MEIOS DE PROVA
CORREIO ELECTRÓNICO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
SUSPENSÃO
RECURSO
EFEITO
Sumário

1. Ao abrigo do disposto nos artigos 89.º, n.º 1, n.º 3, 83.º, 84.º, n.º 4, 85.º, n.º 3 e 87.º, n.º 3, todos do Regime Jurídico da Concorrência na redação originária (Lei n.º 19/2012, de 08 de Maio) e o artigo 406.º, n.º 1, do Código do Processo Penal, decide-se fixar o efeito devolutivo e subida diferida aos recursos, devendo, inclusive, formar-se um único processo de recursos.
2. Nesta senda, decide-se não conhecer, neste momento processual, dos recursos.

Texto Integral

 Acordam na Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO

Recorrentes/arguidas:
a) BIMBO DONUTS PORTUGAL, LDA. (doravante, Bimbo)
b) MODELO CONTINENTE HIPERMERCADOS, S.A. (doravante, MCH)
c) PINGO DOCE - DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A. (doravante, Pingo Doce)
Recorrida/Entidade Supervisora: Autoridade da Concorrência (doravante, AdC)

1. Por despacho do TCRS de 26-12-2023 (ref.ª 443645), ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, foi decidido, além do mais, o seguinte:
suspendo os presentes autos até à prolação da decisão no processo n.º 71/18.3YUSTR-D proferida em cumprimento da alínea d) do dispositivo do acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional nesses autos, ou durante dois meses, caso tal decisão não seja proferida até ao fim desse prazo”.
2. Mais decidiu o tribunal a quo, em despacho proferido em 24-04-2024 (ref.ª 456917), apreciando requerimento do Ministério Público com a ref.ª 79026 peticionando a formulação de um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, “mantenho a suspensão dos autos, relegando-se a apreciação e decisão do pedido de reenvio prejudicial formulado e das demais questões suscitadas pelos sujeitos processuais intervenientes para o momento processual supra indicado [o trânsito em julgado da decisão final proferida ou a proferir no processo n.º 71/18.3YUSTR-D, do Juiz 3].”.
3. Por sua vez, o PINGO DOCE veio através do requerimento de 27-09-2024, com a ref.ª 84602, requerer ao TCRS, a imediata declaração de nulidade de todas as mensagens de correio eletrónico apreendidas nas buscas que foram realizadas no processo PCR/2016/4, com a consequente nulidade de todos os atos praticados e de todos os meios de prova adquiridos nos autos com base nas mesmas, nos termos dos artigos 32.º, n.º 8, da constituição, 17.º da lei n.º109/2009, 126.º, n.º 3, e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ex vi artigos 13.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Concorrência, e do artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações.
4. Exercido o contraditório quanto ao aludido pedido, foram assumidas nos autos as seguintes posições:
a) A BIMBO aderiu ao pedido – cf. ref.ª 84863, de 07.10.2024;
b) A AUCHAN veio requerer que se defira na totalidade o requerimento apresentado pela Pingo Doce – cf. ref.ª 85479, de 21.10.2024;
c) A MCH declarou acompanhar o requerimento apresentado e a argumentação aí vertida, acrescentando mais argumentos – cf. ref.ª 85485, de 21.10.2024;
d) A AdC pugnou pela improcedência do requerido – cf. ref.ª 85297, de 18.10.2024;
e) O Ministério Público pronunciou-se no sentido de que persiste no pedido de reenvio formulado nos autos, promoveu que seja mantida a suspensão do processo e não promoveu a aplicação imediata do AUJ 12/2024 – cf. ref.ª 494221, de 06.12.2024.
5. Por despacho do TCRS, proferido em 12-12-2024, o pedido em referência foi indeferido, destacando-se aqui as seguintes passagens da respetiva fundamentação:
4. O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 12/2024 não tem efeito de caso julgado nos presentes autos, pois não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, conforme estipula o artigo 445.º, n.º 3, 1.ª parte, do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações.
(…)
7. Contudo, divergimos, com muito respeito, do entendimento aí firmado logo no seu pressuposto inicial. Assim, a jurisprudência fixada tem como premissa primeira a “ausência de disposições próprias no RJC sobre a apreensão de mensagens de correio eletrónico”. Na nossa perspetiva, não é assim, pois o artigo 18.º, n.º 1, alínea c), da Lei da Concorrência, na redação em vigor aquando da realização das diligências de apreensão (antes das alterações introduzidas pela Lei n.º 19/2012, de 08.05), estipulava que a AdC podia, no exercício dos seus poderes sancionatórios, proceder, nas instalações, terrenos ou meios de transporte de empresas ou de associações de empresas, à busca, exame, recolha e apreensão de extratos da escrita e demais documentação, independentemente do seu suporte, sempre que tais diligências se mostrem necessárias à obtenção de prova.
(…)
12. (…) após o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 91/2023 sobreveio o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 533/2024 que voltou a analisar esta questão e que após uma extensão, profunda e necessária reflexão (vertida no capítulo 10 com a epígrafe “Mensagens de Correio Eletrónico e Telecomunicações” e no capítulo 11 com a epígrafe “A Apreensão de Mensagens de Correio eletrónico ao abrigo da Lei da Concorrência (artigo 18.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 19/2012, d 8 de maio”) sobre a realidade relativa às mensagens de correio eletrónico chegou a um entendimento diferente…
(…)
19. (…) O que significa que a resolução definitiva da questão é jusfundamental e neste plano a questão não se pode considerar também definitivamente resolvida, nomeadamente em virtude do recente acórdão do Tribunal Constitucional (…).
20. Para além disso, estão pendentes, conforme já referido em despachos anteriores, os pedidos de reenvio prejudicial C-258/23, C-259/2023 e C-260/23. (…)
21. Em consequência do exposto e com todo o respeito por entendimento contrário, não encontramos razões para adotar o entendimento perfilhado pelas Visadas e para, nessa medida, declarar, de imediato, a nulidade de todas as mensagens de correio eletrónico apreendidas.”.
6. É sobre tal despacho de indeferimento (doravante, o despacho recorrido), que cada uma das ora Recorrentes interpôs recurso.
7. Nos respetivos recursos é alegado, em essência, que o despacho recorrido viola o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 12/2024, para além de ser contrária à posição maioritária expressa pelo Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.ºs 91/2023, 314/2023 e decisão sumária n.º 277/2024.
8. Por despacho de 21-01-2025, ref.ª 503913, o TCRS admitiu o recurso nos seguintes termos “Quanto ao momento e modo de subida trata-se de um recurso com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo do processo – cf. artigo 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 1 e n.º 3, 2.ª parte, ambos do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, tendo em conta que o artigo 89.º, n.º 6 da Lei da Concorrência na redação dada pela Lei n.º 17/2022, de 17.08 não é de aplicação aos presentes autos (cf. artigo 9.º, n.º 1).”.
9. A Recorrida AdC, regularmente notificada para o efeito, respondeu aos recursos, pugnando pelas respetivas improcedências e pela consequente manutenção do despacho recorrido. Mais sustentou que ao recurso deve ser dado efeito devolutivo, em vez do efeito suspensivo declarado pelo tribunal a quo.
10. O Ministério Público junto do TCRS, respondeu ao recurso, pugnando pelo seguinte:
“. o douto despacho recorrido é irrecorrível pelos que os recursos devem ser rejeitados
. subsidiariamente, devem os recursos obter subida diferida
. subsidiariamente, os recursos devem ser julgados totalmente improcedentes, mantendo-se o douto despacho recorrido que não aplicou nem desaplicou o AUJ, sem força obrigatória geral, e manteve a suspensão do processo, relegando em iguais moldes ao já decidido, para momento posterior a resolução da pretensão das visadas.”.
11. O Ministério Público junto deste TRL emitiu parecer, tomando igual posição que o Ministério Público junto do TCRS.
12. A Recorrente MCH pronunciou-se sobre o parecer do Ministério Público por requerimento apresentado em 13-03-2025, defendendo a recorribilidade da decisão, a subida imediata do recurso e respetiva procedência.
13. Foi proferida decisão sumária pelo respetivo Relator (TRL) que decidiu não conhecer, neste momento processual, do presente recurso, fixando o efeito devolutivo aos recursos devendo, inclusive, formar-se um único processo de recursos.
14. De tal decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 417.º, n.º 8, do Código do Processo Penal, reclamaram para a conferência, a Bimbo, a MCH e o Pingo Doce.
15. Na reclamação da Bimbo, pede-se que a “Decisão Sumária reclamada ser revogada e substituída por Acórdão que julgue admissível e, consequentemente, totalmente procedente, o Recurso interposto pela Reclamante”.
16. Na reclamação da MCH, pede-se que “a presente Reclamação ser julgada procedente, revogando-se, em consequência, a Decisão Sumária e ordenando-se o conhecimento imediato do recurso interposto pela MCH em 13.01.2025, atribuindo-lhe efeito suspensivo do processo, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 407.º, n.º 1 e 408.º, n.º 3, do CPP, aplicáveis ex vi artigos 83.º da Lei da Concorrência, 41.º, n.º 1, e 74.º, n.º 4, do RGCO.”.
17. Segundo a reclamação do Pingo Doce, “a decisão sumária reclamada deve ser revogada, determinando-se que se sigam de imediato os demais termos do recurso e seja o mesmo declarado integralmente procedente por acórdão proferido pela conferência”.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
Dos atos processuais relevantes para a decisão a proferir
18. Os atos processuais aqui relevantes estão devidamente descritos supra no Relatório, dando-se aqui por reproduzidas as peças processuais aí referidas.
i. Questão prévia: o despacho recorrido é recorrível e, em caso afirmativo, deve ter efeito devolutivo e subida diferida?
19. Nesta sede, suscitando questões prévias de conhecimento oficioso, concluiu o Ministério Público, de essencial, o seguinte:
“K - O douto TCRS suspendeu a instância recursiva impugnatória com base no artigo 272.º/1/3 do CPC, por via da pendência de recurso de constitucionalidade que versa a conformidade constitucional da norma do artigo 18.º da LdC, e, por considerar que a decisão do TC poderia vir a ter autoridade de caso julgado no processo, assim com impacto na validade da prova consistente em e-mails apreendidos nos autos, na fase administrativa, mediante autorização do MP de Lisboa.
L - Nos termos do disposto no artigo 275.º do CPC que disciplina o regime da suspensão, estabelece-se no n.º 1 do preceito que enquanto durar a suspensão só podem praticar-se validamente os atos urgentes destinados a evitar dano irreparável...
M - Em anotação a este artigo (1) ABRANTES GERALDES | PAULO PIMENTA | PIRES DE SOUSA; CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, VOL I, pode ler-se A suspensão da instância implica naturalmente a inviabilidade de serem praticados os atos processuais que se seguiriam ao evento suspensivo a não ser quando esteja em causa evitar a ocorrência de dano irreparável como sucede nos casos em que se justifique a produção antecipada de prova …
N – O que nunca ocorrerá no processo, pois, o efeito da não aplicação imediata no presente momento processual, em que o julgamento está suspenso, do AUJ, que não foi proferido nos autos, em nada altera a situação do processo, dado que em caso algum haverá produção antecipada de prova: cfr. artigos 64.º a 72.º do RGCO e 87.º da LdC.

R - Em conformidade com o disposto nos artigos 272.º e 275.º do CPC, estando os autos suspensos, a aguardar a consolidação da posição do Colendo TC, seria de esperar que o douto TCRS não exprimisse qualquer argumento substancial quanto aos requerimentos das visadas, optando por manter suspensa a instância, por imodificabilidade dos respetivos fundamentos, tanto mais que como refere no despacho recorrido, o AUJ não é obrigatório e não ser obrigatório significa, também, que não tem de ser aplicado ou desaplicado logo que é proferido, nos processos onde não detém eficácia.

Y - Se o TCRS, em definitivo tivesse conhecido a pretensão das visadas, a decisão seria nula por omissão de pronúncia, dado que a questão do reenvio prejudicial apresentada pelo MP não foi conhecida concomitantemente, tendo sido mantida a decisão de maio de 2023 a relegar o seu conhecimento para momento posterior.
Z - Estando a instância suspensa, o despacho recorrido não deveria ter obtido a fundamentação que foi explanada, tendo, deve considerar-se reconduzida à justificação do não conhecimento de imediato do AUJ no processo, e, reduzir-se o seu sentido ao segmento injuntivo do despacho, que mantém a suspensão da instância.
AA - O despacho recorrido é irrecorrível porque não resolve a questão que lhe é submetida pelas visadas, não tendo o TCRS, nem aplicado, nem desaplicado o AUJ 12/2024 de forma a esgotar o seu poder jurisdicional sobre a validade de prova.
BB – Não sendo recorrível, os recursos interlocutórios das recorrentes devem ser rejeitados.

DD – Não se compreende que tenha sido atribuído efeito suspensivo aos recursos, seja do processo seja da decisão, uma vez que a instância se mantém suspensa, pelo que lógica e racionalmente, nada é possível suspender, já que o despacho de maio de 2023 mantém a sua validade e eficácia.

EE - Por identidade e maioria de razão, se é diferido o momento de subida do recurso do despacho de indeferimento da arguição de nulidade das diligências de busca e apreensão de correspondência eletrónica em processo penal, muito mais garantístico do que o processo de contraordenação, se se considerar que o despacho recorrido é recorrível porque decidiu desaplicar de imediato o AUJ, não declarando de imediato a nulidade da prova, também, o momento de subida do recurso deste despacho interlocutório deve ser diferido, devendo os recursos das visadas ficar retidos até final.”.
20. A AdC, na sua resposta, também pugnou pelo efeito meramente devolutivo do recurso, invocando, para o efeito, jurisprudência do TCRS (processos n.º 227/22.4YUSTR e 184/19.4YUSTR-S), donde se retira, inclusive, que a “a regra passa por os recursos terem efeito meramente devolutivo, se atentarmos para o disposto no n.º 4 do artigo 84.º do RJC e no n.º 4 do artigo 93.º também do RJC.”.
21. Quanto ao efeito e regime de subida do recurso, segundo a Recorrente Bimbo deve “subir em separado, imediatamente e com efeito suspensivo, nos termos do disposto nos artigos 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 1 e 408.º, n.º 3”.  Mais alegou que “deve o presente Recurso subir imediatamente, em decorrência do prescrito pelo artigo 407.º, n.º 1 do CPP, por a sua retenção o tornar absolutamente inútil.”.
22. Quanto ao efeito e regime de subida do recurso, segundo a Recorrente Pingo Doce “deve subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo (cfr. artigos 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 1, e 408.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal – “CPP” –, aplicável por remissão do artigo 74.º, n.º 4, do Regime Geral das Contraordenações – “RGCO” – ex vi artigo 83.º do RJC)”. Também esta Recorrente alega que “Nos termos do artigo 407.º, n.º 1, do CPP, o presente recurso deverá subir de imediato, na medida em que a sua retenção o tornaria absolutamente inútil.”.
23. Por último, a Recorrente MCH, sustentou, na interposição do recurso, que este deve ter “subida imediata, em separado e com efeito suspensivo, nos termos do disposto nos artigos 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 1 e 408.º, n.º 3, todos do CPP, aplicável ex vi artigos 74.º, n.º 4, do RGCO e 83.º da Lei da Concorrência.”.
24. Tais posições foram reiteradas com as reclamações para conferência.
Apreciação da questão pelo presente tribunal
25. O despacho de indeferimento recorrido incidiu, conforme resulta do Relatório, sobre um pedido de imediata declaração de nulidade de todas as mensagens de correio eletrónico apreendidas nas buscas que foram realizadas no processo PCR/2016/4, com a consequente nulidade de todos os atos praticados e de todos os meios de prova adquiridos nos autos com base nas mesmas.
26. Por sua vez, resulta do despacho que admitiu o recurso, proferido pelo tribunal a quo, devidamente descrito no Relatório, que “Quanto ao momento e modo de subida trata-se de um recurso com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo do processo – cf. artigo 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 1 e n.º 3, 2.ª parte, ambos do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, tendo em conta que o artigo 89.º, n.º 6 da Lei da Concorrência na redação dada pela Lei n.º 17/2022, de 17.08 não é de aplicação aos presentes autos (cf. artigo 9.º, n.º 1).”.
27. Este último despacho não vincula o presente tribunal ad quem (cf. artigo 414.º, n.º 3 do Código do Processo Penal, ex vi artigo 13.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Concorrência e artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações).
Da recorribilidade do despacho
28. Saber se o despacho recorrido é ou não válido à luz do previsto no artigo 275.º do Código de Processo Civil, e o sentido que deve ser dado ao mesmo, conforme alegado pelo Ministério Público, são já questões de fundo e não questões que se atém à questão da recorribilidade.
29. Também o conhecimento de uma alegada nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia, para ser conhecida por este tribunal ad quem, pressupõe a recorribilidade da decisão (cf. artigo 379.º, n.º 1, al. c) e n.º 2, do Código do Processo Penal).
30. Por sua vez, resulta indubitável do disposto no artigo 89.º, n.º 1 da Lei da Concorrência na redação dada pela Lei n.º 17/2022 aqui aplicável, que o despacho é recorrível.
31. Com efeito, resulta de tal preceito que “Das sentenças e despachos do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão cabe recurso para o tribunal da relação competente, que decide em última instância.”.
32. Não podem, assim, existir dúvidas sobre a recorribilidade do despacho.
Quanto ao efeito do recurso
33. Conforme já aludido, o recurso em causa é recorrível ao abrigo do disposto no artigo 89.º, n.º 1 do RJC, na versão aqui aplicável.
34. Por seu turno, segundo o artigo 83.º do mesmo regime: “Salvo disposição em sentido diverso da presente lei, aplicam-se à interposição, à tramitação e ao julgamento dos recursos previstos na presente secção os artigos seguintes e, subsidiariamente, o regime geral do ilícito de mera ordenação social.”.
35. Ora, o artigo 89.º, n.º 3 do RJC na redação dada pela Lei n.º 17/2022, não remete expressamente para o artigo 84.º, n.º 4 que prevê o efeito devolutivo do recurso, mas apenas para o disposto no n.º 3 do artigo 85.º (segundo o qual: “Formam um único processo judicial os recursos de decisões interlocutórias da Autoridade da Concorrência proferidas no mesmo processo na fase organicamente administrativa”), para o artigo 86.º (relativo a recursos sobre medidas cautelares) e para os n.ºs 3 e 4 do artigo 87.º (prevendo o n.º 3 do artigo 87.º que “Tendo havido recursos de decisões da Autoridade da Concorrência, nos termos dos artigos 85.º [recursos de decisões interlocutórias] e 86.º, o recurso da decisão final é processado nos autos do único ou do primeiro recurso interposto”, sendo o n.º 4 relativo a recursos de decisão da AdC proferidas após decisão final).
36. Contudo, apesar da falta de remissão expressa do artigo 89.º, n.º 3, para o artigo 84.º, n.º 4, tal como decidido na decisão sumária, mas agora com diferente fundamentação, cremos que o efeito devolutivo aí previsto é o único efeito que faz aqui sentido aplicar.
37. Efetivamente, o artigo 84.º regula os recursos para o TCRS das decisões proferidas pela AdC, estabelecendo o n.º 4 do preceito: “O recurso, incluindo o de decisão interlocutória, tem efeito meramente devolutivo, exceto no que respeita a decisões que imponham medidas de caráter estrutural determinadas nos termos do n.º 4 do artigo 29.º, cujo efeito é suspensivo.” (sublinhados nossos).
38. Resulta do exposto que o recurso de decisão interlocutória da AdC para o TCRS tem, inequivocamente, efeito devolutivo.
39. Como é sabido, das decisões interlocutórias do TCRS cabem, por sua vez, recurso para o presente tribunal, conforme resulta do disposto no artigo 85.º do RJC.
40. O artigo 89.º do RJC regula o recurso quer de sentenças quer de despachos do TCRS, ou seja, quer o recurso final quer os recursos de despachos interlocutórios, sendo omisso, como vimos, quanto ao efeito que deve ser reconhecido a estes últimos.
41. Contudo, o efeito do recurso de decisão interlocutória da AdC para o TCRS tem, inequivocamente, efeito meramente devolutivo. Ora, se tal recurso tem efeito devolutivo junto do TCRS, julga-se que não se pode, só porque se recorre subsequentemente para um tribunal de grau diverso, atribuir-lhe um efeito diverso, em concreto, o efeito suspensivo. Se bem que o Legislador não se tenha expressado de forma perfeita, o certo é que ainda se presume razoável.
42. E cremos que igual raciocínio se deva aplicar, de acordo com o princípio da interpretação sistemática, quando, como é aqui o caso, o recurso é interposto diretamente de um despacho interlocutório proferido pelo TCRS para o tribunal da relação.
43. Nestes termos, há que interpretar o artigo 83.º e 89.º, n.º 3 do RJC no sentido de que o disposto no artigo 84.º, n.º 4 do mesmo regime é aplicável a recursos interlocutórios de decisões proferidas pelo TCRS.
44. Esta dúvida interpretativa foi resolvida pela Lei n.º 17/2022, de 17/08, ao esclarecer, no atual artigo 89.º, n.º 6 que “Aos recursos previstos no presente artigo é aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 84.º…”.
45. Note-se, ainda, que a interpretação quanto ao efeito devolutivo acabada de realizar, é a defendida na doutrina da especialidade (cf. Maria José Costeira e Maria de Fátima Reis Silva, anotação ao artigo 85.º, p. 966, Manuel Simas Santos, anotação ao artigo 89.º, p. 1006, ambos em “Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense”, Coimbra: Almedina, 2017).
46. Nem se diga, contra este entendimento, que padece de inconstitucionalidade. Com efeito, segundo o Ac. TC 142/2025, reiterando posição já tomada anteriormente (Acs. TC 376/2016 e 776/2019), não é inconstitucional “a norma emergente dos n.ºs 4 e 5 do artigo 84.º do Regime Jurídico da Concorrência, aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, na sua redação originária, a qual determina que a impugnação judicial de decisões da Autoridade da Concorrência que apliquem coima tem, em regra, efeito meramente devolutivo, apenas lhe podendo ser atribuído efeito suspensivo quando a execução da decisão cause ao visado prejuízo considerável e este preste caução, em sua substituição”. Ora, se nem o efeito devolutivo de recurso de decisão que aplica uma coima deve ser considerada inconstitucional, por maioria de razão a igual entendimento se chega quando apenas está em causa uma decisão interlocutória, sem a aplicação de quaisquer sanções.
47. Assim sendo, concluímos que o recurso tem efeito devolutivo.
Quanto ao modo de subida do recurso
48. Quanto a modos de subida de recursos, o RJC não contém regras explícitas, quer na versão aqui aplicável, quer na versão atual.
49. Não se descura que o já citado artigo 83.º remete, subsidiariamente, para o Regime Geral das Contraordenações. Contudo, no Regime Geral das Contraordenações, como é sabido, inexistem recursos para o tribunal da relação de despachos daquela natureza (cf. respetivo artigo 55.º, n.º 3).
50. É certo que se poderá interpretar a remissão feita pelo artigo 83.º no sentido de que a remissão para o Regime Geral das Contraordenações visaria não só este regime, mas o regime do Código do Processo Penal.
51. Ou seja, poderá interpretar-se que o Legislador, mais uma vez de forma imperfeita, ao remeter para o Regime Geral das Contraordenações, também quis remeter para o Código do Processo Penal, sabendo-se que o regime de recursos previsto no Código do Processo Penal aplica-se aos recursos contraordenacionais para o tribunal da relação (artigo 74.º, n.º 4, do Código do Processo Penal), mas apenas em matéria de recursos finais.
52. Mas aceitemos esta interpretação até porque a não a aceitar estaríamos, ao que tudo indica, perante uma lacuna.
53. No Código do Processo Penal preveem-se dois regimes de subida dos recursos, nos autos ou em separado (artigo 406.º).
54. Os recursos interlocutórios, por regra subirão nos autos com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa, ou seja terão subida diferida (artigos 406.º, n.º 1 e 407.º, n.º 3).
55. Em separado e de imediato sobem os recursos interlocutórios cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis, conforme previsto no artigo 407.º, n.º 1, e nos casos específicos previstos no n.º 2 do mesmo preceito.
56. O presente caso não encontra qualquer correspondência com as situações previstas no artigo 407.º, n.º 2, do Código do Processo Penal.
57. Resta a possibilidade de subida imediata ao abrigo do disposto no 407.º, n.º 1.
58. Ora, conforme tem sido jurisprudência dos tribunais superiores na interpretação deste normativo “O recurso cuja retenção o torna absolutamente inútil é apenas aquele cuja decisão, ainda que favorável ao recorrente, já não lhe pode aproveitar, por não poder produzir quaisquer efeitos dentro do processo, e não aquele cujo provimento implique a anulação de quaisquer atos, incluindo o do julgamento, por esse ser um risco próprio dos recursos com subida diferida.” (Ac. TRE de 08-05-2024, processo n.º 99/23.1JAFAR-B.E1 e, no mesmo sentido, entre muitos outros, Ac. TRL de 05-04-2011, processo n.º 1473/08.9TASNT-A.L1-5, Ac. TRC de 15-01-2014, processo n.º 197/11.4GBPBL-A.C1 e Ac. TRP de 11-04-2019, processo n.º 8078/02.6TDLSB-A.P1).
59. Nesta esteira, estando aqui em causa a eventual declaração de prova nula, é manifesto que a retenção não torna o recurso absolutamente inútil, pois sempre se poderá, em caso de uma sentença que valore prova nula, anular-se tal sentença, determinando-se que seja proferida outra que respeite a proibição de valoração inerente àquela “nulidade”.
60. Aliás, conforme resulta de uma interpretação sistemática do Código do Processo Penal, as “provas proibidas” são de conhecimento oficioso e podem ser conhecidas em qualquer momento do processo (cf. artigos 118.º, n.º 3, 126.º, 310.º, n.º 2, 449.º, n.º 1, al. e), do Código do Processo Penal).
61. É, pois, manifesto que a retenção do recurso não o torna absolutamente inútil, pelo que se conclui, ao abrigo do Código do Processo Penal, que a subida do recurso seria nos próprios autos e a final (artigo 407.º, n.º 3, do Código do Processo Penal).
62. Ademais, este último entendimento – no sentido de subida diferida do recurso à luz do Código do Processo Penal - não deve considerar-se inconstitucional, pois, concorda-se com o Ac. TC n.º 283/2021, de 12-05-2021 quando este decidiu o seguinte: “Não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 407.º, n.º 1, do CPP, segundo a qual “o recurso interposto da decisão que indefere o requerimento de nulidade das diligências de busca e apreensão de correspondência eletrónica apenas deve subir com o que vier a ser interposto da decisão final””.
63. Apenas um esclarecimento final quanto a uma questão abordada na decisão sumária e relativa à remissão do artigo 89.º, n.º 3 do RJC para o artigo 85.º, n.º 3 e para artigo 87.º, n.º 3 do mesmo diploma, donde resulta que quer os recursos interlocutórios, quer o recurso da decisão final “formam um único processo”.
64. Quanto a este ponto, concluiu-se na decisão sumária que “os recursos interlocutórios devem, portanto, ser todos reunidos num único processo, com subida a final.”.
65. Admite-se, agora, que o facto de se organizar um único processo de recursos pode simplesmente visar a tramitação perante o mesmo juiz, de modo a evitar a contradição de julgados, sem prejuízo de todas as dificuldades práticas daí advenientes (neste sentido, Maria José Costeira e Maria de Fátima Reis Silva, anotação ao artigo 85.º, p. 968-970, Manuel Simas Santos, anotação ao artigo 89.º, p. 1005-1006, ambos em “Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense”, Coimbra: Almedina, 2017).
66. Discorda-se, no entanto, das aludidas autoras quando estas sustentam, sem grandes desenvolvimentos, que os recursos interlocutórios sobre decisões do TCRS sobem imediatamente, ao abrigo do artigo 407.º, n.º 2, al. a) do Código do Processo Penal (obra cit., p. 966).
67. Efetivamente, o que se prevê naquele normativo é a subida imediata de recursos sobre “decisões que ponham termo à causa”. Ora, sustentar-se que uma decisão interlocutória põe termo à causa parece-nos uma contradição.
68. Como se escreveu no Ac. STJ de 01-04-2004, processo n.º 04P1261, debruçando-se sobre os artigos 407.º, n.º 2, al. a) e 408.º, n.º 1, al. a), do Código do Processo Penal: “Na primeira dessas normas, a lei indica que sobem imediatamente os recursos das "decisões que põem termo à causa", englobando aqui os despachos de arquivamento e as sentenças finais; na segunda norma, concede-se efeito suspensivo às "decisões finais" condenatórias, as quais são sempre "sentenças" e nunca meros despachos.”.
69. Esclarecido este último ponto, se bem que, com argumentação nem sempre coincidente, manter-se-á, em essência, o decidido em sede de decisão sumária.
**
III. DECISÃO
Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 89.º, n.º 1, n.º 3, 83.º, 84.º, n.º 4, 85.º, n.º 3 e 87.º, n.º 3, todos do Regime Jurídico da Concorrência na redação originária (Lei n.º 19/2012, de 08 de Maio) e o artigo 406.º, n.º 1, do Código do Processo Penal, decide-se fixar o efeito devolutivo e subida diferida aos presentes recursos, devendo, inclusive, formar-se um único processo de recursos.
Custas pelas Reclamantes/Recorrentes, com taxa de justiça individualmente fixada em 3 UCs (artigo 93.º, n.º 3 do RGCO e artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1 do Código do Processo Penal).
**
Lisboa, 28-05-2025
Alexandre Au-Yong Oliveira
Paulo Registo
A.M Luz Cordeiro