concerne às verbas 3, 4, 5, 6, 7, 8 do Auto de Apreensão o Tribunal determinou a notificação do Ilustre Mandatário dos herdeiros representantes da Herança Aberta por Óbito de AA…, para juntar aos autos os contratos de arrendamento relativos às verbas apreendidas, no prazo de 10 dias, advertindo-se para as consequências da falta de colaboração com o Tribunal, nomeadamente a condenação em multa. Até à presente data nada foi junto, pelo que se condenam herdeiros representantes da Herança Aberta por Óbito de AA… em multa de 2 UCs por falta de colaboração com este Tribunal, nos termos do artigo 417.º, n.º 2 do CPC e artigo 27.º n.º 1 do RCP.
Notifique incluindo o Ilustre Mandatário e os herdeiros representantes da Herança.
Quanto à situação das verbas 3, 4, 5, 6, 7, 8 do Auto de Apreensão, estas já se encontram localizadas pela Sr.ª Administradora da Insolvência que se deslocou aos imóveis.
Consta, ainda, do requerimento apresentado pela mesma, em 15-02-2024, que apurou que os imóveis se encontram ocupados, tendo recolhido informação que os ocupantes seriam os arrendatários do AA…. e os herdeiros que habitam nos imóveis.
Foi concedido por diversas vezes prazo aos herdeiros para juntarem, quer a localização dos imóveis, quer os contratos de arrendamento ou qualquer outra prova sobre os mesmos, o que até à presente data não fizeram.
À venda de imóveis arrendados em processo de insolvência tem aplicação o n.º 2 do artigo 109.º do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do Código Civil, ou seja, resulta a manutenção do arrendamento (que pode ser verbal) em caso de transmissão do direito com base no qual foi celebrado o contrato de locação, nomeadamente, em caso de alienação em processo de insolvência, sendo que aplicando-se o artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil o arrendamento caduca com a venda, a não ser que seja anterior a qualquer garantia real que se faça valer no processo de insolvência.
Nos presentes autos nada obsta a que prossigam as diligências de venda dos imóveis apreendidos devendo a Sr.ª Administradora da Insolvência apurar da natureza da sua ocupação e encontrando-se os imóveis arrendados ter em consideração tal facto nas formalidades da venda, nada mais havendo a decidir por ora.
Notifique incluindo os herdeiros e o seu Ilustre Mandatário».
17. Por email 07/11/2024 a cabeça de casal requereu prorrogação do prazo, apelando estar em negociações para acordo com o Millennium BCP para pagamento da divida existente.
18. Por requerimento de 08/11/2024, SS…, veio aos autos informar que reside no lote 15A, no M…, quase há sete anos, desde 1 de fevereiro de 2018, ali tendo a sua casa de morada de família com a sua companheira, desconhecendo até à data a pendência destes autos, solicitando que seja reconhecido o arrendamento celebrado com o interveniente acidental, ordenando-se o cumprimento das formalidades da venda para imóveis arrendados no que diz respeito ao imóvel sito na Rua (…)
19. Em 15/11/2024, a AI veio informar o estado da liquidação, consignando, no que concerne às verbas 3,4,5,6,7 e 8 que:
 «Relativamente as estas verbas, a ora signatária no passado dia 15 de outubro voltou a deslocar-se à rua (…), para em cumprimento do douto despacho de 01 de Outubro de 2024, acompanhada do Sr. JV na qualidade de colaborador da Exclusiva Leiloeira, Lda., a ora signatária tentar mais uma vez, de forma cordial tentar o contato quer com a cabeça de casal, BB…, quer com os eventuais ocupantes dos diversos imóveis (verbas supra identificadas) designadamente para novamente tentar falar com a Cabeça de Casal e com as pessoas que estão a ocupar as verbas supra referenciadas.
▪ Não foi possível falar com a cabeça de casal, porque a mesma assim que deu pela minha presença, fechou a porta, e apesar de se tocar por diversas vezes à campainha a mesma não abriu.
▪ Apenas se conseguiu falar com duas pessoas ocupantes de dois dos imóveis: O Sr. SS..., ocupante da casa com o nº 15A e a Sra. TL…, ocupante da casa nº 9, que no momento alegaram ter contrato de arrendamento para ocupar os imóveis. Pedido os comprovativos de tal arrendamento, os mesmos alegaram não os ter à mão. Foi-lhe pedido que a posteriori enviassem para o escritório da ora signatária o que não aconteceu.
▪ Em face da mais uma vez não ter sido dada a devida colaboração, nos passados dias 5 e 7 de novembro/2024, através de carta registada e email, a ora signatária enviou à Cabeça de Casal da herança e bem assim a cada um dos inquilinos residentes nos supra referidos imóveis, solicitou mais uma vez para virem informar a que título ocupam os imóveis e bem assim para juntarem a cópia do contrato de arrendamento no prazo de dois dias, ou caso não tivessem titulo, que deveriam em trinta dias deixar o imóvel em bom estado de conservação, e livre de pessoas e bens e animais de companhia, tudo como melhor consta ou para cujo teor se remete por pura economia processual – cfr. docs. nºs 4 a 10 que se anexam.
▪ Das cartas enviadas, apenas uma teve resposta através de requerimento enviado para o processo pela ilustre advogada, Dra. LD… mandatária do Sr. SS…, com quem a ora signatária já contatou telefonicamente explicando o que se passa no presente processo, tendo havido da sua parte toda a disponibilidade para colaborar e mostrar o imóvel em data a combinar.
▪ A Sr.ª MR… enviou mail para cujo teor se remete tal a falta de educação que do mesmo transparece. Cfr. doc. nº 11.
▪ No dia sete de novembro novamente se enviou carta para a S.ª MR… reiterando o conteúdo da primeira carta enviada, juntando com esta cópia da sentença de declaração de insolvência para aferir da minha legitimidade cfr. doc. nº 12 e 13º, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
Chegados aqui, e atenta a complexidade do presente processo, considerando as informações produzidas e os registos efetuados e em razão dos contactos estabelecidos, não foi ainda possível obter as chaves dos imóveis em causa e o acesso ao seu interior, permanecendo a cabeça de casal os restantes ocupantes a usufruir dos mesmos.
Perante os prazos impostos pelo CIRE e ao carácter urgente que caracteriza os processos de insolvência, a delonga que já tem o presente processo, aliada à impossibilidade de entrada nos imóveis, requer-se mui dignamente a V. Exa que seja proferido despacho que capacite à Administradora de insolvência a utilização das forças policiais locais para a sua concretização, com arrombamento de porta, substituição de fechaduras e retirada das pessoas que estejam no domicílio, permitindo a entrega do imóvel devoluto de pessoas e bens, e animais de companhia se existirem nos termos do disposto na alínea c) do nº 4 do artigo 150º do CIRE.
É entendimento da generalidade das forças policiais que estando na presença de domicílios, o auxílio das autoridades policias carece de prévio despacho judicial, pelo que se deve considerar a aplicação do disposto no n.º 4 do artigo 757.º do CPC».
20. Por despacho proferido em 20/11/2024, decidiu o Tribunal a quo que «Aguarde-se o decurso do prazo do contraditório indeferindo-se, por ora, o auxílio da força pública. Não obstante a natureza urgente dos presentes autos cumpre cumprir as regras processuais do contraditório, porquanto da análise dos autos resulta que não é manifesto que todos os detentores dos imóveis das verbas 3, 4, 5, 6, 7 e 8 mantenham a ocupação dos imóveis sem qualquer título que os legitime, atendendo desde logo ao requerimento junto em 08-11-2024, sendo necessário esclarecer quais são os imóveis arrendados dos que não se encontram arrendados ou dos que se encontram devolutos. Decorridos os prazos de pronúncia conclua os autos.».
21. Tomando posição sobre os requerimentos aludidos em 17 e 18, a AI, em 27/11/2024, veio informar que:
«Requerimento de 07-11-2024 apresentado pela cabeça de casal:
Conforme informação prestada nó último estado de liquidação, não tem existido qualquer colaboração por parte quer da cabeça de casal, quer pelos eventuais arrendatários que ocupam os imóveis apreendidos.
Por isso enviou a ora signatária no passado dia 5 de novembro de 2024, à cabeça de casal da herança e bem assim a cada um dos inquilinos residentes nos supra referidos imóveis, a solicitar mais uma vez para virem informar a que título ocupam os imóveis e bem assim para juntarem a cópia do contrato de arrendamento.
Excetuando o Sr. SS… que veio responder através do requerimento apresentado pela sua douta mandatária, a Cabeça de casal, em vez de dar a informação que lhe foi solicitada, veio dizer que se encontra a ultimar um acordo de pagamento com o banco Exequente Millennium BCP para o pagamento da dívida existente, pedindo consequentemente prazo não inferior a 30 dias para apresentar tal acordo.
Em face deste pedido, a ora signatária contatou a mandatária que representa o credor Millennium no presente processo, sendo que a mesma desconhecia em absoluto tais negociações.
A ora signatária entende que é apenas mais uma manobra dilatória da Cabeça de casal para atrasar o processo.
Senão vejamos: a cabeça de casal se quiser acabar com o processo de insolvência não lhe basta negociar apenas com o Credor Millennium, tem de saber quanto deve aos restantes credores, e quanto deve de custas no âmbito do presente processo, remuneração da ora signatária incluída, e proceder à sua total liquidação.
Também não podemos esquecer que até ao presente a cabeça de casal nunca deu uma resposta que V. Exa tivesse solicitado, a pedido da ora signatária, nem mesmo sob cominação de multa.
Ou seja, a Cabeça de casal não respeita minimamente o tribunal, nem a ora signatária que apenas tenta fazer o trabalho a que se encontra obrigada.
Basta dizer que as outras cartas que foram enviadas aos possíveis arrendatários vieram todas devolvidas.
Existe uma total falta de colaboração, e sem ela não há liquidação.
Entende assim a ora signatária que deve o pedido ser indeferido, e a cabeça de casal mais uma vez ser notificada para vir dar as informações solicitadas.
Se essas informações não forem dadas, e se efetivamente existirem os alegados contratos de arrendamento, é a cabeça de casal que tem recebido indevidamente as rendas que deveriam ser entregues à massa insolvente, desde a prolação da sentença.
• Requerimento apresentado por SS.…
 Tal como foi referido supra, o Sr. SS… foi o único a reagir à carta que lhe foi enviada.
Carta essa que surtiu o efeito desejado. Com a reação do senhor SS… através da sua ilustre mandatária ficou a ora signatária a saber que:
- A utilização do imóvel ocupado pelo Sr. SS…. no lote 15 - A, no M…, tem na sua base um contrato verbal de arrendamento, já desde fevereiro de 2018,
- e que como contrapartida há o pagamento de uma renda mensal acordada no valor de € 200,00 (duzentos euros), embora o recibo de renda que juntam não se encontre assinado pela Cabeça de casal BB…, mas sim por outra pessoa qualquer uma vez que da assinatura nada conseguimos tirar quanto à autora da mesma.
Entretanto a ora signatária já falou com a ilustre mandatária do Sr. SS…, acerca do requerimento por si apresentado, a qual desconhecia em absoluto, bem como o Sr. SS…. que decorria um processo de insolvência, e que o imóvel que ocupava se encontrava apreendido.
Explicações dadas, existe atualmente toda a colaboração para ter acesso ao interior do imóvel e tirar as fotografias necessárias para colocar na plataforma eletrónica, para venda do imóvel.
Mas faltam mais sete frações.
A ora signatária pretendia fazê-lo em todas as frações para evitar perdas de tempo e dinheiro, o que só será possível se de fato a cabeça de casal colaborar, pois só ela sabe a quem arrendou e que montantes cobra a cada um deles.
Entretanto deverá a cabeça de casal entregar à massa insolvente o montante das rendas que andou a receber indevidamente da parte do Sr. SS…, desde julho de 2022 até à presente data e que segundo as informações agora prestadas serão € 5.800,00 (cinco mil e oitocentos euros).
Tal montante deverá ser depositado ou transferido para a conta da massa com o seguinte IBAN (…) – Caixa Económica Montepio Geral, S.A..
- Termos em que se requer a V. Exa que relativamente ao requerimento apresentado pela Cabeça de casal seja indeferido;
- Relativamente ao Sr. SS…. reconhece-se a existência de um contrato de arrendamento, que não impede que o mesmo seja vendido com respeito por todos os normativos legais inerentes a tal venda, e consequente respeito pelos direitos enquanto arrendatário, designadamente um eventual exercício de direito de preferência.
- Requer-se igualmente que seja a cabeça de casal notificada para de imediato entregar à massa insolvente o montante das rendas que andou a receber indevidamente da parte do Sr. SS….., desde julho de 2022 até à presente data e que segundo as informações agora prestadas serão € 5.800,00 (cinco mil e oitocentos euros), montante que deverá ser depositado ou transferido para a conta da massa com o seguinte IBAN (….) – Caixa Económica Montepio Geral, S.A..».
22. Por requerimento de 05/12/2024, a cabeça de casal da herança, dando conta de que constitui novo mandatário nos autos, revogando procuração outorgada aos anteriores, requer que lhe seja concedido prazo adicional de dez dias para exame do processo e pronúncia sobre o requerimento da Sra. Administradora de Insolvência mencionado em 21.
23. A AI, em 17/02/2025, veio aos autos prestar a informação a que alude o n.º 1 do artigo 61.º do CIRE, nos seguintes termos:
«Não resta outra alternativa à ora signatária que não seja a de manter o estado de liquidação que apresentou no passado dia 15 de novembro na medida em que além de não ter sido proferido qualquer despacho sobre o que no mesmo foi requerido, não é possível colocar à venda imóveis sem saber em concreto quais os ónus que sobre os mesmos impendem, sob pena de estar a dar informações não verdadeiras aos potenciais compradores.
Apesar de existir novo mandatário nos autos, continua a não ser prestada informação sobre os contratos de arrendamento, identificação dos arrendatários, quantitativos que indevidamente se encontram a ser pagos à cabeça de casal, ou a quem a representa.
(…)
Quanto às verbas 3, 4, 5, 6, 7, 8 do Auto de Apreensão
Chegados aqui, e em completo desespero de causa, perante os prazos impostos pelo CIRE e ao carácter urgente que caracteriza os processos de insolvência, a delonga que já tem o presente processo, aliada à impossibilidade de entrada nos imóveis, ou pelo menos tomar conhecimento dos ónus que sobre os mesmos impendem, mais uma vez se requer a V. Exa V. Exa que seja proferido despacho que capacite à Administradora de insolvência a utilização das forças policiais locais para a sua concretização, com arrombamento de porta, substituição de fechaduras e retirada das pessoas que estejam no domicílio, permitindo a entrega do imóvel devoluto de pessoas e bens, e animais de companhia se existirem nos termos do disposto na alínea c) do nº 4 do artigo 150º do CIRE.
É entendimento da generalidade das forças policiais que estando na presença de domicílios, o auxílio das autoridades policias carece de prévio despacho judicial, pelo que se deve considerar a aplicação do disposto no n.º 4 do artigo 757.º do CCP».
24. Por despacho proferido em 20/02/2025 foi decidido que:
Requerimento de 17/02/2024: Tendo em consideração as diligências efetuadas pela Sr.ª Administradora da Insolvência e os fundamentos invocados pela mesma, determina-se a entrega das verbas 3, 4, 5, 6, 7, 8 do Auto de Apreensão, no prazo de 30 dias, após a notificação de todos os detentores para entrega dos imóveis pela Sr.ª AI, uma vez que apenas constam dos autos duas notificações (SS… e TR…). Após junção aos autos dos comprovativos das notificações aos ocupantes das verbas pela Sr.ª AI e findo o prazo supra referido, sem que os mesmos sejam entregues voluntariamente, desde já se autoriza a que a Senhora Administradora da Insolvência se socorra do auxílio da força pública, devendo em caso necessário e se existirem necessidades de realojamento acionar as entidades assistenciais e com competência para o efeito (artigo 861.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 828.º, do mesmo código). Notifique os herdeiros da insolvente, Ilustre Mandatário da cabeça de casal e Sr.ª Administradora da Insolvência.».
25. Inconformada com tal decisão veio a insolvente, em 17/03/2025, interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A) Constituindo um dos imóveis apreendidos na insolvência da herança, casa de morada de família do autor da herança e do cônjuge sobrevivo, ora Apelante, que nela mantém a sua habitação efetiva, deve esta ser nomeada depositária do imóvel, por aplicação analógica do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 756.º, do Cód. Proc. Civil, ex vi dos arts.º 862.º e 861.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil e do n.º 5 do artigo 150.º, do C.I.R.E.
B) A não se perfilhar este entendimento a proteção ao cônjuge sobrevivo na insolvência da herança do outro membro do casal seria inferior à que lhe é dispensada na insolvência do cônjuge em vida deste, frustrando o disposto no n.º 1 do artigo 2103º-A, do Cód. Civil, e até menor que a de que beneficiam os arrendatários dos imóveis apreendidos para a insolvência da herança, uma vez que nesses casos são nomeados depositários dos imóveis, podendo neles permanecer até à concretização da liquidação.
C) Ao decidir autorizar a efetiva desocupação do imóvel que constitui a habitação da Apelante, com recurso, se necessário, à força pública, violou o despacho recorrido as disposições legais assinaladas nas Conclusões anteriores, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que determine a nomeação da Apelante como depositária do imóvel apreendido para a insolvência em que reside.
D) O despacho impetrado é, em qualquer caso, nulo, por, contrariando despacho anterior, não ter observado o princípio do contraditório, decidindo a pretensão da Sra. Administradora de Insolvência de desocupação efetiva da habitação da Apelante sem que esta tivesse tido oportunidade de se pronunciar, na medida em que, tendo solicitado prazo adicional para o efeito em consequência da constituição de novo mandatário judicial, não foi tal solicitação objeto de decisão, com o que se violou o disposto no n.º 3 do artigo 3º, do Cód. Proc. Civil e se incorreu na nulidade prevista na 2ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º, do mesmo diploma.
Termos em que deve o presente recurso ser recebido e declarado procedente, e consequentemente, ser revogado o despacho impetrado, na parte em determinou a desocupação e efetiva entrega à Sra. Administradora de Insolvência do prédio em que a Apelante habita, autorizando-se, desde logo, o recurso à força pública, em caso de necessidade, e substituído o mesmo por outro que determine a nomeação da Apelante como depositária do mesmo imóvel, com o que se fará a costumada JUSTIÇA».
26. Não foram apresentadas contra-alegações.
27. Em 20/03/2025, a AI juntou ao apenso A (apreensão) um novo auto de apreensão, corrigido, alegando, para o efeito, ter diligenciado junto do Município de Sintra no sentido de obter os nºs de porta quanto às verbas 2º a 8º do Auto de Apreensão, o que efetivamente conseguiu.
28. Admitido o recurso, nos moldes e efeito adequados, subiram os autos a este tribunal, cumprindo agora proferir decisão, a que nada obsta.
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II-/ Objeto do recurso
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objeto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, não servindo os mesmos para criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas importa decidir sobre a legalidade do despacho recorrido, no que concerne à entrega à AI do prédio em que a apelante habita, com recurso à força pública, em caso de necessidade, e sua invocada nulidade.
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III-/ Fundamentação de facto
Os factos e ocorrências processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os que resultam do relatório supra enunciado, o qual, por brevidade, se dá aqui por reproduzido.

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IV-/ Enquadramento jurídico:
Da leitura das conclusões recursivas verifica-se que a recorrente centra o cerne do presente recurso no facto de ter a sua habitação efetiva num dos imóveis apreendidos na insolvência da Herança Aberta por Óbito de AA…, que, alega, era a casa de morada de família do autor da herança e do seu cônjuge sobrevivo, a aqui recorrente. Assim, argumenta, ao decidir autorizar a efetiva desocupação do imóvel, com recurso, se necessário, à força pública, violou o despacho recorrido as disposições conjugadas dos artigos 756.º n.º 1 al. a) do CPC, ex vi artigos 862.º e 861.º, n.º 1, do mesmo código e n.º 5 do artigo 150.º do CIRE, sendo nulo tal despacho por ter sido proferido sem cumprimento do contraditório.

Vejamos então.
Antes de mais, cumpre atentar que, pelo presente recurso, apenas vem posto em causa o dever de a recorrente entregar o imóvel em que vive à AI, pois, não obstante invocar no corpo das alegações a ocupação de outros imóveis por arrendatários, concluiu as suas alegações recursivas a pedir que seja «revogado o despacho impetrado, na parte em determinou a desocupação e efetiva entrega à Sra. Administradora de Insolvência do prédio em que a Apelante habita, autorizando-se, desde logo, o recurso à força pública, em caso de necessidade, e substituído o mesmo por outro que determine a nomeação da Apelante como depositária do mesmo imóvel».

Ora, no que à nulidade do despacho se reporta, ainda que invocado em último lugar da apelação deduzida, desde já adiantamos que a mesma não se verifica.
Como é consensual na doutrina e na jurisprudência, as nulidades taxativamente enumeradas no artigo 615.º do CPC prendem-se com a violação de regras de estrutura das decisões proferidas pelo julgador (sejam elas sentenças, sejam elas despachos, por aplicação do artigo 613.º do CPC), reportando-se assim a vícios formais das decisões proferidas, que não contendem com o seu mérito, não se confundindo com um qualquer erro de julgamento.
A recorrente, alegando a falta do cumprimento do contraditório, imputa ao segmento recorrido o vício previsto na segunda parte da al. d) do nº 1 do artigo 615.º do CPC, que assim determina «A sentença é nula quando «…. d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Ainda que a questão em causa - prolação de uma decisão com violação do princípio do contraditório -não tenha tratamento consensual na nossa jurisprudência  - tratada, por uns, como nulidade processual, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, e, por outros, por nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, em conformidade com o convocado artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC - certo é que, nos autos, não vemos que tenha sido cometido qualquer tipo de nulidade, o que torna inútil tal discussão.
Com efeito, no caso de que aqui cuidamos, como decorre sobejamente do relatório supra, as concretas vicissitudes do processado até à prolação da decisão em crise, dão conta que a decisão tomada – de entrega à AI das verbas 3, 4, 5, 6, 7, 8 do Auto de Apreensão, no prazo de 30 dias, após a notificação de todos os detentores para entrega voluntária, com autorização a que a AI se socorra do auxílio da força pública - foi mais que uma vez colocada nos autos e discutida no decurso dos mesmos, com constantes pedidos de prorrogações de prazo por parte da cabeça de casal, sem que a mesma tenha, até hoje, minimamente colaborado com a AI, a quem nunca esclareceu quanto à localização dos imóveis apreendidos, ocupação dos mesmos, e a que título, arrendamentos e valores de rendas, não se dignando sequer, como era seu ónus, mesmo agora em sede de recurso, a indicar qual das verbas do auto de apreensão junto aos autos afirma ocupar. O contraditório foi sempre cumprido e a cabeça de casal teve sempre oportunidade de se pronunciar sobre todas as questões sobre os imóveis em causa, mormente o que diz ocupar, e pedido de entrega dos mesmos, pelo que, na economia do despacho recorrido e no concreto contexto processual em que o mesmo foi proferido, sempre tornaria desnecessária, mais uma vez, a audição concreta da cabeça de casal sobre o reiterado pedido da AI, o que sempre configuraria um caso de manifesta desnecessidade de cumprimento do princípio do contraditório (art.º 3.º do CPC).
Sem esquecer que a AI está legitimada por lei para requisitar o auxílio da força pública quando o entende necessário, tal como decorre, desde logo, da al. c) do n.º 4 do artigo 150.º do CIRE, certo é que, o pedido da entrega e o recurso a essa força pública, se necessário, não surgiu pela primeira vez com o despacho que ora se aprecia. Bem pelo contrário. Em face do manifesto comportamento omissivo da recorrente ao longo do processo, a autorização dada, apenas após a prévia notificação para uma entrega voluntária, não comporta em si a nulidade invocada.
Termos em que se conclui pela não verificação da arguida nulidade.

Entrando agora no mérito do despacho, defende a recorrente que o mesmo violou as disposições conjugadas dos artigos 756.º n.º 1 al. a) do CPC, ex vi artigos 862.º e 861.º, n.º 1, do mesmo código e n.º 5 do artigo 150.º do CIRE.

Vejamos se assim é.
Determina o artigo 149.º n.º 1 do CIRE que, proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão (…) de todos os bens integrantes da massa insolvente, estipulando, ao que ao caso agora interessa, o artigo  150º do mesmo código, nos seus n.ºs 1 e 5 que «1. O poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados (…) 5. À desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil.
Da leitura dos aludidos preceitos resulta assim que o AI deve encetar as diligências que repute necessárias para apreender os bens (jurídica e materialmente) que deverão integrar a massa insolvente, localizando-os e providenciando pela sua efetiva entrega, diligências que pode e deve fazer sem estar dependente de qualquer prévia apreciação ou posterior sindicância judicial nesse sentido.

Exceciona, contudo, o convocado artigo 150.º do CIRE, como decorre do texto legal, no seu n.º 1, o estabelecido no artigo 756.º do CPC, que, no que ao caso interessa, estipula, no seu n.º 1 al. a) que «É constituído depositário dos bens o agente de execução ou, nos casos em que as diligências de execução são realizadas por oficial de justiça, pessoa por este designada, salvo se o exequente consentir que seja depositário o próprio executado ou outra pessoa designada pelo agente de execução ou ocorrer alguma das seguintes circunstâncias: a) O bem penhorado constituir a casa de habitação efetiva do executado, caso em que é este o depositário (…)», dispondo, por sua vez, o artigo 862.º do mesmo código, para onde remete o n.º 5 daquele artigo 150.º do CIRE, que «À execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições anteriores do presente título, com as alterações constantes dos artigos 863.º a 866.º».
Deste último normativo resulta então que, em sede de execução para entrega de coisa imóvel arrendada, têm aplicação os artigos 859.º a 861.º (as disposições anteriores do presente título) e os artigos 863.º (suspensão das diligências de entrega efetiva) e 864.º a 866.º (diferimento de desocupação de imóvel arrendado para habitação e termos do diferimento da desocupação).
A ser assim, e como vemos, a remissão feita no processo insolvencial prende-se com “imóvel arrendado”. Não obstante, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE Anotado, Quid Juris, 3ª edição, 2015, pág. 571) defendem que a desocupação forçada da casa de habitação do devedor apenas poderá verificar-se «… quando sobre ela incide algum direito aproveitável à massa, só exercível plenamente com a disponibilização da própria casa, máxime, o de propriedade. Se, como poderá suceder, o devedor for simplesmente inquilino, não há lugar à desocupação, visto que, por virtude do regime próprio do arrendamento urbano, o direito do arrendatário não é transmissível nestes casos (com interesse para o tema, cfr. o disposto no artigo 108.º, n.º 2).».
Neste enquadramento, quando está em causa a entrega da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente à massa insolvente, em face da aludida remissão, o mesmo pode então beneficiar de diferimento de desocupação previsto nos artigos 864.º e 865.º do CPC.

No caso de que aqui cuidamos, a recorrente não deduziu qualquer incidente com vista ao diferimento da desocupação do imóvel em que habita, nenhuma alegação tendo sido também feita sobre a necessidade de ocupação do mesmo, datando de 15/07/2022 o auto de apreensão dos imóveis que integram a massa insolvente, sem que tivesse sido interposta qualquer ação ou pedido para separação de qualquer um dos imóveis apreendidos para a massa.
Não foram invocadas quaisquer razões (sociais, não dispor de outra habitação) para a não entrega do imóvel, que, como sabemos, por apreensão para a massa insolvente, deixou de estar na esfera jurídica da herança.
Limita-se a recorrente a argumentar em recurso que, por força do artigo 756.º n.º 1 al. a) do CPC, ex vi artigos 862.º e 861.º, n.º 1, do mesmo código e n.º 5 do artigo 150.º do CIRE, resulta, imperativamente, que quando o bem apreendido constituir a habitação efetiva do insolvente, é este que deve ser nomeado depositário do imóvel, o que só por si afasta a possibilidade da sua entrega ao administrador de insolvência.
E a tanto não obsta, alega ainda, o facto de tal habitação não ser a casa de habitação do insolvente, dado tratar-se de um património indiviso, nada pondo que, para efeitos de definição do regime legal aplicável, ao cônjuge sobrevivo da pessoa cuja herança é declarada insolvente seja aplicado analogicamente o mesmo regime, sob pena de, não obstante a proteção legal que lhe é conferida, nomeadamente no artigo 2103.º-A, do CC e nos n.ºs 3 e 4 do artigo 10.º, da Lei nº 83/2019, de 3 de setembro, o cônjuge sobrevivo ter menos proteção que o conjugue do insolvente (vivo) ou até mesmo que os arrendatários de bens imóveis do Insolvente.

Não temos como adquirida tal sustentação legal.

Em primeiro lugar, e desde logo, o poder do AI não é limitado, sem mais, pelos normativos citados. Com efeito, a remissão inserta no artigo 150.º do CIRE para os aludidos preceitos do CPC, não tem a virtualidade de limitar o poder do AI de diligenciar para que o bem lhe seja fisicamente entregue.
Como se pode ler no acórdão proferido por esta seção do TRL, em 12/11/2024, relatado por Amélia Sofia Rebelo, no âmbito do proc. 1420/19.2T8BRR-E.L1-1, disponível na dgsi, no qual fomos adjuntas, «Por pertinente ao caso anota-se que no contexto da finalidade imediata do processo de insolvência de cariz liquidatário (conversão do património do devedor em dinheiro) e das características da celeridade e da desjudicialização que em benefício da mesma o legislador lhe atribuiu e justificam as especificidades do seu regime e os poderes-deveres atribuídos ao AI, não se compreenderia que, sendo a massa insolvente integrada por imóvel que constitui casa de habitação do devedor, este pudesse impor e opor ao AI e, assim, aos credores da insolvência, a manutenção dessa qualidade de morador e continuar a beneficiar das utilidades de um imóvel da massa insolvente em detrimento da célere satisfação dos interesses dos seus credores (e até da possibilidade de, na pendência da liquidação e até à sua venda, dele serem retirados rendimentos em benefício da massa insolvente). Da mesma forma que não se compreenderia que o devedor morador, por ser depositário do bem, nessa qualidade (por natureza, de auxiliar da justiça) pudesse obstar ou dificultar o célere cumprimento da liquidação e, assim, a mais rápida satisfação dos direitos do universo dos credores através da pronta realização da venda do bem objeto do depósito a interessado proponente (…). 2. Regime que não contempla exceção quando o imóvel da massa insolvente constitui a casa de habitação do insolvente, relativamente ao qual o poder-dever de apreensão ‘material’ do AI nos moldes expostos sofre apenas as limitações – excecionais e precárias - que decorrem da aplicação dos arts. 861º, 863º a 866º do CPC, por força da remissão para o artigo 862º do mesmo diploma, diretamente operada pelo artigo 150º, nº 5 invocado pela recorrente (…)».
Neste enquadramento, estamos em crer que o facto de a lei determinar que o insolvente deve ser nomeado depositário do imóvel onde efetivamente habita, não obstaculiza, só por si, como pretende a recorrente, a possibilidade da entrega do aludido imóvel ao administrador de insolvência. Não se resultar dos autos que a permanência naquela habitação pode dificultar a sua venda, com os inerentes prejuízos daí resultantes para os credores, pela privação de um aumento patrimonial da massa. É certo que, à partida, a desocupação efetiva só deve acontecer, nas palavras de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (obra e pág. citadas) «quando, pela evolução normal da liquidação, a casa deve ficar disponível para permitir a entrega ao adquirente do direito da massa sobre ela incidente».
Mas se as utilidades que a recorrente retira daquela fração, pela manutenção da sua residência naquele espaço, obstam a que a AI possa aceder à mesma, colocando-a em venda, por falta de colaboração, então aí, a questão insolvencial terá de se sobrepor, na ponderação dos interesses dos credores da massa. O facto de nas situações previstas no citado artigo 756.º, n.º 1 al. a) do CPC, o depositário ser o imposto pelo aludido comando legal, não obsta, até no próprio domínio da lei processual civil, a sua substituição, desde que haja fundamento justificado, nos termos do artigo 761.º do mesmo código (só assim não sendo quando não existe fundamento – ver acórdão do TRL de 11/09/2018, proferido no proc. 12580/17.7T8SNT-D.L1-1, relatado por Ana Isabel Pessoa, disponível em jurisprudência.pt) não podendo impedir, no âmbito do processo de insolvência, o seu afastamento, com inerente entrega do imóvel apreendido para a massa.

É o caso dos autos.
Veja-se que os imóveis em causa no despacho recorrido, que integram a massa insolvente (um dos quais habitado pela recorrente), foram apreendidos em auto lavrado em 15/07/2022, sem que até hoje a AI tenha logrado ter acesso material aos mesmos, por a tanto obstar o facto de a recorrente e alegados terceiros arrendatários neles terem permanecido ao longo da tramitação da insolvência.
Dos autos resulta à saciedade a falta de colaboração da cabeça de casal e demais herdeiros, num processo que há já muito se iniciou, datando a sentença que declarou a insolvência de 02/06/2022, confirmada por esta Relação em 04/08/2022.
Das diligências levadas a cabo pela AI apurou-se que os imóveis que constituem as verbas 3 a 8, se encontram ocupados, entre alegados arrendatários e herdeiros do de cujus.
Foi concedido, por diversas vezes, prazo para ser esclarecida a localização dos imóveis e depois os contratos de arrendamento ou qualquer outra prova sobre os mesmos, com identificação dos arrendatários, o que até à presente data nunca aconteceu.
Desde meados de 2023 que a AI pede que lhe seja facultado o recurso à força pública, o que desde sempre foi questionado nos autos, escudando-se os herdeiros numa alegada dificuldade de localização dos imóveis que bem sabiam onde se encontravam.
A AI nas diligências que fez junto da Câmara Municipal logrou localizar os aludidos bens e desde sempre que a cabeça de casal tem sido questionada sobre a ocupação dos mesmos. Em 22/04/2024, o mandatário dos herdeiros limitou-se a dizer que estavam arrendados, não podendo os inquilinos ser postos “na rua”, sem sequer fazer referência à casa ocupada pela recorrente e a que título. Nunca foram aqueles contratos exibidos de forma a serem escrutinados nem nunca foi dada qualquer explicação sobre aquela ocupação. São evidentes as dificuldades inerentes a um processo de venda dos imóveis apreendidos, quando, como diz a AI, não consegue sequer falar com a cabeça de casal que lhe fecha a porta, nunca tendo tido acesso ao interior dos imóveis, permanecendo a cabeça de casal e restantes ocupantes a usufruir dos mesmos. Como diz, e bem, não é possível colocar à venda imóveis sem saber, em concreto, quais os ónus que sobre os mesmos impendem, sob pena de estar a dar informações não verdadeiras aos potenciais compradores, dificuldades maiores quando nem sequer, diremos nós, sabe o estado dos aludidos imóveis, a que nunca lhe foi facultado acesso, e sua composição.
Em causa neste recurso está apenas a casa habitada pela recorrente, casa que a mesma nem sequer identifica por referência a qualquer uma das verbas aprendidas para a massa insolvente, e que, de resto, foram alvo de correção, como resulta do ponto 27 do relatório supra (atualização feita em termos cadastrais com os respetivos n.ºs de polícia - o prédio situado na Rua (…), propriedade do de cujus, tem como números de polícia, 9, 9A, 11, 13, 15 e 15A), obstando a mesma até hoje ao bom andamento da liquidação e sua célere conclusão.
Se a qualidade de moradora do aludido imóvel implica um atraso na rápida satisfação dos interesses dos credores, dificultando a sua venda, nada impede que a AI, a quem compete otimizar a massa insolvente, no cumprimento das suas funções e em benefício dos credores, diligencie pela sua efetiva entrega, aferindo da necessidade do recurso ao auxílio da força pública, à luz do artigo 150.º n.º 4 al. c) do CIRE.
A AI, mais que uma vez, deu conta nos autos que existe uma total falta de colaboração por parte da recorrente, que não só se encontra a receber indevidamente as rendas dos imóveis apreendidos para a massa (situação apenas regularizada com um dos arrendatários, SS….), como fecha a porta à AI, o que impede a mesma de ter acesso ao interior do imóvel e tirar as fotografias necessárias para colocar na plataforma eletrónica, para venda.
Dentro das exigências da boa-fé não pode deixar de se atender ao tempo já decorrido e às constantes notificações feitas à apelante, justificando assim, tal como decorre do despacho proferido, que a AI, após prévia notificação para entrega voluntária, e mantendo-se a inércia da recorrente, possa recorrer à força pública se assim o entender, com vista à efetiva entrega do imóvel para concretização da sua venda. Não condicionando o CIRE, por não estarmos perante uma execução singular, a realização das diligências de efetiva apreensão dos bens à prévia autorização do juiz da insolvência, forçoso se torna concluir que o despacho recorrido não padece assim de qualquer ilegalidade ao permitir o uso de recurso ao auxílio da força pública, caso tal se venha a mostrar necessário, tanto mais que resulta dos autos que a permanência no imóvel é suscetível de prejudicar a concretização da venda. Ainda que conscientes que o “direito à habitação” é um direito fundamental, constitucionalmente consagrado, importa atentar que o mesmo não pode ser alcançado à custa da violação da lei e dos direitos legítimos dos credores.
Termos em que se conclui pela improcedência do recurso.

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V-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente por não provada, mantendo, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário com que litiga.
Registe e notifique.

Lisboa, 27/05/2025
Paula Cardoso
Susana Santos Silva
Amélia Sofia Rebelo