SUSPENSÃO DOS CORPOS GERENTES
DESTITUIÇÃO DE GERENTE
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
ALTERAÇÃO SUPERVENIENTE
GERENTE
PODERES DE ADMINISTRAÇÃO
Sumário

I. A acção de nomeação e destituição de gerente trata-se de um processo de jurisdição voluntária.
II. Nos processos de jurisdição voluntária as decisões podem ser alteradas com base em alteração superveniente das circunstâncias que as determinaram (art.º 988º, n.º 1, do CPC).
III. Incumbe aos gerentes de uma sociedade a prática dos actos necessários à realização do respectivo objecto social, encontrando-se os poderes daqueles limitados por esse mesmo objecto e ainda pelas deliberações dos sócios e pelo próprio pacto social.
IV. Considerando o objecto da sociedade e nada sendo alegado que permita justificar qualquer outra limitação para além das referidas em III., não há fundamento para limitar os poderes a exercer pelo gerente nomeado pelo tribunal unicamente à prática de actos de administração.

Texto Integral

Acordam na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I- RELATÓRIO
AA, residente …, intentou, ao abrigo do disposto nos arts. 1053º e 1055º do C.P.C., acção especial contra S…, Lda e BB, peticionando:
- a imediata suspensão e destituição das funções de gerente actualmente exercidas pelo réu BB;
- a nomeação de um gerente único à ré, indicando para o cargo CC; - a nomeação de dois representantes comuns para as quotas sociais indivisas que integram a totalidade do capital social da ré, indicando para o efeito DD e EE.
Alegou, em síntese, que a sociedade ré é uma sociedade familiar em que são únicos sócios a autora e o réu, actualmente ex-cônjuges, com uma quota correspondente a 50% do capital cada um.
Mais sustentou que, após o divórcio, o réu desviou parte da actividade da sociedade ré para outra sociedade que constituiu com a sua actual esposa, exercendo uma actividade concorrencial à sociedade ré. Que o réu, pese embora tenha renunciado à gerência da sociedade ré, por força da destituição judicial da autora do cargo de gerente e na ausência de outros gerentes nomeados, passou a exercer novamente as funções de representação da sociedade nos termos do art.º 253.º do C.S.C..
Alegou, ainda, que por força do litígio que os separa e porque a sociedade pode vincular-se com a assinatura de um único gerente, teme que o réu venha a dissipar ou ocultar o património da sociedade, atentos os negócios anteriormente celebrados pelo mesmo em nome da sociedade ré com outras sociedades por si tituladas.
Invocou também que a vida da sociedade se encontra num impasse porquanto as partes mostram-se incapazes de tomar, por acordo, qualquer deliberação, razão pela qual se mostra necessária a nomeação de um representante para cada quota.
Regularmente citados os réus, BB deduziu oposição, impugnando parcialmente os factos alegados e opondo-se à nomeação da pessoa indicada para o cargo de gerente, por um lado, e, por outro, à sua suspensão enquanto representante da sociedade e à nomeação de representantes comuns para as quotas socais.
Notificada da contestação, a A. apresentou requerimento com o seguinte teor:
“1 – Vem dizer o seguinte, ao abrigo do princípio do contraditório:
a) Impugna a tese vertida pelo Requerido BB em sede da sua contestação;
b) De todo o modo, as posições díspares de ambos os sócios da Requerida S…, Lda., demonstradas nos autos de forma evidente, determinam a necessária procedência dos pedidos deduzidos nos presentes autos.”
Em 22/09/2023, foi proferida decisão considerando que a apreciação do pedido para suspender o réu das funções de gerente da sociedade se mostrava inútil “em face da possibilidade de apreciação imediata e definitiva dos demais pedidos formulados e que tutelam em toda a sua extensão a situação que a autora pretendia acautelar mediante a suspensão imediata”. Com esse fundamento foi julgada prejudicada a apreciação da referida pretensão.
Seguidamente foi proferida decisão que, julgando a acção parcialmente procedente e em virtude de a sociedade R. não ter gerentes nomeados:
- nomeou para o cargo de gerente da sociedade requerida S…, LDA., nos termos do disposto no art.º 253.º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais, FF, residente na … e
- declarou improcedente o pedido de nomeação judicial de representante comum de contitulares de participações sociais.
Nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 1053.º do C.P.C., foi determinada a notificação das partes e da pessoa nomeada para, em 10 dias, indicarem o valor que entendem ajustado à remuneração do gerente e juntarem a documentação que tenham por relevante.
Inconformada a requerente interpôs recurso desta sentença, o qual foi admitido, tendo, por acórdão deste tribunal de 09/04/2004, sido anulada a sentença proferida e demais actos dela dependentes na parte em que procedeu à designação para o cargo de gerente único provisório de FF e determinada a sua substituição por outra a proferir depois de realizadas as diligências instrutórias tidas por pertinentes para averiguação da idoneidade das pessoas indicadas para o cargo de gerente.
Foi interposto recurso de revista pelo requerido, o qual não foi admitido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Foi, então, determinado pela Mmª Juíza da 1ª instância que as partes fossem notificadas para, querendo, indicarem as diligências probatórias que reputassem necessárias para que o tribunal pudesse decidir a questão pendente.
O requerido requereu que fosse marcada data para prestação de declarações presenciais de FF, a fim de o Tribunal averiguar da respectiva idoneidade para o exercício do cargo.
A requerente veio requerer que fossem realizadas, entre outras, as diligências probatórias indicadas no requerimento inicial. 
O tribunal proferiu despacho, ordenando a notificação das partes para, em 10 dias, declarem se aceitavam a nomeação de uma terceira pessoa, concretamente um Administrador de Insolvência, para exercer as funções de gerente da sociedade S…, Lda, até à resolução da questão pendente entre os sócios, a saber, a partilha das quotas. Foi consignado no despacho que apenas mediante aceitação expressa das partes seria essa a decisão do tribunal.
O requerido declarou que aceitava a nomeação de uma terceira pessoa, concretamente de um administrador de insolvência para exercer as funções de gerente da sociedade e a requerente AA pronunciou-se no mesmo sentido, requerendo que tal nomeação fosse realizada atribuindo ao gerente meros poderes de administração ordinária.
O requerido pronunciou-se no sentido que o ora requerido pela requerente não tem suporte legal e que devem ser concedidos ao gerente todos os poderes necessários para o desenvolvimento da sua actividade.
Foi proferida decisão, nomeando gerente único provisório da sociedade S…, Lda., o Sr. Dr. GG, para exercer funções até à partilha das quotas entre os sócios e indeferindo o demais peticionado pela requerente por se entender que estava fora do âmbito da decisão que ao tribunal cumpria proferir, uma vez que apenas foi ordenado ao tribunal pela Relação que realizasse “diligências para depois decidir quem deveria ser nomeado para o cargo e não também que fossem limitados os poderes de gestão” e ainda que tal pedido não tinha sido aduzido ab initio. Foi entendido que o poder jurisdicional do tribunal estava limitado ao que foi ordenado por este tribunal de recurso, nada mais podendo apreciar ou decidir.
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Inconformada a requerente AA interpôs recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1ª – Em processo de jurisdição voluntária instaurado nos termos do art.º 1053º do CPC pela Recorrente, esta e Recorrido foram notificados para se pronunciarem sobre a possibilidade de escolha de uma terceira pessoa, mormente um Administrador de Insolvência, sem ligação a qualquer das partes, para exercer as funções de gerente da sociedade S…, Lda., até à resolução da questão pendente entre os sócios, a saber, a partilha das quotas, por se afigurar uma solução adequada e que permitiria uma resolução e desbloqueio rápido da questão.
2ª - A este respeito, o Recorrido veio dizer que “declara que Aceita a nomeação de uma Terceira pessoa”; A Recorrente veio dizer:

3ª - Na sequência da tomada de posição das Partes, o Tribunal “a quo” proferiu Sentença, na qual nomeou Administrador Provisório para a sociedade S… (conforme peticionado nos autos ab initio pela Recorrente, declarando esta que aceita expressamente a Sentença, nessa parte); porém, o Tribunal “a quo” não ordenou o que a Recorrente tinha requerido no ponto 2º atrás transcrito (limitação de poderes do administrador nomeado), por entender que não podia tomar conhecimento dessa questão, pelas seguintes razões:
a) «…este pedido não fora aduzido ab initio” pela Recorrente»;
b) « O mais que agora a Recorrente peticiona está fora do âmbito da decisão que a Tribunal cabe proferir, pois apenas foi ordenado (…)» (em Acórdão da Relação de Lisboa que anulou anterior Sentença que determinava nomeação da pessoa indicada pelo Recorrido como representante da sociedade) «…realizar diligências para depois decidir quem deveria ser nomeado para o cargo e não também que fossem limitados os poderes de gestão.»
4ª - Os presentes autos correspondem a um processo de jurisdição voluntária, relativamente ao qual regem as normas dos artºs 986º a 988º e 1.053º do CPC, sendo que, neste tipo de processos, relativamente às providências a ordenar, “…o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo, antes adotar, em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” – vide art.º 987º do CPC.
5ª – Aplicando a norma do art.º 987º ao caso, temos que, contrariamente ao que se escreve na Douta Sentença recorrida, o facto de inicialmente a Recorrente não ter peticionado a limitação de poderes do Administrador nomeado judicialmente não prejudicava a possibilidade do Tribunal a ter determinado, se julgasse tal limitação “conveniente e oportuna” (Note-se que, a Recorrente não requereu tal limitação ab initio porque requeria que fosse nomeado o filho comum dela e do Recorrido e não um estranho e, relativamente àquela concreta pessoa, não entendia conveniente, nem oportuna, tal limitação. Como em fase ulterior do Recorrente e Recorrido aceitaram a nomeação de uma pessoa da confiança do Tribunal, mas estranho a ambos, tal limitação entende-se “conveniente e oportuna”, pelas razões trazidas aos autos por aquela, conforme atrás se transcreveu).
6ª – A norma do art.º 988º, nº 1, do CPC determina que “Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por motivo ponderoso”.
7ª – Aplicando esta norma ao caso, verificamos que, aquando da prolação da Douta Sentença recorrida, as vicissitudes processuais e factuais eram diferentes das que foram apreciadas pelo Tribunal da Relação (que determinou a anulação da anterior Sentença de nomeação de administrador indicado pelo Recorrido): as partes chegaram, agora, a acordo no sentido de ser nomeada pessoa pelo Tribunal, evitando que o Tribunal tivesse de optar por pessoa escolhida por uma ou por outra Parte.
8ª - De toda a matéria atrás apresentada decorre que a Douta Sentença ora recorrida (na parte da qual se recorre), violou e interpretou erradamente as normas dos artºs 987 e 988º, nº 1 do CPC, bem como as normas dos artºs 608º, nº 2 do CPC e 20º, nº 1 da CRP, as quais deveria ter interpretado e aplicado por forma a:
a) Entender que o Tribunal “a quo” não se encontrava sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo adotar solução concreta que considere mais conveniente e oportuna, pelo que é irrelevante que a Recorrida não tenha requerido, ab initio, a limitação de poderes do Administrador nomeado;
b) Considerar que o teor do Acórdão da Relação de Lisboa proferido nestes autos (que anulou Sentença que nomeou administrador indicado pelo Recorrido e determinou ao tribunal “a quo” a realização de diligências oportunas para nomeação de Administrador) não impede, de modo algum, que o Tribunal “a quo” conheça da oportunidade e conveniência dessa limitação, até porque, posteriormente à prolação daquele Acórdão, ocorreram novas vicissitudes: acordo das Partes em que fosse escolhido pelo Tribunal Administrador que não fosse nem indicado por Recorrente, nem o indicado pelo Recorrido.
c) Tomar conhecimento sobre questão “limitação dos poderes do Administrador nomeado” suscitada pela Recorrente, conforme o Tribunal “a quo” encontra obrigado, em aplicação dos critérios legais de oportunidade e conveniência ao caso concreto que regem este tipo de processos e que consubstanciam um autêntico poder-dever do Tribunal, que deve ser exercido em prol do direito fundamental da Recorrente a um processo justo e equitativo conforme previsto no art.º 20º, nº 1 da CRP e de harmonia com o art.º 608º, nº 2 do CPC (sendo que a última parte desta norma não se aplica a processos de jurisdição voluntária, nos quais o Tribunal não se encontra limitado ao peticionado pelas partes).
9ª - O até agora exposto determina ainda NULIDADE da Douta Sentença recorrida (na parte da qual se recorre), nos termos do art.º 615º, nº1, d), do CPC, pois:
a) As normas dos artºs 987 e 988º, nº 1 do CPC, bem como as normas dos artºs 608º, nº 2 do CPC e 20º, nº 1 da CRP determinam que o Tribunal “a quo” devia ter tomado conhecimento e pronunciar-se relativamente à questão “limitação dos poderes do Administrador nomeado”, apreciando tal questão ao abrigo de juízos fundamentados de oportunidade e conveniência, levando em consideração o caso concreto e as circunstâncias contemporâneas, no momento da prolação da Sentença;
b) O Tribunal “a quo” entendeu, porém, erradamente, que não podia tomar conhecimento dessa questão.
10ª – A Douta Sentença recorrida (na parte de que se recorre) deve assim ser revogada, ordenando-se conforme teor das antecedentes conclusões.
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O R. contra-alegou, CONCLUINDO:
a) A Sentença recorrida não padece de qualquer nulidade;
b) O pedido de restrição de poderes de gerência não está minimamente fundamentado;
c) Nunca o pedido poderia ter sido formulado, nos termos em que o foi, após a prolação da sentença;
d) Nada imponha que o tribunal recorrido apreciasse o pedido nos termos e modo em que foi formulado;
e) A Sentença do tribunal a quo encontra-se devidamente fundamentada de facto e de direito.
Terminou peticionado que seja negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida.
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O recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
A Mmª Juíza a quo pronunciou-se no sentido que a sentença não enferma da nulidade invocada.
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Foram colhidos os Vistos das Exmªs Adjuntas.
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II– OBJECTO DO RECURSO
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela apelante, importa decidir:
- da nulidade da sentença por omissão de pronúncia e
- se deve ser mantida a decisão que entendeu não poder haver lugar à limitação dos poderes de gerência a exercer pelo gerente nomeado pelo tribunal.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A)  Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Sustenta a apelante que a sentença proferida nos autos enferma de nulidade por omissão de pronúncia, em virtude de não ter conhecido da pretensão formulada pela mesma de apenas deverem ser conferidos ao gerente a nomear à sociedade poderes de administração ordinária.
Estabelece o nº 1 do art.º 615º do C.P que a sentença é nula quando:
“(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
(…)”
A omissão de pronúncia está directamente relacionada com o comando fixado nº 2 do art.º 608º do CPC – segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
As questões aqui referidas são as relacionadas com o mérito da causa, balizadas pela pretensão deduzida, pela respectiva causa de pedir e pelas excepções peremptórias invocadas.
As questões a resolver não se confundem com os argumentos aduzidos, sendo constante a jurisprudência dos nossos tribunais no sentido que aquele preceito apenas impõe que o tribunal resolva todas as questões que as partes hajam submetido a julgamento – cfr, entre muitos outros, Ac. STJ, de 16/02/1995, Cons. Ferreira da Silva, BMJ 444, págs. 595 e ss.       
O mesmo é defendido pela doutrina – cfr, entre outros, Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. I, pág. 551, Lebre de Freitas e outros, CPC Anotado, 2ª vol., pág. 646 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 54.
A nulidade da sentença, ou do despacho, com fundamento na omissão de pronúncia só ocorre quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão (e cuja resolução não foi prejudicada pela solução dada a outras).
No caso sub judice, consta da sentença sob recurso que “O mais que agora a requerente peticiona está fora do âmbito da decisão que ao tribunal cumpre proferir, pois apenas nos foi ordenado realizar diligências para depois decidir quem deveria ser nomeado para o cargo e não também que fossem limitados os poderes de gestão.
De resto, este pedido não fora aduzido ab initio, tanto assim que na sentença já proferida por este tribunal e de que foi interposto recurso, essa questão não é abordada.
Note-se que o poder jurisdicional do tribunal está limitado ao que foi ordenado pelo tribunal de recurso, nada mais podendo apreciar ou decidir.
Donde, o pedido agora apresentado, por ir além do que nesta fase cumpre ao tribunal decidir, não pode ser apreciado”.
Da sentença recorrida constam expressamente as razões pelas quais o tribunal da 1ª instância entendeu estar impedido de conhecer da pretensão ora formulada pela requerente – a limitação do poder jurisdicional do tribunal ao que foi determinado pelo tribunal de recurso.  
Atento o referido, é evidente que a sentença não enferma de nulidade por omissão de pronúncia. Coisa diferente é saber se os fundamentos invocados são, ou não, válidos, o que se prende já com o mérito do recurso e que infra serão apreciados.
Nestes termos, entende-se que a sentença não enferma de nulidade por omissão de pronúncia.
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B) De facto
Com relevo para a decisão do presente recurso, encontram-se provados os factos que constam do ponto I (relatório) que, por razões de economia processual, aqui se dão por reproduzidos e ainda, atento o teor da Conservatória do Registo Comercial junta com a petição inicial, o seguinte:
1- A sociedade requerida S…, Lda, tem como objecto, entre outros, o arrendamento e a compra e venda de imóveis urbanos ou rústicos e a revenda dos adquiridos para esse fim.
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C) O Direito
A autora requereu a nomeação de um gerente à sociedade ré, alegando que a mesma não tinha gerentes nomeados. Indicou para exercer o cargo CC, filho mais novo da própria e do R..
Por despacho de 19/06/2023 foi determinada a citação dos requeridos para, querendo, no prazo de 10 dias, deduzirem oposição, oferecerem rol de testemunhas e requererem outros meios de prova, sob pena de se terem por confessados os factos alegados pela requerente, tudo nos termos dos artigos 1055.º, n.º 2, 986.º, n.º 1 e 293.º, todos do Código de Processo Civil.
O requerido BB deduziu oposição, sustentado que deve ter lugar a nomeação de um gerente à sociedade requerida e que deve ser nomeado para exercer tais funções pessoa a indicar pelo tribunal ou “alternativamente” o “anterior sócio FF (conhecedor da actividade societária, da confiança de A. e R. e que já demonstrou total disponibilidade para a nomeação a título provisório)”
Seguidamente foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e nomeando para exercer as funções de gerente único provisório FF.
A requerente interpôs recurso e por acórdão desta relação de 09/04/2024, foi a apelação julgada procedente e declarada nula a decisão proferida na parte em que procedeu à designação para o cargo de gerente único provisório de FF. Foi, então, determinado pela Mmª Juíza da 1ª instância que as partes fossem notificadas para, querendo, indicarem as diligências probatórias que reputassem necessárias para que o tribunal pudesse decidir a questão pendente.
O requerido requereu que fosse marcada data para prestação de declarações presenciais a FF, a fim de o Tribunal averiguar da respectiva idoneidade para o exercício do cargo e a requerente requereu que fossem realizadas as diligências probatórias requeridas no requerimento inicial, bem como outras diligências.
Sem que tivesse chegado a ter lugar a realização de quaisquer das diligências requeridas pelas partes, o tribunal proferiu despacho, ordenando a notificação das mesmas, para, em 10 dias, declarem se aceitavam a nomeação de uma terceira pessoa, concretamente um Administrador de Insolvência, para exercer as funções de gerente da sociedade S…, Lda., até à resolução da questão pendente entre os sócios: a partilha das quotas. Foi consignado no despacho que apenas mediante aceitação expressa das partes seria essa a decisão do tribunal.
O requerido declarou que aceitava a nomeação de uma terceira pessoa, concretamente de um administrador de insolvência para exercer as funções de gerente da sociedade e a requerente AA pronunciou-se no mesmo sentido, requerendo que tal nomeação fosse realizada atribuindo ao gerente meros poderes de administração ordinária.
A acção de nomeação e destituição de gerente trata-se de um processo de jurisdição voluntária.
A jurisdição voluntária implica o exercício de uma actividade essencialmente administrativa, diferentemente da jurisdição contenciosa, que implica o exercício duma actividade verdadeiramente jurisdicional (cfr. Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol. II, pg. 398). Enquanto nos processos de jurisdição contenciosa há um conflito de interesses entre as partes que ao tribunal compete dirimir de acordo com os critérios estabelecidos no direito substantivo, nos processos de jurisdição voluntária há, diversamente, um interesse fundamental tutelado pelo direito (acerca do qual podem formar-se posições divergentes) que ao juiz cumpre regular nos termos mais convenientes e oportunos (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, pg. 69-70).
Assim, nas providências a tomar no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, o juiz não está subordinado a critérios de legalidade estrita, devendo, antes, adoptar as soluções que julgue mais convenientes e oportunas para o caso (art.º 987º do CPC), sem que isso o dispense de respeitar, cumprir e fazer cumprir as normas processuais respectivas.
Para além desta característica, os processos de jurisdição voluntária  têm também outras características próprias de que se destaca a preponderância do princípio do inquisitório na investigação dos factos e na obtenção das provas (art.º 986, n.º 2, do CPC) e a possibilidade de as decisões puderem ser alteradas com base em alteração superveniente das circunstâncias que as determinaram (art.º 988º, n.º 1, do CPC). Estabelece este artigo que Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso”.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 438: “A modificação da decisão anterior implica que o requerente indique a factualidade que sustenta a alteração das circunstâncias, após o que o tribunal efetua uma análise comparativa entre o estado atual das coisas e o que existia aquando da prolação da decisão vigente”.
Também a propósito da alteração das circunstâncias, diz José António Fialho, in Conteúdos e Limites do Princípio do Inquisitório na Jurisdição Voluntária, in https://run.unl.pt/bitstream/10362/19279/1/Fialho_2016.pdf, págs. 28/29, citando o Ac. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19 de Março de 2013, processo n.º 6558/05.0TBGMRD.G1 (ANTÓNIO SANTOS): «A avaliação das circunstâncias supervenientes que podem justificar uma alteração da decisão anterior “pressupõem necessariamente uma análise comparativa entre o estado atual das coisas e aqueloutro que existia aquando do acordo ou da prolacção da decisão em vigor, apenas sendo possível concluir por uma alteração anormal e não apenas uma mera evolução natural e previsível do status quo ante, obrigando o requerente a indicar a factualidade que sustente essa alteração de circunstâncias e devendo fazê-lo de forma concludente e inteligível”».
O critério que permite a alteração da decisão anterior é o da existência de circunstâncias supervenientes, o que incluirá a existência de factos supervenientes, mas com uma maior abrangência.
Como se disse, a requerente requereu a produção de prova e a nomeação do filho da própria e do requerido para exercer as funções de gerente da sociedade S…, Lda. O acórdão anteriormente proferido determinou a realização das diligências instrutórias tidas por pertinentes para averiguação da idoneidade das pessoas indicadas para o cargo, sem prejuízo de o tribunal, após a produção da respectiva prova, poder vir a ponderar a nomeação de uma terceira pessoa, em alternativa a qualquer dos indicados pelas partes.
Após a notificação efectuada pela Mmª Juíza da 1ª instância, para que requerente e requerido declarassem se aceitavam a nomeação de uma terceira pessoa, concretamente um Administrador de Insolvência, veio a ser nomeado para exercer tais funções, apenas com fundamento no acordo das partes e sem que fosse produzida qualquer prova, o Sr. Dr. GG.
Há, assim, uma circunstância que não se verificava aquando da instauração da acção e aquando da prolação do acórdão – a nomeação, por acordo nos termos sugeridos pelo tribunal, de uma pessoa diversa das indicadas pelas partes. Ou seja, ocorreu uma circunstância justificativa da alteração -, pelo que, contrariamente ao que entendeu a Mmª Juíza da 1ª instância, deve ser apreciado o requerido pela requerente quando manifestou o seu acordo à nomeação de um Administrador de Insolvência.
Uma vez que os autos dispõem de todos os elementos para o conhecimento dessa pretensão e ambas as partes já se pronunciaram no que a tal concerne, por força da regra da substituição ao tribunal recorrido estabelecida no art.º 665º, nº 2, do C.P.Civil, cumpre conhecer:
Requereu a requerente que ao gerente nomeado sejam atribuídos meros poderes de administração ordinária – ou seja, que o mesmo não tenha poderes para vender imóveis da sociedade, contrair empréstimos ou praticar actos de disposição.
O requerido opôs-se.
Atento o disposto no art.º 252º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais, a gerência é o órgão a quem compete a administração e a representação da sociedade por quotas. Dividem-se, assim, os poderes dos gerentes das sociedades por quotas em poderes de administração e de representação.
No que concerne aos poderes de administração, os gerentes estão investidos numa competência genérica de gestão da sociedade, «podendo praticar todos os atos necessários ou convenientes para a realização do respetivo objeto (art.º 259º do CSC): como resulta do próprio preceito legal citado, estes poderes, todavia, encontram-se limitados, quer pelo objeto social – não podendo os gerentes praticar atos estranhos ou violadores deste objeto (cf. art.º 6º, nº4, “in fine”, do CSC) sob pena da sua eventual responsabilidade perante a sociedade (arts 72º e segs do CSC) e destituição com justa causa (arts 64º e 257º, nº6, do CSC) -, quer por deliberação dos sócios – não podendo praticar atos que desrespeitem deliberações tomadas pelos sócios em assembleia geral, a quem estão subordinados em virtude de um princípio geral de obediência (…) consagrado na lei (parte final do art.º 259º do CSC) –, quer finalmente pelo próprio pacto social (…)» - cfr O abuso de representação como limite aos poderes dos gerentes, José Engrácia Antunes, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. II, Coimbra Editora, págs 282/283.
 Com efeito, incumbe aos gerentes praticar os actos necessários à realização do respectivo objecto social, encontrando-se tais poderes limitados por esse mesmo objecto e ainda pelas deliberações dos sócios e pelo próprio pacto social. O gerente deve observar deveres de cuidado e de lealdade, devendo actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores – cfr art.º 64º do CSC.
Caso desrespeitem os deveres que lhes incumbem, os gerentes podem vir a ser responsabilizados pelos danos causados à sociedade, gozando de legitimidade para  intentar a respectiva acção a própria sociedade, nos termos do art.º 75.º do CSC, os seus sócios, nos termos do art.º 77.º, n.º 1 do CSC, ou os credores sociais, nos termos do art.º 78.º, n.º 2 do mesmo diploma.
Atento o que fica referido e considerando ainda que do objecto social da requerida faz parte a compra e venda de imóveis, não há fundamento para limitar os poderes do gerente nomeado nos termos requeridos. Estes poderes encontram-se limitados pelo objecto da sociedade e podem ainda vir a sê-lo também por deliberação dos sócios, não permitindo o alegado pela requerente determinar a limitação pretendida.
Assim, embora com fundamentos diversos dos invocados pelo tribunal da 1ª instância, deve manter-se a decisão recorrida. 
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IV- DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente e consequentemente, embora com fundamentação diversa, mantêm a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Registe e Notifique.

Lisboa, 20/05/2025
Manuela Espadaneira Lopes
Ana Rute Pereira
Paula Cardoso