ARRENDAMENTO
CAUÇÃO
DEVOLUÇÃO DO PROCESSO
DIREITO DE RETENÇÃO
Sumário

i) a obrigação do senhorio de devolver a caução ao arrendatário não prescinde da afirmação de que nada por este lhe é devido em sede de execução e de liquidação da relação de arrendamento, nomeadamente, a título de pagamento de rendas vencidas, penalizações, juros moratórios, despesas de reparações por danos causados ou pela substituição de itens perdidos;
ii) o que pressupõe a apresentação do imóvel locado no estado de devoluto, permitindo apurar se assiste ao senhorio o direito a pagar-se pela caução, total ou parcialmente, para fazer face a despesas com as referidas verbas elencadas no contrato de arrendamento celebrado;
iii) o direito de retenção do imóvel é um direito real de garantia que não legitima a prorrogação do gozo da coisa;
iv) por força do princípio da proibição da reformatio in pejus, a decisão do recurso não pode ser mais desfavorável para o recorrente do que a decisão impugnada.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: (…) Portugal, Sociedade Unipessoal, Lda.
Recorridos / Autores: (…) e (…)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual os Autores formularam os seguintes pedidos:
a) ser declarada judicialmente a resolução do contrato de arrendamento existente entre os Autores e a Ré, por falta de pagamento das rendas, superior a 2 meses;
b) ser a Ré condenada a entregar, de imediato, o prédio arrendado, totalmente livre de pessoas e bens;
c) ser a Ré condenada a pagar aos Autores a quantia de € 44.880,00 a título de rendas vencidas e não pagas, acrescida de juros até efetivo e integral pagamento;
d) ser a Ré condenada a pagar a penalização prevista no contrato outorgado em março de 2017, no valor de € 55.320,00, a que acrescem juros vencidos calculados à taxa legal, no valor de € 2.212,80, acrescida de juros até efetivo e integral pagamento;
e) ser a Ré condenada a pagar aos Autores a quantia de € 44.880,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, no valor individual de € 22.440,40, acrescida de juros até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, invocaram que o contrato de arrendamento celebrado com a Ré foi por esta incumprido culposamente. Depois de terem operado duas prorrogações, a Ré pretendeu a prorrogação do contrato apenas por um mês sendo que, perante a pretensão dos Autores de que a renovação seria pelo prazo legal, a Ré invocou a caducidade do contrato, o direito de retenção do imóvel em face do crédito da caução e de reembolso de despesas com obras, mantendo-se no locado sem pagar renda, explorando o estabelecimento de alojamento local ali instalado, privando os Autores de dispor do respetivo bem.
Mais alegaram ter sido celebrada entre as partes promessa de venda do imóvel, que a Ré incumpriu, constituindo-se devedora da correspondente indemnização.
Em sede de contestação, a Ré alegou ter o contrato de arrendamento caducado finda a última prorrogação, relativa ao mês de outubro de 2018, assistindo-lhe direito de retenção por ser credora da caução prestada aquando da celebração do contrato (€ 33.000,00) e dos montantes devidos pelos Autores pelas obras por si feitas no locado.
Concluiu pela improcedência da ação e deduziu reconvenção, sustentando o seguinte:
«a) Ser julgadas procedentes por provadas as exceções invocadas pela Ré e, em consequência ser:
- reconhecido o direito de retenção pela Ré do imóvel até à restituição da caução e dos demais créditos peticionados em sede de Reconvenção;
- declarada a nulidade do pretenso contrato de promessa de compra e venda;
- declarada a ilegitimidade da Ré como supra peticionado.
b) Ser a presente ação julgada improcedente “in totum” por não provada, e, por essa via ser a Ré absolvida de todos os pedidos formulados pelos Autores., com todas as legais consequências;
c) Ser a Reconvenção julgada procedente, por provada, e, em consequência os Autores ser condenados a restituir à Ré a caução entregue nos termos do contrato de arrendamento em apreciação nos autos, no montante de € 33.000,00 (trinta e três mil euros) acrescida de juros à taxa legal em vigor desde a data da cessação do contrato até integral e efetivo pagamento, bem como, condenados a pagar à Ré a quantia total de € 1.893,18 (mil e oitocentos e noventa e três euros e dezoito cêntimos) correspondentes ao valor das obras ainda em dívida e ao valor da coima de IRC.
d) Serem os Autores condenados como litigantes de má-fé, a pagar multa e indemnização à Ré no montante que vier a ser fixado, para pagamento dos prejuízos causados à Ré, entre outros, honorários de mandatário judicial, despesas e custas processuais.»
Os Autores apresentaram réplica.
Os Autores requereram a ampliação do pedido nos seguintes termos:
«1- Ser a Ré condenada a pagar as rendas vencidas desde a data da propositura da ação e vincendas até à restituição do locado;
2- Caso V.ª Ex.ª entenda que existe um direito de retenção a favor dos Réus, ser a Ré condenada a pagar, a título de indemnização pela ocupação do imóvel e com base no abuso de direito de retenção, a renda estipulada no valor de € 4.080,00 desde novembro de 2018 até à restituição do locado deduzido do valor do pedido reconvencional.»
Exercido o contraditório, foi proferida decisão admitindo a ampliação formulada no 1.º ponto e indeferindo o 2.º.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos (designadamente, a prolação de sentença, a interposição de recurso pela R, a prolação de decisão sumária pelo TRE e subsequente acórdão por via do qual resultou anulada a sentença), foi proferida sentença constando do segmento decisório o seguinte:
«(…) julgam-se a presente ação e a reconvenção parcialmente procedentes e condena-se a Ré (…) a pagar aos Autores a quantia de € 179.160,00, a que acrescerá o montante mensal, a título de indemnização, de € 4.080,00 por cada mês até entrega aos Autores do bem locado e identificado em 1 dos factos provados, absolvendo-se a Ré do demais peticionado.
Custas da ação e da reconvenção por Autores e Ré, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 75% para a Ré e 25% para os Autores quanto à ação e inversa proporção (25-75%) quanto à reconvenção.
Absolve-se o interveniente do peticionado.
Absolvem-se os Autores do pedido de condenação por litigância de má-fé, sem se atribuir relevo tributário a esta decisão.»

Inconformada, a Ré apresentou-se a recorrer, pugnando pela parcial declaração de nulidade da decisão recorrida, a substituir por outra que julgue a totalmente procedente o pedido reconvencional, reconhecendo o seu direito de reter o imóvel até à satisfação dos seus créditos e condene os Autores no respetivo pagamento, absolvendo-se de todos os pedidos pelos mesmos formulados. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1. Vem o presente recurso de Apelação interposto da douta sentença proferida em 31 de Outubro de 2024, nos autos à margem referenciados, quanto à parte em que não considerou o direito de retenção invocado pela Ré (…) e condenou-a a pagar a quantia de € 179.160,00, acrescida do montante mensal, a título de indemnização, de € 4.080,00 por cada mês até entrega aos Autores do bem locado, julgando, assim, a ação e a reconvenção parcialmente procedentes.
Porquanto:
2. Analisado o pedido inicial e a ampliação do pedido, verificamos que a douta Sentença, ora recorrida, extravasou o pedido dos Autores, ao condenar a Ré … “(…) a pagar aos Autores a quantia de € 179.160,00, a que acrescerá o montante mensal, a título de indemnização de € 4.080,00 por cada mês até entrega aos Autores do bem locado e identificado em 1 dos factos provados (…)”.
3. Isto porque, não foi admitida a ampliação do pedido feita pelos Autores referente à condenação da Ré no pagamento de indemnização/compensação pela não entrega atempada do locado ou pela privação do uso, pois, o que os Autores pediram foi a condenação da Ré no pagamento de rendas vencidas desde a data da propositura da ação até à restituição do locado, o que é bem diferente.
4. Ora, se o Mmo. Juiz concluiu, em sede do novo julgamento, que assiste razão à Ré ao invocar que o contrato terminou em 31.10.2018 (cfr. n.ºs 16, 17 e 19 dos factos provados), bem como, que estavam todas as rendas pagas até ao término do contrato (cfr. n.º 18 dos Factos provados), forçoso é concluir que os Autores não tinham o direito a reclamar o pagamento de rendas para além do dia 31 de outubro de 2018, nem têm qualquer direito a ser compensados pela retenção do imóvel.
5. Isto porque, in casu, há que atender ao motivo que levou a Ré a não entregar / reter o imóvel no termo do contrato, a saber: “Os Autores recusaram-se a aceitar que o arrendamento tivesse caducado, defendendo que o contrato se mantinha em vigor (…)” (cfr. n.º 25 dos factos provados), e recusaram-se a restituir o valor da caução e a liquidar os demais encargos que a Ré considerava ter direito a receber no termo do contrato (cfr. n.º 26 dos factos provados).
6. Esta conduta dos Autores é que legitimou o exercício do direito de retenção do imóvel até ao pagamento integral do crédito reclamado nos autos, o que até hoje não aconteceu, como é facto assente sob o n.º 38 dos factos provados.
7. Pelo que, errou o Tribunal a quo ao fundamentar a sua tese no disposto no artigo 1045.º do Código Civil para justificar a condenação da Ré no pagamento de indemnização pela não entrega do locado no termo do contrato, quando foi o próprio Mm.º Juiz quem indeferiu a ampliação do pedido neste sentido, ou seja, no sentido da Ré ser condenada a pagar aos Autores uma indemnização pelo abuso do direito de retenção, caso este viesse a ser reconhecido.
8. Ora, já se viu que não foi deferido o pedido de ampliação apresentado pelos Autores, no que a esta parte se refere, pelo que, nos termos do n.º 1 do artigo 609.º do Código de Processo Civil a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que for pedido.
9. Isto porque, o próprio Tribunal a quo entendeu que, não sendo desenvolvimento nem consequência do pedido primitivo, nem resultado de confissão dos Réus, não era admissível face ao disposto no artigo 265.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C..
10. Logo, não poderia condenar a Ré no pagamento aos Autores de uma indemnização, traduzida na compensação pela privação do uso da coisa, à razão de € 4.080,00 (valor da última renda) desde novembro de 2018 até à efetiva entrega do locado.
11. Decisão que se traduz numa frontal violação do princípio do dispositivo, uma vez que não só a condenação extravasa o pedido dos Autores, como contradiz os fundamentos de facto e de direito que subjazem ao despacho de indeferimento do n.º 2 do requerimento de ampliação do pedido.
12. Pelo exposto, nos termos do n.º 1, alínea e) do artigo 615.º do CPC, a sentença ora impugnada é parcialmente nula ao condenar em objeto diverso do pedido formulado pelos Autores, nulidade que se invoca para todos os efeitos legais.
Sem conceder, quanto aos demais fundamentos da decisão sempre se dirá:
13. É convicção da Ré (…) que os fundamentos da nova douta sentença continuam em clara contradição com a decisão, uma vez que os factos dados como provados sob os n.os 1 a 4, 6, 15 a 19, 21 a 29 e 36 a 38, impunham necessariamente decisão diversa da recorrida.
Com efeito,
14. Esclarecido o facto essencial à decisão do mérito da causa, ou seja, o prazo da última prorrogação do contrato de arrendamento para fins não habitacionais, celebrado em 21.03.2013, entre os Autores e a Ré (…) – a saber: 1 mês, com início em 01.10.2018 e termo em 31.10.2018 –, impunha-se a improcedência total da ação e a procedência total do pedido reconvencional da Ré.
Senão vejamos…
15. Ora, é facto assente que o contrato de arrendamento não estava sujeito a renovação automática (facto 2).
16. É também facto assente que o referido contrato sofreu três prorrogações:
- a primeira de 30.04.2016 a 31.01.2017 (factos 2, 4 e 6);
- a segunda de 01.02.2017 a 30.09.2018 (facto 6);
- a terceira de 01.10.2018 a 31.10.2018 (factos 15 a 19).
17. Donde, é facto assente que o contrato de arrendamento, que vigorou entre as partes, terminou no dia 31.10.2018.
18. É também facto assente que os Autores retiveram o valor da caução do contrato de arrendamento, de € 33.000,00, nunca tendo restituído esse valor à Ré (cfr. n.º 38 dos factos provados).
19. Por assim ser, face aos factos provados sob os números 15 a 19 e 38, que impunham decisão diversa, é convicção da Apelante que erra o Tribunal a quo ao considerar que não assiste razão à Ré para reter o imóvel e ao condená-la no pagamento de indemnização aos Autores, verificando-se uma clara oposição dos fundamentos de facto com a decisão proferida.
20. Pelo que, também por esta via, a Sentença ora impugnada enferma de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
Mais se diga que,
21. Tendo presente os factos provados sob os n.os 24 a 26 e 36 a 38, resulta evidente que foi a recusa dos Autores em receber as chaves do imóvel, em proceder à devolução da caução de € 33.000,00 (montante bastante elevado e essencial à formalização da compra de outro imóvel para a continuidade da sua atividade) e em proceder ao pagamento de encargos devidos pela execução de obras, que levou a Apelante a exercer o seu direito de retenção do imóvel.
22. Direito de retenção esse, legitimado nos termos do artigo 754.º do C.C., cujos pressupostos se mantêm inalterados até hoje, uma vez que até à presente data os Autores não devolveram à Ré, ora Apelante, o montante do seu crédito, o qual, pelo menos no que se refere ao valor da caução (€ 33.000,00), é indiscutível.
23. Sendo, unicamente, ao abrigo do direito de retenção que a Apelante se encontrava na posse do imóvel, sublinhando-se, mais uma vez, que à data em que a Apelante exerceu o direito de retenção não havia quaisquer rendas em dívida (cfr. n.º 18 dos factos provados), nem quaisquer créditos dos senhorios que justificassem quaisquer deduções ao valor da caução entregue.
24. Não se compreendendo a decisão do Tribunal a quo ao ter considerado que não assiste razão à Ré, ora Apelante, defendendo, sim, a obrigação da Ré de continuar a suportar uma “contrapartida económica” pela ocupação do imóvel.
25. Tal interpretação da lei, a nosso ver, desvirtua, por completo, a figura jurídica do direito de retenção e, bem assim, acaba por premiar a conduta dos Autores que sempre pretenderam a continuação do contrato de arrendamento, para além do seu termo, com o intuito de não devolver a caução.
26. Ou seja, a decisão, ora impugnada, descaracterizou completamente o direito de defesa da Ré em relação ao seu crédito, em prol de uma compensação pela ocupação do imóvel, que apenas ocorre por culpa exclusiva dos Autores e no âmbito do exercício de um direito da Ré, não havendo dúvidas a este respeito.
27. Direito este que foi exercido no momento próprio, com fundamento legal no crédito que a Ré detinha e, somente, porque os Autores se recusaram a receber o imóvel e a restituir o valor do crédito à Ré.
28. A verdade é que os fundamentos do direito de retenção ainda se mantêm até hoje, concretamente, a existência de um crédito da Ré sobre os Autores resultante do contrato de arrendamento, cujo objeto é o imóvel retido.
29. E não se diga, como o Mmo. Juiz pugna na sua douta sentença, que esta retenção implica uma compensação aos Autores pela privação do uso do imóvel, porque isso seria uma subversão da figura jurídica do direito de retenção, o que não se aceita, mas que acaba por ser o resultado da decisão que ora se impugna, pois exime os Autores de restituírem o valor devido à Ré e ainda lhes permite locupletarem-se à conta desta.
Sem conceder, quanto ao valor da compensação arbitrada, cumpre-nos ainda dizer o seguinte:
30. Desde logo, a delonga do processo não pode e não deve ser imputada à Ré, ora Apelante, a qual não deu azo à demanda e agiu legitimamente quando exerceu o direito de retenção do imóvel.
31. Quem incumpriu as obrigações contratuais foram os Autores e não a Ré.
32. Atente-se ainda que, a delonga do processo deveu-se, em grande parte, aos sucessivos prazos que, sem qualquer pedido de prorrogação, foram sendo repetidamente concedidos aos Autores não obstante já estarem precludidos.
33. Ou seja: o primeiro prazo de 15 dias, concedido em audiência prévia realizada em 04.04.2022; o segundo prazo de 10 dias, concedido por despacho datado de 11.05.2022; o terceiro prazo de mais 10 dias, concedido por despacho de 02.06.2022 e ainda um último de prazo de 10 dias, concedido por despacho de 30.06.2022, todos por iniciativa do Tribunal e sem que tivesse sido pedida pelos Autores qualquer prorrogação, violando estes o seu dever de cooperação com o Tribunal (artigo 7.º, n.º 1, do C.P.C.) e prejudicando o bom andamento do processo.
34. O Tribunal permitiu que a inércia dos Autores levasse ao atraso do desfecho do processo em mais quatro meses, não sendo justo que seja agora a Ré/Apelante, condenada a pagar aos Autores uma “compensação”, que não nos cansamos de repetir que não foi peticionada, calculada com base no valor de uma renda, superior ao valor de mercado e que foi acordada pelas partes apenas para o último mês do contrato, por referência a 52 meses diretamente relacionados com a delonga na tramitação do processo, causada pela inércia dos Autores.
35. Decorre dos factos provados que assiste à Ré o direito de reter o imóvel até à satisfação do seu crédito, pelo que, não pode esta ser obrigada a pagar qualquer compensação ao devedor faltoso, mal seria se assim fosse.
36. Mais ainda quando o próprio Tribunal admite que a caução existe e não foi devolvida, que as obras foram feitas pela Ré e não foram pagas pelos Autores e que “(…) no limite a Ré teria direito a reter o bem (…)” (pág. 21 da douta sentença).
37. Se a Justiça fosse célere, a questão nem se colocava, uma vez que o crédito da Ré era único à data do termo do contrato e do exercício do direito de retenção.
38. Tanto assim é que os Autores não pediram qualquer compensação, nem mesmo se arrogaram no direito de fazer seu o valor da caução, que sempre admitiram ser devida e não a terem restituído.
39. Não pode, assim, a final, o Mmo. Juiz a quo fazer uma compensação entre o crédito que justificou o exercício do direito de retenção, cuja existência é facto dado como provado, e um crédito inexistente à data da entrada da ação.
40. O facto é que o Tribunal a quo socorreu-se de factos posteriormente ocorridos, referindo-se à alegada exploração do imóvel e ao eventual valor que os Autores poderiam ter recebido se não estivessem privados do mesmo (factos nem alegados nem provados), para justificar a “perda” do direito de retenção que, na verdade, bem sabe que foi exercido num momento temporal diferente ao da realidade atual.
41. Salvo o devido respeito, erra o Mmo. Juiz ao basear-se numa alegada “gritante (…) desproporção entre o montante da caução que, no dizer da Ré, justificaria a retenção da coisa e o montante da perda patrimonial dos senhorios, decorrente da privação da coisa (…)” esquecendo-se que deveria julgar os factos à data da entrada da ação e consciente que o imóvel só não está em poder dos Autores porque estes se recusam a liquidar o crédito da Ré até à presente data, o que poderiam ter feito a qualquer momento.
42. Esquecendo-se também que, durante todo este período foi a Ré quem fez a manutenção do imóvel e não o deixou deteriorar-se, facto que, no mínimo, o Mmo. Juiz deveria ter considerado a bem da sua “visão de justiça”.
43. No mais, sem prejuízo de repetição, o Tribunal ignorou a figura jurídica do “direito de retenção” legitimamente exercido pela Ré na data do termo do contrato (artigo 754.º do Código Civil), desconsiderando os factos provados e decidindo, a nosso ver, erradamente por uma infundada compensação do crédito da Ré com um inexistente crédito dos Autores.
44. Termos em que, também nesta parte se verifica existir uma clara oposição dos fundamentos de facto invocados e a decisão proferida, o que consubstancia uma nulidade parcial da sentença, que se invoca nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c).
45. Por último, não pode a Ré conformar-se nem aceitar a interpretação que o Mmo. Juiz a quo faz do pedido reconvencional, na parte em que o valor reclamado se refere a encargos com as obras que se viu obrigada a suportar e que eram da responsabilidade dos Autores..
46. Resulta dos factos assentes sob os números 39 e 40 que a Ré (…) efetuou obras de manutenção no locado, no decorrer do contrato de arrendamento, no montante de € 5.212,99 (cinco mil e duzentos e doze euros e noventa e nove cêntimos), dos quais a Ré suportou o montante de € 1.151,96 (mil, cento e cinquenta e um euros e noventa e seis cêntimos), cabendo aos Autores suportar o remanescente, no valor de € 4.061,03 (quatro mil e sessenta e um euros e três cêntimos), dos quais estes apenas pagaram à Ré o valor de € 2.606,49 (dois mil e seiscentos e seis euros e quarenta e nove cêntimos).
47. Resulta ainda do n.º 2 do requerimento para ampliação do pedido, formulado pelos Autores em audiência de julgamento, que estes aceitaram deduzir a totalidade do pedido reconvencional ao valor da indemnização que entendiam ter direito pela ocupação do imóvel com base num alegado “abuso de direito de retenção”.
48. Ora, daqui se retira a confissão dos Autores de que, para além da caução, deviam ainda à Ré o remanescente do valor peticionado no pedido reconvencional, concretamente, o valor remanescente das obras.
49. Facto este que, pela segunda vez, foi ignorado pelo Tribunal na sua decisão.
50. Ao invés, socorreu-se de meras conjeturas sobre o contrato de arrendamento inicial e o tipo de obras em causa, desvalorizando o acordo entre as partes quanto ao pagamento destas obras específicas.
51. Concluindo, a nosso ver, erradamente, que o facto dos Autores terem aceitado comparticipar na realização das obras, não deverá servir para se argumentar a obrigação de pagarem o remanescente.
52. Donde se conclui, também, nesta parte que os fundamentos de facto estão em oposição com a decisão, consubstanciando, uma nulidade parcial da sentença ora impugnada, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 61.5º do C.P.C..
53. Por todo o supra exposto, entende a Ré (…) que deverá a sentença recorrida ser declarada parcialmente nula, porque condena em objeto diverso do peticionado (alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C.) e a decisão está em contradição com os fundamentos de factos em que se sustenta (alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C.), tudo na parte em que condena a Ré (…) no pagamento aos Autores da quantia de € 179.160,00, a que acrescerá o montante mensal, a título de indemnização, de € 4.080,00 por cada mês até à entrega do bem locado, devendo ser substituída por outra que reconheça à Ré (…) o direito de reter o imóvel objeto do contrato de arrendamento e que condene os Autores na restituição à Ré do valor da caução e no pagamento dos demais créditos peticionados na reconvenção.»
Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
i) da nulidade da sentença;
ii) do direito de retenção da Ré;
iii) do direito de crédito da Ré contra os Autores;
iv) da compensação de créditos.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1- Os Autores são donos do prédio urbano destinado a habitação, composto por cave e rés-do-chão, com adega, lavandaria e logradouro, sito na Urbanização (…), Lote 15, freguesia de (…), concelho de Lagos, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na conservatória do registo predial de Lagos sob o n.º (…), da respetiva freguesia.
2- Em 21/3/2013, Autores e Ré (…) outorgaram contrato de arrendamento (o qual se encontra junto aos autos como documento n.º 3 da p. i.), para fins de estabelecimento de alojamento local, cujo objeto era o prédio anteriormente identificado, pelo período de 3 anos, até 30/04/2016, não se renovando automaticamente, nos termos da respetiva cláusula quarta, mas havendo a possibilidade de ser prorrogado mediante acordo das partes, constando da alínea a) da cláusula 4ª do contrato de arrendamento inicial que “o presente contrato pode ser renovado por um período a negociar entre os senhorios e inquilina, caso a Segunda continue a manter interesse no local arrendado, devendo para o efeito, solicitar a prorrogação do prazo aos senhorios com pelo menos 90 dias de antecedência sobre a data do termo do presente contrato, de que pretende a prorrogação do arrendamento, sendo estipulado nesse dia um novo prazo e novo valor de renda, que será acordado entre as partes”, sendo que o contrato foi objeto de acordos de prorrogação, ao longo dos anos.
3- A renda inicialmente convencionada foi de € 3.000,00 (três mil euros) e foi também estabelecida a opção de compra do imóvel (na cláusula 12ª), pelo valor de € 680.000 (opção a exercer até 1 de junho de 2016), tendo o mesmo sido registado junto da Autoridade Tributária.
4- As partes resolveram proceder à prorrogação do contrato de arrendamento, até 31/10/2016, bem como aumentar o valor da renda mensal para € 4.000,00, tendo ainda sido estabelecido que “A qualquer momento durante esta prorrogação de 6 meses, o 2º Outorgante poderá adquirir a propriedade, objeto deste contrato, no valor de € 680.000,00 (seiscentos e oitenta mil euros) dos 1.os Outorgantes. Esta prorrogação terminará imediatamente após a venda ter sido concluída e a propriedade total do imóvel ter sido transferida para o 2º Outorgante”.
5- Chegando-se a novembro de 2016, a Ré (…) não comprou o imóvel e continuou a pagar a renda.
6- Foi outorgada em 4 de fevereiro de 2017 segunda prorrogação do contrato de arrendamento, desta feita até 30/09/2018 (“começando em 1º de fevereiro de 2017 e terminando em 30 de setembro de 2018”), em que as partes acordaram, ainda, aumentar a renda para o valor mensal de € 4.080,00, com atualização prevista a 01 de janeiro de 2018 “calculado a partir da nova inflação e dos valores do desenvolvimento do aluguer Europeu em relação à 2017”.
7- O mais tardar em março de 2017, a Ré (…), representada por (…), e autores assinaram um contrato denominado Contrato de Compra Promissória (em inglês, Promissary Purchase Contract), o qual se encontra junto como documento n.º 6 da p.i. e cujo objeto era o imóvel arrendado, sendo que o mesmo tinha como data limite o dia 30/09/2018, ali se referindo, designadamente, o seguinte:
«Artigo 1: O Comprador comprará a propriedade do Vendedor.
Artigo 2: O Comprador é obrigado a comprar a propriedade do Vendedor antes do dia 30 de setembro de 2018. O Vendedor é obrigado a vender o imóvel ao Comprador antes do dia 30 de setembro de 2018. Antes do dia 30 de setembro de 2018 é possível sem quaisquer consequências adicionais (exceto que os pré-pagamentos sobre a correção de inflação podem ser interrompidos a partir do momento da escritura final passando o notário), mas depois de 30 de setembro resultará em uma multa para o Comprador.
Artigo 3: O Comprador comprará a Propriedade do Vendedor e pagará o preço de 600.000 euros (seiscentos mil euros) mais uma correção de inflação pela compra do Imóvel. Esta correção da inflação existe de um pagamento mensal de 480 euros, com início em março de 2017 e deve ser pago a cada 1ª dia de cada mês até o dia em que o ato escritura final passa no notário. Isso pode ser anterior a 30 de setembro de 2018, o que significa que este pagamento pode ser interrompido no exato momento da venda real.
Artigo 4: Caso o Comprador não compre o imóvel antes do dia 30 de setembro de 2018, ele irá pagar uma multa ao vendedor de 51.000 euros (cinquenta e um mil euros) e ele não receberá de volta os pré-pagamentos feitos para a correção da inflação.
A penalidade total deve ser paga antes do dia 15 de outubro de 2018. Neste caso, o Vendedor não precisa pagar nenhuma multa e é livre para vender o imóvel a qualquer outro comprador com um aviso de 3 meses ao Inquilino.
Artigo 5: O Vendedor tem a obrigação de vender ao Comprador, mas explicitamente também tem o direito de vender a um terceiro. Neste caso, um aviso de 6 meses será dado ao Comprador, com relação ao período de aluguer, dando ao Comprador tempo e oportunidade de concluir seus negócios na propriedade. No caso da venda a terceiros, o Vendedor pagará uma multa ao Comprador de 51.000 euros (cinquenta e um mil euros). E reembolsará ao Comprador os pré-pagamentos já feitos para a correção da inflação. A penalidade total deve ser paga no prazo de 30 dias após a escritura final ter passado no notário. Neste caso, também o Comprador não precisa pagar nenhuma penalidade.»
8- No documento referido no ponto imediatamente anterior destes factos provados faltam: a identificação completa da Ré (não mencionando a denominação da firma com o seu número de matrícula e pessoa coletiva), a identificação completa do imóvel, com referência à inscrição matricial, descrição predial e número, data e entidade emissora do Alvará de utilização, o local da sua celebração e local e data da sua assinatura, o reconhecimento presencial de assinaturas, o encargo, e a identificação da parte a quem tal cabia, de marcar a escritura prometida, os prazos de notificação à contra-parte a observar para o cumprimento da promessa, nada se tendo convencionado sobre a data, a hora e local da celebração do contrato prometido.
9- O documento identifica o imóvel como:
“A “Propriedade” neste Contrato de Compra Promissória tem os seguintes detalhes:
O endereço da propriedade é em Urbanização / Rua da (…), lote 15, 8600-546 Lagos, Portugal, com os seguintes detalhes: a serem preenchidos mais tarde são detalhes da parcela e edifício/propriedade, número de licenças da Câmara Municipal de Lagos, Registo Predial e Finanças, etc.”. 10- O documento identifica como “Comprador” (…), NIF: (…), nascido 30-07-1978, passaporte n.º (…), representando a si próprio e a sua empresa (…), Lda., localizada na Rua da (…), lote 15, 8600-546 Lagos, Portugal.
11- Desde março de 2017 a, pelo menos, janeiro de 2018, a Ré efetuou os pré-pagamentos por conta da taxa de inflação, descritos na cláusula 3 do “Contrato de Compra Promissória”, no valor mensal de € 480,00.
12- A Ré gerou nos Autores a expectativa de compra e venda do imóvel.
13- A escritura de compra e venda não se realizou em setembro de 2018, e a Ré (…) manteve-se a ocupar o imóvel pagando as rendas.
14- Em maio e junho de 2018 a Ré (…) não pagou a renda, situação que regularizou em 3/7/2018, e o mês de julho só foi pago no dia 10 desse mês.
15- Em 09/07/2018, a Ré solicitou aos Autores a prorrogação do prazo em curso, por mais um mês, até ao final da época do alojamento turístico, concretamente 31 de outubro de 2018.
16- No dia 11/7/2018, depois de recebidas as rendas em atraso de maio, junho e julho, os Autores contactaram a Ré (…) mostrando o seu acordo no sentido de prorrogar o arrendamento, na condição de os termos do arrendamento em curso serem integralmente cumpridos, e sendo que nenhuma data ou termo foi explicitamente mencionado referindo-se nessa comunicação, designadamente, que:
“Em relação à prorrogação do aluguel após setembro de 2018:
Sim, você pode alugar nossa propriedade após setembro de 2018, mas somente se todos os Termos e Condições do contrato existentes forem totalmente cumpridos. Nós não vamos mudar nada disso, nem queremos isso.
Observe também que a lei geral de propriedade (aluguel) de Portugal é aplicável sob todas as circunstâncias. Onde o contrato existente é complementado e / ou substituído / mudou, se aplicável.
Então sim, sob estas condições você pode alugar depois de setembro de 2018.”
17- A Ré, sendo que a Ré (…), em 25/07/2018, respondeu o seguinte: “Obrigado pela sua resposta. Apenas para confirmar, vamos alugar a propriedade de outubro de 2018 para um valor de aluguel de 4.080,00 euros.”
18- A Ré (…) pagou a renda dos meses de agosto e setembro referentes ao contrato anterior e o mês de outubro de 2018, relativo à prorrogação referida em 16 destes factos provados, que os Autores receberam.
19- Para além do referido nos n.ºs 15º, 16º e 17º destes factos provados, as partes nada mais acordaram quanto a nova prorrogação.
20- No início de outubro de 2018, os autores notificaram a ré (...) para proceder ao pagamento da penalização pelo que entenderam ser a desistência da compra do imóvel, no valor de € 51.000,00, acrescida de € 480,00 multiplicados pelos nove meses de atraso, invocando a cláusula 3 do Contrato de Compra Promissória, junto como documento n.º 6 da p.i..
21- A Ré comunicou aos Autores, no dia 19/10/2018, que, face à aproximação do fim do contrato, era tempo de prepararem a restituição do locado, sugerindo:
- Fazerem a inspeção ao locado;
- Fazerem as contas finais;
- Procederem à entrega das chaves.
22- Nessa mesma comunicação a Ré acrescentou que havia créditos a seu favor, que teriam de lhe ser restituídos/pagos, os quais já ascendiam à quantia total de € 39.693,18, sendo:
- € 33.000,00 – devolução da caução entregue nos termos da cláusula 6ª do contrato de arrendamento outorgado em 21/03/2013;
- € 4.800,00 – pagamentos efetuados em excesso no ano de 2017;
- € 1.454,54 – custos de manutenção (canos de água/esgotos) suportados pela Ré;
- € 438,64 – Coima IRC paga pela Ré por declaração tardia de imposto de 2016 (segundo a Ré, por culpa dos Autores não entregarem os recibos da renda atempadamente à Ré).
23- Os Autores insistiram, então, que o contrato de arrendamento continuava em vigor “face à lei portuguesa”.
24- No final de outubro de 2018 a sociedade Ré (…) informou os Autores de que não pretendia manter o arrendamento e queria devolver as chaves.
25- Os Autores recusaram-se a aceitar que o arrendamento tivesse caducado, defendendo que o contrato se mantinha em vigor (vindo a sustentar que tal aconteceu até ao dia 01/03/2019, data em que os próprios Autores consideram tê-lo resolvido por comunicação à Ré).
26- A Ré, quando confrontada com a intenção dos Autores de não receberem as chaves do locado, disse que não deveria haver lugar a quaisquer comunicações ou interpelações para que a cessação do contrato produzisse efeitos na data do termo, que fixava em 31/10/2018, tendo, por via da mesma comunicação, em 20/10/2018 (junta como documento n.º 3 da contestação), reafirmado aos Autores que não iria arrendar o imóvel para além do dia 31/10/2018, bem como iria ainda reter o imóvel até que os mesmos cumprissem o que entendia serem as obrigações contratuais daqueles, de restituírem o valor da caução e liquidarem os demais encargos que a R. considerava serem-lhe devidos.
27- A partir de novembro de 2018 a Ré (…) não mais pagou qualquer renda, tendo sido desde essa data notificada através de carta registada para o fazer.
28- No dia 1/3/2019 os autores enviaram carta registada para resolução do contrato de arrendamento, a pôr fim ao contrato com efeitos a partir de 1/3/2019, dando à Ré (…) prazo para pagar antes de 30 de março de 2019 e entregar o imóvel até 31/3/2019.
29- Mas a Ré (…) comunicou que iria reter o imóvel arrendado, ao abrigo de direito de retenção, por entender ter existido incumprimento das obrigações contratuais dos Autores, não pagou as rendas e ainda está no locado onde gere e explora um “Alojamento Local”, licenciado pela Câmara Municipal de Lagos.
30- Os Autores entenderam então proceder à resolução do arrendamento com fundamento em mora do pagamento de rendas.
31- Os autores recorreram por duas vezes ao BNA, através do procedimento de despejo, mas os seus requerimentos foram rejeitados.
32- A permanência da ré no imóvel causa aos autores prejuízo, sendo que, por terem deixado de receber o pagamento da Ré e não rentabilizarem o locado, e nem conseguirem vender a sua propriedade enquanto a mesma está ocupada, os autores encontram-se numa situação de dificuldade económica.
33- A situação em que os Autores se encontram e o comportamento da Ré, bem como a forma como os Autores o percecionam, tem-lhes causado angústia e contrariedade.
34- Os Autores nunca notificaram o “Comprador” para marcar a data, hora e local da outorga do pretendido contrato prometido de compra e venda notificaram de ou eles próprios a terem marcado.
35- Pese embora a Ré, desde que passou a ser representada por (…), se tenha recusado a aceitar a validade do documento apelidado de “Contrato de Compra Promissória”, mesmo assim, chegou a manifestar aos Autores interesse em adquirir o imóvel, apresentado propostas.
36- Ao abrigo da Cláusula Sexta do contrato original de arrendamento, a Ré entregou aos Autores a quantia de € 33.000,00 (trinta e três mil euros) a título de caução, que deveria ser restituída no termo do contrato, sendo que em caso de incumprimento das obrigações da Ré, os Autores poderiam movimentar a caução e pagar-se por ela.
37- A caução foi constituída para garantia toda e qualquer responsabilidade ou obrigação da Ré perante os Autores, nomeadamente, pagamento de rendas vencidas, penalizações, juros moratórios ou despesas de reparações por danos causados ou até pela substituição de itens perdidos.
38- Os Autores retiveram o valor da caução do contrato de arrendamento, de € 33.000,00, nunca vindo a entregar tal caução de volta à Ré
39- A Ré (…) efetuou obras no locado, no decorrer do contrato de arrendamento, de manutenção, que respeitaram à substituição da canalização, sendo que não havia pressão suficiente na água quente e era fraca a drenagem das águas e esgotos, levando o estado do sistema de canalização a entupimentos dos esgotos.
40- O montante total das obras, pago pela Ré, foi no valor de € 5.212,99 (cinco mil e duzentos e doze euros e noventa e nove cêntimos), dos quais a Ré concordou em suportar parte, no montante de € 1.151,96 (mil e cento e cinquenta e um euros e noventa e seis cêntimos), tendo considerado que caberia ainda aos Autores suportar o remanescente, no valor de € 4.061,03 (quatro mil e sessenta e um euros e três cêntimos), dos quais estes apenas aceitaram pagar e pagaram à Ré o valor de € 2.606,49 (dois mil, seiscentos e seis euros, quarenta e nove cêntimos).
41- A Ré pagou também o valor de € 438,64 (quatrocentos e trinta e oito euros e sessenta e quatro cêntimos), correspondente ao valor da coima de IRC pelo atraso na apresentação da declaração de IRC referente ao ano de 2016.
42- No contrato de arrendamento outorgado acordou-se que a Ré não poderia efetuar obras ou alterações estruturais sem autorização por escrito dos senhorios, sendo que as obras não autorizadas seriam por inteira conta e risco da arrendatária, mais se convencionando que pequenas reparações ou alterações menores eram autorizadas, mas as benfeitorias efetuadas ficariam a fazer parte do mesmo, não podendo a arrendatária exigir por elas qualquer indemnização ou invocar direito de retenção (podendo, no entanto, retirar as benfeitorias que pudessem ser retiradas sem detrimento do prédio), sendo ainda da conta da arrendatária todas as obras ordinárias e extraordinárias e reparos de que o local carecesse para sua conservação e limpeza (sendo considerada da sua responsabilidade a manutenção geral do arrendado), sendo ainda, em especial, que na cláusula 9ª a Ré se obrigou a conservar as instalações de água, à limpeza de esgotos, instalações sanitárias, de luz e respetivos acessórios, incluindo nas casas de banho e na cozinha, suportando todas as despesas com as reparações necessárias que lhe fossem imputáveis.
43- Consta do aditamento ao contrato de arrendamento, assinado pelas partes em 4/2/2017 o seguinte:
“- O Segundo Outorgante assume a responsabilidade de preservar a água, a limpeza do esgoto, as instalações sanitárias, a iluminação e os respetivos acessórios, incluindo os banheiros e cozinhas, sendo as despesas dos reparos necessários a seu próprio custo. Isso inclui também o reparo e a manutenção de sistemas de ar condicionado e água quente, quais quaisquer possíveis custos futuros envolvidos são para o Segundo Outorgante. Além disso, todos os tubos usados para água ou eletricidade dentro das paredes, pisos ou tetos da propriedade são de responsabilidade dos proprietários, com o entendimento de que o Segundo Outorgante cuida bem do uso e evita bloqueios causados, por exemplo, pelo excesso de cálcio nos sistemas de água quente (é preferível um sistema simples de descalcificação logo após o hidrômetro, onde a água da rede entra no local e usa micro filtros para limpar a água da entrada de pequenos impurezas, pequenas pedras, areia, etc.).
Em caso de trabalho urgente dentro ou ao redor da casa (referente a questões de licença ou obras por causa de falhas nas tubulações ou problemas de água ou eletricidade), O Senhorio tem a possibilidade de fazer os trabalhos necessários assim que razoavelmente possível em consulta com a Segundo Outorgante. Nenhuma recompensa será paga o Segundo Outorgante, mesmo que esses trabalhos resultem em perda de receita para o Inquilino. Afinal de contas, estas obras asseguram o uso adequado, seguro, futuro e estabilidade da casa”.
44- O Autor aceitou comparticipar as despesas incorridas nas reparações em 2017 como forma de pôr fim a discussões com o legal representante da Ré, sendo que jamais os Autores admitiram pagar a totalidade das obras.
45- Os Autores nunca assinaram qualquer documento a autorizar ou aprovar essas obras.
46- A Ré solicitou a emissão das faturas das obras em nome de (…), Lda..
47- A emissão das faturas em nome da Ré e não dos Autores impediu os Autores de deduzirem tais despesas na sua declaração anual de rendimentos, ao contrário da Ré que contabilizou essas faturas na sua contabilidade.
48- Existe uma empresa designada de “(…) B.V.”, que partilha com a ré (…) o mesmo sócio, (…), e a morada, Rua da (…), 15, 8600 Lagos, sendo que o sócio (…) comunicava através do email da (…).
49- Os Autores intentaram uma providência cautelar para arrestar as contas bancárias da Ré.

B – As questões do Recurso
i) Da nulidade da sentença
A Recorrente invoca que a sentença é nula nos termos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC porquanto, na parte em que condena no pagamento de indemnização à razão mensal correspondente ao valor da renda, extravasa o que foi pedido (as rendas vencidas desde a data da propositura da ação até à restituição do locado), além de contradizer o despacho que apreciou o requerimento de ampliação do pedido.
Trata-se de questão que foi já dirimida por decisão transitada em julgado proferida por este TRE no recurso anteriormente interposto (cfr. fls. 251 verso, 252 e 286 verso), pelo que está excluída do âmbito de apreciação no presente recurso – cfr. artigo 620.º do CPC.
Segue a Recorrente arguindo que os fundamentos estão em contradição com a decisão porquanto os factos provados sob os n.ºs 1 a 4, 6, 15 a 19, 21 a 29 e 36 a 38 impunham decisão diversa no que se refere ao prazo da última prorrogação do contrato e à data da respetiva caducidade, o que implica na nulidade da sentença à luz do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Tal disposição legal determina que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. A contradição entre os fundamentos e a decisão verifica-se quando a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso, mas a uma decisão de sentido oposto; ocorre quando a decisão briga com o fundamento, está em oposição com ele[1], quando o fundamento repele a decisão.
Constata-se, porém, que os argumentos esgrimidos pela Recorrente contendem antes com a aplicação do direito aos factos provados, com o (des)acerto da subsunção jurídica, pelo que não se trata de eventual vício formal da sentença. A questão de saber se os factos provados foram objeto da devida valoração jurídica, se o direito foi corretamente aplicado, respeita a erro de na apreciação jurídica, na aplicação do direito, erro de julgamento, não contendendo com a nulidade da decisão.
Improcede, deste modo, a pretensão de declaração de nulidade da sentença.

ii) Do direito de retenção da Ré
A Recorrente considera assistir-lhe o direito de retenção do imóvel alinhando os seguintes argumentos:
- o contrato cessou a 31/10/2018 e, não obstante tal facto, os Autores não devolveram os € 33.000,00 de caução;
- os Autores recusaram receber as chaves do imóvel no termo do contrato;
- os Autores recusaram pagar as despesas devidas pela execução de obras;
- inexistiam rendas em dívida ou créditos dos senhorios que justificasse a retenção da caução.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 754.º do CC, o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.
O direito de retenção é uma garantia real que se destina a garantir um direito obrigacional daquele que, estando adstrito à entrega da coisa retida, sendo devedor, é simultaneamente credor daquele a quem deve a restituição, ou seja, consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem a pode exigir enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele. O referido direito apenas opera, permitindo a recusa de entrega da coisa reclamada, caso se verifiquem os seguintes pressupostos:
- a detenção lícita da coisa pelo respetivo titular;
- a obrigação de entrega da coisa;
- a qualidade de credor em face do seu credor da obrigação de entrega da coisa;
- a relação de conexão entre o seu crédito e a coisa a entregar.
O direito de retenção é um direito real de garantia, com função coercitiva para coagir o devedor do detentor de uma coisa a cumprir a obrigação respetiva, e não propriamente para prorrogar o gozo da coisa.[2]
Em 1.ª Instância, exarou-se que o facto de os Autores não terem devolvido à Ré o montante da caução prestada não legitima o exercício do direito de retenção, já que o dever de devolução da caução decorre da efetiva constatação de que inexiste fundamento para a respetiva retenção, total ou parcialmente.
De facto, assim é.
Conforme foi consignado no contrato de arrendamento celebrado, a quantia de € 33.000,00 foi entregue a título de caução, devendo ser restituída no termo do contrato, podendo os Autores pagar-se por ela em causa de incumprimento das obrigações que recaem sobre a Ré (n.º 36 dos factos provados). Foi constituída para garantia de toda e qualquer responsabilidade ou obrigação da Ré perante os Autores, nomeadamente, pagamento de rendas vencidas, penalizações, juros moratórios ou despesas de reparações por danos causados ou até pela substituição de itens perdidos (n.º 37 dos factos provados).
Donde, os Autores apenas estão obrigados a devolver a caução à Ré quando se evidencie nada por esta lhes ser devido em sede de execução e de liquidação da relação de arrendamento, nomeadamente, a título de pagamento de rendas vencidas, penalizações, juros moratórios, despesas de reparações por danos causados ou pela substituição de itens perdidos. O que pressupõe que a Ré apresente aos Autores o imóvel locado no estado de devoluto, permitindo apurar se, para além de outras verbas eventualmente devidas, assiste aos Autores o direito a pagarem-se pela caução, total ou parcialmente, para fazer face a despesas com reparações ou substituição de itens perdidos.
Por conseguinte, uma vez que a Ré se mantém no locado, nele explorando um alojamento local licenciado pela Câmara Municipal de Lagos (n.º 29 dos factos provados), não tendo diligenciado no sentido de permitir apurar não assistir aos Autores o direito a pagarem-se, nos termos do contrato celebrado, pela caução, não colhe a afirmação de que inexistiam créditos dos senhorios que sustentassem a não devolução da caução.
Resta, pois, concluir que a Ré não é titular, por ora, do direito à restituição da caução prestada de € 33.000,00.
Não se afirmando ser credora dos Autores pela verba de € 33.000,00, tal fundamento não legitima o exercício do direito de retenção do imóvel.
No que respeita à intenção dos Autores de não receberem as chaves do locado, já que entendiam que o contrato se mantinha em vigor após 31/10/2018 (n.ºs 24 a 26 dos factos provados), cumpre notar que se trata de questão que não releva para efeitos de reconhecimento à Ré do direito de retenção e do legítimo exercício deste. A verdade, antes contende com a eventual mora do credor, a valorar levando em linha de conta a circunstância de a Ré ter continuado a explorar o seu estabelecimento no locado, assim se prolongando a execução do contrato de arrendamento.
Resta apreciar se a Ré é credora dos Autores pelas despesas realizadas com obras no locado.
Afigura-se que não é.
Conforme decorre dos termos contratuais que regulam a relação estabelecida entre os Autores e a Ré, cabe à Ré suportar as despesas com obras ordinárias e extraordinárias que o locado carecesse, não podendo exigir dos Autores qualquer indemnização nem exercer direito de retenção sobre o imóvel com fundamento nas despesas que fossem inerentes às intervenções elencadas nos n.ºs 42 e 43 dos factos provados.
Apurou-se que, das despesas apresentadas pela Ré como sendo de reembolsar pelos Autores, no montante global de € 4.061,03, os Autores, ainda assim, aceitaram pagar, e pagaram, a quantia de € 2.606,49 (n.º 40 dos factos provados).
Donde, não se apresenta a Ré credora junto dos Autores pela verba de € 1.454,54 relativa a reembolso de despesas com obras realizadas no locado.
Não resultando afirmado ser a Ré credora dos Autores, não lhe assiste o direito de retenção do imóvel.
Direito esse que, de todo o modo e como bem é salientado na sentença recorrida, não legitimaria a utilização do imóvel para exploração da atividade de alojamento local que nele a Ré vem desenvolvendo – cfr. artigos 759.º/3 e 671.º/alínea b), do Código Civil, implicando na aplicação das regras do penhor, até à entrega do imóvel, quanto aos direitos e obrigações do titular da retenção, a Ré, pelo que esta resultou obrigada a não usar dele sem consentimento dos Autores, exceto se o uso for indispensável à conservação do imóvel, o que não se verifica.
De nada valem à Ré as alusões ao tempo decorrido durante o processamento dos presentes autos. Não têm relevância para a apreciação jurídica do litígio. Levam-nos a mencionar que cada sujeito, individual ou coletivo, é responsável pelas condutas que decide adotar e desenvolver no decurso do processo, não existindo fundamento que pudesse levar a Ré a expectar que fosse admitida a manter a sua atividade de exploração do alojamento local no imóvel que tinha tomado em arrendamento dos Autores a custo zero.

iii) Do direito de crédito da Ré contra os Autores
A Ré reclama a condenação dos Autores a restituir o valor da caução e o mais peticionado em sede de reconvenção.
Está em causa o montante de € 33.000,00 pago a título de caução e a verba de € 1.454,54 relativa a reembolso de despesas com obras realizadas no locado.
Como acima se deixou exposto, a Ré não é titular de tais créditos contra os Autores, pelo que inexiste fundamento para condenar os Autores nos termos pretendidos.

iv) Da compensação de créditos
A Recorrente sustenta que não podia ter sido operada a compensação entre o seu crédito relativo à caução e o crédito dos Autores ao valor correspondente às rendas mensais relativo ao período de ocupação do imóvel, porquanto o julgamento deve fazer-se em função dos factos considerados à data da entrada da ação.
Porém, nos termos do disposto no artigo 611.º/1, do CPC, sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
A compensação não operaria, antes, pelo facto de não estar afirmada a qualidade de credora da Ré junto dos Autores.
No entanto, por força do princípio da proibição da reformatio in pejus, por via do qual a decisão do recurso não pode ser mais desfavorável para o recorrente do que a decisão impugnada, desatende-se a pretensão esgrimida em recurso no sentido de não operar a compensação, mantendo-se a dedução do valor da caução (€ 33.000,00) à verba que cabe à Ré pagar aos Autores pela ocupação e utilização que vem fazendo do imóvel desde novembro de 2018.

Improcedem as conclusões da alegação do presente recurso, inexistindo fundamento para revogação da decisão recorrida.

As custas recaem sobre a Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
*
Évora, 8 de maio de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
José Manuel Tomé de Carvalho
__________________________________________________
[1] Cfr. Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. V, págs. 141 e 142.
[2] Ac. TRL de 10/05/2018 (Luís Correia de Mendonça).